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Vimos que o problema das conclusões gnoseológicas a ser deduzidas da física moderna foi formulado na literatura inglesa, alemã e francesa e foi discutido dos mais diferentes pontos de vista. Não se pode duvidar de que estejamos diante de uma corrente ideológica internacional, não dependendo de um sistema filosófico dado, mas determinada por causas gerais situadas fora do domínio da filosofia. Os dados que acabamos de passar em revista demonstram, indubitavelmente, que a doutrina de Mach é "ligada" à nova física; demonstram, igualmente, que a ideia dessa ligação, difundida pelos nossos discípulos de Mach, é profundamente errônea. Os nossos discípulos de Mach seguem servilmente a moda, tanto em filosofia como em física, e confessam- se incapazes de apreciar do seu ponto de vista marxista o aspecto geral e o valor de certas correntes.
Um duplo erro impregna todas as dissertações segundo as quais a filosofia de Mach é "a das ciências naturais do seculo XX", "a filosofia moderna das ciências naturais", "o mais moderno positivismo das ciências naturais", etc. (Bogdanov, no Prefácio à Análise das sensações, pp. IV e XII; cf. igualmente Iuchkévitch, Valentinov & Cia.). Em primeiro lugar, a doutrina de Mach está ligada, quanto às ideias, a uma escola de um setor das ciências naturais contemporâneas. Em segundo lugar, e isso é importante, está ligada a essa escola não pelo que a distingue de todas as outras correntes, de todos os pequenos sistemas da filosofia idealista, mas pelo que tem de comum com o idealismo filosófico em geral. Basta olhar de relance essa corrente ideológica em seu conjunto, para se ficar convicto da justeza da nossa tese. Observai os físicos dessa escola: o alemão Mach, o francês Henri Poincaré, o belga P. Duhem, o inglês K. Pearson. Muitas características lhes são comuns; têm somente uma base e uma orientação; eles mesmos, com razão, estão de acordo a esse respeito, mas nem a doutrina do empiro-criticismo em geral e nem a dos "elementos do mundo" de Mach em particular fazem parte desse patrimônio comum. Os três últimos físicos citados chegam mesmo a ignorar essas duas doutrinas. O que lhes é comum é, "unicamente", o idealismo filosófico, ao qual todos, sem exceção, estão inclinados, mais ou menos conscientemente, mais ou menos nitidamente. Observai os filósofos que se apoiam nessa escola da nova física, esforçando-se por proporcionar a essa última uma justificação gnoseológica e por desenvolvê-la; encontrareis entre eles os imanentes alemães, discípulos de Mach, neocriticistas e idealistas franceses, espiritualistas ingleses, o russo Lopatin e, ademais, um único empiro-monista, A. Bogdanov. Todos eles têm apenas isto de comum: sua profissão de fé, mais ou menos consciente, mais ou menos franca, de idealismo filosófico, ora com uma tendência brusca ou extemporânea para o fideísmo, ora apesar de uma repugnância pessoal a seu respeito (em Bogdanov).
A ideia fundamental estudada pela escola da nova física consiste na negação da realidade objetiva proporcionada na sensação e refletida pelas nossas teorias ou, então, na dúvida da existência dessa realidade. Nesse ponto, essa escola afasta-se do materialismo (impropriamente chamado de realismo, neo-mecanicismo, hilocinetica, e que os próprios físicos não têm desenvolvido conscientemente), que, na opinião geral, prepondera entre os físicos, e dele se afasta sob o título de escola do idealismo "físico".
Para se explicar esse termo de um aspecto tão singular, e necessário lembrar um episodio da história da filosofia moderna e das mais novas ciências naturais. Em 1866, L. Feuerbach atacava Johann Müller, o célebre fundador da fisiologia moderna, e o classificava entre os "idealistas fisiológicos" (Obras, t. X, n 197). Esse fisiólogo, analisando o mecanismo dos nossos órgãos dos sentidos em suas relações com nossas sensações e precisando, por exemplo, que a sensação de luz pode ser obtida por diversas excitações da vista, inclinava-se a deduzir dai que nossas sensações não são imagens da realidade objetiva: aí estava seu idealismo. Essa tendência de uma escola de materialistas para o "idealismo fisiológico", isto é, para a interpretação idealista de certos resultados da fisiologia, L. Feuerbach a discerniu com muita perspicácia.
