A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx

Evald Vasilievich Ilienkov


Capítulo 2. A Unidade do Abstrato e do Concreto como Lei do Pensamento

4. Abstração Científica (Conceito) e Prática


Prática, atividade objetiva sensorial do homem social, tem sido sempre e ainda é um pré-requisito e condição universal com base nos quais o inteiro mecanismo complexo das habilidades cognitivas do homem, transformando ativamente impressões sensoriais, surge e desenvolve. Tendo surgido e, ainda mais, tendo se desenvolvido a um alto nível, um sistema de formas de atividade lógica (categorias) tem um efeito reverso muito considerável na própria prática. Nesta base a filosofia marxista-leninista resolveu o problema da relação das abstrações empíricas com as abstrações do pensamento teórico.

No fenômeno aberto à contemplação direta, as coisas em sua maioria parecem bastante diferentes do que são em essência expressos em um conceito. Se ambos coincidem diretamente, ciência como análise teórica especial de fenômenos absolutamente não seria necessária.

E isso é exatamente porque a mera referência ao fato de que tal e tal “traço geral” pode ser registrado em um fenômeno aberto à contemplação direta, não pode ainda sim servir como um argumento de peso tanto para ou contra a abstração do conceito. Ao mesmo tempo, quando Jean-Jacques Rousseau formulou sua tese histórica, “O homem nasce livre e em todo lugar ele está em correntes”, muitos homens de fato passar suas vidas virtualmente “em correntes”, desde o berço até a sepultura. A tese de que todos os homens desde o nascimento são essencialmente iguais não podia ser provada à época por se referir a um estado empírico geral de questões. E ainda assim, historicamente e teoricamente, as concepções filosóficas do Iluminismo eram verdadeiras, e não aquelas de seus oponentes.

Contemplação direta e as abstrações surgindo dela sempre e em todo lugar refletem fenômenos entre homens e homem-natureza existindo no momento. Natureza é contemplada por um indivíduo historicamente definido concreto vivo tecido em uma rede de relações sociais, isto é, um ser parado em uma relação objetiva prática ativa com o mundo, ao invés de imaginária, alegadamente “contemplativa passiva”, subjetiva. E isso é exatamente porque propriedades sócio-históricas das coisas muito frequentemente mesclam aos olhos do indivíduo com suas propriedades naturais, enquanto propriedades transitórias das coisas e do próprio homem começam a parecer propriedades eternas ligadas com a própria essência das coisas. Essas ilusões naturalistas fetichistas (fetichismo da mercadoria é apenas um exemplo) e as abstrações expressando elas não podem assim ser refutadas por mera indicação de coisas dadas em contemplação. As coisas dadas em contemplação a um indivíduo da sociedade burguesa (“civil”) são, superficialmente, exatamente da forma que parecem para ele. Essas ilusões e abstrações são formadas não somente na consciência de um indivíduo da sociedade burguesa, mas na própria realidade das relações sociais econômicas que ele contempla. É por isso que Marx apontou que o ponto de vista contemplativo do indivíduo moldado pelo “civil”, isto é, sociedade burguesa, não permite ver a realidade em sua luz genuína. Desta perspectiva (e essa foi, como Marx apontou, a perspectiva de todo o velho materialismo, incluindo o de Feuerbach), as coisas aparecem em contemplação, também, encoberto em uma névoa de ilusões fetichistas. Na contemplação viva o indivíduo é sempre ativo; “contemplação passiva” que alegadamente permite ver coisas como elas são na verdade pertence ao reino de fantasias da velha filosofia. Na contemplação viva real as coisas são sempre dadas à luz da existência prática.

Isso obviamente não significa que as coisas devem aparecer no pensamento teórico fora de qualquer conexão com a prática, sendo compreendido “em uma maneira puramente desinteressada”, como materialistas antes de Marx acreditavam. Ao contrário. A diferença aqui é que abstrações do pensamento teórico estão vinculadas com a prática de uma maneira menos direta do que abstrações da contemplação viva, mas, para compensar isso, os elos são mais profundos e mais compreensivos.

Abstrações empíricas nascidas na cabeça de um membro praticamente ativo da sociedade burguesa são criticadas por Marx na perspectiva da própria prática. Mas prática é aqui tomada como um escopo real inteiro e, o que é ainda mais importante, em certa perspectiva.

O princípio de Marx de criticamente superar abstrações empíricas da consciência burguesa é o seguinte: ele procedeu do fato de que, se alguém toma a perspectiva do indivíduo contemplativo da sociedade burguesa, coisas vão de fato parecer exatamente da forma como aparecem para ele. Consequentemente, uma crítica das abstrações da consciência empírica do indivíduo precisa começar com a crítica do ponto de vista, da posição a qual ele considera as coisas, mostrando a limitação desse ponto de vista.

