A emancipação e a desemancipação ao longo da história

Domenico Losurdo

25 de julho de 2014


Primeira publicação: Revista Novos Temas, n.º 11, publicada em São Paulo pelo Instituto Caio Prado Jr. e com uma republicação, em três partes, feita por resistir.info. Entrevista conduzida por Victor Neves.

Fonte: O Comuneiro, Revista Electrónica.

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


No dia 25 de julho de 2014, o professor e filósofo marxista Domenico Losurdo recebeu-me amigavelmente em sua casa em Urbino, na Itália, para conversar sobre certos assuntos ligados a temas caros a nós, comunistas. A entrevista, que durou cerca de três horas, girou em torno de três eixos, que se interpenetraram e se aproximaram do mesmo modo como os problemas fundamentais se entrecruzam na própria luta socialista. O primeiro deles foi a relação entre democracia e luta pela emancipação humana. O segundo, a relação entre essa luta e experiências concretas de construção do socialismo. E o terceiro, a abordagem de certos aspetos teóricos da luta pela emancipação no plano da “batalha das ideias”.

O pensador italiano, por sua profundidade e originalidade no tratamento de temas relevantes, especialmente nas áreas da teoria política e da historiografia – materializada na publicação de dezenas de livros e inúmeros artigos traduzidos em diversos idiomas – já se tornou, há anos, uma das figuras vivas mais influentes no campo do debate marxista. Abordando muitas vezes temas delicados como o problema do “totalitarismo”, o papel histórico de Stalin, o lugar da China na luta socialista hoje, entre outros, suas posições provocam a polémica e, através dela, o bom debate ao qual nós, comunistas, devemos recorrer no sentido de aprimorar a nossa capacidade crítica. Essa é, como sabemos, nossa principal arma no plano teórico para desvelar as determinações fundamentais do real e incidir sobre ele, dirigindo-o no sentido de nosso projeto de emancipação humana na sociedade comunista. Foi, portanto, no sentido de estimular a reflexão e o aprimoramento de nossas próprias posições através do debate aberto e franco – com posições por vezes bastante divergentes, como podem ser as do filósofo de Urbino – que ofereci a presente entrevista à publicação pela revista Novos Temas, um dos mais importantes veículos de estímulo ao debate teórico de que dispõem os comunistas hoje no Brasil.

Victor Neves

Novos Temas: No livro Democracia ou Bonapartismo, o senhor trabalha a partir da oposição entre as “lutas pela emancipação” e o processo de “desemancipação” que estaria ocorrendo no mundo com o neocolonialismo e o neoliberalismo. O que o senhor compreende exatamente quando afirma a possibilidade de uma “emancipação humana”? Esse projeto mantém sua atualidade?

Domenico Losurdo: Penso que sim. A luta entre a emancipação e a desemancipação é uma constante na história universal. Posso dar alguns exemplos que ajudam a demonstrar isso.

Em primeiro lugar, em consequência da Guerra de Secessão nos Estados Unidos na segunda metade do século XIX, houve a abolição da escravidão negra. Trata-se, sem dúvida, de uma grande emancipação. Seguiu-se por certo período, imediatamente após a conclusão daquela guerra (1865), uma democracia multirracial e multiétnica nos Estados Unidos, mesmo no Sul. O Norte havia conquistado a vitória, mas, para administrar o Sul, os brancos do Norte precisavam do apoio dos negros do Sul. Esse é um período feliz da história dos afro-americanos, porque nesse caso eles desempenhavam mesmo um papel político importante nos Estados do Sul.

Entretanto, esse período encerra-se com um compromisso entre os brancos do Norte e os do Sul, a partir do momento em que estes últimos aceitam a vitória e a direção nacional do Norte em troca da seguinte concessão: eles poderiam administrar livremente o Sul. A consequência foi o regime de “supremacia branca” (“White supremacy”) no Sul, com efeitos catastróficos para os negros, provocados por um regime racista, de terror branco dirigido contra os negros, linchamentos, etc..

Ou seja: após a grande emancipação que representou a abolição da escravidão negra, vemos um processo de desemancipação porque, mesmo que a escravidão não tenha sido restabelecida no plano formal, na realidade os negros perderam cada uma das liberdades que haviam conquistado. Trata-se de um claro processo de desemancipação.

Outro exemplo é aquele que se passou com a queda do socialismo na Europa do Leste – e aqui eu sublinho, na Europa do Leste, não no mundo. De um lado, podemos dizer que aqueles povos conquistaram certos direitos políticos que eles não tinham. Mas, de outro lado, devemos notar o claro processo de desemancipação. Com isso quero dizer o seguinte: a revolução anticolonial, que havia conhecido sua grande decolagem com a Revolução de Outubro, foi desacreditada com a queda do socialismo na Europa Oriental. Depois desse processo, houve mesmo uma reabilitação formal do colonialismo. Há hoje muitos intelectuais, como Popper, que sustentam que “nós libertámos os povos coloniais cedo demais”. É a velha tradição colonial que retorna!

Também quando o Ocidente se sente à vontade para declarar guerras de maneira soberana sem a autorização do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, é claro que isso mostra a reapresentação de uma posição neocolonial. Há mesmo uma partilha do Oriente Médio entre os países do Ocidente, que pretendem exercer sua soberania sobre o resto do mundo.

Agora, por que isso se passa? Qual é a relação entre esse retorno e a queda do socialismo na Europa do Leste?

Entre as definições de imperialismo que encontramos em Lenin, há uma que me parece particularmente interessante. Ele diz que o imperialismo é a pretensão de algumas nações por assim dizer “eleitas” de se reservar o direito de constituir Estados nacionais independentes, direito esse que é negado aos outros povos. Essa atitude imperialista tornou-se muito evidente após a queda do socialismo na Europa do Leste.

Quanto a esse ponto, devemos lembrar-nos de que, antes da Revolução de Outubro, o mundo inteiro era propriedade de um punhado de países imperialistas: a África estava partilhada, a índia ainda era uma colónia da Grã-Bretanha, a China era uma semicolónia, a América Latina também, com a Doutrina Monroe. Com a Revolução de Outubro, assistiu-se então ao despertar da revolta anticolonialista em nível planetário; e, com a queda do socialismo na Europa de Leste, assistimos agora à tentativa dos grandes países capitalistas de estabelecer um tipo de neocolonialismo.

As guerras contra o Iraque, a Líbia e a Iugoslávia são guerras neocoloniais que nos mostram claramente esse aspeto da desemancipação. Mas há também outro aspeto que deve ser levado em conta.

Mesmo autores burgueses são obrigados a reconhecer que a Revolução de Outubro tornou mais fácil o estabelecimento do Estado Social na Europa ocidental. Posso citar, nesse contexto, Hayek, o grande mestre do neoliberalismo que recebeu o Prémio Nobel nos anos de 1970. Polemizando ferozmente com os direitos económicos e sociais reconhecidos pela ONU, ele afirmava claramente que esses direitos seriam uma invenção ruinosa da “revolução marxista russa”. Essa é uma citação, e mesmo que eu evidentemente não compartilhe o seu julgamento sobre esses direitos, ele tem toda a razão ao associá-los à Revolução Russa!

Temos assim que, se a Revolução de Outubro contribuiu evidentemente para o desenvolvimento dos direitos sociais mesmo nos países europeus do Oeste, não é de modo algum uma coincidência que, após a desaparição socialismo na Europa Oriental, estejamos assistindo a esse ataque contra direitos sociais na Europa Ocidental.

Um último exemplo pode ser o da luta pela emancipação das mulheres nos países do Oriente Médio. Com a revolução anticolonial, conhecemos ali uma certa emancipação da mulher. Depois da guerra neocolonial contra a Líbia, assistimos agora à reintrodução da poligamia, quer dizer, da escravidão doméstica da mulher. Trata-se evidentemente de uma contrarrevolução contra os direitos das mulheres – ou seja, uma desemancipação para as mulheres.