As "relações" da fisiologia e do idealismo filosófico, principalmente do tipo kantiano, foram, mais tarde, amplamente exploradas pela filosofia reacionária. F. A. Lange especulou sobre a fisiologia em sua defesa do idealismo kantiano e em suas refutações do materialismo; entre os imanentes (que Bogdanov errou bastante em situar entre Mach e Kant), J. Rehmke se rebelava, em 1882, muito especialmente contra a pretendida confirmação do kantismo pela fisiologia.(1) Que muitos fisiólogos estavam, nessa época, inclinados para o idealismo e o kantismo, não é mais contestável do que a inclinação para o idealismo filosófico manifestada em nossos dias por inúmeros físicos ilustres. O idealismo "físico", ou, noutros termos, o idealismo de certa escola dos físicos de fins do seculo XIX e princípios do seculo XX, "refuta" em tão pequena escala o materialismo e demonstra, igualmente em tão pequena escala, as relações do idealismo (ou do empiro-criticismo) e das ciências naturais quanto, outrora, os esforços análogos de F. A. Lange e dos idealistas "fisiológicos". O desvio para a filosofia reacionária, que, nesse caso, se manifestou numa escola naturalista num setor das ciências naturais, não foi senão um desvio temporário, um breve período doloroso na história da ciência, uma doença de crescimento, devido sobretudo à rápida. subversão das velhas noções tradicionais.
As relações do idealismo "físico" contemporâneo com a crise da física contemporânea são, em geral, reconhecidas, como mostramos linhas atrás.
"Os argumentos da crítica cética da física contemporânea se reduzem todos, no fundo, ao famoso argumento de todos os ceticismos: a diversidade das opiniões" (entre os físicos),
escreve A. Rey, visando menos os céticos do que os partidários declarados do fideísmo, tais como Brunetière.(2) Mas tais controvérsias
"nada podem provar, em consequência, contra a objetividade da física".
"Podem-se distinguir, na história da física, como em toda história, grandes períodos que se diferenciam pela forma e pelo aspecto geral das teorias... Mas eis que sobrevêm uma dessas descobertas que repercutem em todas as partes da física, evidenciando um fato capital, até então mal ou muito parcialmente percebido, e o aspecto da física se modifica; um novo período começa. Foi o que aconteceu após as descobertas de Newton, após as descobertas de Joule—Mayer e de Carnot—Clausius. É o que parece a pique de produzir-se com a descoberta da radioatividade... O historiador que logo veja as coisas com a perspectiva necessária, não terá dificuldade de observar, lá onde os contemporâneos apenas veem conflitos, contradições, cisões em escolas diferentes, uma evolução continua.
"Parece que a crise que a física atravessou nestes últimos tempos (apesar das conclusões deduzidas pela critica filosófica) não constitui coisa diferente. Representa até muito bem o tipo dessas crises de crescimento acarretadas pelas grandes descobertas modernas. A inegável transformação que dai resultara (haveria evolução e progresso sem isso?) não modificará sensivelmente o espírito científico" (loc. cit., pp. 370-372).
O conciliador Rey esforça-se por fazer uma coalizão de todas as escolas da física contemporânea contra o fideísmo! Comete um erro, sem dúvida com as melhores intenções, mas um erro, uma vez que a tendência da escola de Mach—Poincaré—Pearson para o idealismo (isto é, para o fideísmo sutil) é incontestável. Quanto à objetividade da física, ligada às bases do "espírito científico" e não ao espírito fideísta, e que Rey defende com tanta vivacidade, não é outra coisa senão uma definição "reticente" do materialismo. O espírito materialista essencial da física e de todas as ciências naturais contemporâneas sairá vencedor de todas as crises possíveis, sob a condição de que o materialismo metafísico seja substituído pelo materialismo dialético.
A crise da física contemporânea provem de que deixou de reconhecer francamente, nitidamente, resolutamente, o valor objetivo de suas teorias; o conciliador Rey esforça-se, frequentemente, por dissimulá-lo, mas os fatos são mais poderosos do que todas as tentativas conciliadoras.
"Parece-me — escreve Rey — que, ao se tratar, em geral, de uma ciência, na qual o objeto, pelo menos na aparência, tenha sido criado pelo espírito do sábio e na qual, em todo caso, os fenômenos concretos não chegam a interferir na pesquisa veio a se fazer da ciência física uma concepção demasiado abstrata: procurou-se aproximá-la sempre e cada vez mais da matemática e se fez a transformação de uma concepção geral da matemática numa concepção geral da física...
