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Mas se os discípulos russos de Mach, que pretendem ser marxistas, silenciaram diplomaticamente sobre uma das mais decisivas e categóricas afirmações de Engels, “engendraram”, por outro lado, uma outra afirmação do mesmo autor, inteiramente à maneira de Tchernov. Por aborrecida que seja a tarefa de corrigir as mutilações e as deformações dos textos citados, por isso mesmo é necessário levá-la adiante, se se quer falar dos discípulos russos de Mach.
Eis como Bazarov acomoda Engels.
Em seu estudo Sobre o materialismo histórico(1), Engels diz o seguinte, sobre os agnósticos ingleses (filósofos que seguem as pegadas de Hume):
“Nosso agnóstico admite que todo o nosso conhecimento se baseia nas informações (Mitteilungen) que recebemos por intermédio dos nossos sentidos."
Observemos, para esclarecer nossos discípulos de Mach, que o agnóstico (discípulo de Hume) também adota por ponto de partida as sensações e não reconhece nenhuma outra fonte de conhecimento. O agnóstico é um “positivista" autentico — que os partidários do “positivismo moderno” o tenham por dito!
"Mas, acrescenta (o agnóstico), que é que nos diz que nossos sentidos nos proporcionam imagens (Abbilder) exatas dos objetos que percebem? E, mais adiante, ele afirma que, falando dos objetos ou de suas propriedades, tem em vista não esses objetos ou suas propriedades, dos quais nada pode saber ao certo, mas somente as impressões produzidas nos sentidos.”
Quais são as duas correntes filosóficas que Engels opõe aqui uma à outra? Em primeiro lugar, a que diz que os sentidos nos dão uma imagem exata dos objetos, que conhecemos os próprios objetos, que o mundo exterior atua sobre nossos órgãos dos sentidos. Assim é o materialismo, que o agnóstico repudia. Qual é o fundamento da outra corrente? É que não vai além das sensações e se detém diante dos fenômenos, recusando-se a ver o que quer que seja de “certo”, mais além das sensações. Nada podemos saber de certo das próprias coisas (das coisas em si, dos “objetos tais como são”, como diziam os materialistas contra os quais se levantou Berkeley) tal é a afirmação mais precisa do agnóstico. Nessas circunstancias, o materialismo afirma, na discussão de que fala Engels, a existência das coisas em si e a possibilidade de as conhecer. O agnóstico não admitindo mesmo a ideia das coisas em si, afirma que delas nada podemos conhecer de “certo”.
Qual é, então, a diferença entre o ponto de vista do agnóstico, tal como o expõe Engels, e o de Mach? Seria a da “nova” palavrita “elemento”? Mas é pura infantilidade admitir que um nome possa modificar a corrente filosófica e as sensações deixam de ser sensações quando qualificadas de “elementos”! Será que, nessa ideia “nova”, os próprios elementos constituem o físico numa de suas conexões e o psíquico na outra? Mas não observaram que, em Engels, o agnóstico também substitui as "impressões” pelas “próprias coisas”? O fato, portanto, é que esse agnóstico igualmente distingue as “impressões” físicas e psíquicas! E sempre ficamos diante de uma diferença que gira apenas em torno da terminologia. Quando Mach diz que os corpos são complexos de sensações, está seguindo Berkeley. Mas, quando “retifica” dizendo que os elementos (as sensações) podem ser físicos numa conexão e psíquicos noutra, é agnóstico, segue Hume. Em sua filosofia, Mach não sai dessas duas correntes e é preciso ser-se excessivamente ingênuo para acreditar nos propósitos desse confusionista que afirma que, na realidade, “ultrapassou” o materialismo e o idealismo.