Esse quadro mostra-nos, ao que me parece, uma característica geral do processo histórico, e eu gostaria de acrescentar uma última observação a esse respeito para concluir esta resposta. É que a visão que tenho do processo histórico não é unilinear. A história não caminha de uma conquista ou de um progresso a outro. De jeito nenhum. O que se passa na realidade é que há uma luta entre emancipação e desemancipação, e essa luta chama-se luta de classes.

Ela pode assumir formas diferentes e, por vezes, é a desemancipação que ganha batalha. Sobre isso, discorro mais aprofundadamente no meu último livro, A luta de classes.

Novos Temas: Aproveitemos então para prosseguir um pouco por esse tema. Como o senhor vê as formas atuais da luta de classes? Quais seriam, hoje, os sujeitos sociais capazes de conduzir essas lutas pela emancipação?

Domenico Losurdo: No plano histórico, há três formas de “luta de classes”. O Manifesto do Partido Comunista fala de Klassenkampfe, e deve-se notar que o termo alemão está no plural. Isso aponta para o fato de que há diferentes formas de luta de classes, dentre as quais a mais conhecida é a forma de luta do proletariado, da classe operária, para abolir aquilo a que Marx e Engels chamaram “escravidão assalariada”. Essa é uma forma fundamental de luta de classes, mas de modo algum a única.

Como ela é a mais conhecida entre os marxistas, não vou falar muito a respeito, preferindo mostrar que Marx e Engels falam também de outras formas da luta de classes. Marx, em particular, quando fala da Irlanda – que naquele tempo era uma colónia da Grã-Bretanha, segundo Marx uma versão da Índia na Europa – afirma que ali “a questão social se apresenta[va] como questão nacional”. Trata-se aqui de uma citação literal, que aponta para que a exploração terrível do povo irlandês se manifestava deste modo: os irlandeses eram expropriados de suas terras, expulsos, por vezes mesmo dizimados. Sofrendo essa exploração opressão terrível estava o povo irlandês enquanto tal, não apenas as classes subalternas. O povo irlandês enquanto nação sofria com isso e, nesse caso, a questão social, segundo Marx, apresentava-se como questão nacional – o que significa que a luta de classes se tornava ali uma luta nacional, sem desaparecer, mas apresentando-se sob essa forma.

Há ainda uma terceira forma da luta de classes. Engels escreveu que as lutas das mulheres contra a opressão sofrida por elas constituíam a primeira forma da luta de classes. Isso porque elas, na situação da família patriarcal, estavam condenadas à escravidão doméstica, formando o “proletariado da família”. Sendo assim, a sua luta pela emancipação deve ser compreendida como uma terceira forma da luta de classes.

A grandeza de Marx, de Engels e do movimento que se inspirou neles residiu na capacidade de unificar essas três formas de lutas de classes no mesmo gigantesco movimento de luta pela emancipação em seu conjunto. Temos de partir dessa constatação para compreender o que se passa hoje. Já falei da luta de classe do proletariado nos países capitalistas, sobretudo nos mais desenvolvidos, com a crise terrível que se manifestou, sobretudo depois de 2008. Sabemos que as condições de vida das classes subalternas foram baixadas com o triunfo do neoliberalismo, que significa a desemancipação no que concerne à colocação em questão do Estado Social e mesmo à sua destruição.

Mas não devemos limitar nosso olhar ao aspeto económico das lutas das classes subalternas nas metrópoles capitalistas. Devemos ter em conta, sobretudo, os aspetos políticos. Já no meu livro Democracia ou bonapartismo, falei de países, como os Estados Unidos ou a Grã-Bretanha, como aqueles onde reina um regime político de “monopartidarismo competitivo”. Isso significa que a classe social que domina é uma só, mesmo se há elites concorrentes no interior da mesma classe. Hoje, muita gente – inclusive autores burgueses – fala do poder absoluto da riqueza sobre a vida política e, a propósito dos Estados Unidos, fala-se de uma “plutocracia”, expressão que remete ao “poder da riqueza”. Devemos então lembrar que esse processo de desemancipação não é apenas uma colocação em questão do Estado Social, mas, de modo mais geral, é a colocação em questão dos direitos sociais e políticos das classes subalternas. Nos países como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, mas mesmo na Itália e em certos outros países, as classes subalternas não possuem mais representação política. Nesse contexto, deve-se mesmo acrescentar que, com o neoliberalismo, a questão social se torna mais e mais um caso de polícia – uma questão que aparece como objeto de intervenção e solução pela polícia.

Cito Stiglitz, norte-americano que ganhou há alguns anos o Prêmio Nobel de Economia: ele mostra, por exemplo, que os Estados Unidos têm cerca de 5% da população mundial total, mas ao mesmo tempo 20% da população carcerária do mundo. Ou seja: o país clássico do neoliberalismo, onde a questão social foi sempre tratada como se fosse uma mera “questão privada”, é o mesmo em que a taxa de encarceramento da população é particularmente elevada.

Mas essa é apenas uma das formas da luta de classes. Devemos agora nos colocar outra questão, referente à diferença de formas da luta de classes que exemplifiquei anteriormente: a luta anticolonialista, uma das lutas de classes que desempenhou papel decisivo no século XX, continua ou não a desempenhar um papel importante?

Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que a luta anticolonialista foi talvez a forma mais importante de luta de classes no século XX. Não apenas no sentido da independência das colónias tradicionais, mas também devido ao significado do nazismo, do III Reich, que não devemos esquecer jamais. No meu livro sobre a luta de classes cito Hitler e, sobretudo, seu colaborador Himmler, que em um de seus discursos dirigidos ao partido nazista dizia que:

“Nós estamos entre nós, e entre nós posso falar com clareza: precisamos de escravos no sentido mais estrito do termo. E nossos escravos serão os eslavos”.

Hoje há vasta bibliografia que demonstra muito claramente que a guerra do III Reich contra a União Soviética foi a maior guerra colonial da história mundial. Devo acrescentar: não somente uma guerra colonial, mas uma guerra escravista. Pois bem: a batalha de Stalingrado foi um dos momentos mais importantes da luta de classes do século XX e isso continua válido mesmo no nível da história universal. Os eslavos deviam se tornar escravos da “raça dos senhores”, ou deviam permanecer livres? Isso é grande luta de classes.

E podemos dizer a mesma coisa com relação à China contra o Império Japonês. Nessa situação, Mao Zedong exprimiu o estado de coisas reinante em uma fórmula magnífica, afirmando que naquela situação concreta (e sublinho, naquela situação concreta, e não em geral) havia uma “identidade entre luta de classes e luta nacional”. Mao havia compreendido muito bem: foi como consequência dessa luta de classes gigantesca que vimos o arruinamento do sistema colonialista mundial.

Qual é então a grande questão hoje? É esta: desde que não há mais sistema colonial clássico, teria a luta anticolonial como forma da luta de classes desaparecido? Trata-se de uma questão complicada. Em primeiro lugar, há ao menos uma situação concreta hoje, na qual a luta anticolonial se apresenta da forma clássica. É a situação da Palestina. Nesse caso, vemos a forma clássica do colonialismo. Afinal, o que fazem os sionistas? O que fazem os colonos israelenses judeus? Eles procedem à expropriação do povo palestino sem distinção e ao terror contra esse povo no seu conjunto. Nesse caso, a luta anticolonialista do povo palestino se manifesta na forma clássica, da luta pela terra. Lenin já explicou, no início do século XX, a diferença entre o colonialismo e o neocolonialismo: se o colonialismo é a “anexação política”, o neocolonialismo é a “anexação econômica”. No caso da Palestina, vemos que se trata de anexação política, já que a terra dos palestinos está submetida ao poder direto, explícito, formal, de Israel.

