A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx

Evald Vasilievich Ilienkov


Capítulo 2. A Unidade do Abstrato e do Concreto como Lei do Pensamento

3. Caráter em Espiral do Desenvolvimento da Realidade e seu Reflexo Teórico


Assim, materialistas dialéticos interpretam concreticidade da teoria como um reflexo de todos os aspectos necessários do objeto em seus condicionantes mútuos e interconexão interna.

A natureza de condicionante mútuo típico de qualquer todo dividido dialeticamente impõe demandas rigorosas à teoria e ao mesmo tempo dá aos teóricos um critério claro para destacar somente as definições internamente necessárias da multiformidade dada sensorialmente.

Em um sentido mais imediato, isso significa que cada abstração concreta (cuja totalidade constitui uma teoria) reflete somente aquela forma da existência de um objeto que é ao mesmo tempo uma condição necessária universal de todas as outras assim como uma consequência necessária e universal de sua interação.

Essa condição é satisfeita, por exemplo, pela definição analisada anteriormente de homem como sendo um ser produzindo instrumentos de trabalho. Produção de instrumentos de trabalho, produção de meios de produção, não é somente um pré-requisito universal (logicamente e historicamente) de todas as outras formas humanas de atividade viva, mas também um resultado ou consequência reproduzido continuamente do desenvolvimento social como um todo.

A cada momento em seu desenvolvimento, a humanidade é necessariamente obrigada a reproduzir, isto é, postular como seu produto, sua própria base universal, a condição universal da existência do organismo humano social como um todo.

Hoje, a produção de instrumentos de trabalho, que se desenvolveu em fantásticas máquinas complexas e conjunto de máquinas, permanece, por um lado, uma base objetiva universal do resto do desenvolvimento humano, assim como do amanhecer da humanidade. Mas, por outro lado, depende essencialmente do nível de desenvolvimento da ciência, sua própria descendência remota, em sua própria consequência e a dependência é tão forte que máquinas podem ser consideradas (dentro de uma estrutura materialista) como “órgãos do cérebro humano criados pela mão humana” (Marx, 2011, p. 589)Referência 1. Assim como modo, mercadorias, dinheiro, força de trabalho “livre” – todos esses não são menos produtos do capital, consequências de seu movimento específico, do que são suas premissas históricas, as condições de seu surgimento. E estes são os tipos de produtos que o capital reproduz em e sempre aumentando uma escala inconcebível antes de seu surgimento.

Esta dialética de todo desenvolvimento real, na qual a condição necessária universal do surgimento de um objeto se torna sua própria consequência necessária e universal, esta inversão dialética na qual a condição se torna condicionada, a causa se torna efeito, o universal se torna particular, é uma característica peculiar da interação interna através da qual o desenvolvimento verdadeiro assume a forma de um círculo, ou para ser mais preciso, de uma espiral que estende o alcance de seu movimento todo o tempo, a cada nova virada.

Ao mesmo tempo, existe um tipo de “bloqueio em si mesmo” aqui que transforma um conjunto de fenômenos individuais em um sistema relativamente fechado, um organismo integral concreto se desenvolvendo de acordo com suas leis imanentes.

Marx resolutamente enfatizou esta natureza da interação dentro do sistema de produção capitalista: “Se em um sistema burguês desenvolvido [...] qualquer coisa que é postulada é ao mesmo tempo uma premissa, a mesma coisa toma lugar em qualquer sistema orgânico” (Marx, 2011, itálicos de Ilienkov)Referência 2. As palavras em itálico nessa citação expressam diretamente o fato de que a natureza “circular” da interação não é de forma alguma uma lei específica da existência e desenvolvimento do capitalismo, mas sim uma lei universal do desenvolvimento dialético, uma lei da dialética. Essa é exatamente a lei que fundamenta a lei lógica de coincidência do abstrato e do concreto e a concepção materialista dialética da concreticidade teórica.

Entretanto, a mesma lei de desenvolvimento em forma de espiral de um sistema de fenômenos interagindo apresenta algumas dificuldades específicas para o pensamento – dificuldades que não são superadas sem o método dialético em geral e sem uma concepção clara da dialética do abstrato e do concreto em particular.