É propositadamente que Engels não cita nomes em sua exposição, porque pretende criticar, não esse ou aquele representante da doutrina de Hume (os filósofos profissionais inclinam-se a considerar como sistemas originais as minusculas modificações que introduzem na terminologia ou na argumentação), mas toda a corrente de Hume. Engels critica os fundamentos e não os pormenores; analisa os pontos fundamentais em que todos os partidários de Hume se afastam do materialismo, e, por esse motivo, sua critica tanto se aplica a Mill como a Huxley ou a Mach. Se afirmamos que a matéria constitui uma possibilidade permanente de sensação (segundo John Stuart Mill) ou representa complexos mais ou menos estáveis de “elementos”, isto é, de sensações (segundo E. Mach), ficamos dentro dos limites do agnosticismo, ou, seja, da doutrina de Hume; essas duas concepções, ou, antes, essas duas fórmulas estão compreendidas na exposição do agnosticismo feita por Engels: o agnóstico não vai além das sensações, declarando que nada pode saber de certo sobre sua origem ou sua verdadeira natureza, etc. E, se Mach atribui grande importância à sua divergência com Mill sobre essa questão, é porque é um “catador de pulgas” (Flohknacker), como esses professores comuns de que fala Engels. Em vez de renunciar ao vosso equivoco fundamental estais catando pulgas, senhores, com vossas minimas correções e vossas mudanças de terminologia!
Como o materialista Engels (no inicio de seu estudo, Engels opõe clara e resolutamente o seu materialismo ao agnosticismo) refuta semelhantes argumentos?
“Não há duvida — afirma —, trata-se de uma concepção que, visivelmente, é difícil de ser refutada pela simples argumentação. Mas, antes de argumentar, os homens começaram por agir. “A princípio, foi a ação”. E a atividade humana superou essa dificuldade; muito antes que o raciocínio a tivesse criado. “The proof of the pudding is in the eating”. (Prova-se o pudim comendo-o). No momento em que, de, acordo com as qualidades percebidas de uma coisa, dela fazemos uso, verificamos, sem erro possível, a veracidade ou a falsidade das percepções nossos sentidos. Se essas percepções são falsas, nossos raciocínios sobre a possibilidade de utilizar a coisa em questão também são necessariamente falsos e toda tentativa de utilização dessa coisa conduzirá inevitavelmente a um fracasso. Mas se atingimos nosso objetivo, se verificamos que o objeto corresponde à ideia que dele fazíamos, se esse objeto nos proporciona o resultado esperado de seu uso, uma prova positiva nos é, então, dada de que, nesses limites, nossas ideias sobre esse objeto e sobre suas propriedades correspondem à realidade exterior a nós.”
A teoria materialista, a teoria da reflexão dos objetos no pensamento, é aqui exposta com absoluta clareza: as coisas existem independentemente de nós. Nossas percepções e nossas ideias são suas imagens. O controle dessas imagens, a discriminação entre as imagens exatas e as imagens inexatas, pela prática. Mas sigamos Engels até um pouco mais adiante (Bazarov termina neste ponto sua citação de Engels ou de Plerrânov, considerando visivelmente supérfluo contar com Engels):
“Se, ao contrário, constatamos que seguimos caminho errado, logo podemos, na maior parte dos casos, descobrir a causa do nosso erro; verificamos que a percepção em que nossa prova se baseava era incompleta ou superficial ou ligada aos resultados de outras percepções de um modo que o estado de coisas não justifica (a tradução russa em O materialismo histórico é inexata). Mas, se desenvolvemos nossos sentidos e deles nos servimos adequadamente, se, em nossa atividade, nos mantemos nos limites das percepções corretamente recebidas e empregadas, sempre obtemos, pelo resultado da nossa ação, a prova da correspondência (Ubereinstimmung) entre nossas percepções e a natureza objetiva (gegenständlich) das coisas percebidas. Tanto quanto sabemos, não houve, até o presente, um só caso em que tenhamos sido forçados a concluir que as percepções dos nossos sentidos, cientificamente controladas, fizessem nascer em nosso cérebro, e referentes ao mundo exterior, ideias que, por sua natureza, se afastassem da realidade ou demonstrassem uma descoordenação natural entre o mundo exterior e as percepções dos nossos sentidos.
Mas eis que o agnóstico neokantista vem dizendo”...
Voltemos, uma vez mais, à análise dos argumentos dos neokantistas. Quem quer que, mesmo pouco, esteja a par da questão, ou seja simplesmente atencioso, não pode senão compreender que Engels expõe aqui o materialismo, sempre e em toda parte combatido por todos os discípulos de Mach. Vejam agora os processos por intermédio dos quais Bazarov acomoda Engels:
“Engels opõe-se, realmente, nesse ponto, ao idealismo de Kant” — escreve Bazarov a proposito do trecho de citação que acabamos de reproduzir.
