Materialismo e Empirocriticismo
Notas e Críticas Sobre uma Filosofia Reacionária

V. I. Lênin


Prefácios


Prefácio à Edição Francesa

I

A obra que agora apresentamos ao leitor francês constitui valiosa contribuição à historia da elaboração das bases filosóficas do marxismo russo e do leninismo. É para deplorar que esta obra de Lénin tenha ficado, até os dias que correm, inaccessível aos leitores dos países do Ocidente. Mas antes tarde que nunca. O livro aparece agora em francês, alemão e inglês, o que, doravante, faz inteligível aos nossos camaradas do estrangeiro.

É necessário dizer com a maior clareza: a filosofia do marxismo — o materialismo dialético foi, nos melhores dias da Segunda Internacional, posta de lado e até olhada com algum desdem no seio dos partidos proletários da Europa ocidental.

O principal órgão da social-democracia alemã, a Neue Zeit, dirigido por Karl Kautski, publicava os trabalhos dos neokantistas, dos adeptos de Mach e dos materialistas, sem assumir, nas questões de filosofia marxista, atitude firme e bem definida. Já naquela época, no campo da filosofia marxista, a hegemonia pertencia aos marxistas russos. Basta lembrar que Plerrânov — que publicou seus notáveis artigos na Neue Zeit — teve que suportar sozinho, por volta de 1900, todo o peso da luta contra o neokantismo de Eduard Bernstein e de Conrad Schmidt.

Essa “tendencia crítica” logo se manifestou, na Rússia, no marxismo chamado “legal”, da época. Struve, Tugan-Baranovski e Bulgákov foram, nesse país, os representantes do neokantismo. Durante certo tempo os marxistas revolucionários ortodoxos Plerrânov e Lénin à frente não os combateram energicamente, é certo, mas em tom amistoso. Razões táticas a isso os obrigavam. Mas tais representantes da burguesia liberal nas fileiras proletárias não tardaram a deixar cair a mascara e a se separar definitivamente do movimento operário.

Nas vésperas da revolução de 1905, uma nova corrente revisionista começa a desenvolver-se nos meios marxistas da Rússia. É a corrente dos adeptos do físico Mach, representada por A. Bogdánov e A. Lunatcharski. A obra de Lénin, Materialismo e Empirocriticismo, é consagrada à crítica dessa corrente. Não pretendemos analisar esse livro notável. Queremos apenas esboçar nestas paginas, sumariamente, a historia dessa obra de Lénin, história relacionada com a batalha das ideias no seio do Partido.

II

Lénin, sabemo-lo agora, aprofundou-se no estudo da filosofia um pouco antes de 1900, na época em que vivia, exilado na Sibéria, na aldeia perdida de Chuchensk.

Diante das polêmicas sustentadas por Plerrânov contra Bernstein e Schmidt, de um lado, e, de outro, diante da ação dos neokantistas russos (Struve, Tugan-Baranovski, Bulgákov), Lénin viu-se forçado a aprofundar-se em filosofia, afim de tomar posição nos debates. Para evitar qualquer mal-entendido, queremos evidenciar, antes de mais nada, que Lénin nunca manifestou a menor hesitação frente a essas discussões. Ele se colocou, naturalmente, desde o início, ao lado do marxismo ortodoxo, ao lado de Plerrânov, contra os neokantistas, chegando até a exprimir seu descontentamento pela pachorra com que Plerrânov os combatia no movimento russo. É assim que escreveu, numa carta da Sibéria, datada de 2 de setembro de 1898, endereçada a Potréssov:

“Estou grandemente surpreso com o fato do autor das Beiträge zur Geschichte des Materialismus(1) abster-se de se levantar na imprensa russa contra o neokantismo, deixando Struve e Bulgákov polemizarem sobre questões de detalhe dessa filosofia, como se ela já pertencesse, em seu conjunto, ao patrimônio dos adeptos russos.”

Lénin escreveu ainda, em carta de 27 de abril de 1899, endereçada ao mesmo Potréssov:

“De modo geral, toda essa “nova tendencia critica” do marxismo, que embala Struve e Bulgákov, parece-me muito suspeita: ouço muitas grandes frases sobre a critica, contra o dogma, etc., mas não vejo verdadeiramente os resultados positivos da critica.”

Seria errôneo admitir que Lénin se limitava, nessa época, a ficar à margem do tumulto. Ao contrario, tomava a parte mais ativa na luta contra os neokantistas no campo da economia, mas não ainda no domínio puramente filosófico, domínio em que os neokantistas começavam a criticar diversos aspectos da doutrina de Marx do ponto de vista da teoria kantiana do conhecimento.

Exilado na Sibéria, Lénin não recebia a imprensa periódica senão com grande atraso, o que suscitava nele, constantemente, certo nervosismo. Vinha a conhecer bem as coisas por intermédio de cartas, o que o obrigava a reservar, nos primeiros momentos, o seu julgamento. Por esse meio é que foi informado da edição do livro de Bernstein e dos trabalhos de Struve e de vários outros neokantistas Mas ficamos sabendo, pela carta de 27 de abril de 1899 a Potréssov, que ele procurava todas as publicações recentes, as estudava, bem como a filosofia clássica, principalmente Kant, cujas ideias tinham, então, certo resquício de atualidade.