Em segundo lugar, há uma luta anticolonial que é muito presente. Segundo o raciocínio de Lenin, a luta contra a anexação económica é ela própria uma luta anticolonial e, portanto, ela também é luta de classes. Para explicar isso, parece-me útil citar a posição de personalidades bastante diferentes sobre o assunto. Uma é Mao Zedong. Às vésperas da conquista do poder, ele afirmou aproximadamente o seguinte:

“Os Estados Unidos desejam que a China continue a depender do trigo e da farinha americanos. Nesse caso, a independência política da China será um facto apenas formal, sem significação concreta”.

Mao afirmou isso em 1949. A outra é Frantz Fanon, um dos grandes teóricos da revolução anticolonial argelina, que escreveu o célebre Os condenados da terra. Nesse livro, afirmou que, quando um país colonialista e imperialista é obrigado a conceder a independência a um povo que não pode mais controlar, a antiga potência colonial busca pôr a questão ao povo revoltado nos seguintes termos:

“Querem a independência? Tudo bem, tomem, mas agora danem-se”.

Estas duas personalidades muito diferentes, Mao e Fanon, compreenderam muito bem o mesmo problema:   que após a luta pela independência política tem de vir a luta pela independência econômica, e que a agressão imperialista pode-se manifestar tanto no plano político e militar evidente quanto no plano económico. A história de Cuba fornece um claro exemplo desse problema. Todo o mundo sabe que no ano de 1961 os Estados Unidos tentaram conquistar Cuba, invadindo a Baía dos Porcos, e que esta tentativa foi rechaçada pelo povo cubano. Os Estados Unidos foram obrigados a renunciar à agressão militar, mas nem por isso renunciaram a submeter Cuba: passaram da agressão militar à agressão económica, como constatou com toda a razão Che Guevara.

O embargo é mesmo uma forma de guerra no plano económico. Com esses elementos postos, posso agora trazer à luz uma segunda tese: a luta de classes que consiste na luta de libertação nacional, que desempenhou papel tão importante no século XX, mantém sua importância hoje. Só que essa luta anticolonial passou da fase, sobretudo político-militar à fase, sobretudo político-económica. Por exemplo, se tomamos um país como o Egito hoje, como vocês sabem, o Egito silencia sobre o massacre a Gaza. É claro: um país que depende do trigo americano e do dinheiro saudita não está em condições de se exprimir de modo politicamente independente.

Hoje temos também grandes expressões da luta de classes cujos protagonistas são os países de independência recente, ou os países da América Latina que lutam para se libertar da Doutrina Monroe. Talvez o país mais importante no tocante a essa forma da luta de classes seja, hoje, a China. Como Cuba, ela sofreu um embargo terrível durante muito tempo, mas hoje se desenvolve e quebra o monopólio ocidental da alta tecnologia – que transforma a correlação de forças em nível internacional de modo radical. Mais uma vez: a tarefa daqueles que querem lutar pela emancipação é unificar as três formas da luta de classes, e isso passa por ter em conta corretamente o papel da luta anticolonial hoje.

Novos Temas: Como sabemos, à extensão do direito de voto, que foi consequência das lutas emancipatórias levadas a cabo ao longo do século XX, correspondeu o enfraquecimento das possibilidades reais de participação popular no exercício do poder político. Poderíamos afirmar que a ideia de transformar as lutas populares em uma socialização efetiva do poder não funcionou? Se sim, porquê?

Domenico Losurdo: Devo sublinhar um ponto que me parece muito importante: mesmo com a desemancipação, não ocorre o simples retorno ao status quo ante, à situação anterior. Seria falso pensar que a contrarrevolução implica na reprodução da situação anterior à revolução. Ou seja, devemos compreender o confronto entre emancipação e desemancipação de maneira dinâmica trata-se duma situação que não pode ser compreendida estaticamente. Gramsci, pensando na dialética entre revolução e restauração em seguida à Revolução Francesa, explicava que a Restauração não é o restabelecimento do antigo regime no sentido estrito do termo. Mesmo a Restauração é obrigada a fazer certas concessões, suas possibilidades de vencer dependem dessas concessões. Se pensarmos na Restauração clássica, os camponeses que haviam recebido a terra não foram todos expropriados dela, essa “restauração integral” não teria sido possível porque a reação das massas teria sido muito violenta. Posso dar outro exemplo, entre muitos possíveis: no início do regime fascista, Mussolini pensou em estabelecer o “sufrágio plural”. Esse tipo de sufrágio é sugerido por um autor liberal clássico, John Stuart Mill, que sustenta que mesmo que todas as pessoas tenham o direito de votar, as diferenças de inteligência põem a exigência de uma diferenciação entre os pesos dos votos.

Assim, segundo esse autor, os mais inteligentes (que para ele são os industriais e, não sei muito bem porquê, os professores universitários!) deveriam votar duas ou três vezes, tendo direito ao voto plural. Quando Mussolini desejou implementar isso, mesmo os fascistas lhe explicaram que desse modo as massas populares iriam revoltar-se, porque a humilhação em relação aos privilegiados pelo direito de votar mais vezes seria muito clara. Faço referência a esse episódio no Democracia e bonapartismo,. Hoje-em-dia, mesmo os neoliberais mais duros como Hayek, que polemizam contra o sufrágio universal (Hayek põe a questão, por exemplo, sobre “porque é que o sufrágio universal é um direito?”) não têm coragem de dizer que se deveria reintroduzir o voto censitário. Eles sabem muito bem que a “reinstauração” dessa discriminação no terreno político significaria a revolução, a revolta generalizada. Isso mostra que a desemancipação, no terreno político, se manifesta de uma forma mais soft, mais flexível.

O que se passa hoje é que, com o monopartidarismo competitivo, o poder da riqueza tornou-se ainda mais forte que antes. As classes subalternas encontram-se numa situação de impotência política. Na Itália, por exemplo, com a dissolução do PCI, elas não são mais representadas no Parlamento. Em certas situações de crise, quando se busca concentrar o poder político sobre o poder executivo, podemos falar num “bonapartismo soft”. Entretanto, hoje devemos compreender esse “bonapartismo soft” em ligação com o monopartidarismo competitivo, que permite à burguesia monopolizar o poder político em sua substância, de modo que, em situações de crise mais aguda, é o presidente que toma as decisões mais importantes. É, por exemplo, o caso dos Estados Unidos, onde se pode falar com Schlesinger Jr. de uma “presidência imperial”, já que é o presidente que decide em matéria de guerra.

Tudo isso, entretanto – e aqui é necessário ver claramente –, não é um restabelecimento de situações anteriores, e é por isso que nós devemos desenvolver novos métodos de luta a partir da análise concreta de situações concretas.

Novos Temas: Sua resposta nos conduz a uma nova questão. O senhor põe, dum lado, as conquistas democráticas como parte da emancipação, como ganhos emancipatórios, e, de outro lado, neoliberalismo e seu livre mercado com demonstrações de um processo de desemancipação. Essa posição remete a uma outra, muito forte hoje-em-dia nos meios da esquerda, que consiste em afirmar que o aprofundamento da democracia seria incompatível com o livre mercado. Entretanto, permita-me apresentar uma interpretação um pouco diferente do problema: a forma política “um homem, um voto” repousa sobre a aceitação da regra de que cada indivíduo deva tornar as decisões por si mesmo, ou seja, isolado dos outros – por exemplo, numa cabine de votação inviolável. Não seria essa forma ela mesma a expressão política mais bem acabada do mercado, na medida em que cada indivíduo toma somente por si mesmo a decisão, escolhendo entre os “produtos” propostos aquele no lugar deste, isolado – em sua esfera privada – da interferência do público? Compreendida desse modo, a democracia baseada sobre o sufrágio individual não seria ela mesma a forma política mais compatível com o mercado?

Domenico Losurdo: A minha abordagem do problema seria um pouco diferente, e isso relaciona-se com a minha ideia da democracia enquanto tal. Em primeiro lugar, devemos constatar o seguinte: se tomamos os Partidos Comunistas, por exemplo, eles fazem sempre referência a esse sistema de “um homem, um voto”, e eles são contra o capitalismo e o neoliberalismo. Nós não devemos ter nostalgia de outras formas políticas e de outros sistemas. Nosso problema não é o de inventar um sistema novo, ou de retornar a um antigo, já que o princípio “um homem, um voto” tornou-se parte integrante da consciência universal. Se posso me exprimir de maneira hegeliana, esse princípio hoje já se tornou parte de uma “segunda natureza”, ou seja, ele está tão enraizado que não pode mais ser colocado em questão. Mesmo no plano metodológico, não vejo outra possibilidade.