Economistas burgueses, ao chegarem em seus estudos contra tais circunstâncias, a natureza em forma de espiral do condicionamento mútuo das diversas formas da riqueza burguesa, inevitavelmente caducaram em uma circularidade ao definir as mais importantes categorias. Marx descobriu essa circularidade incorrigível esperança já em sua primeira tentativa de análises das teorias econômicas Inglesas em 1844. Ao analisar a argumentação de Say ele descobriu que o último, assim como outros economistas, em todo lugar substituía o conceito de valor por uma explicação de fenômenos que eram eles próprios silenciosamente assumidos ao explicar o valor, por exemplo, os conceitos de “riqueza”, “divisão do trabalho”, “capital” etc.

Riqueza. Aqui o conceito de valor, que não havia ainda sido desenvolvido, já é assumido; por riqueza é definido como “a soma total dos valores”, “soma total das coisas valiosas” que alguém possui (Marx e Engels, 1932, S. 449)Referência 3.

Quinze anos depois, retornando a este ponto, Marx revela o mistério desse círculo lógico incorrigível:

Se na teoria o conceito de valor precede o de capital, mas, por outro lado, subentende um modo de produção fundado no capital para seu desenvolvimento puro, o mesmo sucede na prática. Daí porque os economistas consideram necessariamente o capital ora como criador, fonte dos valores, ora, por outro lado, pressupõem valores para a formação do capital e apresentam ele próprio só como uma soma de valores em uma função determinada (Marx, 2011, p. 194)Referência 4.

Esta circularidade lógica em definições inevitavelmente acontece em razão de que qualquer objeto é na verdade um produto do desenvolvimento dialético, devido ao qual a realidade estudada pela ciência sempre aparece como um sistema de aspectos condicionantes mútuos, como uma concreticidade surgindo e desenvolvendo historicamente.

Assumindo de fato ambos dinheiro e valor como premissas para seu surgimento, o capital em seu nascimento imediatamente os transformou em formas universais de seu próprio movimento, em momentos abstratos de seu ser específico. Como resultado, ele surgiu antes do observar contemplando uma relação estabelecida historicamente como o criador do valor. A dificuldade reside aqui em que é somente no surgimento do capital que transforma valor em uma forma econômica universal real de toda produção, de um sistema de relações econômicas totais. Antes disso, antes do surgimento do capital, o valor é qualquer coisa que não a relação econômica universal se somente porque não inclui tal fator “particular” significante da produção como força de trabalho.

É impossível romper a circularidade lógica na definição do valor e capital por qualquer procedimento lógico sofisticado ou manipulações semânticas com conceitos e suas definições, pois a circularidade surge não de uma falta de definições de conceitos, mas da falha em entender a natureza dialética de interação entre eles, de uma falha em implementar uma abordagem genuinamente histórica ao estudo de sua interação. É somente uma abordagem histórica que capacita encontrar uma maneira de sair do círculo vicioso, ou melhor, uma forma para ela. Na medida em que os economistas burgueses eram alheios a tal abordagem, a circularidade é incorrigível para eles.

A falha de tais tentativas é determinada pela incapacidade de agarrar a concreticidade como um sistema historicamente desenvolvido de fenômenos interagindo internamente que sofre um maior desenvolvimento, como uma “unidade da diversidade” evoluindo historicamente. Mas era exatamente essa concepção dialética da concreticidade que deu a Marx uma chave metodológica para a solução dos problemas teóricos básicos da economia política; em particular, explica o fato de que foi Marx quem revelou o mistério do fetichismo das mercadorias. A concreticidade do mundo capitalista inclui somente aquelas formas objetivas de movimento que este mundo assume como seus pré-requisitos e, além disso, reproduz como seu produto específico, postulando eles como sua consequência.

O sol, mercadorias, recursos naturais, dinheiro, força de trabalho livre, disponibilidade de máquinas – tudo isso são premissas e condições igualmente objetivas na ausência das quais o capital não pode nem surgir nem existir. Mas nem as circunstâncias naturais de sua origem, nem os parâmetros técnicos das máquinas, nem as características antropológicas do homem, e sua habilidade de trabalhar, forma as formas imanentes necessárias e universais da existência do capital.

A análise de Marx aponta como as características teóricas concretas, somente aquelas condições necessárias e universais do ser do capital que são reproduzidas pelo movimento do próprio capital. O capitalismo não reproduz força de trabalho enquanto tal ou recursos naturais e outros componentes materiais, mas sim força de trabalho como mercadoria, isto é, como aquela forma social na qual a força de trabalho funciona dentro de um sistema desenvolvido de relações capitalistas.