Não é verdade. Bazarov confunde. Na passagem que ele cita e nós completamos, não há uma sílaba referente ao kantismo ou ao idealismo. Se Bazarov leu na íntegra o estudo de Engels, foi-lhe impossível não ver que Engels apenas fala do neo-kantismo e de toda a corrente de Kant na segunda parte do texto, no ponto em que o interrompemos. E, se Bazarov leu atenção o trecho que ele mesmo cita, se refletiu sobre seu foi-lhe impossível não ver que não há nada, absolutamente de idealista e nem de kantista nos argumentos do agnóstico refutados por Engels, começando o idealismo apenas quando o filosofo afirma que os objetos são nossas sensações, e o kantismo quando o filosofo diz: a coisa em si existe, mas é incognoscível. Bazarov confundiu o kantismo com a doutrina de Hume e o fez porque, em sua qualidade de semi-discípulo de Berkeley e de semi-discípulo de Hume e pertencendo à seita de Mach, não compreende a diferença entre a oposição de Hume e a oposição do materialismo diante do kantismo.
“Mas, sim! — continua Bazarov — sua argumentação tanto visa a filosofia de Plerrânov como a de Kant. Na escola de Plerrânov—Orthodoxe, como Bogdanov já o assinalou, reina um mal-entendido fatal sobre a questão da consciência. Plerrânov supõe, como, alias, todos os idealistas, que tudo quanto é proporcionado pelos sentidos, tudo quanto concebemos, é “subjetivo”; supõe que tomar como ponto de partida o que nos é realmente dado significa cair no solipsismo, e que a existência real só pode ser descoberta mais além do que nos é imediatamente proporcionado”.
Eis uma coisa que está inteiramente à moda de Tchernov e daquela certeza que nos deu Liebknecht era um autêntico populista russo. Se Plerrânov, idealista, se afastou de Engels, por que não sois materialista, vós, pretenso discípulo de Engels? Tudo isso não passa, camarada Bazarov, de sórdida mistificação! Com a expressão de Mach, o “dado imediato”, obscureceis a diferença entre o agnosticismo, o idealismo e o materialismo. Aprendei, então, que o "dado imediato”, o “dado efetivo”, etc., que nada disso passa de confusão imaginada pelos discípulos de Mach, imanentes e todos os outros filósofos reacionários, que tudo isso se reduz a um baile de mascaras em que o agnóstico (e, às vezes, também Mach, o idealista) se fantasia de materialista. O “dado efetivo” do materialista é o mundo exterior, do qual nossas sensações são as imagens. Para o idealista, a sensação é o “dado efetivo”; quanto ao mundo exterior, considera-o “complexo de sensações”. Para o agnóstico, a sensação também é o “dado-imediato”, mas ele não vai além disso, nem em direção à teoria materialista da realidade do mundo exterior, nem em direção à teoria idealista que considera esse mundo como nossa representação. Por isso, vossa expressão “A existência real (segundo Plerrânov) só pode ser descoberta mais além do que nos é imediatamente proporcionado” é um disparate e esse disparate é a consequência obrigatória do vosso ponto de vista de discípulo de Mach. E, se tendes o direito de assumir a atitude que vos convém, inclusive a de um discípulo de Mach, não vos assiste o direito de adulterar Engels, quando a ele vos referis. Ora, Engels leva à conclusão, com clareza exemplar, que a existência real está, para o materialista, mais além da “percepção dos sentidos”, das impressões e das representações humanas, enquanto não é possível ao agnóstico ultrapassar essas percepções. Tendo acreditado na palavra de Mach, Avenarius e Schuppe, quando sustentam que o dado “imediato” (ou efetivo) “abrange”, ao mesmo tempo, o eu sensível e o meio percebido, Bazarov, sacando contra a ignorância do leitor, esforça-se por atribuir essa confusão ao materialista Engels.
“O citado trecho de Engels parece ter sido escrito especialmente para dissipar, da maneira mais popular, mais accessível; esse mal-entendido idealista."
Não é por nada que Bazarov esteve na escola de Avenarius. Continua a mistificação desse último: introduzir como contrabando, simulando combater o idealismo (e não é o caso, nesse texto de Engels), a “coordenação” idealista. Basta, camarada Bazarov!