“Li e reli com grande prazer, as Beiträge zur Geschichte des Materialismus — diz Lénin nessa carta — , li os artigos do mesmo autor, na Néue Zeit, contra Bernstein e Conrad Schmidt ... li o livro de Stammler, Wirtschaft und Recht(2), exaltado pelos nossos kantistas, e estou, sem hesitação, de acordo com o monista (isto é, com Plerrânov). Stammler, sobretudo, me indigna; recuso-me a ver nele o que quer que seja de novo e substancial. Ele não passa, de ponta a ponta, de uma erkennnistheoretische Scholastik.(3). Tolas “definições” de um mau jurista, no pior sentido da expressão, e “deduções” não menos tolas. Depois de Stammler, reli os artigos de Struve e Bulgákov no Nóvoie Slóvo e pude verificar que, a bem da verdade, precisamos ajustar contas, seriamente, com o neokantismo. Não me pude conter, fiz observações e promovi ataques contra ele na resposta a Struve (ao seu artigo na Revue Scientifique)... Não me pude conter, disse, porque tenho bastante consciência de minha ignorância filosófica e não pretendo tratar desses assuntos sem estar devidamente instruído. Estou tratando disso, precisamente, tendo começado por d’Holbach e Helvétius, preparando-me para passar a Kant. Tenho procurado as principais obras dos principais filósofos clássicos...”

O interesse de Lénin pela filosofia não mais iria diminuir, apesar de ele ter sido absorvido pela ação política, pela organização do Partido e por sua atividade de publicista, de sábio e de homem de Estado.

III

O inicio do segundo período de hesitações filosóficas dos marxistas russos remonta a 1903-1904. A primeira parte do Empiromonismo, de A. Bogdanov, foi editada em 1904, do mesmo modo que a coletânea de "Ensaios de filosofia realista". Desde que recebeu, na primavera ou no principio do verão de 1904, o pequeno livro de Bogdanov, Lénin informou o autor de que considerava suas ideias como errôneas. Mais tarde, em carta dirigida a Maximo Gorki (25 de fevereiro de 1908), Lénin escreveu que, em 1903-1904, tinha admitido, com Plerrânov, a cooperação com Bogdanov, em quem via um aliado contra o revisionismo, muito embora fosse um adepto de Ostwald e Mach.

“No curso do verão e do outono de 1904 diz Lénin concordamos decididamente com Bogdanov, como bolcheviques; e fizemos com ele um ajuste em que, por meio de um acordo tácito, se considerava a filosofia como um terreno neutro, tacitamente posto à margem. Esse acordo deveria vigorar durante toda a revolução, de maneira a permitir a aplicação da tática da social-democracia revolucionária (do bolchevismo), tática que era e disso estou absolutamente convicto a única justa.

Não houve oportunidade de se tratar de filosofia nas ardentes jornadas da revolução. Em princípios de 1906. Bogdanov escreveu na prisão um novo livro, a terceira parte do Empiromonismo, parece. Ele m’o ofereceu no curso daquele mesmo ano e empreendi sua leitura atentamente. Mas, terminada essa leitura, encolerizei-me bastante: mais do que nunca, pareceu-me evidente que Bogdanov seguia rumo arqui-falso, estranho ao marxismo. Enderecei-lhe, então, uma “carta de amor”, pequena missiva filosófica em três cadernos.”

Esses cadernos de Lénin ainda não foram, infelizmente, encontrados. É de se lamentar que não tenham sido editados na época, em 1907-1908, quando o conflito entre as duas correntes filosóficas do marxismo havia revestido forma aguda. Esses anos viram o aparecimento, nas revistas marxistas russas, de diversos artigos contra a doutrina de Mach e o Empiromonismo de Bogdanov. Essas discussões chegaram a ecoar na Neue Zeit, que publicava indiferentemente artigos pró e contra Mach. Por outro lado, os adeptos de Mach fortaleciam-se, na Rússia, publicando livros, folhetos e coleções de artigos. Quase não tinha havido oportunidade, como acertadamente disse Lénin, de se tratar de filosofia nas ardentes jornadas da revolução. Agora, que a reação sobreviera, aumentava o interesse pelas questões de filosofia. O misticismo religioso reaparecia no seio da burguesia culta; o marxismo, a ideologia da revolução, que acabava de abalar a burguesia e os latifundiários, tornara-se alvo de ataques furiosos. O materialismo filosófico, base do marxismo, era submetido pelos intelectuais burgueses à crítica mais rancorosa. Esse estado de espirito refletia-se, naturalmente, na pequena burguesia e nos camponeses atrasados, que, em sua imensa maioria ainda viviam sob o império das tradições religiosas.