Mas isto não é, de modo algum, um reconhecimento do caráter democrático da democracia burguesa. Isso porque o problema da democracia tem muitos aspetos, dos quais o principal talvez seja aquele ligado à dimensão internacional, das relações entre as nações. Por exemplo: hoje todos falam de Gaza (infelizmente por razões trágicas), e lá o Hamas chegou ao poder através de eleições democráticas. Em seguida a isso, como a população de Gaza havia votado de maneira “errada” do ponto de vista das potências imperialistas, a região foi submetida a um bloqueio, à agressão e mesmo à guerra mais terrível. Neste caso, onde está a democracia?

Sobre o mesmo problema, se alguém me pergunta: “o senhor, Domenico Losurdo, defende ou não o multipartidarismo em Cuba”? Eu respondo resolutamente: “Não”! E porquê? Seria eu contra a democracia? Não, e na verdade é justamente o contrário: defendo essa posição porque acredito firmemente na democracia. Imaginemos o cenário. Diversos partidos em Cuba, numa situação que o poder multimedia dos Estados Unidos é avassalador. Não haveria sombra de possibilidade real de uma competição mediática e económica justa (fair). Mas, sobretudo, devemos acrescentar outro elemento: como se pode considerar democráticas eleições fundadas sobre a chantagem, sobre as ameaças da parte da única superpotência do mundo, como, por exemplo, “se vocês votam como eu recomendo, suspende-se o embargo, mas se votam mal sofrem o embargo mais terrível e a possibilidade permanente de agressão militar”. O quadro é claro: o imperialismo torna a democracia impossível.

Quanto a esse ponto, é possível acrescentar ainda um elemento, derivado da leitura dos clássicos da tradição liberal, como, por exemplo, Alexander Hamilton. Às vésperas do estabelecimento da Constituição Federal que reforçaria muito o poder central nos Estados Unidos, em 1787, ele está engajado em convencer seus compatriotas a votar pela Constituição, afirmando que, se não fosse constituído um Estado Federal – e, portanto, se houvesse uma pluralidade pequenos Estados naquela região –, nesse caso, devido à preocupação por parte de cada um dos Estados de vir a ser agredido, o absolutismo europeu acabaria por chegar mesmo aos Estados Unidos, com cada um daqueles pequenos Estados preocupado em salvaguardar sua soberania.

Hamilton compreendeu muito bem que a rule of law, o governo da lei, supõe uma situação de tranquilidade geopolítica. Ele pressupõe uma situação em que não há perigo de guerra ou de agressão. Portanto, não se deve afirmar que a democracia, a fórmula “um homem um voto” é falsa, mas apenas que a democracia se torna impossível com o imperialismo. Há uma situação de insegurança geopolítica espalhada pelo mundo, com as bases militares norte-americanas presentes em todo canto, e os Estados Unidos tornam impossível a democracia que eles tanto afirmam defender.

Quanto a isso, podemos mesmo citar um presidente dos Estados Unidos. Franklin Delano Roosevelt afirma, no seu célebre “Discurso das Quatro Liberdades”, o direito de viver ao abrigo do medo (“freedom from fear”) como direito essencial. Ele polemizava contra Hitler nesse momento, mas a polémica é válida hoje contra os Estados Unidos, que aboliram o direito de viver ao abrigo do medo para o mundo inteiro!

Em segundo lugar, se há uma desigualdade esmagadora no tocante à riqueza, não haverá possibilidade de liberdade política. Esse é um elemento de que não nos devemos esquecer e que também foi discutido pelos clássicos do pensamento político – veja que nesse contexto eu não cito Marx e Engels, mas somente os liberais. Tomemos um autor liberal como Benjamin Constant. Qual é seu argumento para justificar a discriminação censitária e defender que os trabalhadores não tenham direito de votar? Constant afirma que se o patrão pode demitir o trabalhador ou não empregá-lo, colocando-o em situação de desemprego, isso quer dizer que ele controla a vida do trabalhador. Ora, esse último encontra-se assim sob o controle de alguém, não sendo propriamente livre. Então, não sendo livre, não deve ter direito a votar. É claro que poderíamos tirar outras conclusões desse raciocínio: por exemplo, que a condição de servidão do trabalhador em relação ao patrão deveria ser eliminada.

Finalmente, gostaria de apontar para um último aspeto do problema, mesmo se corro o risco de transformar esta exposição num percurso um pouco longo. Já afirmei que sem uma situação de tranquilidade geopolítica não é possível realizar a democracia. Citei mesmo Roosevelt, que explica que sem a “freedom from fear” não há a possibilidade de realizar a democracia. Também assinalei que em situações de desigualdade esmagadora não é possível realizar a democracia. Mas é necessário trazer à baila ainda uma questão: o que se passa quando não estamos numa situação “normal”? O que é que se passa quando estamos “fora do normal”, em situação de grave crise política? Para responder, vou citar, pela última vez neste contexto, mais um autor liberal: Adam Smith, o grande clássico da Economia Política, o autor de A Riqueza das Nações. Na segunda metade do século XVIII, ele escreveu uma obra que tem de ser conhecida por quem se dedica a pensar o tema, as Lições sobre a jurisprudência. Estamos às vésperas da Revolução Americana, ele é contrário à escravidão (e devemos dar-lhe o devido crédito por essa posição) e se coloca a seguinte questão: “de que modo podemos abolir a escravidão”?

Smith pensa na situação da América do Norte num contexto em que ela ainda está submetida ao poder de Londres – os Estados Unidos ainda não foram fundados. Naquilo que mais tarde serão os Estados Unidos havia, nesse momento, o autogoverno (“self government”), ou seja: o governo dos organismos representativos como os parlamentos locais, que eram evidentemente controlados por proprietários de escravos, já que ainda havia a escravidão. É justamente nesse contexto que Adam Smith formula uma tese muito interessante para responder àquela questão sobre como se poderia abolir a escravidão. Ele responde na seguinte linha: “não com um governo livre”! Porque os governos livres, nesse caso, são organismos representativos monopolizados por proprietários de escravos, e estes não decidiriam jamais por serem privados da sua propriedade. Nesse caso, todos os amigos da humanidade teriam de preferir um “governo despótico”, porque somente este poderá libertar os escravos.

Qual o fundamento do raciocínio de Adam Smith? Ele está convencido de que a liberdade é um valor universal, e também da bondade de governos livres. Mas, nessa situação concreta, ele compreende que é forçoso escolher entre o governo livre concretamente monopolizado por proprietários de escravos e a libertação dos escravos. Nesse caso, onde a liberdade dos proprietários de escravos está em contradição flagrante com a liberdade dos negros, Adam Smith defende o despotismo, um despotismo que obrigue em certo lapso de tempo os proprietários de escravos a renunciar à sua “propriedade”.

É isso a história universal. Ainda quanto a esse problema, devemos nos lembrar de que foi sob a ditadura militar exercida por Lincoln que a escravidão negra foi finalmente abolida nos Estados Unidos! Portanto, mesmo se sou contra ditaduras militares, sou obrigado a reconhecer que, nesse caso concreto, uma delas desempenhou um papel progressivo.

Vemos assim que há certos casos concretos na história em que a escolha não é entre despotismo e liberdade, mas entre diferentes liberdades em conflito. Nessas situações, podemos falar de um conflito de liberdades. No caso concreto sobre o qual venho de discorrer, havia um desses conflitos de liberdades, não existindo ali a possibilidade concreta de escolher entre liberdade e despotismo, mas apenas entre, de um lado, medidas despóticas contra os proprietários de escravos e, de outro, a aceitação do despotismo dos proprietários de escravos sobre sua propriedade, sobre seus escravos. Mesmo a história do socialismo é, em grande parte, a história de um conflito de liberdades provocado, no mais das vezes, pelo imperialismo e pelas agressões imperialistas.