“O agnóstico pergunta: Como sabemos que nossas sensações subjetivas nos fornecem uma imagem exata das coisas?”
Estais confundindo, camarada Bazarov! O próprio Engels não fórmula e não pretende atribuir ao seu adversário agnóstico uma asneira do calibre das “sensações subjetivas”. Não há outras sensações além das sensações humanas, isto é, “subjetivas”, porque raciocinamos do ponto de vista do homem e não do lobisomem. Recomeçais a atribuir, sorrateiramente, a Engels a doutrina de Mach: para o agnóstico, deixais transparecer, as sensações ou antes, as percepções dos sentidos, são apenas subjetivas (essa não é a opinião do agnóstico), mas a questão é que nós, de concerto com Avenarius, “coordenamos” indissoluvelmente o objeto e o sujeito. Basta, camarada Bazarov!
“Mas que chamais de exato? — retruca Engels. — O que nossa prática confirma; nesse caso, se nossas percepções dos sentidos são confirmadas pela experiência, são exatas, reais, e nada “subjetivas'’, nada arbitrarias ou ilusórias".
Estais confundindo, camarada Bazarov! Substituístes o problema da existência das coisas independentemente das nossas sensações, das nossas percepções, ou das nossas representações, pelo do critério da exatidão das nossas ideias referentes a “essas mesmas” coisas; mais precisamente: afastastes o primeiro problema com o segundo. Ora, Engels diz, clara e nitidamente, que o que o separa do agnóstico não é somente a duvida desse último relativamente à exatidão das imagens, mas igualmente a duvida agnóstica da própria possibilidade de se falar das coisas tais como são, da possibilidade de se conhecer “autenticamente” sua existência. Para que Bazarov se viu na necessidade de utilizar esse subterfúgio? Afim de obscurecer, de complicar a questão fundamental para o materialismo (e para o materialista Engels) da existência, independentemente da nossa consciência, das coisas cuja atuação sobre nossos órgãos dos sentidos suscita nossas sensações. Não se pode ser materialista sem responder afirmativamente afirmativamente a essa questão. Mas é licito aos materialistas admitir nossos opiniões diferentes sobre o critério da exatidão das imagens que órgãos dos sentidos nos proporcionam.
Bazarov aumenta ainda a confusão, quando atribuí a Engels, na discussão desse último com o agnóstico, a absurda e ignorante fórmula segundo a qual nossas percepções dos sentidos seriam confirmadas pela “experiência”. Engels não empregou e nem podia, no caso, empregar essa expressão, sabendo que o idealista Berkeley, o agnóstico Hume e o materialista Diderot apelam, todos três, para a experiência.
“Nos limites em que entramos em contacto com as coisas na prática, as ideias a respeito dessas últimas e suas propriedades coincidem com a realidade exterior". Coincidir: “isso significa que as representações dos sentidos" não são outra coisa “nos limites dados, senão a realidade exterior a nós..."
O fim coroa a obra! Engels, acomodado ao arbítrio de Mach servido com o molho dos discípulos de Mach. Possam nossos honrados cozinheiros não engolir essa atrapalhada iguaria!
“As representações dos sentidos “não são outra coisa” senão a realidade exterior". Mas é precisamente do absurdo fundamental, da confusão fundamental e da hipocrisia da doutrina de Mach que resulta toda a complicação subsequente dessa filosofia, que vale a Mach e a Avenarius o apoio dos imanentes, esses consumados reacionários, esses pregadores de clericalismo. V. Bazarov, depois de ter tergiversado, manobrado e diplomatizado, para contornar os pontos delicados, acabou traindo-se e revelando sua qualidade de discípulo de Mach! Dizer que “as representações dos sentidos não são outra coisa senão a realidade exterior”, é voltar a Hume ou mesmo a Berkeley, mas nas trevas da “coordenação”. Embuste idealista ou estratagema agnóstico, camarada Bazarov, uma vez que a representação dos sentidos, sendo apenas a imagem da realidade exterior, não é essa mesma realidade. Vós vos aferrastes ao duplo sentido da palavra russa soglassovat, em tradução: coincidir. Pretendeis fazer crer ao leitor mal informado que a palavra soglassovat (coincidir) significa, no caso, identidade e não correspondência? Isto é, quereis basear toda vossa falsificação de Engels, ao arbítrio de Mach, na deformação do sentido do texto citado, nada mais.