Há invasão do espírito matemático nas maneiras de julgar c de compreender a física, denunciada por todos os experimentadores. E não é a essa influência, que nem por ser dissimulada não é menos preponderante, que se devem a incerteza, a hesitação do pensamento relativamente à objetividade da física e as voltas que se dão ou os obstáculos que se superam para colocá-la em evidência?" (p. 227).
Muito bem. A "hesitação do pensamento" na questão da objetividade da física está na própria raiz do idealismo "físico" em moda.
"A ficção abstrata da matemática parece ter colocado um anteparo entre a realidade física e a maneira pela qual os matemáticos compreendem essa realidade. Eles sentem confusamente a objetividade da física...
Embora pretendam ser antes de tudo objetivos, quando se aplicam à física, embora procurem tomar pé e consolidar-se no real, continuam dominados pelo costume anterior. E até nas concepções energéticas, que se tiveram de construir mais solidamente e com menos hipóteses do que o mecanicismo, que procurou decalcar o universo sensível e não o reconstruir, até aí se encontraram teorias dos matemáticos... Eles (os matemáticos) tudo fizeram para salvar a objetividade, sem a qual eles bem compreendem que não se pode falar de física... Mas as complicações ou os rodeios de suas teorias deixam, aliás, um molestar. Está bem construído; foi investigado, edificado; mas um experimentador não sente a confiança espontânea que lhe proporciona em sua própria opinião, o contacto continuo com a realidade física...
Eis o que dizem, em substância, — e são legião — todos os físicos que são antes de tudo físicos ou não são senão físicos, e toda a escola mecanicista... Ela (a crise da física) está na conquista do campo da física pelo espírito matemático. Os progressos da física, de um lado, e os progressos da matemática, do outro, resultaram, no século XIX, numa estreita fusão dessas duas ciências...
A física teórica torna-se a física matemática...
Começa, então, o período formal, isto é, a física matemática puramente matemática, a física matemática, não um ramo da física, se assim se pode dizer, mas um ramo da matemática cultivado pelos matemáticos. Nesse novo caminho, necessariamente, o matemático habituado aos elementos conceituais puramente lógicos), que fornecem a única matéria da sua obra, inibido pelos elementos grosseiros, materiais, que ele veio a achar pouco maleáveis, teve de fazer deles abstração, sempre e o mais possível, teve de representá-los de um modo inteiramente imaterial e conceitual ou veio mesmo a abandoná-los completamente.
Os elementos, como dados reais, objetivos, e em, suma, como elemento físico, finalmente desapareceram. Apenas se conservaram as relações formais representadas pelas diferenciais... Se o matemático não se engana em seu trabalho construtivo, se, quando analisa a física teórica... sabe descobrir suas relações com a experiência e o seu valor objetivo, é de se acreditar, à primeira vista e não se estando com o espírito prevenido, tratar-se de um desenvolvimento arbitrário...
O conceito, a noção, substituiu em toda parte o elemento real...
Explicam-se pois, historicamente, pela forma matemática que se apoderou da física teórica... o mal-estar, a crise da física e o seu aparente distanciamento dos fatos objetivos" (pp. 228-232).
Tal é a causa primeira do idealismo "físico". As tentativas reacionárias nascem do próprio progresso da ciência. Os grandes progressos das ciências naturais, a descoberta de elementos homogêneos e simples da matéria, cujas leis de movimento são susceptíveis de expressão matemática, fazem os matemáticos esquecer a matéria. "A matéria desaparece", apenas subsistem as equações. Essa nova etapa de desenvolvimento parece conduzir-nos à antiga ideia kantiana: a razão dita suas leis à natureza. Hermann Cohen, entusiasmado, como vimos, com o espírito idealista da nova física, chega a recomendar o ensino da matemática superior em todas as escolas, afim de fazer penetrar na inteligencia dos alunos o espírito idealista excluído pela nossa época (F. A. Lange, Geschichte des Materialismus, (Historia do materialismo), 5.ª edição, 1896, p. XLIX). Isso não passa, evidentemente, de sonho absurdo de um reacionário; na realidade, não há e não pode haver senão uma moda passageira do idealismo, aos olhos de um pequeno grupo de especialistas. Mas é altamente significativo que os representantes da burguesia instruída, como o afogado que agarra qualquer palhinha, recorram aos meios mais sutis para encontrar e guardar um lugar modesto para o fideísmo engendrado, no seio das camadas inferiores das massas populares, pela ignorância, pelo embrutecimento e pela absurda selvageria das contradições capitalistas.