Esse estado de espirito e essas tendencias não podiam deixar de influenciar certos meios intelectuais da social-democracia, que passaram a “opor” à indagação de Deus, dos intelectuais burgueses e pequeno-burgueses, o que se chamou de “edificação da Divindade”, indo, assim, ao encontro dos preconceitos místicos e religiosos dos intelectuais, e, mais ainda, dos camponeses, afim de manter a aliança com esses elementos e retê-los nas posições avançadas, nas fileiras da revolução. Mas essa concessão constituía, também, um abandono completo do marxismo, do ateísmo militante, do materialismo Em filosofia, os adeptos de Mach puseram-se a fazer uma critica severa do materialismo e do método dialético, desenvolvendo, desse modo, objetivamente, contra seu próprio desejo, o jogo dos contumazes inimigos do marxismo e da classe operaria, o jogo de Struve e Bulgákov e dos intelectuais liberais burgueses. Por volta de 1907, a corrente machista no seio do marxismo congregou um grupo bem grande, exercendo influencia marcante sobre os intelectuais e até sobre certos meios operários. As duas correntes — o machismo e a “edificação da Divindade” — formavam, na realidade, um todo, uma única e mesma tendencia. À frente dessa corrente estavam diversos escritores influentes e talentosos: A. Bogdanov, A. Lunatcharski, Maximo Gorki e V. Bazarov.

O ponto de vista do marxismo ortodoxo do materialismo dialético era defendido pela “escola” de Plerrânov, à frente da qual estava esse último. A coletânea dos Ensaios de filosofia marxista provocou profunda emoção entre os marxistas materialistas. Até então, Lénin ainda não havia elevado a voz contra os adeptos de Mach. Sua atitude diante deles era, naturalmente, hostil. Bastam alguns extratos de sua correspondência com Gorki para disso nos convencermos. Eis o que escreveu em fevereiro de 1908:

“Os "Ensaios de filosofia marxista" foram publicados. Li todos os artigos, exceto o de Suvorov (que leio neste momento), e cada artigo me indignou até o furor. Não, isso não é marxismo e nossos empiro-criticistas e nossos empiro-monistas se nivelam. Convencer ao leitor que a fé na realidade do mundo exterior é mistica (Bazarov), confundir da maneira mais escabrosa o materialismo e o kantismo (Bazarov e Bogdanov), propagar uma variedade do agnosticismo (o Empirocriticismo) e do idealismo (o empiro-monismo), ensinar aos operários o “ateísmo religioso” e a “adoração” das mais elevadas forças latentes do homem (Lunatcharski), declarar mistica a dialética de Engels (Bermann), abeberar-se na fonte malcheirosa de não sei que positivistas franceses, agnósticos ou metafísicos, — o diabo os carregue! — , elaborar uma teoria simbólica do conhecimento (Iuchkévitch)... Não, isso é demais!”

E a atmosfera ficava cada vez mais carregada nos meios marxistas, em consequência das divergências filosóficas. No fim de 1907 e no primeiro semestre de 1908, os adeptos de Mach e os materialistas pronunciam conferências e entabulam polêmicas nos grupos de emigrados em Genebra e, às vezes, em Berna; conferências e polêmicas acompanhadas por todas as colônias locais e até por social-democratas vindos especialmente para esse fim. No decorrer do outono de 1908, Lunatcharski pronuncia uma conferencia em Genebra; Dubrovinski (um dos membros da redação de O Proletário) toma a palavra contra ele. Lénin havia preconizado a intervenção de Dubrovinski e redigiu, para uso desse último, o plano de um discurso, ou, mais exatamente, de um questionário de dez perguntas. A conferencia de A. Deborin, também pronunciada em Genebra, foi, se não me falha a memória, uma resposta à de Lunatcharski, e Plerrânov tomou a palavra pelos materialistas; Bogdanov e Lunatcharski defendiam a tese dos adeptos de Mach. Lénin não estava em Genebra nessa época. E os machistas eram, simultaneamente, combatidos na imprensa legal e na clandestina. Plerrânov começou, nos números 6 e 7 de O social-democrata, a publicação de suas memoráveis cartas a Bogdanov, apresentadas sob o título geral de "Materialismo Militante". Os partidários de Mach não desenvolviam atividade menos intensa. Respondendo às criticas do grupo de Plerrânov, Bogdanov publicou as "Desventuras de uma escola filosófica"; Plerrânov, Axelrod e Deborin eram, por sua vez, submetidos à critica. A propósito de nossas divergências de opinião, N. Valentinov entrou até em correspondência com Ernst Mach e publicou, em seu livro "Ernst Mach e o Marxismo", para a edificação dos materialistas, uma carta de Mach e a tradução de um artigo de Friedrich Adler sobre a "Descoberta dos elementos do mundo". O pequeno livro de N. Valentinov terminava com a seguinte profecia:

"Os sistemas metafísicos, materialistas e idealistas passaram. Uma filosofia verdadeiramente cientifica nasce (a de Mach), disso estou convicto, e o marxismo a ela se unirá, tarde ou cedo, a despeito dos senhores que, supondo que a eterna verdade filosófica reside em sua sacra scriptura e não pode ser revogada por nenhum destino, se opõem a essa união.”

O ponto de vista dos adeptos marxistas de Mach era também o dos narodniki e dos socialistas-revolucionários, representados, por exemplo, por V. Tchernov. Constituiu-se, desse modo, um ajuntamento bem singular.

Não é destituído de interesse observar como reagiram, diante dessas discussões entre marxistas, os ex-marxistas que se haviam passado para a reação burguesa em política ou para o idealismo filosófico ou mesmo para o misticismo religioso, no domínio da teoria.