Tomai o original alemão e nele vereis a expressão stimmenmit, que se deve traduzir por corresponder ou concordar, sendo literal essa última tradução porque Stimme significa voz. A expressão stimmen mit não pode significar aqui “ser idêntico”. É claro e não pode ser de outra forma, mesmo aos olhos do leitor que, sem conhecer alemão, lê Engels com um pouco mais de atenção — que Engels não deixa de considerar, em todo seu arrazoado, a “representação dos sentidos” como uma imagem (Abbild) da realidade exterior e que, por conseguinte, a palavra soglassovat não pode ser empregada em russo senão no sentido de corresponder, concordar, etc. Atribuir a Engels a ideia de que “as representações dos sentidos não são outra coisa senão a realidade exterior” é uma tal obra prima de deformação à Mach, de introdução de agnosticismo e idealismo no materialismo, que Bazarov, cumpre reconhecê-lo, bateu todos os recordes!
Pergunta-se como pessoas que não perderam a razão podem afirmar, sãs de espirito e firmes de memória, que “a representação dos sentidos” (pouco importa em que limites) “não é outra' coisa senão a realidade exterior”. A terra é uma realidade exterior. Ela não pode “coincidir” (no sentido de “identidade”) com nossas representações dos sentidos, nem encontrar-se com essas ultimas em coordenação indissolúvel, nem ser um “complexo de elementos” idênticos, sob outra conexão, à sensação, porque ela já existia em épocas em que não havia nem homens, nem órgãos dos sentidos e nem matéria organizada sob uma forma superior tal, que nela se pudessem encontrar características de sensibilidade, por pouco visíveis que fossem.
É justamente para dissimular o absurdo idealista dessa asserção que se empregam as teorias, custosamente elaboradas, da coordenação, da “introjeção”, dos “elementos do mundo” novamente descobertos, etc., analisadas em nosso primeiro capitulo. A fórmula indiscreta, que Bazarov emite inadvertidamente, é excelente, porque revela, com clareza, um clamoroso absurdo, que seria incomodo exumar-se de maneira diferente de um montão de pedantes futilidades profissionais com pretensões cientificas.
Nós o homenageamos, camarada Bazarov! Erguer-lhe-emos um monumento durante nossa vida. Nele inscreveremos, de um lado, vosso axioma e, do outro, estas palavras: “Ao machista que destilou o machismo entre os marxistas russos”!
Trataremos ainda dos dois pontos abordados por Bazarov no texto citado: dos critérios da prática entre os agnósticos (inclusive os discípulos de Mach) e entre os materialistas, e da diferença entre a teoria das imagens (ou da reflexão) e a dos símbolos ou dos hieroglifos). No momento, continuemos ainda a citar Bazarov:
“Ora, que existe além desses limites? Engels nada diz. Em parte alguma ele manifesta o desejo de concretizar esse “transcenso”, essa saída que, em Plerrânov, está na base da teoria do conhecimento”.
Quais são “esses” limites? São os da “coordenação” de Mach e Avenarius, que tem a pretensão de ligar indissolúvelmente o eu e o meio, o sujeito e o objeto? A pergunta formulada por Bazarov é, em si mesma, destituída de sentido. Se ele a tivesse formulado em termos simples, ficaria bem compreendido que o mundo exterior se encontra “além dos limites” das sensações, das percepções e das representações humanas. Mas a palavra “transcenso” o traiu uma e outra vez. Escapatória especificamente kantiana, própria também dos discípulos de Hume, consiste, em princípio, em traçar uma linha de demarcação entre o fenômeno e a coisa em si. Deduzir do fenômeno, ou, se o quiserdes, da nossa sensação, da nossa percepção, etc., a coisa existente fora da percepção é, diz Kant, um transcenso admissível pela fé, não pela ciência. O transcenso não é admissível absolutamente, intervem Hume. E os kantistas, do mesmo modo que os discípulos de Hume, qualificam os materialistas de realistas transcendentais, de “metafísicos”, porque admitem a passagem (em latim, transeensus) de um domínio para o outro, diferentes em princípio. Podeis encontrar, entre os professores contemporâneos de filosofia, filiados à corrente reacionária de Kant e de Hume (por exemplo: os nomes citados por Vorochilov—Tchernov), a repetição a não mais acabar das acusações de “espirito metafísico” e de transcenso dirigidas contra o materialismo. Bazarov toma essa palavra, bem como toda a marcha das ideias, aos professores reacionários e tudo rotula como o mais moderno positivismo”! O pior é que a própria ideia do “transcenso”, isto é, da diferenciação de princípio entre o fenômeno e a coisa em si, é uma ideia absurda, peculiar aos agnósticos (discípulos de Hume e, inclusive, de Kant) e aos idealistas. O exemplo da alizarina mencionado por Engels já nos permitiu demonstrá-lo; demonstrá-lo-emos, ainda uma vez, apelando para Feuerbach e J. Dietzgen. Mas, primeiramente, limitemo-nos à acomodação de Engels por Bazarov.