Força de trabalho enquanto tal, como uma soma total de habilidade psicológicas ou fisiológicas, é produzida e reproduzida por outro processo ou processos. O capitalismo não a reproduz, assim como não produz luz do sol ou recursos naturais ou ar etc., mas sim produz aquelas formas sociais dentro das quais e através das quais todas essas coisas estão envolvidas em seu movimento específico e se movem dentro de seu organismo como suas formas.

O critério que Marx aplicou aqui para distinguir formas imanentes do movimento do objeto é essencialmente um critério lógico, universal. Isso significa que para qualquer objeto, coisa, fenômeno ou fato individual é dado certa forma concreta de sua existência pelo processo concreto no movimento do qual isso acontece de estar envolvido; qualquer objeto individual de qualquer forma concreta deve sua existência ao sistema concreto historicamente estabelecido de coisas dentro do qual surge e forma uma parte, ao invés de si mesmo, sua própria natureza individual contida.

Ouro tomado por si mesmo não é dinheiro. Ele se torna dinheiro na circulação de dinheiro e mercadorias na qual está envolvido. “Uma cadeira com quatro pernas, forrada de veludo, representa, em certas circunstâncias, um trono, mas nem por isso, essa cadeira - objeto que serve para sentar - é um trono por natureza de seu valor de uso” (Marx, 1978, pp. 27-28)Referência 5, isso quer dizer que, por sua natureza imanente, “em e por si mesmo”, tomado em abstração daquelas condições específicas que fazem dela um trono, absolutamente não é um trono.

Dessa forma se torna aparente a enorme importância da concepção dialética da concreticidade que as abstrações teóricas possuem para a superação das ilusões fetichistas naturalistas dissimulando a natureza do valor assim como todas as suas formas derivadas, incluindo juros, renda etc.

Em sua natureza, o ouro não é mais dinheiro do que carvão é combustível para a locomotiva, a lua uma protetora dos amantes, e homem como escravo ou patrício, proletário ou burguês, filósofo ou matemático.

Existe uma questão excelente aqui, entretanto, que a dialética tem que levar em conta. Ouro, carvão e homem em si mesmos possuem certas características e qualidades devidas ao qual o processo em que eles estão envolvidos pode transformá-los em formas de seu próprio movimento, de sua existência.

É ouro e não argila ou pedaços de granito que prova ser o material natural no qual a forma universal de valor é realizada. Aqui as qualidades físico-químicas naturais realmente desempenham um papel. Mas estas propriedades naturais não são consequentes quando nós estamos lidando com a essência, a natureza da forma dinheiro do valor enquanto tal. Essa forma se desenvolve na circulação mercantil independente de suas propriedades naturais de ouro. É a esfera da circulação que desenvolve a “forma puramente econômica” que depois “encontra” o material mais flexível para sua implementação apropriada para seu objetivo. Tão logo o ouro prova ser um meio ou substância insuficientemente flexível e plástica para expressar os novos traços se desenvolvendo da forma dinheiro, ele é substituído por papel, notas bancárias, compensação por escrito etc.

Essa discussão mostra qual realidade objetiva estava mistificada pela dialética Aristotélica (e mais tarde Hegeliana) na forma de ensino do intelecto, da “forma pura” existindo fora e independentemente da “matéria” na qual é subsequentemente encarnada, e na qual molda depois de sua própria maneira, em acordo com os requisitos contidos nela. Essa é a concreticidade objetiva real como um sistema de coisas interagindo onde a coisa individual, uma vez que entra no sistema, se conforma a seus requisitos e adquire uma forma de existência previamente desconhecida a ela.

A concepção materialista dialética da concreticidade dessa forma destruiu o último refúgio do idealismo inteligente, dialético, dando uma solução racional ao mistério do intelecto, o mistério do universal como a “causa objetivo”, como “forma pura” desenvolvendo fora e independentemente do mundo de coisas individuais e subordinando essas coisas ao seu movimento específico.

Realidade que é expressa de maneira idealista e mistificada no movimento do conceito como uma causa objetivo, como uma forma ativa, não é nada além de uma concreticidade objetiva real, isto é, um sistema surgindo e desenvolvendo historicamente de fenômenos mutuamente condicionantes, um complexo todo dividido dialeticamente que inclui cada coisa individual e condições da natureza e forma concreta das coisas.

A categoria materialistamente interpretada de ações recíprocas revela o mistério da “causa objetivo”: “a interação é a verdadeira causa finalis das coisas” (Engels, 2000, p. 140)Referência 6, é a maneira como Engels formula essa proposição.

