Sobre o Fascismo

Ernest Mandel

I


A história do fascismo é ao mesmo tempo a historia da análise teórica do fascismo. A simultaneidade da aparição dum fenómeno social novo e das tentativas feitas para compreendê-lo é mais evidente no caso do fascismo do que em qualquer outro exemplo da história moderna.

Esta simultaneidade acha as suas origens no facto do aparecimento súbito deste novo fenómeno parecer vir a desviar o curso da história para o «progresso». O choque que os observadores atentos ressentiram foi ainda maior por esta modificação da história ser acompanhada polo exercício da violência física directa sobre os indivíduos. Destino histórico e destino individual tornaram-se, bruscamente, numa única e mesma cousa para milhares e, mais tarde, milhões de seres humanos. Não só os partidos políticos sucumbiram, como a própria existência, a sobrevivência física, de importantes grupos humanos se tornou bruscamente problemática.

Pode-se assim compreender porque é que aqueles que eram directamente atingidos se empenharam quase imediatamente em conseguir compreender a situação em que se encontravam. A questão «o que é o fascismo?» surgiu inevitavelmente das chamas da primeira Casa do Povo que os bandos fascistas incendiaram na Itália. Durante quarenta anos (até ao período do imediato após-guerra), esta questão tem fascinado tanto os principais teóricos do movimento obreiro como a intelligentsia burguesa. Ainda que a pressão dos acontecimentos históricos e do «passado indómito»(1) (unmastered past) tenha diminuído um pouco nestes últimos anos, a teoria do fascismo permanece um tema obcecante das ciências políticas e da sociologia política.

Para quem sabe quanto as pretensas ciências da história são determinadas socialmente, não é admirável comprovar que as tentativas de interpretação da maior tragédia da história européia contemporânea contenham por vezes muito mais de ideologia partidária do que de ciência.(2) Os factos dados, indiscutíveis, da própria realidade histórica contemporânea constituem materiais a tratar cientificamente. Cada geração de investigadores em ciências políticas e sociais herda a maior parte dos seus conceitos operatórios, por meio dos quais organiza e reorganiza este material. Estes conceitos parcialmente só são renovados e podem considerar-se, eles também, como adquiridos. Mas os conceitos operatórios e o material não determinam de modo nenhum a maneira pola qual estes instrumentos analíticos são aplicados ao material, nem os resultados a que conduz a sua aplicação. Objectivamente, por exemplo, poder-se-ia caminhar em múltiplas direcções a partir do conceito de partido burocrático criado por Robert Michels ou do de «intelligentsia fluctuante» (floating intelligentsia) inventado por Mannheim. Mas o tratamento científico não caminha em todas estas direcções possíveis ao mesmo tempo, mas apenas numa ou algumas dentre elas. Além disso, a principal orientação da investigação sustenta geralmente concepções políticas particulares que reforçam a confiança de certas classes sociais em si próprias, reduzindo largamente, ao mesmo tempo, a sua vulnerabilidade política e moral face aos ataques das classes sociais que lhes são hostis. Assim, dificilmente podemos duvidar de que estamos em presença dum caminhar funcional, isto é, que a interpretação dominante dum dado acontecimento histórico assegura uma função específica nos conflitos sociais em curso.(3)

Parece-nos ser, portanto, evidente, que dificilmente se pode explicar a aparição simultânea do fascismo e da análise teórica do fascismo apenas polo facto de a realidade empírica ser duma urgência tão premente. Os teóricos tentaram compreender a essência do fascismo não só por gostarem da sociologia ou do saber científico em geral, mas também porque partiram da hipótese, perfeitamente razoável e fácil de compreender, que quanto melhor compreendessem a natureza do fascismo, melhor o poderiam combater.

Assim, o crescimento paralelo do fascismo e da análise teórica do fascismo implica necessariamente uma certa inconseqüência. O fascismo não deve o seu rápido crescimento durante vinte anos mais que ao facto da sua natureza real não ter sido correctamente compreendida, ao facto de faltar aos seus adversários uma teoria científica do fascismo, ao facto da teoria dominante na época ser falsa ou incompleta.

Falamos em inconseqüência porque não pensamos que a vitória temporária do fascismo na Itália, na Alemanha e em Espanha foi o resultado de forças cegas do destino, inacessíveis à acção dos homens e das classes sociais, mas sobretudo o produto das relações económicas, políticas e ideológicas entre as classes sociais do neo-capitalismo (late capitalism) que podem ser compreendidas, medidas com precisão e dominadas. Partindo da hipótese que a vitória temporária do fascismo não era inevitável nem predestinada, conlui-se que uma teoria correcta, esclarecedora deste fenómeno, teria tornado a luita contra o fascismo muito mais fácil.