Novos Temas: Mas, nessa conjuntura em que o senhor afirma que a democracia se tornou uma “segunda natureza”, será que combinar de modo indiferenciado a luta pela emancipação humana à luta pela ampliação da democracia não pode acarretar prejuízos à classe trabalhadora? Hoje, por exemplo, destacados pensadores de esquerda vêm afirmando que certos resultados da luta pela ampliação de direitos, à primeira vista positivos, contribuíram para a captura nos marcos da ordem burguesa de importantes movimentos que outrora lutaram pela emancipação, aprisionados nos limites de uma lógica contraditória: conquista de direitos, sim, mas apenas até o ponto em que as classes dominantes aceitaram concedê-los, amarrados por laços restritivos e corporativos e purificados de intenções de rutura com a ordem vigente. O que pensa o senhor dessa posição?

Domenico Losurdo: A resposta para esse problema não está em renunciar à luta pela democracia, nem em subestimá-la. Trata-se aqui de compreender a democracia em seu sentido verdadeiro e, para isso, deve-se pensar, como já mostrei noutra resposta, na dimensão internacional. Por exemplo: é ridículo pensar no problema da democracia em Cuba sem considerar o embargo enquanto expressão da tentativa dos EUA de exercer o direito de vida e de morte sobre um povo inteiro. Ou seja, devemos considerar os diversos aspetos e as diversas dimensões dos problemas ligados à democracia. Devemos também ter em conta outro aspeto do pensamento de Marx: a sua preocupação não é apenas com a solução da questão social. Marx mostra-nos, por exemplo, no Manifesto do Partido Comunista, que devemos examinar o problema da liberdade a partir da esfera da produção, onde tem lugar o despotismo mais explicito. Se analisarmos o mundo capitalista de hoje, veremos que a liberdade conheceu uma restrição muito grave devida a diversas razões, como a precarização, o desemprego, a competição entre os trabalhadores... Por tudo isso, a luta pela democracia é falsa apenas se aceitarmos a visão burguesa e capitalista da democracia. Se não a aceitamos, temos de chegar à conclusão de que hoje-em-dia o inimigo mais encarniçado da democracia e dos direitos humanos é o capitalismo e o imperialismo.

Novos Temas: Existem hoje no mundo certos Estados que se reivindicam socialistas, como a China, a Coreia do Norte, Cuba e o Vietname. Qual o papel de cada um desses Estados na luta pela emancipação? E do conjunto desses países? O que pensa dos ataques frequentes contra esses Estados por parte dos grandes meios de comunicação dos países capitalistas? É possível encontrar relações entre esses ataques e medidas de sanção económica atualmente em curso contra algum desses países?

Domenico Losurdo: Vou começar a responder-lhe a partir de Kant, fim do século XVIII. Com a Revolução Francesa em processo, estoura a guerra contrarrevolucionária conduzida pelos Estados do Antigo Regime contra a França. As coligações contra a França revolucionária são frequentemente dirigidas pela Inglaterra, que se declara liberal. Kant, polemizando com a Inglaterra liberal, coloca uma questão: “em que circunstâncias se pode afirmar que um governo é despótico?” Ele responde que um governo é despótico se pode declarar a guerra sem controle. Isso quer dizer que, se um governo pode declarar a guerra de modo soberano e livre de outros controles, ele é despótico, e daí Kant conclui: o governo da Inglaterra, que se pretendia liberal, era um governo despótico.

Hoje, quando o Ocidente, e, sobretudo, seu país-guia, os Estados Unidos, pretendem declarar guerras de maneira soberana e mesmo sem a autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, eles procedem de modo despótico. Eles são os déspotas de nossa época...

Mas não há somente a guerra. Em diversos de meus livros eu cito um artigo publicado há alguns anos na revista Foreign Affairs, muito próxima do Departamento de Estado dos Estados Unidos (uma fonte que não pode em hipótese alguma pode ser apontada como “de esquerda”!), que mostra que as sanções decididas pelo Ocidente e, sobretudo, pelos Estados Unidos – por exemplo, contra o Iraque, sob o argumento da luta contra as armas de destruição em massa, que hoje o mundo todo sabe que era falso, que o Iraque simplesmente não possuía as tais armas –, provocaram mais mortos ao longo da história do que todas as armas de destruição em massa somadas. No Iraque de Saddam Hussein, por exemplo, essas sanções provocaram centenas de milhares de mortes entre a população civil. Ou seja: tais sanções não são apenas guerra, mas uma modalidade de guerra particularmente bárbara e indiscriminada. E, se elas são decididas pelo Ocidente de modo soberano, temos mais uma vez uma situação de guerra decidida unilateralmente, ou um caso de despotismo.

Podemos também considerar o caso de Cuba e a sua relação com os Estados Unidos. Trata-se da relação entre uma superpotência que quer ser despótica – e que o é em suas atitudes – e um país que luta por sua liberdade. Mesmo se abstraíssemos do regime socialista em Cuba, a luta cubana já seria uma luta por sua liberdade e deveria servir de exemplo para o mundo todo. Isso nos conduz a outra questão: porque é que nos últimos tempos as sanções decididas pelos Estados Unidos se tornaram um pouco menos assassinas? Isso não tem nada a ver com um suposto abrandamento do imperialismo... A chave para a resposta é o desenvolvimento tecnológico da China.

Esse desenvolvimento foi de tal maneira prodigioso que, por exemplo, as tentativas dos Estados Unidos de reduzir Cuba à inanição fracassaram graças à relação comercial entre Cuba e a China (e também entre Cuba e Venezuela). Portanto, seja Cuba, seja a China, desempenham um papel muito importante para a liberdade e para a democratização das relações internacionais. E por que a China e Cuba resistiram tão bem ao imperialismo? Nesse caso, o regime social interno, o socialismo, é a chave para a resposta. Mao e, depois dele, Deng Xiaoping já afirmava que somente o socialismo poderia salvar a China, e Castro sempre disse o mesmo sobre Cuba, vindo dessa compreensão a afirmação da alternativa “socialismo ou morte”, e mesmo daquela “pátria ou morte”.

Tudo isso me obriga agora a tocar no ponto da pretensa “restauração do capitalismo na China”. Em primeiro lugar, devo dizer que para mim tal afirmação parece muito académica. Para que se compreenda o que quero dizer com isso, pode ajudar estabelecer certos paralelos com a história da Rússia soviética. Se tomarmos os primeiros quinze anos da Rússia soviética – da Revolução de Outubro até 1932 – veremos que, no esforço para construir uma sociedade pós-capitalista, tivemos aí três sistemas diferentes: no início, o comunismo de guerra; após alguns anos, a NEP, que tornou possíveis certas formas de propriedade capitalista nas cidades; e, depois, com a vinda do perigo de guerra mais agudo, a coletivização total sob Stalin. Temos então três sistemas sociais diferentes, mas todos pós-capitalistas, ainda que haja contradições entre um e outro.

Agora devemos considerar a história da China, que é um pouco diferente... Em primeiro lugar, o Partido Comunista Chinês já exercia o poder antes de sua conquista no nível nacional. Ele havia começado a exercê-lo em nível regional já a partir dos anos de 1920, ou seja, vinte anos antes de sua tomada ao nível nacional. Quando Edgard Snow visita a “China Soviética”, as “regiões libertadas” da China governadas pelo poder comunista, ele descreve empresas cooperativas públicas, estatais, privadas. Tudo misturado, ali a situação já era essa, e durante a Revolução Cultural nunca houve a estatização completa.