O que está acima requere uma qualificação essencial. Cada ciência obviamente reflete em suas categorias somente formas e leis específicas de um sistema concreto de fenômenos interagindo constituindo seu assunto especial, fazendo abstração de todo o resto, apesar do fato de que sem este “todo o resto” seu assunto é impossível e inconcebível.

Por exemplo, economia política revela em uma forma sistemática a totalidade concreta das relações de produção social entre homens, deixando de lado os aspectos tecnológicos de comunicação e as relações biológicas entre indivíduos, apesar do fato de que homens não podem existir um sem o outro.

É bastante aparente que todas essas mudanças que tomam lugar dentro do sistema de relações de produção, toda a evolução do sistema de relação de produção e formas de conexão econômica dependem na verdade do desenvolvimento da força produtiva do homem e, além disso, são determinados por esse desenvolvimento.

Contudo, Marx considera em O Capital o sistema das relações capitalistas como um “sistema se autodesenvolvendo”, como uma concreticidade fechada em si mesma, na qual a força motriz do desenvolvimento reside dentro de si mesma, em suas contradições internas, nas contradições imanentes da forma econômica. Mas, falando estritamente, a verdade força motriz da evolução do sistema de relações de produção não estão contidas dentro do próprio sistema, mas sim no desenvolvimento das forças produtivas. A não ser que as forças produtivas se desenvolvam, nenhuma dialética “interna” do sistema de relações econômicas produzirá uma evolução. Entretanto, Marx estuda o modo de produção como um todo e, portanto, registra um condicionante dialético mútuo das forças produtivas e relações de produção. O desenvolvimento das forças produtivas é aqui tomado não por si mesmo, não somente como uma causa, mas também como uma consequência, resultado e produto da ação reversa do sistema de relações de produção sobre as forças produtivas.

Por exemplo, O Capital mostra o mecanismo devido ao qual o surgimento da forma econômica do mais-valor relativo causa um crescimento na produtividade do trabalho, induzindo o capitalista a substituir trabalho manual por trabalho da máquina e desenvolver a base técnica da produção do mais-valor.

Está claro, entretanto (e está mostrado no próprio Marx), de que na verdade é o aparecimento das máquinas que é a causa real da forma absoluta de mais-valor sendo derrubada por sua forma relativa.

Mais-valor relativo claramente se torna a forma dominante de mais-valor exatamente em razão de que está em melhor conformação com o trabalho da máquina do que o mais-valor absoluto, que é aumentado por um simples aumento na jornada de trabalho, com a produtividade do trabalho permanecendo inalterada.

A questão é, entretanto, que a própria correspondência entre a forma econômica de um estágio do desenvolvimento de uma força produtiva é, por sua vez, uma correspondência dialética. Mais-valor relativo se conforma à produção maquinal exatamente porque não permanece uma forma passiva dentro da qual as máquinas trabalham, mas sim se torna uma forma ativa exercendo um efeito reverso muito forte sobre a produção maquinal, isto é, em sua própria base que a deu origem, desenvolvendo essa base e assim criando um novo incentivo para seu próprio movimento.

Aqui toma lugar a transformação da causa em efeito, que é característica de qualquer desenvolvimento real. Essa circunstância é extremamente importante para entender os caminhos escolhidos por Marx em sua pesquisa.

Marx considerou a evolução do sistema de relações de produção baseado em trabalho assalariado. Ele estava muito mais preocupado com aquelas mudanças que tomaram lugar dentro do sistema de relações de produção, dentro da estrutura econômica da sociedade. Quanto ao desenvolvimento das forças de produção enquanto tais, independentemente de qualquer forma de relações de produção, não é considerado em O Capital. Este é o assunto de outra ciência, a ciência da tecnologia.

Marx toma como dado o fato de que as forças produtivas enquanto tais desenvolvem independentemente de certa forma histórica concreta de relações entre homens, assumindo isso ser um fato que não é para ser estudado especialmente dentro da economia política.

Isso significa que o desenvolvimento das relações de produção é em geral considerado por ele como não relacionado ao desenvolvimento das forças produtivas? Ao contrário. Na verdade, exatamente aquelas mudanças são consideradas dentro do sistema de relações econômicas que são causadas pelo desenvolvimento das forças produtivas. Além disso, precisamente porque a economia política não considera o desenvolvimento das forças produtivas em si mesmo (“an und für sich”, “an sich”, “für sich”), o efeito deste desenvolvimento no sistema de formas econômicas, sua interação com o último é concebida em uma maneira histórica concreta, isto é, exatamente naquela forma na qual esse efeito funciona no mundo do proprietário capitalista privado.