Um ponto de vista mais amplo compreendendo os fenômenos em seu conteúdo verdadeiro total, coincide em Marx com a perspectiva da prática tomada em sua perspectiva necessário mentalmente esticada no futuro. Rompendo o horizonte limitado da prática existente (burguesa), um ponto de vista teórico das coisas rompe não com a prática (como pareceu para Feuerbach), mas somente com sua forma historicamente transiente dada. Assim, um ponto de vista teórico das coisas coincide com a prática em seu significado real, em seu significado revolucionário e revolucionarizante, e assim com a perspectiva de classe realizando esta prática.

A epistemologia de Marx é vinculada com a interpretação da relação de abstrações e prática. A perspectiva da prática, como Lenin indicou, é o ponto de partida da epistemologia. É preciso somente ter em mente que o que entende-se aqui é a verdadeira perspectiva da prática revolucionária em seu escopo e perspectiva total e, de forma alguma, o ponto de vista pragmático limitado, como é caluniosamente afirmado por alguns revisionistas ecoando a conversa desejosa dos ideólogos burgueses.

Essa interpretação também está vinculada com as opiniões de Marx e Lenin sobre conceito, em particular a proposição de que uma mera correspondência às “características gerais” diretamente observáveis do fenômeno não é ainda um critério da verdade de um conceito. Pode acontecer, como resultado da mudança prática, de essas características de uma coisa que foram observados como constantemente recorrentes ou gerais desaparecerão inteiramente, e o que pareceu ser excepcional no fenômeno aberto à contemplação provará ser a expressão da essência da coisa.

Para verificar se nossa concepção da situação fora de nossa consciência é correta ou incorreta (isto é, se nossa concepção corresponde ou não à coisa), é suficiente olhar para a coisa cuidadosamente, comparando a noção com a situação verdadeira, com o geral nos fatos. Mas para definir se esses elementos gerais são ou não necessariamente inerentes à coisa, em sua natureza concreta, exigirá um critério diferente. O critério é a prática que muda ativamente a coisa, ao invés de uma contemplação passiva, por mais minuciosa e atenta que seja.

A verdade de um conceito não é provada comprando suas definições com características gerais empíricas de fatos, mas sim de uma maneira mais complicada e mediada, incluindo uma transformação prática da realidade empírica. Prática é a mais alta instância para verificar um conceito. A correspondência de um conceito a um objeto é plenamente provada somente quando o homem sucede em encontrar, reproduzir ou criar um objeto correspondente ao conceito que ele formou.

Na medida em que um conceito expressa a essência de uma coisa ao invés de características gerais abstratas abertas à contemplação e exprimível em noções, um conceito não pode ser confirmar nem refutado por referência a todos os fatos individuais disponíveis à contemplação que possui (ou não possui) dadas características em dado momento. Marx nunca foi tão desdenhoso como ao zombar a maneira de teorizar praticada pelos economistas vulgares, que acreditavam que eles poderiam refutar uma teoria mostrando que coisas em forma fenomênica pareciam diferentes do que pareciam em essência expressa pelo conceito.

O economista vulgar pensa que fez uma grande descoberta quando, em face da revelação da interconexão intrínseca, ele orgulhosamente afirma que na superfície as coisas parecem diferentes. Na verdade, ele ostenta que adere à aparência, e toma isso como a última análise. Porque, então, ter qualquer ciência? (Marx, 1975b, p. 197)Referência 1.

A essência de uma coisa expressa em um conceito reside no sistema concreto de sua interação com outras coisas, no sistema de condições objetivas dentro do qual e através do qual ele é o que é. Cada individual tomado separadamente inclui sua própria essência potencialmente, somente como um elemento de algum sistema concreto de coisas interagindo, ao invés de na forma de uma característica geral realmente dada. Essa essência não é implementada na coisa na realidade (e desse modo também não na contemplação) como o geral diretamente observável, e se ela é, não acontece tudo de uma vez, mas somente no processo de seu movimento, mudança e desenvolvimento.

A importância deste ponto pode ser bem ilustrada ao considerar a história do conceito do proletariado, a categoria mais importante da teoria marxista-leninista.

Quando Marx e Engels trabalharam o conceito de proletariado como a classe mais revolucionária da sociedade burguesa, como o coveiro do capitalismo, era a princípio impossível obter este conceito ao considerar um traço geral abstrato inerente a cada proletário separado e cada estrato particular do proletariado. Uma abstração formal que poderia ser feita em meados do século XIX ao comparar todos os representantes individuais do proletariado, pelo tipo de abstração recomendada pela lógica não-dialética, teria caracterizado o proletariado como a classe mais oprimida, sofredora passiva, montada na pobreza, capaz, na melhor das hipóteses, somente de uma rebelião faminta desesperada.