Para compreender essa característica da China comunista, podemos citar Mao Zedong. Nos anos de 1950, um pouco depois da conquista do poder, ele propôs a distinção entre a “expropriação política” e a “expropriação económica” da burguesia. Ele sustentava que os comunistas chineses precisavam conduzir a expropriação política da burguesia até o fim, ou seja, a burguesia não iria ser capaz de exercer nenhum poder político, nenhuma influência real. Entretanto, no que concerne à expropriação económica, seria possível limitá-la, para preservar alguma capacidade burguesa de administração e empreendedorismo. Essa foi a atitude constante do Partido Comunista Chinês e, nesse sentido, podemos ver uma linha de continuidade entre Mao Zedong e Deng Xiaoping.

Na China de hoje, na qual assistimos a uma grande decolagem económica e tecnológica, mesmo se certamente há uma burguesia, ela não exerce o poder, que está integralmente nas mãos do Partido Comunista. E digo mais: a China pôde realizar tantas conquistas formidáveis no plano tecnológico somente na medida em que se abriu ao mercado mundial, porque a tecnologia – sobretudo após a queda da URSS – se havia tornado monopólio das potências ocidentais. Mas a China, ao mesmo tempo em que se abriu, sempre controlou o seu mercado interno com as empresas estatais, que desempenham um papel fundamental.

Novos Temas: Por outro lado, se tomarmos em conta as relações sociais internamente à China, assim como os números constantes em estudos referentes à exportação chinesa de capital, que se desenvolve e se aprofunda hoje, não seria possível pensar na possibilidade de que o Partido Comunista Chinês esteja a tornar-se progressivamente no seu contrário? Ou seja, não seria possível pensar no PC transformando-se pouco e pouco em algo como um administrador coletivo de uma modalidade concreta e historicamente específica de capitalismo em desenvolvimento? Se esse raciocínio for correto, a China estar-se-ia afirmando hoje como uma nova grande potência capitalista, e não socialista, mesmo sendo dirigida pelo Partido Comunista...

Domenico Losurdo: Bem... Quer me parecer que o perigo da passagem do socialismo ao capitalismo, ou seja, da restauração do capitalismo, está sempre presente. Sobre isso, não é necessário insistir. Mas não se deve esquecer uma coisa: se examinarmos a restauração do capitalismo na URSS, ela se processou numa economia quase completamente estatal, e isso indica que a propriedade estatal não é de modo algum uma garantia contra o perigo de restauração do capitalismo. Por outro lado, o facto de que haja algum grau de privatização da economia não é em si mesmo uma prova de que o capitalismo vá triunfar na China.

Na viragem dos anos de 1990, o capitalismo foi restaurado na Europa Oriental, aí compreendida a URSS, onde a propriedade era fortemente estatal, mas não na China! Constatar isso força-nos a perguntar o porquê, e parece-me que a resposta passa por compreender que o problema comporta outras dimensões que não apenas a económica. Se considerarmos a dimensão política do problema, veremos que o poder político se liga estreitamente à existência e ao alargamento de uma base social de consenso sobre a qual o poder socialista tem de se apoiar. Se a China tivesse permanecido um país pobre, ou mesmo miserável – e o objetivo do embargo contra ela era exatamente esse –, a base social de consenso ter-se-ia tornado demasiado frágil, e isso poderia ter conduzido à derrota do socialismo e à restauração do capitalismo.

Posso citar a esse propósito a história da RDA, a Alemanha de Leste, que possuía um Estado Social bastante desenvolvido, talvez com o melhor serviço de assistência médica do mundo (reconhecido como tal mesmo por burgueses), mas cujo sistema não foi capaz de resistir ao poder de atração da opulência e da riqueza da Alemanha de Oeste. O problema aqui é que os países socialistas são sempre postos, queiramos ou não, em competição com as potências capitalistas, e isso põe obstáculos no sentido de sua legitimação social. Eles são obrigados a desenvolver a suas formas produtivas e a sua capacidade de produção de riqueza social porque, sem isso, o poder socialista não se torna sólido, não se legitima socialmente. É isso o que se passa na China hoje.

Novos Temas: Há ainda os governos de países fora do campo socialista, mas que se dizem simpatizantes do socialismo. Refiro-me ao fenómeno, particularmente notável na América Latina, dos governos situados no assim chamado “campo da esquerda”, que polarizam de maneira não-negligenciável o debate político no subcontinente. Como os avalia?

Domenico Losurdo: Podemos dizer que há aí uma continuidade com a história de Cuba e mesmo com a história do socialismo enquanto tal. Se tomarmos a história de Cuba, é claro que a Revolução cubana não começou como revolução socialista. Os revolucionários cubanos tornaram-se socialistas e comunistas quando compreenderam – muito bem, por sinal – que a vitória de sua revolução não era possível desvinculada da luta contra o imperialismo, quando compreenderam que somente o socialismo e um partido comunista poderiam salvar Cuba da agressão imperialista e do destino colonial que o imperialismo havia reservado à ilha. O mesmo raciocínio é válido para a China, e há mesmo um texto muito importante de Mao, onde este traça um quadro geral da história da Revolução chinesa e mostra que a China tentou de diversas maneiras sustentar a sua independência, o que só se tornou possível a partir de sua reorientação socialista, marxista – a partir, portanto, da compreensão de que, sem a passagem ao socialismo, a luta contra o imperialismo seria condenada à derrota.

No que diz respeito à América Latina, em países como a Bolívia, Venezuela, Equador, mesmo que a situação histórica seja diferente, o que se passa ali tem traços comuns com essas experiências. Esses países não começaram enquanto socialistas ou comunistas, mas na prática revolucionária enquanto tal eles compreenderam a necessidade de ligar a luta nacional à luta social, até porque, sem uma série de conquistas sociais reais, o povo não seria convencido a defender a independência nacional contra um imperialismo encarniçado.

Essa parece-me a característica fundamental desses processos do assim chamado “socialismo do século XXI”. Eles são muito importantes, mas devem ser vistos como parte da história do movimento comunista, até porque a revolução não é nunca a consequência de apenas uma contradição, mas o resultado de um cruzamento de diversas delas. Por exemplo, a luta interna contra a riqueza parasitária tem de se articular com a luta contra o imperialismo, e os partidos comunistas só podem vencer se forem capazes de compreender as contradições e o seu entrecruzamento, de modo a dominá-las.

Novos Temas: Esse problema de “entrecruzamento de contradições” fez-me pensar no movimento socialista hoje. A crer nos nomes dos partidos no poder nas últimas décadas, entre avanços e recuos, o “socialismo” já estaria implantado na Europa Ocidental de modo muito “bem-sucedido”… para a continuidade e o aprofundamento do capitalismo e do imperialismo europeus. Seria possível explicar o amoldamento à ordem dos partidos socialistas europeus, e mesmo duma parte considerável dos partidos comunistas, a partir do facto de que eles apostaram suas fichas no enfrentamento de contradições cuja solução podia ser absorvida pelo sistema capitalista? Que fundamentos parecem adequados ao senhor para colocar em questão uma posição política que passou da crítica radical da ordem capitalista ao acompanhamento cúmplice da sua construção e do seu desenvolvimento?

Domenico Losurdo: Para começar, parece-me importante marcar o seguinte: se quisermos compreender o processo histórico, não somente as revoluções socialistas, mas também as revoluções burguesas – devemos abandonar aquilo a que chamo “lógica binária”. Há sempre, nas revoluções, o “cruzamento” de contradições a que fiz referência, e isso é válido até mesmo para a Revolução Francesa e, para que se tenha a certeza do que digo, basta lembrar a invasão do país pelas potências estrangeiras que desejavam a derrota da revolução.

A partir daí, podemos falar sobre o comunismo europeu. Gostaria de pôr a ênfase sobre a Itália, em particular. No que concerne ao Partido Comunista Italiano, a questão parece-me simples e dolorosa: com a queda do socialismo na Europa Oriental, muitos comunistas italianos simplesmente acreditaram que a história havia acabado! “O capitalismo triunfou, com o seu triunfo passamos a viver no melhor dos mundos”... Eles, de facto, deixaram de ser comunistas: Mais: deixaram mesmo de ter qualquer sombra de pensamento crítico. Eu às vezes digo que, com a queda do Muro de Berlim, caiu também a inteligência de muitos comunistas e intelectuais italianos.