Essa variedade de ex-marxistas conjugava sua negação do materialismo com sua aversão ao socialismo. Citemos, a proposito, uma passagem talvez um pouco longa, mas certamente das mais curiosas, de um artigo de S. Franck, publicado pela revista Rússkaia Misl, em 1908, (vol. XII). Franck escrevia:

“O socialismo repousa, do ponto de vista filosófico, sobre o niilismo, isto é, sobre a negação de todos os valores objetivos da existência individual e cósmica e sobre o epicurismo daí resultante. Eis que a falência da forma clássica do niilismo o materialismo torna necessária uma nova formula mais jovem do niilismo; a isso se propõe o positivismo modernizado da tendencia empiro-criticista. O ponto de vista, por conseguinte, de Plerrânov e de sua escola é, incontestavelmente, mais justo, na apreciação do Empirocriticismo considerado como uma base do socialismo niilista, do que as esperanças que embalam os empiro-criticistas marxistas. Plerrânov sente, instintivamente, que a falência do niilismo materialista dogmático põe fim a todo um longo período da historia do pensamento, arruína a ingênua alegria de viver aqui de baixo e o ateísmo militante, que caracterizam o materialismo francês do seculo XVIII e formam, igualmente, a base filosófica e psicológica sobre a qual se desenvolveu a religião socialista. O prudente agnosticismo positivista da filosofia contemporânea representa, para esse niilismo metafisico insolente e impetuoso, o começo do fim.”

Os “sábios” inimigos do socialismo, representados por S. Franck, reconhecem, desse modo, sem rodeios, que existe estreita relação interna entre o socialismo e o materialismo; que, para se desembaraçar da “religião socialista”, como diz Franck, era necessário, em primeiro lugar, eliminar o materialismo; e que o Empirocriticismo, por mais insuficiente, que fosse, do ponto de vista do idealismo metafisico e do misticismo adotado pelo nosso autor, constituía, pelo menos, um mal menor e preparava a ruína do socialismo.

S. Franck demonstrou mais adiante que o Empirocriticismo devia determinar, infalivelmente, a ruína do marxismo.

"O Empirocriticismo ou o empiro-monismo não podem, disse ele, servir de apoio ao socialismo marxista. “A revisão da doutrina filosófica do marxismo não pode limitar-se a “suprimir” mecanicamente o materialismo e a substitui-lo pelo Empirocriticismo... Ao contrario, vários dos mais sólidos pilares do socialismo marxista assentam no materialismo.”

Força é convir que, nesse ponto, Franck tinha razão. O inimigo de classe tem faro! Do mesm0 modo que outros inimigos do marxismo e do socialismo, Franck concordava que o Empirocriticismo, o empiro-monismo e o empiro-simbolismo eram, na realidade, concepções idealistas, incompatíveis com o marxismo.

IV

Tal era, em 1908, a disposição das forças no campo filosófico. Mas esses agrupamentos filosóficos refletiam, no domínio da ideologia, a relação das forças de classe do país. A esse respeito, cumpre dizer algumas palavras sobre a atitude assumida, diante de uma questão de tal magnitude, pela social-democracia russa da época e por Karl Kautski, teórico marxista, cuja autoridade ninguém, então, contestava. Um operário russo, Bendianidzé, tinha pedido a Kautski sua opinião sobre a possibilidade de conciliação entre o marxismo e a doutrina de Mach. Kautski respondeu em carta publicada em julho de 1909 na revista austríaca Der Kampf, de Friedrich Adler. Tomemos seus trechos mais interessantes e mais característicos:

“Pergunta-me: Mach é marxista? Isso depende do que se entende por marxismo. Não vejo no marxismo uma filosofia, mas uma ciência experimental, uma concepção particular da sociedade. Essa concepção é, de qualquer maneira, incompatível com uma filosofia idealista, mas não incompatível com a teoria do conhecimento de Mach... Eu mesmo não vejo, entre a concepção de Mach e a de Dietzgen, nenhuma diferença essencial; Mach está, porém, mais perto de Dietzgen.”

Kautski colocava-se, desse modo, ao lado de Mach.

“Mas — continuava — convém distinguir entre Mach ou Dietzgen e seus adeptos. Discípulos de Mach e de Dietzgen escrevem, de fato, não poucas tolices, entre as quais é preciso colocar a acusação de metafísica formulada contra Plerrânov e seus amigos. Mas, poderá perguntar-me, Plerrânov conhece bem a filosofia marxista? Responderia que Marx não tinha nenhuma filosofia, que ele proclamou o fim de toda filosofia. Está, entretanto, fora de duvida que Plerrânov é um dos melhores conhecedores do marxismo.”

Kautski deplorava, mais adiante, as discussões que se tinham travado entre os marxistas russos a proposito de Mach, os problemas agitados sem qualquer coisa de comum com as tarefas do partido. Nesse caso, a solução consistia, a seu ver, em proclamar a doutrina de Mach questão privada. O ponto de partida do marxismo é o postulado segundo o qual a consciência não determina a existência, mas, ao contrario, aquela é determinada por essa ultima, é já incompatível com a doutrina de Mach que é uma variedade de idealismo. Quanto ao sábio conselho de proclamar essa doutrina questão privada, todo marxista verificará sua inadmissibilidade. Longe de esclarecer o assunto, Kautski o complicou ainda mais.