A história do fascismo é, portanto, ao mesmo tempo, a história da inadequação da teoria dominante sobre o fascismo. Isto não significa, falando em geral, que a teoria inadequada sobre o fascismo fosse a única. Na periferia das forças políticas organizadas com uma audiência de massas, encontrava-se uma intelligentsia cuja precisão na análise inspira espanto e admiração hoje. Estes teóricos compreenderam este fenómeno novo. Bastante cedo, compreenderam o perigo que representava. Alertaram os seus contemporâneos e indicaram como vencer o monstro ameaçador. Fizeram tudo o que era possível fazer no domínio da teoria. Mas a teoria sozinha não pode fazer a história; para obter resultados deve apossar-se nas massas. As burocracias que dirigiam as organizações de massas da classe obreira mantiveram as massas afastadas da teoria adequada do fascismo, da estratégia e da táctica eficazes para combatê-lo. O preço que estes burocratas pagaram foi uma derrota histórica e, frequentemente, o extermínio físico. O preço que a humanidade pagou foi incomparavelmente maior. Mesmo os sessenta milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial apenas constituem uma parte do tributo pago pola humanidade, visto que as conseqüências objectivas da vitória do fascismo (especialmente na Alemanha) manifestam-se, ainda hoje, em mais dum domínio.(4)

Não obstante, nada se produz em vão na história; todos os factos históricos têm resultados positivos em longo prazo. Apesar da teoria científica do fascismo não ter tido nas massas uma influência suficiente para barrar a marcha triunfal dos bandos fascistas nos anos trinta e princípio dos anos quarenta, ela é pertinente ainda hoje. Se os seus ensinamentos forem assimilados, poderá esclarecer e explicar os novos fenómenos sociais do após-guerra, preparar novos combates e evitar novas derrotas.

Não é, portanto, por acaso que o renascimento do marxismo criador na Alemanha Ocidental (um renascimento, sobretudo, estimulado pola radicalização massiva dos estudantes) tenha despertado o interesse pola teoria do fascismo. É por isso lógico que o primeiro volume das obras completas de Leão Trotski a ser publicado na Alemanha Federal seja consagrado aos seus escritos sobre o fascismo. Porque, dentre o pequeno número de teóricos que correctamente compreenderam a essência e a função do fascismo, Trotski ocupa, indiscutivelmente, o primeiro lugar.


Notas:

(1) O «passado indómito» está sem dúvida ligado ao facto de na Alemanha as relações sociais que tornaram possível a tomada do poder polos fascistas continuarem a existir. É impossível ir às origens da barbárie fascista sem pôr a nu esta ligadura causal. Na medida em que a dominação do capital oeste-alemão, que foi restabelecida, é uma dominação de classe, não se pode esperar da instituição escolar e universitária a exposição da suas raízes. Enquanto o passado não puder ser (ou não for) explicado de maneira exaustiva, não pode ser «domado». (voltar ao texto)

(2) As publicações mais recentes neste domínio são: o livro de Ernest NOLTE com mais de 500 páginas, Theorien ueber den Fascismus, Kiepenheuer und Witsch, Köln-Berlin, 1967; Wolfgang ABENDROTH, Fascismus und Capitalismus, Europaeische Verlagsanstalt, Frankfurt, 1967; alguns textos de August Thalheimer, Otto Bauer, Herbert Marcuse, Arthur Rosenberg e Angelo Tasca sobre a natureza do fascismo; Walter Z. LAQUEUR e George L. MOSSE, International Fascism — 1920-1945, Harper and Row publishers, New York, 1966. (voltar ao texto)

(3) Seria muito interessante, por exemplo, comparar as fases ascendentes e de descendentes da popularidade da «teoria do totalitarismo» no Ocidente, com o fluxo e refluxo da guerra fria. Surpreenderia aí ver uma clara correlação, não só em longo prazo, mas também em muito curtas conjunturas (como, por exemplo, o período de intensificação conjuntural da guerra fria, que se estendeu desde a construção do muro de Berlim até à crise de Cuba em 1962). Podem-se submeter a uma análise semelhante as teorias contrárias de «conciliação» (convergence theories). (voltar ao texto)

(4) As conseqüências para além de outras que se devem ter em conta para estabelecer este balanço são, por exemplo, os efeitos que teve a tomada do poder por Hitler na estabilização da dominação estalinista na União Soviética e sobre os aspectos mais extremos da deformação burocrática que afectava a estrutura do Estado Soviético; ou os efeitos em longo prazo que teve a iteracção do fascismo e do estalinismo sobre o desenvolvimento do movimento obreiro oeste-alemão e sobre as condições em que a construção do socialismo na Europa Oriental se iniciou, e assim de seguido. (voltar ao texto)

Inclusão 06/05/2007