Este conceito do proletariado era corrente nos inúmeros estudos da época, nos escritos filantrópicos dos contemporâneos de Marx e Engels, e nos trabalhos dos socialistas utópicos. Esta abstração era um reflexo preciso do empiricamente geral. Mas foi somente Marx e Engels que obtiveram uma expressão teórica desses fatos empíricos, uma concepção de que o proletariado era como uma “classe em-si” (“an sich”), em sua natureza interna expressa no conceito, do que ainda não era “para si” (“für sich”), isto é, em uma realidade empírica diretamente refletida em uma noção ou simples abstração empírica.

Esta conclusão, este conceito expressando a natureza objetiva real do proletariado como classe foi obtido através do estudo da inteira totalidade de condições nas quais o proletariado é inevitavelmente formado como a classe mais revolucionária chamado para destruir a própria fundação de todo sistema de condições sociais que deram origem a ela. O conceito de proletariado, sendo distinto da noção geral empírica dele, não era uma abstração formal aqui, mas uma expressão teórica das condições objetivas de seu desenvolvimento contendo uma compreensão de seu papel objetivo e da última tendência de desenvolvimento.

A verdade do conceito do proletariado encontrado por Marx e Engels não poderia ser provado por compará-lo com a característica empiricamente comum a todos os proletários. Esta característica se encaixa bastante com a atual abstração entre filantrópicos e utópicos. A verdade deste conceito foi mostrada, como é bem conhecido, pela transformação real do proletariado de uma “classe em-si” em uma “classe para-si”. O proletariado se desenvolveu, no sentido pleno do termo, em direção a uma correspondência com “seu próprio conceito”, com o conceito que foi encontrado pelos clássicos do marxismo com base na análise das condições objetivas de sua formação, a inteira totalidade concreta das condições sociais desse ser como o proletariado. Cessando de ser uma massa de trabalhadores oprimidos e humilhados dispersos por todo o país e divididos pela competição, se tornou uma classe monolítica realizando sua missão histórico-mundial – abolição revolucionária da propriedade privada e da forma de classe da divisão do trabalho em geral.

A mesma prática refutou a “noção correta” que refletia bastante precisamente o traço que era comum na experiência empírica direta a cada indivíduo proletário. É preciso enfatizar em particular que levando em conta o requisito mais fundamental da dialética materialista precisa formar a base para encontrar todos os conceitos científicos do desenvolvimento da sociedade.

É ignorando (ou conscientemente distorcendo) a perspectiva da prática como um ponto de partida da teoria que serve na época do imperialismo como base para tendência do revisionismo e oportunismo que tanto danificam o movimento da classe trabalhadora internacional.

As políticas dos oportunistas de direita têm sido sempre marcadas por um fracasso em entender o curso do desenvolvimento histórico-mundial da prática revolucionária dos trabalhadores de todo o mundo.

Já antes da Revolução de Outubro de 1917, que introduziu na transformação prática do mundo os princípios do comunismo científico, o oportunista Karl Kautsky abandonou o caminho do marxismo revolucionário pelo caminho da adaptação às forças do imperialismo mundial. Ele começou com uma pequena coisa, como assumir a hipótese abstrata do “ultra imperialismo”. A previsão de Lenin, que diagnosticou bastante precisamente o perigo desta doença no movimento da classe trabalhadora internacional, foi aqui mostrada de forma completa. A construção teórica abstrata de Kautsky procedia, à primeira vista, inteiramente de proposições marxistas. No século XX, Kautsky argumentou, o capitalismo se desenvolve em direção à união dos barões do capital em um único supertrust. Na visão de Kautsky, a luta e competição de estados capitalistas isolados precisam ser extintos neste supertrust imperialista. O sistema mundial do imperialismo assim se tornaria uma economia socializada integral que meramente teria que ser formalmente “nacionalizado” para se tornar socialismo. Nem revolução nem ditadura do proletariado seriam necessárias, mas meramente uma sanção legal formal para privar o último proprietário de suas propriedades privadas em favor de toda a sociedade.

Consequentemente, a política que Kautsky recomendou ao movimento da classe trabalhadora internacional já naquele tempo: esperar até o imperialismo socializar a economia mundial por seus próprios meios, e ajuda-lo nessa empreitada, ao invés de dificultar. Lenin infalivelmente apontou para as profundas raízes desta teoria e polícia prejudicial: divorciar pensamento teórico do verdadeiro desenvolvimento da prática proletária revolucionária, e raciocínio abstrato.

Lenin apontou que um estágio ultra imperialista no desenvolvimento do mundo capitalista poderia muito bem ser imaginado no reflexo abstrato.