V

Lénin encarava o problema de modo muito diferente e muito mais a fundo, se bem que seus ataques contra os adeptos de Mach ameaçassem cindir o grupo bolchevique, no qual A. Bogdanov desempenhava, então, importante papel. Citemos, para caracterizar a atitude de principio de Lénin nessas discussões, um trecho dos mais notáveis de uma carta por ele escrita a Gorki, a 24 de março de 1908:

“Deve compreender e compreenderá naturalmente que, quando um homem de partido chega a se convencer do erro profundo e da nocividade de certa propaganda, tem de combatê-la. Eu não teria feito oposição se não estivesse absolutamente convencido (e me convenço cada vez mais, à medida que me vou familiarizando com as fontes da sapiência de Bogdanov & Cia.) de que seu livro(4) é absurdo e nocivo, filisteu e clerical, do começo ao fim, da raiz aos ramos, até Mach e Avenarius. Plerrânov tem inteiramente razão contra eles, mas não sabe ou não quer — talvez esteja deixando levar-se pela preguiça — dizê-lo de maneira concreta, circunstanciada, com simplicidade, sem espantar o publico com sutilezas filosóficas supérfluas. Quanto a mim, eu o direi à minha maneira, custe o que custar.

De que conciliação pode ele fazer questão meu muito querido Alexei Maximóvitch? Vejamos, seria ridículo fazer-lhe ao menos alusão! A batalha é absolutamente inevitável e os homens de Partido devem fazer por onde não a atenuar, desviar ou evitar, mas obstar o trabalho do partido de dissimulá-la. Pense nisso e nove décimos dos bolcheviques russos o ajudarão e ficarão imensamente gratos.

Como tomar posição? Pela “neutralidade”? Não. Não pode haver e não haverá neutralidade em semelhante questão. Se se pode falar de neutralidade, não é senão em certo sentido: toda essa bulha tem de ser eliminada do grupo.”

Vê-se que o ponto de vista de Lénin é radicalmente diferente do de Kautski. Kautski recomendava a “neutralidade” a filosofia do marxismo seria questão privada para cada membro do Partido. Lénin não admite neutralidade senão em certo sentido: tratava-se de excluir a bulha filosófica do grupo do Partido. Preocupava Lénin que a tática da social-democracia revolucionária e a linha política da fração bolchevique — que então publicava, com Bogdanov, o órgão O Proletário — não sofressem com as discussões filosóficas inevitáveis. Assim sendo, desejava evitá-las nas colunas de O Proletário. Ele visava, aliás, outro objetivo. Defendendo a neutralidade de O Proletário, pretendia não dar aos leitores desse jornal razões para ligarem o bolchevismo à doutrina de Mach. Lénin considerou contraproducente, em certa fase da luta, uma cisão a propósito de divergências filosóficas. Mas considerava como absolutamente inevitável a disputa entre os bolcheviques divididos por questões de filosofia.

A primeira intervenção publica de Lénin contra a doutrina de Mach vem do inicio de 1908. Ele mesmo a chamou de “declaração formal de guerra”. Os bolcheviques publicaram, por ocasião do 25.° aniversario da morte de Marx, uma coletânea de artigos, para a qual Lénin colaborou com um estudo intitulado "Marxismo e Revisionismo". Dizia numa nota:

“Mostrarei proximamente, numa serie de artigos ou numa brochura, que tudo que se diz no texto sobre os revisionistas neokantistas se relaciona, igualmente, com os novos adeptos de Hume e os novos adeptos de Berkeley”.

Lia-se no texto, sobre a ideologia do revisionismo, as seguintes linhas:

“Em filosofia, o revisionismo segue a reboque da “ciência” burguesa professoral. Os professores “voltavam a Kant”, o revisionismo seguia os neokantistas; os professores repetiam, pela milésima vez, os truísmos clericais sobre o materialismo filosófico, e os revisionistas, sorrindo com indulgência, resmungavam (palavra por palavra, de acordo com os últimos manuais) que o materialismo, havia muito tempo, tinha sido "refutado”; os professores tratavam Hegel como se fosse um ser desprezível, e gabando-se de um idealismo hegeliano, davam de ombros desdenhosamente quando falavam da dialética, e os revisionistas os seguiam no atoleiro, onde a filosofia obnubilava a ciência, substituindo a “astuciosa” dialética (revolucionária) pela “evolução” simples (e tranquila); os professores embolsavam as propinas que o Estado lhes abonava, adaptando os seus sistemas idealistas e “críticos” à filosofia medieval dominante (isto é, à teologia), e os revisionistas deles se aproximavam, esforçando-se por fazer da religião uma questão privada, não mais diante do Estado moderno, mas perante o partido da classe avançada.”

Lénin frisava, mais adiante, que, na social-democracia internacional, Plerrânov era o único marxista que tinha feito uma critica do revisionismo do ponto de vista do materialismo dialético.

Essa declaração de guerra de Lénin aos adeptos de Mach foi, então, por si só, um acontecimento. Declarando guerra aos machistas, Lénin se aliava, em filosofia, a Plerrânov, apesar das divergências de opiniões que os separavam nas diversas questões de política, tática, organização, etc.. Essa aliança teve imensa importância e determinou, em certo sentido, o desenvolvimento ulterior da filosofia do marxismo, no campo russo. O livro de Lénin Materialismo e Empirocriticismo, ia ser logo editado: devia dar o golpe de misericórdia na doutrina de Mach.