A natureza da mudança introduzida por um novo acréscimo de forças produtivas ao sistema de relações de produção depende inteiramente das características específicas do sistema no qual esta mudança é introduzida.

Qualquer novo acréscimo das forças produtivas não cria automaticamente uma relação econômica ou forma socioeconômica conformando diretamente a ele, mas sim determina a direção a qual o sistema já existente formado historicamente de relações econômica evolui. A situação não é afetada pelo fato de que o sistema formado antes de relações econômicas por sua vez, do início ao fim, um produto de todo o desenvolvimento precedente das forças produtivas.

Um sistema concreto historicamente formado de economia é sempre um organismo relativamente independente produzindo um efeito reverso em sua própria base – a soma total de forças produtivas e refratando qualquer efeito do último sobre sua própria natureza específica. A totalidade das formas econômicas tece em um único sistema de desenvolvimento de uma base idêntica, constitui a natureza específica de um organismo econômico que assim adquire uma relativa independência em consideração às próprias forças produtivas.

Economia política como uma ciência especial tem por sua matéria subjetiva exatamente aquelas formas que expressam a relativa independência do sistema de relações de produção. O efeito determinante das forças produtivas nas relações de produção é revelado em uma maneira histórica concreta precisamente porque o desenvolvimento das forças produtivas como tais não é considerado; o que é considerado é somente a lógica interna da evolução do sistema de relações de produção, a lógica interna da formação e desenvolvimento do sistema. Assim o processo no qual as forças produtivas criam relações de produção apropriadas é traça bastante concretamente. Caso contrário o estudo permaneceria palavreado abstrato.

Tudo isso tem uma influência não somente na economia política, mas em qualquer ciência teórica. Toda ciência é exigida a desenvolver uma concepção sistemática de precisamente aquelas formas de existência de um objeto que expressa sua relativa independência, ao invés daquelas cujas características abstratas que possuem em comum com outros.

As forças produtivas não criam qualquer coisa cada vez novamente do zero (essa é realmente uma possibilidade somente no amanhecer do desenvolvimento humano); eles determinam o tipo e caráter das mudanças tomando lugar dentro de um sistema já estabelecido de relações de produção. A situação é a mesma no desenvolvimento de todas as formas de cultura espiritual, direito, instituições políticas, filosofia e arte.

“Aqui a economia cria nada novo, mas determina a forma na qual o corpo de pensamento encontrado na existência é alterado e mais à frente desenvolvido, e isso também, na maior parte, indiretamente” (Engels, 1975, p. 401)Referência 7, enfatiza Engels, considerando este ponto ser o traço mais importante distinguindo a teoria do materialismo histórico da deliberação abstrata dos economistas vulgares que reduziram a inteira complexidade concreta do verdadeiro processo de desenvolvimento espiritual à insistência abstrata no primado da economia e a natureza derivada de todo o resto.

Assim o materialismo histórico leva em conta plenamente o fato que a economia sempre prevalece “dentro de termos previstos pela própria esfera particular” (Engels, 1975, p. 401)Referência 8, isto é, uma e a mesma mudança econômica produz certo efeito na esfera da arte e um bastante diferente, ao contrário do primeiro, na esfera do direito, e assim por diante.

A dificuldade não é nunca em reduzir certo fenômeno na esfera do direito ou arte a sua causa econômica. Isso não é muito difícil de fazer. Mas isso não é materialismo histórico. Em geral, a filosofia Marxista toma a perspectiva de dedução ao invés de redução, exigindo que em cada caso concreto deveria ser entendido porque a dada mudança na economia foi refletida em políticas ou arte e não em alguma outra forma.

Essa tarefa assume, entretanto, um entendimento teórico da natureza específica na qual a mudança econômica é refletida e transformada. Cada uma das esferas superestruturais da atividade do homem social deve ser entendida e explicada como um sistema de formas concretas historicamente estabelecidas, específica para essa esfera refletindo a economia, ser social do homem.

Todos os princípios filosóficos e lógicos aplicados por Marx ao estudo do sistema de relações capitalistas como um sistema de interação historicamente estabelecido, são aplicáveis a qualquer ciência natural ou social.