No tocante à história da “Refundação Comunista”, devemos pensar noutros termos. Essa organização pretendia ser comunista, e os seus membros sabiam que, com a queda do socialismo na Europa do Leste, a história não havia terminado... Mas, então, porque é que a “Refundação” sofreu também ela uma derrota? Parece-me que uma razão importante é aquilo a que podemos chamar “niilismo histórico”, ou seja, a negação total de toda a história do movimento comunista, interpretado como a história de loucuras e mesmo de crimes. O principal responsável por essa interpretação foi Fausto Bertinotti, que sem querer, acabou fazendo um balanco da história do movimento comunista próprio da burguesia.

Novos Temas: Caminhemos agora em direção à terceira e última parte de nossa entrevista. O senhor é, hoje, conhecido mundialmente por contar a história dos últimos séculos de modo diferente daquele de certa tendência que vem querendo impor-se no campo da historiografia – o chamado “revisionismo histórico”, que adiante discutiremos. Nesse processo, o senhor vem construindo uma verdadeira contra-história fundada sobre uma interpretação crítica do que se passou no período e que se materializou, por exemplo, em obras como Stalin: história e critica de lenda negra, A não-violência: uma história fora do mito e Contra-história do liberalismo. Quais são as bases teóricas desse trabalho de contra-história?

Domenico Losurdo: Comecei como discípulo e pesquisador do pensamento de Hegel. Escrevi muito sobre ele, e foi dele que tomei a minhas teses fundamentais. Primeira: filosofar é compreender o próprio tempo de modo concetual, é conceptualizá-lo. Na verdade, meti-me a historiador porque queria filosofar! E não é possível fazer filosofia sem compreender o tempo no qual vivemos. Segunda tese, e aqui cito a Fenomenologia do espírito: “a verdade é o todo”. Essa afirmação não tem nada de genérica, como veremos.

Vou então dar um exemplo para explicar minha “contra-história”, como você a chamou. Hoje, uma tese muito difundida é aquela que afirma que os Estados Unidos são a democracia mais antiga do mundo. Chega a ser um dogma da “teologia política” norte-americana, a tal ponto que Clinton, ao pronunciar o seu primeiro discurso como presidente dos Estados Unidos, afirmou sem titubear que esse país constituía a mais antiga democracia do mundo, e tinha a missão eterna (“timeless”) de dirigir o restante do mundo para a democracia, etc. Não nos interessa nessa entrevista polemizar com este “mito genealógico” no plano político, mas sim discutir a afirmação que o fundamenta dum ponto de vista metodológico.

Pois bem: “os Estados Unidos são a mais antiga democracia do mundo”. Quando Clinton afirma isso ele tem de fazer, evidentemente, abstração do destino reservado aos peles-vermelhas expropriados, dizimados, exterminados nos EUA, assim como da escravidão dos negros. Nos planos metodológico e epistemológico – para não falar do plano político –, será mesmo correto fazer abstração da condição dos peles-vermelhas e dos negros? Não! Não é correto. E isso não apenas devido à afirmação de Hegel de que a verdade está no todo, mas também porque não se pode fazer abstração da quase totalidade das relações sociais numa sociedade determinada, escolhendo apenas as partes que preferimos e delas “deduzindo” que “sim, claro, os Estados Unidos são a mais antiga democracia do mundo”...

Pode-se citar quanto a isso, como faço no meu livro sobre a contra-história do liberalismo, o caso de dois viajantes, dois franceses que visitaram os Estados Unidos quase ao mesmo tempo, mas um de maneira independente do outro, Tocqueville e Schoelcher. Os dois são honestos do ponto de vista intelectual, já que ambos constatam de um lado o governo da lei e a democracia para os brancos, e do outro lado o extermínio dos peles-vermelhas e a escravidão terrível dos negros. Mas qual a conclusão de cada um deles? Tocqueville conclui que os Estados Unidos são o maior país democrático do mundo. Já Schoelcher chega à conclusão totalmente oposta: para ele, os Estados Unidos são o país mais despótico do mundo, aquele onde se pratica o despotismo mais feroz.

Mas então quem tinha razão, o primeiro ou o segundo? No meu livro respondo que os dois estavam até certo ponto errados, mas talvez Tocqueville mais do que o outro. E porquê? Porque – e hoje isso é praticamente consensual entre os pesquisadores, mesmo os burgueses que se ocupam seriamente do tema – a democracia entre a comunidade branca nos Estados Unidos só se tornou possível com o extermínio dos peles-vermelhas e a escravidão dos negros. Era a “democracia para o povo dos senhores” (Herrenvolkdemocracy). De um lado, a expropriação, a deportação e a dizimação dos peles-vermelhas tornaram possível transformar trabalhadores assalariados em proprietários de terras e, por essa razão, o conflito social tornava-se muito menos agudo. De outro lado, o trabalho mais duro era exercido pelo escravo negro, mas a sua condição de escravo punha-o direta e duramente sob controle no seu próprio local de trabalho e de vida.

Ou seja: o conflito social era atenuado porque os assalariados se tornavam proprietários e os trabalhadores eram escravos rigidamente controlados. E com o conflito adormecido, tornava-se fácil instalar uma democracia para os brancos, quer dizer para apenas uma fração dessa sociedade, ainda mais porque a situação geopolítica dos Estados Unidos era tranquila, não havia uma potência estrangeira a temer.

Então, afirmar que os Estados Unidos são a mais antiga democracia do mundo é simplesmente ridículo. Simplesmente assim. E eu não digo isso apenas enquanto comunista, mas mesmo enquanto pesquisador, porque de outro modo teríamos de enfrentar a seguinte questão: qual é a razão, a justificativa, para se abstrair das condições dos peles-vermelhas e dos negros? Salvo para os racistas, não há nenhuma justificativa possível! Defender isso pressuporia dizer que os negros e peles-vermelhas eram bárbaros sem importância, ou que eles eram simplesmente negligenciáveis, e esse raciocínio, do ponto de vista humano, é simplesmente falso.

Vamos agora transportar-nos dos secular XVIII e XIX para o seculo XX e imaginar um Tocqueville e um Schoelcher que então visitassem o planeta. Nessa situação, o Tocqueville do século XX faz uma comparação entre as EUA e os outros países capitalistas de um lado e, de outro lado, a URSS ou a China. Ele afirma: claro que nos EUA o governo da lei (rule of law) e a limitação dos poderes são muito mais bem estabelecidos do que na URSS ou na China comunista. O Tocqueville do século XX tira disso a conclusão de que a guerra fria é a guerra da democracia contra a ditadura. É essa a ideologia dominante, como sabemos.

Mas agora imaginemos o Schoelcher do século XX, que afirma: “Sim, é verdade que nos EUA as instituições liberais são bastante mais desenvolvidas que nos países comunistas. Mas são os Estados Unidos que estabelecem as ditaduras na América Latina; foram eles que estabeleceram a ditadura na Guatemala, provocando um genocídio reconhecido até mesmo pela ONU. Foram os franceses, seus aliados, que conduziram uma guerra colonial genocida na Argélia. Foi a Grã-Bretanha que fez o mesmo noutros países da Africa. Foram os EUA que cometeram inúmeros crimes de guerra no Vietname e na Indochina. Foram os Estados Unidos que acabaram com a democracia no Irão..."

Esse pequeno exercício mostra-nos que estamos diante, no tocante ao século XX e até hoje, do mesmo problema metodológico e epistemológico que tentei mostrar ao falar da visita aos EUA por Tocqueville e por Schoelcher no século XIX. Se nos abstrairmos das condições concretas nas quais se desenvolve a democracia norte-americana, podemos cerrar fileiras com o Tocqueville do século XX e afirmar que se trata sempre da luta da democracia contra a ditadura. Mas se consideramos a totalidade das relações sociais e políticas do tempo, da nossa época, estaremos mais próximos de Schoelcher. Foi à luz desse problema e inspirado pelas teses de Hegel que citei que me senti obrigado a elaborar essa “contra-história” dos dois últimos séculos, para poder tentar compreender conceptualmente o nosso tempo.