Outra causa do idealismo "físico" é o princípio do relativismo, da relatividade do nosso conhecimento, princípio que se impõe aos físicos com particular vigor, nesta era de subversão das velhas teorias, e que, somado à ignorância da dialética, conduz fatalmente ao idealismo.
Essa questão das relações do relativismo e da dialética é talvez a mais importante para a explicação das desventuras teóricas da doutrina de Mach. Rey, por exemplo, como todos os positivistas europeus, não tem nenhuma ideia da dialética de Marx. Não emprega o termo dialética senão no sentido de especulação filosófica idealista. Do mesmo modo, verificando que a nova física se extravia na questão do relativismo, ele se agita, sem chegar a distinguir o relativismo moderado do relativismo imoderado. Certamente, "o relativismo imoderado... confina, logicamente, senão na prática, com um verdadeiro ceticismo" (p. 215), mas Poincaré não se contaminou. Que ilusão! Com uma balança de farmácia, pesa-se mais ou menos relativismo, acreditando, assim, salvar a causa de Mach!
Na realidade, somente a dialética materialista de Marx e Engels regula, numa teoria justa, a questão do relativismo, e quem a ignora, está condenado a passar do relativismo para o idealismo filosófico. A incompreensão desse fato basta para tirar todo o valor do absurdo volumezinho de Bermann, A dialética sob o ponto de vista da teoria contemporânea do conhecimento. O sr. Bermann repetiu velhas, muito velhas patranhas a respeito da dialética, da qual ele não compreende nem a primeira letra. Já vimos que todos os discípulos de Mach revelam, a cada momento, na teoria do conhecimento, a mesma ignorância.
Todas as antigas verdades da física, inclusive as que tinham sido consideradas imutáveis e não sujeitas a duvidas, revelaram-se relativas; não pode haver, portanto, nenhuma verdade objetiva independente da humanidade. Tal é o pensamento de toda a doutrina de Mach e, igualmente, de todo o idealismo "físico" em geral. Que a verdade absoluta resulte da soma das verdades relativas em vias de desenvolvimento, que as verdades relativas sejam imagens relativamente exatas de um objeto independente da humanidade, que essas imagens se tornem cada vez mais exatas, que cada verdade científica contenha, apesar de sua relatividade, um elemento de verdade absoluta, todas essas proposições evidentes, para quem quer que tenha refletido no Anti-Dühring, de Engels, são hebraico para a teoria "contemporânea" do conhecimento.
Obras tais como A teoria física, de P. Duhem(3), ou os Conceitos e teorias da física moderna, de Stallo(4), particularmente recomendadas por Mach, mostram muito bem que esses idealistas "físicos" atribuem precisamente a maior importância à demonstração da relatividade dos nossos conhecimentos, e, no fundo, oscilam entre o idealismo e o materialismo dialético. Os dois autores citados, que pertencem a épocas diferentes e abordam a questão de pontos de vista diferentes (Duhem, físico, tem uma experiência de vinte anos; Stallo. antigo hegeliano ortodoxo, cora de vergonha por ter publicado, em 1848, uma filosofia da natureza concebida no velho espírito hegeliano), combatem com energia sobretudo a concepção mecano-atomista da natureza. Eles se esforçam por demonstrar que essa concepção é limitada, que é impossível ver-se nela o limite do conhecimento e que conduz a noções mortas os autores que nela se inspirem. Esse defeito do velho materialismo é inegável; a incompreensão da relatividade de todas as teorias cientificas, a ignorância da dialética, o exagero do valor do ponto de vista mecanicista, tudo isso Engels acusou nos materialistas de outrora. Mas Engels soube (contrariamente a Stallo) repudiar o idealismo hegeliano e compreender o germe verdadeiramente genial da dialética hegeliana. Renunciou ao velho materialismo metafísico para adotar o materialismo dialético e não o relativismo que conduz ao subjetivismo.