Tal fase pode ser imaginada. Mas na prática isso significa se tornar um oportunista, se afastando dos problemas agudos do dia para sonhar com os problemas não-agudos do futuro. Em teoria isso significa refutar ser guiado pelo desenvolvimento verdadeiro, abandonando-os arbitrariamente por tais sonhos (Lenin, 1964a, p. 107)Referência 2.

Se isso fosse meramente uma questão de “sonhos”, poderia muito bem ser ignorado. A coisa é, entretanto, que sonhos em políticas inevitavelmente se tornar uma plataforma política prática.

De modo alguma a teoria pode, devido a sua natureza e enorme papel na vida social, se tornar divorciada da prática em geral. Ela só pode se manter indiferente de certas formas de prática. Mas neste caso, também, é imediatamente empregado por um diferente tipo de prática. Teoria é muito valiosa para permanecer muito tempo sem um dono.

Ao continuar sua análise crítica do ponto de vista de Kautsky, Lenin fez uma conclusão que mais tarde corroborou com literal acurácia pelo curso dos eventos – precisamente por esta razão que Lenin sempre manteve a prática revolucionária real de milhões de pessoas trabalhadoras transformando o mundo como sendo o mais alto critério das construções teóricas.

Não existe dúvida que a tendência de desenvolvimento (do capitalismo no século XX – E. I.) é em direção a um único trust mundial absorvendo todos as empresas sem exceção e todos os estados sem exceção. Mas este desenvolvimento procede em tais circunstâncias, em tal passo, através de contradições, conflitos e convulsões – não somente econômico, mas também político, nacional etc. – que inevitavelmente o imperialismo explodirá e o capitalismo será transformado em seu oposto muito antes de um único trust mundial se materializar, antes do “ultraimperialismo”, amálgama a nível mundial de capitais financeiros nacionais tomarem lugar (Lenin, 1964a, p. 107)Referência 3.

Que características distinguem o pensamento teórico de Lenin do raciocínio abstrato de Kautsky? Primeiro de tudo, é concreticidade. E isso significa o seguinte. As construções teóricas de Kautsky levam em conta a prática do imperialismo, suas forças e representantes, os caminhos que esta prática irá tomar. Mas Kautsky ignora completamente “uma pequena coisa” como a atividade prática e a luta das massas oprimidas. Suas construções não as consideram.

Lenin não negou o fato de que o imperialismo se desenvolveu na direção que Kautsky discursou, que o desenvolvimento do capitalismo moderno de fato contém a possibilidade abstrata da “socialização” imperialista da economia mundial, mas ele resolutamente se contrapôs a esse esquema abstrato o princípio fundamental do marxismo revolucionário – a perspectiva da prática revolucionária das classes trabalhadoras. Este exemplo mostra claramente que somente esta perspectiva coincide com o ponto de vista concreto do desenvolvimento capitalista no imperialismo. E outra coisa se torna também aparente: o ponto de vista abstrato de Kautsky inevitavelmente leva a uma rejeição da dialética. Em nome de seu esquema teórico abstrato ele recusa ver o crescimento agudo da luta de classe. Mas o crescimento agudo do antagonismo de classe é precisamente a forma que toma a “socialização” capitalismo da economia mundial. Em Kautsky, esta “socialização” aparece como puramente um processo evolucionário de reconciliação das contradições de classe. A dialética materialista do marxismo é descartada em favor da ideia tipicamente hegeliana de reconciliação de opostos em nome dos objetos “mais altos”, acima das classes, da humanidade.

Na análise final, o esquema abstrato de Kautsky leva a uma concepção que é inteiramente falsa em seu conteúdo teórico, à apologia direta do imperialismo, a uma posição hostil ao socialismo existente. A concepção abstrata escolástica não-revolucionária da teoria do marxismo provou ser a ponte pela qual Kautsky inevitavelmente chegou à completa traição do marxismo, tanto em teoria quando na política.

A análise teórica concreta de Lenin do mesmo problema é bastante diferente. Seu ponto de partida é a perspectiva da prática revolucionária das classes trabalhadoras, das massas. Este princípio joga luz diretamente na dialética concreta, real, do verdadeiro processo em suas contradições e tensão. Também explica o fato de que a previsão teórica de Lenin se tornou verdade com literal acurácia dois anos depois: em 1917 o imperialismo mundial explodiu em seu elo mais fraco, e toda história subsequente tomou a forma de mais e mais elos no sistema mundial do imperialismo se rompendo.

A dialética da história é tal que, substituindo os elos fracos do sistema imperialista, elos de uma nova economia e sistema político surgem e ganham força dia a dia, os elos da comunidade dos países socialistas. Esta é a forma como o mundo moderno é transformado, em exata concordância com a previsão teórica concreta de Lenin, aquele grande mestre da dialética.

Aí está a lição para teóricos marxistas se esforçando para realçar em uma maneira científica as leis do desenvolvimento social e evoluir os conceitos teóricos deles.