Novos Temas: Tomando isso em consideração, em que é que a sua contra-história se distingue fundamentalmente do revisionismo histórico, que o senhor combate no livro O revisionismo na história? Em que é que ela se aproxima dele?

Domenico Losurdo: O revisionismo histórico sofre da mesma fraqueza da ideologia dominante: ele não pensa a verdade como o todo, como sugeriu Hegel. Vou dar um exemplo: que dizem Ernest Nolte e Furet sobre a URSS? Que esta, sob Stalin, era como o III Reich, como a Alemanha nazista. E porquê? Porque ela tinha um partido único, um partido totalitário que decidia tudo, etc. Esse modo de argumentar é completamente formal. Sugiro uma comparação que nos ajudara a compreender melhor esse problema: pensemos na luta, na grande luta, dos escravos negros os “jacobinos negros”! – contra a escravidão em Santo Domingo (que depois se tornou o Haiti), conduzida for Toussaint Louverture. Conquistada a abolição da escravidão, esses ex-escravos agora livres devem lutar contra o poderoso exército enviado por Napoleão para restabelecer a dominação colonial e a escravidão no Haiti, dirigido pelo cunhado de Napoleão, [Charles Emmanuel] Leclerc. A luta entre os negros e o exército comandado por Leclerc foi uma luta selvagem, de um lado e de outro. Mas será que alguém tenta, seriamente, comparar Toussaint Louverture e Leclerc, dizendo que eles são a mesma coisa? Isso seria o mesmo que dizer que o escravismo e o antiescravismo são equivalentes! E Isso seria simplesmente ridículo, tanto do ponto de vista político quanto do epistemológico, já que consistiria em tomar apenas um elemento particular (“a selvajaria da luta de um lado e de outro”) e, reduzindo tudo a esse elemento, fazer uma abstração completa de todo o resto.

Podemos com toda a segurança estabelecer o mesmo raciocínio a propósito das comparações entre a URSS e o III Reich. Já citei Hitler e o fato de que ele queria restabelecer a escravidão, tendo como alvo os eslavos da Europa Oriental. Será que se pode dizer que aqueles que desejam escravizar e aqueles que lutam contra a escravidão são a mesma coisa?! É ridículo! E, quanto a isso, eu ainda acrescentaria mais um elemento: Hitler sempre fez referência à história dos Estados Unidos como a um exemplo que deveria ser seguido – algo que já demonstrei em meus livros. Ele afirmava sempre que, para os alemães, a Europa de Leste seria o mesmo que o farwest havia sido para a raça branca, para os colonos norte-americanos brancos. Alias, só podemos compreender em toda sua extensão o carater bárbaro da guerra de Hitler na Europa Oriental se consideramos isto: os eslavos eram, para ele, os peles-vermelhas que deveriam ser dizimados, cedendo seu espaço para o usufruto da raça dos senhores (tornando possível a “germanização do território”), e aqueles que sobrevivessem ao assalto, seriam os negros que deveriam ser transformados em escravos, enquanto os judeus – que para Hitler eram a mesma coisa que os bolcheviques – tinham de ser simplesmente exterminados, porque fomentavam a revolta das “raças inferiores”.

Quero lembrar que, se examinarem a linguagem dos nazistas, mostra-se claramente a sua origem estado-unidense: por exemplo, o termo essencial da linguagem nazi, Untermensch, o “sub-homem”, deve ser submetido à escravidão ou exterminado, vem de underman, e pode-se continuar sobre isso com muitos exemplos. Pois bem: se consideramos a tese de Hegel, de que a verdade é o todo, não vamos dizer as estupidezes que a ideologia dominante vem afirmando.

Novos Temas: Um dos mais importantes intelectuais brasileiros, o professor Florestan Fernandes, afirmou que a classe operária tinha necessidade das suas próprias palavras-chave para poder atingir os seus objetivos. Segundo ele, essas palavras não deveriam poder ser partilhadas pela burguesia ou outra classe social, porque a luta por elas implicaria na destruição dessas classes. Ele escreveu isso num texto em que discutia concretamente o significado da palavra “revolução”, que no contexto brasileiro havia sido usurpada pela direita golpista em 1964. Essa palavra, antes mesmo do golpe de Estado no Brasil, havia sido partilhada por comunistas e nacionalistas, e isso pode ter contribuído para a criação duma espécie de “consenso” esvaziado de conteúdo socialista, que a burguesia e os militares golpistas tentaram recuperar e reorientar para buscar obter alguma legitimidade social para a sua ditadura. Por isso, esses setores sempre chamaram ao seu golpe “revolução de 1964”. Como pensa o senhor que o seu trabalho de contra-história poderia ajudar-nos a construir as nossas próprias palavras-chave?

Domenico Losurdo: Para ser sincero, eu não acredito que possam existir palavras-chave exclusivas de uma classe social ou de um partido político. Isso por uma razão muito simples: as palavras-chave de uma época são aquelas em torno das quais se processa o combate e a luta de classes. Por exemplo, tomemos o termo “democracia”. Como se chamava o partido que mais ferozmente combatia pela manutenção da escravidão negra nos Estados Unidos? Partido Democrata! E como se chamava o partido que, após a abolição da escravidão, lutou pela “supremacia branca”? Partido Democrata! Mas será que devemos renunciar ao termo “democracia” apenas porque ele foi utilizado por partidários da escravidão e da “supremacia Branca”? Penso que não.

Hoje-em-dia, ninguém ousa dizer que é contrário à democracia, e por essa razão devemos desenvolver uma luta ideológica, uma luta de classes em torno desse termo. Enquanto uns o interpretam de um modo, outros interpretam-no de outro. Por exemplo: enquanto os proprietários de escravos e os partidários da “supremacia branca” falavam de democracia pensando somente na comunidade branca, porque, para eles, os outros não eram seres humanos propriamente ditos, do outro lado, a democracia deveria ser afirmada como um regime para todas as pessoas, e isso evidentemente incluía os negros. Já expliquei que os ditos melhores amigos da democracia, hoje, são os seus inimigos mais ferrenhos se a consideramos do ponto de vista hegeliano segundo o qual “a verdade e o todo”.

Vamos agora abordar esse problema do golpe de Estado. A questão é, na verdade, internacional, e não apenas brasileira, e podemos resumi-la na seguinte alternativa: “golpe de Estado ou revolução”? Ao seu golpe de Estado, Mussolini chamou “revolução”. À sua terrível contrarrevolução, Hitler chamou “revolução”. Hoje, as chamadas “revoluções coloridas” são todas golpes de Estado. Isso mostra que não há palavras exclusivas duma classe ou dum partido político. Por exemplo: socialismo? Trabalhador? O partido de Hitler chamava-se “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães”. Ele tinha no próprio nome as palavras “trabalhadores” e “socialismo”. E isso, por acaso, significa que devemos desistir dessas palavras? Claro que não! O que se passou foi que Hitler e os seus partidários compreenderam que, na situação histórica do pós-guerra mundial, o liberalismo estava desacreditado e que a luta naquele momento deveria desenvolver-se em torno dessas duas palavras-chave.

O mesmo se passa com a ideia de “nação”. O termo nasceu como um termo revolucionário no interior da Revolução Francesa, porque, durante o Antigo Regime, os aristocratas se consideravam membros duma casta superior e, por isso, não viam qualquer possibilidade da existência duma comunidade nacional. Depois, os fascistas tentaram apropriar-se do termo. Isso mostra mais uma vez que a luta de classes é também a luta em torno de certas palavras-chave duma época, e hoje nós somos obrigados a lutar em torno de termos como “democracia”, ou mesmo “revolução” (contra “golpe de Estado”), como já expliquei no caso das “revoluções coloridas”.