"A teoria mecanicista diz, por exemplo, Stallo — hipostasia tanto todas as teorias metafísicas como grupos de atributos parciais, ideias e, talvez, puramente convencionais ou mesmo atributos isolados, e os considera como aspectos variados da realidade objetiva" (p. 150).
Isso é verdade e tanto assim que renunciais ao conhecimento da realidade objetiva e combateis a metafísica porque ela é anti-dialética. Stallo não o compreende. Não tendo compreendido a dialética materialista, ele chega até ela frequentemente, ao deslisar, através do relativismo, para o subjetivismo e o idealismo.
Dá-se o mesmo com Duhem. Duhem demonstra, através de dificuldades, com auxilio de grande número de exemplos interessantes e valiosos tomados à história da física tais como os encontrados frequentemente em Mach, que "toda lei física é provisoria e relativa, porque é aproximada" (p. 280). Para que arrombar portas abertas? pergunta o marxista com a leitura das longas dissertações sobre esse tema. Mas a infelicidade de Duhem, de Stallo, de Mach, de Poincaré, consiste em não ver a porta que o materialismo dialético deixa aberta. Não sabendo dar do relativismo uma definição justa, caem no idealismo.
"Uma lei física não é, a bem dizer, nem verdadeira, nem falsa, mas aproximada" — escreve Duhem (p. 274).
Esse "mas" já encerra um germe de erro, um começo de eliminação dos limites entre a teoria científica, reflexo aproximado do objeto, aproximação crescente da verdade objetiva, e a teoria arbitraria, fantasista, puramente convencional, que é, por exemplo, a da religião ou do jogo de xadrez.
Esse erro toma, em Duhem, proporções tais, que esse autor chega a qualificar de metafisica (p. 10) a questão da existência de uma "realidade material" correspondente aos fenômenos sensíveis: Abaixo o problema da realidade! Nossas concepções e nossas hipóteses não são senão sinais (p. 26), construções "arbitrarias" (p. 27), etc.. Dai ao idealismo, à "física do crente" preconizada, pelo sr. Pierre Duhem, com espírito kantiano (ver Rey, p. 162, cf. p. 160), não há senão um passo. E esse excelente Adler (Fritz) — mais um discípulo de Mach que se pretende marxista! — nada viu de mais inteligente do que "retificar" Duhem do seguinte modo: Duhem afasta "as realidades dissimuladas atrás dos fenômenos apenas como objetos da teoria e não como objetos da realidade".(5) Voltamos a encontrar aí um velho conhecimento: a critica do kantismo segundo Hume e Berkeley.
Não se trata, em P. Duhem, de nenhum kantismo consciente. Duhem, do mesmo modo que Mach, erra simplesmente, não sabendo onde apoiar seu relativismo. Em inúmeras passagens, ele se aproxima consideravelmente do materialismo dialético. O som é nosso conhecido "tal como é em relação a nós e não tal como é em si mesmo nos corpos sonoros. Essa realidade, da qual nossas sensações nos dão apenas o exterior e o aparente, as teorias acústicas vão nô-la fazer conhecer. Vão ensinar-nos que, onde nossas percepções apreendem somente essa aparência que chamamos de som, existe na realidade um movimento periódico, muito curto e muito rápido..(p. 7). Os corpos não são sinais das sensações, mas as sensações é que são sinais (ou, antes, imagens) dos corpos.
"O desenvolvimento da física provoca uma luta continua entre "a natureza que não se cansa de produzir" e a razão, que não se quer "cansar de conceber’’ (p. 32).
A natureza é infinita, como o é a menor de suas partes (o eléctron inclusive), mas o espírito transforma infinitamente as "coisas em si" em "coisas para nós".
"Desse modo, continuará infinitamente essa luta entre a realidade e as leis da física; a toda lei, que a física formular, a realidade oporá, cedo ou tarde, o brutal desmentido de um fato; mas o físico, infatigável retocará, modificará, completará a lei desmentida" (p. 290).
Teríamos aí uma exposição de uma justeza irrepreensível do materialismo dialético se o autor afirmasse vigorosamente a realidade objetiva independente da humanidade.
"A teoria física não é, absolutamente, um sistema puramente artificial, hoje cômodo e amanhã obsoleto... É uma classificação cada vez mais natural, um reflexo cada vez mais claro das realidades que o método experimental não saberia encarar decididamente" (p. 445).