A partir de 1908, Lénin trabalha em seu livro. Suas relações com Bogdanov abalam-se. Lénin. embebedado, como ele mesmo diz, pela filosofia, abandona o órgão do Partido.

“Nunca — escreve a Gorki em abril de 1908 — pus de lado o nosso jornal; passo dias inteiros a ler os partidários, cem vezes malditos, de Mach”.

Lénin foi a Londres para utilizar, na ultima demão de seu livro, a rica biblioteca do British Museum. A obra, terminada nno outono de 1908, veiu à luz em Moscou na primavera de 1909.

Já acentuei, linhas atrás, que a doutrina de Mach não foi, entre os social-democratas russos, fato isolado. Estava estreitamente ligada à corrente chamada da edificação da Divindade, à frente da qual se achavam A. Lunatcharski, também adepto de Mach, e Máximo Gorki, que era, aliás, simpatizante da doutrina desse último. Esse movimento ligava-se, em política, ao otsovismo e ao ultimatismo. Chamava-se otsovismo a corrente que exigia a não-participação dos deputados social-democratas na Duma do Império, em virtude do caráter profundamente reacionário dessa instituição. Essa corrente era dirigida por A. Bogdanov e A. Lunatchárski. Desse modo, a encarnação da trindade — doutrina de Mach—edificação da Divindade—otsovismo — nas mesmas pessoas não podia ser considerada como casual. Esse mesmo grupo bolchevique organizou, em Capri, com o auxilio de Gorki, uma escola para operários russos, aos quais eram ensinados a doutrina de Mach, a “edificação da Divindade” e o otsovismo. Essa escola foi, naturalmente, logo liquidada pelos próprios operários.

Nessa mesma época, nos anos de reação de 1907-1908, formava-se, entre os mencheviques sugestionados pela derrota da revolução e sem confiança nas forças do proletariado, uma tendencia liquidacionista. Essa tendência preconizava a liquidação do partido ilegal, negava a hegemonia do proletariado na revolução e exigia que o Partido Social-Democrático se tornasse legal, isto é, se adaptasse ao regime reacionário de então, evidentemente ao preço de uma renuncia a toda luta revolucionária contra a reação dos latifundiários e da burguesia.

Por estranho que pareça, os liquidadores mencheviques manifestaram certa simpatia pela doutrina de Mach e pelo otsovismo do grupo BogdanovLunatchárski e de tal maneira que uma aliança bem singular se firmou entre eles. Plerrânov colocou-se resolutamente contra os liquidacionistas.

A oposição de Plerrânov e Lénin ao liquidacionismo, ao otsovismo, à edificação da Divindade e à doutrina de Mach determinou, por algum tempo, a aliança de ambos, aliança que lhes permitiu vencer definitivamente essas diversas tendencias revisionistas antimarxistas.

Uma conferencia do Centro Bolchevique realizou-se em Paris em meados de 1909. Nela foi aprovada uma resolução condenando a teoria da “edificação da Divindade” (estreitamente ligada, como o vimos, à doutrina de Mach) como tendencia:

“de ruptura com os fundamentos do marxismo e nociva, não somente por sua terminologia, mas também pelo próprio fundo de sua propaganda, à obra de educação das massas operarias, objetivada pela social-democracia revolucionária".

Especificava-se que:

“a fração bolchevique nada podia ter de comum com semelhantes deformações do socialismo cientifico”.

Dizia-se, por fim, que tal tendencia não passava, em definitivo, de uma das formas da luta das ideias pequeno-burguesas contra o socialismo marxista do proletariado. Essa ultima característica da teoria da “edificação da Divindade” aplica-se, igualmente, à doutrina de Mach. Foi a ruptura entre os bolcheviques leninistas e os machistas.

O livro de Lénin não é, portanto, apenas uma notável obra filosófica. É também um precioso documento sobre as dissenções internas do Partido, documento que adquire importância inapreciável como contribuição para consolidar os fundamentos filosóficos do marxismo e do leninismo e para determinar, desse modo, em ampla medida, a evolução ulterior do pensamento filosófico dos marxistas russos. As fileiras dos adeptos de Mach se desfaziam. Os seus generais logo se viram sem exército. As esperanças de Franck e comparsas, para quem a doutrina de Mach devia destroçar os alicerces do marxismo e do socialismo, foram desfeitas.

O marxismo saiu vitorioso dessa luta. O materialismo dialético foi a sua bandeira e foi também a arma teórica com a qual o marxismo russo obteve sua brilhante vitoria de 1917. A doutrina de Mach e o neokantismo não têm atualmente, do mesmo modo que todas as outras variedades do positivismo, nenhum credito entre os marxistas russos.