Vamos considerar somente um exemplo – a origem das normas legais. Uma condição necessária e universal para o surgimento de qualquer norma legal é a “relação fatual”, um termo aplicado por juristas ao fato não-legal, puramente econômico. Este fato, tomado em si mesmo, está fora da competência do direito escolar, referindo à esfera da economia política.

A questão é, entretanto, que não é qualquer relação econômica, qualquer “relação fatual” que engendra uma norma legal apropriada, mas somente uma que objetivamente precisa de proteção legal, isto é, exige uma subjugação forçada da vontade dos indivíduos. Em outras palavras, somente aquelas relações econômicas que precisam de proteção que, com a ajuda de uma norma legal, é depois afirmada como o resultado da ação do direito. No comunismo, por exemplo, a necessidade do direito e de um sistema de normas legais murchará exatamente porque a própria forma de relações econômicas, a forma comunista de propriedade (como uma “relação fatual”) assumirá um caráter que não precisará mais de uma forma legal para sua afirmação.

Segue que somente tal relação econômica, um fato não-legal, que exige uma forma legal para sua afirmação, constitui uma premissa e condição real de surgimento de uma norma legal. Em outras palavras, somente aquele fato não-legal se tornará uma condição real de uma norma legal que é afirmada ativamente (isto é, em consequência de aplicação da lei) e protegida por todo o sistema de funcionamento do direito. Se certa “relação fatual” não precisa de proteção e afirmação legal, se não é uma consequência da aplicação da lei, então também não é a causa da lei. Neste caso uma norma legal absolutamente não surge: uma moral ou alguma outra norma sim.

De acordo com isso, somente aquela relação econômica entre homens constitui uma premissa e condição real para o surgimento da norma legal, que é afirmada pela norma legal como um produto, uma consequência de sua aplicação e aparece na superfície como uma consequência do direito, e não como sua causa. Neste caso lidamos novamente com a transformação dialética da causa em feito, que deriva do caráter de tipo espiral de qualquer desenvolvimento real de fenômenos mutuamente condicionantes. É o fato real, sendo compreendido e elucidado de uma maneira unilateral, somente na perspectiva do efeito reverso ativo da consciência social em todas as suas formas no ser social, na esfera das relações econômicas entre homens e homens e natureza, que dá origem a diversas concepções idealistas.

Absolutização abstrata deste aspecto, do efeito reverso ativo do pensamento em todas as outras esferas da atividade, incluindo economia e o campo de relações entre homem e natureza, formou a base para a concepção Hegeliana, que em última análise declarou toda a vida social do homem e até mesmo sua própria natureza como sendo uma consequência ou produto do pensamento em termos de conceitos, um resultado da atividade lógica da razão universal. É este fato de relativa independência do pensamento, do desenvolvimento lógico do homem, devido ao qual o pensamento possui um efeito reverso ativo em todas as esferas da atividade do homem (incluindo economia), que Hegel enfatizou unilateralmente. Essa unilateralidade coincide com o ponto de vista idealista-objetivo da relação do pensamento com o ser.

Rejeitando a tese relativa à absoluta independência do processo lógico, do sistema de categorias lógicas, a lógica marxista-leninista leva em conta a relativa independência da esfera da atividade social lógica do homem, atividade das categorias lógicas na percepção e análises do dado sensorial. Embora não seja uma simples réplica passiva das “formas gerais” dos fatos dados sensorialmente, é um modo bastante específico de atividade espiritual do sujeito desenvolvido socialmente. As formas universais nas quais esta atividade é realizada (categorias lógicas) não é meramente um conjunto acidental das abstrações mais gerais, mas um sistema dentro do qual cada categoria é definida concretamente através de todas as outras.

O sistema de categorias lógicas implementa a mesma subordinação do sistema de conceitos de qualquer ciência, que reflete o todo dividido dialeticamente. Essa subordinação não é de natureza gênero-a-espécie: a categoria de quantidade, por exemplo, não é nem uma espécie de qualidade, nem um gênero em consideração à causalidade ou essência. Uma categoria lógica não pode assim ser em princípio definida por inclusão em um gênero mais elevado e indicação de suas próprias características específicas. Isso confirma mais uma vez o fato que um conceito real só existe em um sistema de conceitos e através dele, se tornando fora de um sistema uma abstração vazia sem qualquer definição clara – um mero termo ou designação.