O discípulo de Mach, Duhem, nessa última frase, namora o idealismo kantiano: como se não houvesse um caminho que conduz a outro método que não o método "experimental", como se não aprendêssemos a conhecer imediatamente, diretamente, face a face, as "coisas em si"! Mas, se a teoria física se torna cada vez mais "natural", é que uma "natureza", uma realidade, "refletidas" por essa teoria, existem independentemente da nossa consciência tal é, precisamente, o pensamento do materialismo dialético.
Numa palavra, o idealismo "físico" de hoje, como o idealismo "fisiológico" de ontem, indica apenas que uma escola de naturalistas, num setor das ciências naturais, caiu na filosofia reacionária, por não ter sabido elevar-se diretamente, de uma só vez, do materialismo metafísico ao materialismo dialético(6). Esse passo, a física contemporânea o deu e o dará, mas encaminha-se para o único método justo, para a única filosofia justa das ciências naturais, não em linha reta, mas em ziguezagues, não conscientemente, mas espontaneamente, não guiada por um "objetivo final", nitidamente percebido, mas tateando, hesitando e, às vezes, com retrocessos. A física contemporânea está grávida. Traz em si o materialismo dialético. Parto doloroso. O ser vivo e futuroso vem acompanhado, inevitavelmente, de alguns produtos mortos, de fragmentos destinados a ser expelidos com as impurezas. Todo o idealismo "físico", toda a filosofia empiro-criticista, com o empiro-simbolismo, o empiro-monismo, etc., constituem tais fragmentos.
Notas de rodapé:
(1) Johannes Rehmke, Philosophie und Kantianismus (Filosofia e kantismo), Eisenach, 1883, págs. 15 e seguintes. — N. L. (retornar ao texto)
(2) A. Rey, La théorie physique chez les physiciens contemporains, F. Alcan, 1907. — N. L. (retornar ao texto)
(3) P. Duhem, La théorie physique, son object et sa structure, Paris, 1906. — N. L. (retornar ao texto)
(4) J. B. Stallo, The Concepts and Theories of modem Physics (Conceitos e teorias da física moderna, Londres, 1882. — N. L. (retornar ao texto)
(5) Nota do tradutor à tradução alemã do livro de Duhem, Leipzig, 1908, J. Barth. N. L. (retornar ao texto)
(6) O célebre químico William Ramsay diz: "Perguntaram- me muitas vezes: a eletricidade é uma vibração? Como explicar a telegrafia sem fio pelo transporte de partículas ou corpúsculos? A resposta a essas perguntas foi a seguinte: a eletricidade é uma coisa; ela não é outra coisa senão esses corpúsculos, mas quando esses corpúsculos se destacam de algum objeto, uma onda análoga à onda luminosa se propaga no éter e essa onda é que é utilizada na telegrafia sem fio." (William Ramsay, Biographical and chemical essays, Londres, 1908, pág. 126). Depois de ter exposto o processo de transformação do rádium em helium, Ramsay observa: "Um pretendido elemento, pelo menos, não mais pode ser considerado como matéria última; ele mesmo se transmuda numa forma mais simples de matéria" (pág. 160). "É quase certo que a eletricidade negativa é uma forma particular da matéria elétrica" (pág. 176). ‘'Que é a eletricidade? Acreditava-se, recentemente, que havia duas especies de eletricidade: positiva e negativa. Era, então, impossível responder à pergunta formulada. Mas as pesquisas contemporâneas tornam provável a hipótese de que o que costumamos chamar de eletricidade negativa constitui, na realidade (really), uma substância. O peso relativo das suas partículas foi, realmente, medido: é aproximadamente igual a um setecentos avos (1/700) da massa do átomo do hidrogênio... Os átomos da eletricidade chamam-se eléctrons" (pág. 196). Se nossos discípulos de Mach, autores de livros e de artigos que tratam de assuntos filosóficos, pudessem pensar, compreenderiam que as expressões "a matéria desaparece", "a matéria se reduz à eletricidade", etc. não passam de expressões gnoseologicamente anódinas dessa verdade, que a ciência veio a descobrir, de novas formas da matéria, de novas formas do movimento material, reduzindo as formas antigas a essas novas formas, etc... — N. L. (retornar ao texto)
Inclusão | 28/01/2015 |