Infelizmente, não é a mesma coisa, o que se vê alem das fronteiras da União Soviética e, particularmente, na Alemanha e na Áustria, onde florescem a escolástica kantiana e o idealismo positivista, que estão em flagrante contradição com a ciência autentica da experiência humana, o que, aliás, não os impede de ostentar seu cientismo. O mérito do marxismo russo é o de ter continuado a desenvolver, nos domínios teórico e filosófico, o método dialético e a concepção materialista dos fundadores do marxismo, Karl Marx e Friedrich Engels. No período das hesitações filosóficas dos marxistas russos, os adeptos de Mach, os “buscadores de Deus” e, mais particularmente, o maior dos escritores russos contemporâneos, Maxim Gorki, inclinaram-se a responsabilizar o materialismo pelo espirito pequeno-burguês. Lénin escreveu, sobre o assunto, a Gorki, as linhas seguintes:

“Penso não estar de acordo consigo, quanto ao fundo, a respeito do materialismo compreendido precisamente como um concepção do mundo... Que os anglo-saxões e os germânicos devam ao “materialismo” seu espirito pequeno-burguês e os latinos seu anarquismo, eu o contesto resolutamente. O materialismo é, entre eles e em toda parte, repelido como filosofia. A Neue Zeit, o órgão mais sério e mais competente(5), é indiferente à filosofia; nunca possuiu um ardoroso partidário do materialismo filosófico e, nestes últimos tempos, publicou os artigos dos empiro-criticistas sem formular, a respeito, a menor| reserva. É falso que o espirito fracassado da pequena burguesia se tenha derivado do materialismo ensinado por Marx e Engels. É falso. Todas as tendencias pequeno-burguesas da social-democracia combatem, em primeiro lugar, o materialismo filosófico, convergindo para Kant, para o kantismo, para a filosofia critica. Não. A filosofia justificada por Engels, no Anti-Dühring, está a cem léguas do espirito pequeno-burguês.”

Os anglo-saxões e os germânicos modificaram-se, a respeito, nos últimos dez anos? Absolutamente. Enquanto, na Rússia, a filosofia materialista era aprofundada por homens como Plerrânov e Lénin, na Alemanha, o maior teórico do socialismo internacional, Karl Kautski, considerava as questões filosóficas como sem importância para o Partido e admitia a possibilidade de alicerçar o marxismo sobre o neokantismo ou sobre a doutrina de Mach.

Desde a guerra e a revolução, observam-se, entre os marxistas da Alemanha e da Áustria, fenômenos análogos aos que se verificaram na Rússia depois de 1905: a “edificação da Divindade” está florescente (ver, por exemplo, o “socialismo religioso”), do mesmo modo que o neokantismo e a doutrina de Mach. O kantista Vorländer é o filosofo oficial do Partido Social-Democrático da Alemanha; Otto Bauer prega a doutrina de Mach aos operários austríacos; Max Adler prega, ao mesmo tempo, essa doutrina, o kantismo e a edificação da Divindade.

Os edificadores russos da Divindade emitiam a ideia fundamental de que Deus é um complexo de ideias despertando e organizando os sentimentos sociais que ligam o indivíduo à sociedade e põem um freio aos “instintos bestiais”. É o que dizem, hoje, na Alemanha, os partidários do “socialismo religioso”. Do mesmo modo que Plerrânov, Lénin não encontrava um termo bastante vigoroso para exprimir a indignação que lhe causavam os “edificadores da Divindade”, concluindo, com razão, que eles ajudavam os reacionários a manter o povo na escravidão.

“Deus — escrevia Lénin — é, sobretudo, um complexo de ideias nascidas da submissão passiva do homem à natureza e a jugo de classe; é um complexo de ideias consolidando essa opressão e amortecendo a luta de classes."

Toda defesa, seja a mais sutil, a melhor intencionada, toda defesa ou justificação da ideia de Deus é uma justificação da reação, uma justificação da escravidão.

“Na realidade — escrevia ainda Lénin —, os instintos animas do indivíduo foram subjugados, não pela ideia de Deus, mas pela tribo primitiva e pela comunidade primitiva. A ideia de Deus sempre amorteceu, sempre enfraqueceu os sentimentos sociais, substituindo a vida pela morte e fazendo subsistir, continuamente, uma ideia de escravidão (da pior escravidão, sem uma saída). Nunca a ideia de Deus adaptou o individuo à sociedade; mas sempre prendeu as classes oprimidas à fé na divindade dos opressores.”

Essas ideias reacionárias, clericais e anticientíficas são agora zelosamente propagadas pelo “socialismo religioso”, sustentadas de muitas maneiras por grandes partidos socialistas e justificadas em numerosas obras de sábia filosofia.

A tradução do livro de Lénin aparece, pois, na sua hora, a julgar, pelo menos, pelo pensamento filosófico dos marxistas da Europa ocidental. Esperamos que este livro penetre profundamente nos meios operários avançados, contribuindo para a destruição dos grilhões da escravidão.

Alem da obra Materialismo e Empirocriticismo, o presente volume contém: a) o plano do mencionado discurso, em dez pontos, intitulado "Dez perguntas aos conferencistas"; b) o fragmento intitulado "A proposito da dialética"; c) em anexo, um artigo de V. Nevski, intitulado "O materialismo dialético e a filosofia da reação morta".