“Engels diz, numa das passagens do seu Anti-Dühring, que o problema da “existência” do mundo sensível é uma “questão aberta'’ (offene Frage), ou, noutros termos, uma questão que não podemos nem resolver e nem mesmo formular, uma vez que nos faltam os elementos necessários”.
Bazarov repete esse argumento, a exemplo do discípulo alemão de Mach, Friedrich Adler. E semelhante argumento parece ser pior ainda do que a famosa “representação dos sentidos”, que não seria “outra coisa senão a realidade exterior”. Engels escreveu na pagina 31 (5.ª edição alemã) do Anti-Dühring:
“A unidade do mundo não está em sua existência, embora essa existência seja, no caso, um postulado necessário, devendo o mundo existir antes de ser uno. Ademais, o ser é, em si mesmo, um problema (offene Frage), a partir do limite real onde termina nosso campo visual (Gesichtskreis). A unidade real do mundo está em sua materialidade e essa materialidade não se prova por meio de algumas fórmulas casuísticas, mas por longa e laboriosa evolução da filosofia e das ciências da natureza”.
Saboreai, então, essa nova iguaria, obra do nosso cozinheiro: Engels fala da existência além dos limites do nosso campo visual; por exemplo, da existência de habitantes no planeta Marte, etc. É claro que tal existência constitui, realmente, uma questão aberta. E Bazarov, abstendo-se, como se fosse propositadamente, de citar esse trecho em sua integridade, expõe o pensamento de Engels de tal maneira que a “existência fora do mundo sensível” é que se torna uma questão em aberto! O cumulo do absurdo. Significa atribuir a Engels as opiniões dos professores de filosofia, em cuja palavra Bazarov acostumou-se a acreditar e que Dietzgen qualificava, muito justamente, de lacaios diplomados da "padralhada” e do fideísmo. Na realidade, o fideísmo afirma categoricamente a existência de certas coisas “fora do mundo sensível”. Mas, solidários com as ciências naturais, os materialistas a negam definitivamente. Os professores, os kantistas, os discípulos de Hume (os de Mach inclusive) e outros, que “encontraram a verdade fora do materialismo” e do idealismo e exercem sua função de “conciliar” um e outro, colocam-se no justo meio: a questão, dizem, está aberta. Se Engels nada tivesse dito de semelhante, seria uma vergonha e uma desonra qualificar-se de marxista...
Mas já é o bastante! Meia pagina de citações de Bazarov constitui uma complicação tal que nos vemos obrigados a conter-nos, deixando de seguir até mais adiante os ziguezagues do pensamento de Mach e seus discípulos.
Notas de rodapé:
(1) A evolução do socialismo da utopia à ciência, prefácio à tradução inglesa. Traduzido para o alemão pelo próprio Engels, na Neue Zeit, vol. XI, 1 (1892-1893, n. 1), págs. 15 e segs. A tradução russa, a única se não me engano, faz parte da coletânea O materialismo histórico, págs. 162 e seguintes. A passagem que reproduzimos é citada por Bazarov nos Ensaios de filosofia marxista, pág. 64. - N. L. (O artigo em questão, bem como a brochura a qual serve de prefácio, foram traduzidos para o francês por Paul e Laura Lafargue e delas existem varias edições em francês. (N. do Trad.). (retornar ao texto)
Inclusão | 15/05/2014 |