A. Deborin

Prefácio à Primeira Edição Russa

Escritores, que se pretendem marxistas, empreenderam, entre nós, este ano, uma verdadeira campanha contra a filosofia marxista. Vimos a publicação, em menos de seis meses, de quatro livros principal e quase exclusivamente consagrados a ataques contra o materialismo dialético. Mencionemos, em primeiro lugar, a coletânea de artigos de Bazarov, Bogdanov, Lunatcharski, Bermann, Helfond, Iuchkévitch e Suvorov, intitulada "Ensaios de (seria melhor dizer: contra a) filosofia marxista" (São Petersburgo, 1908). Vêm a seguir os livros: de Iuchkévitch, "Materialismo e realismo critico"; de Bermann, "A dialética sob o ponto de vista da teoria contemporânea do conhecimento" e de Valentinov, "As construções filosóficas do marxismo".

Marx e Engels muitas vezes qualificaram suas concepções filosóficas de materialismo dialético; todos esses autores não o podem ignorar. Unidos, apesar das evidentes divergências de suas opiniões politicas, pelo ódio ao materialismo dialético, eles se pretendem, entretanto, marxistas em filosofia! A dialética de Engels é uma “mistica”, diz Bermann. As ideias de Engels envelheceram” afirma Bazarov ocasionalmente, como se fossem uma coisa inconsistente — e fica o materialismo refutado por esses intrépidos guerreiros, sob a invocação arrogante da teoria contemporânea do conhecimento”, da “mais moderna filosofia” (ou do “positivismo mais moderno”), da “filosofia as ciências naturais do seculo XX”.

Apoiando-se nessas doutrinas, pretensamente mais modernas, nossos destrutores do materialismo dialético atingem intrepidamente o evidente reconhecimento do fideismo(6) (vê-se isso melhor em Lunatcharski, mas esse não é o único!), enquanto perdem toda coragem e todo respeito de suas próprias convicções quando se trata de definir explicitamente sua atitude diante de Marx e Engels. O fato é que o seu abandono do materialismo dialético, isto é, do marxismo, é completo. Na realidade, apenas subterfúgios sem fim, tentativas de contornar o problema, de cobrir sua retirada, de substituir o materialismo em geral por um materialismo qualquer; em suma, decidida recusa de analisar as inúmeras teses materialistas de Marx e Engels. Verdadeira “revolta de joelhos”, segundo a feliz expressão de um marxista. Revisionismo filosófico tipico, porque os revisionistas são os únicos a adquirir um triste renome, excluindo as concepções fundamentais do marxismo e mostrando-se incapazes, demasiado tímidos, para um “ajuste de contas” com franqueza, retidão, decisão e clareza, com as ideias abandonadas. Quando os marxistas ortodoxos vêm a combater certas concepções envelhecidas de Marx (como o tem feito Mehring em relação a determinadas afirmações históricas), fazem-no sempre com tal precisão, de um modo tão circunstanciado, que não se pode encontrar em seus trabalhos o menor equivoco.

Existe, alias, nos "Ensaios de filosofia marxista", uma frase que parece verdadeira. É a seguinte expressão de Lunatcharski:

“Nós (trata-se, evidentemente, dos autores dos Ensaios) talvez estejamos enganados, mas investigamos” (p. 161).

Que a primeira proposição é uma verdade absoluta e a segunda uma verdade relativa, farei o possível por demonstrar no livro que ofereço à atenção do leitor. Limito-me, no momento, a observar que, se os nossos filósofos, em vez de falar em nome do marxismo, falassem em nome de alguns “pesquisadores” marxistas, testemunhariam um maior respeito a si mesmos e ao marxismo.

Quanto a mim, também sou, em filosofia, dos que “investigam”. Mais precisamente: eu me propus, nestas notas, a encontrar onde se perderam as pessoas que nos oferecem, sob a aparência do marxismo, um não sei que incoerente, confuso e reacionário.

Setembro de 1908.
O Autor

Prefácio à Segunda Edição Russa

A presente edição, afora algumas correções, em nada difere da precedente. Espero que não seja inútil independentemente da polêmica com os partidários russos de Mach como introdução à filosofia do marxismo, ao materialismo dialético e às conclusões filosóficas tiradas de descobertas recentes das ciências naturais. O artigo do camarada V. I. Nevski, no apêndice do livro, proporciona, a respeito das ultimas obras de A. Bogdanov, de que não tive a possibilidade de tomar conhecimento, os esclarecimentos necessários. O camarada V. I. Nevski, que trabalhou não somente como propagandista em geral, mas também e sobretudo como militante da escola do Partido, pôde convencer-se de que ideias burguesas e reacionárias são propagadas por A. Bogdanov sob a aparência de “cultura proletária”.

2 de setembro de 1920.
O autor


Notas de rodapé:

(1) Contribuições à história do materialismo, de G. Plerrânov. (retornar ao texto)

(2) Economia e direito (retornar ao texto)

(3) "Uma escolástica da teoria do conhecimento". (Essas palavras estão em alemão no texto) (retornar ao texto)

(4) Tratava-se dos "Ensaios de filosofia marxista". (retornar ao texto)

(5) Subentendido: do marxismo. (retornar ao texto)

(6) Fideísmo: doutrina que substitui a ciência pela fé, ou, sentido lato, que atribui à fé uma certa importância. Nota de Lénin. (retornar ao texto)

Inclusão 24/12/2013