A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx

Evald Vasilievich Ilienkov


Capítulo 2. A Unidade do Abstrato e do Concreto como Lei do Pensamento

2. A Concepção Dialética e Empírico-Eclética de Análise Global


Se insistirmos que a demanda por uma consideração compreensiva de todos os fatos, de todos os elementos de interação sozinhos podem garantir o conhecimento genuinamente concreto, isso é somente verdade na condição de que o requisito da própria “consideração total” é interpretado dialeticamente. Este ponto é importante porque este requisito é o mais frequente e voluntariamente explorado nas especulações dentro de uma das formas anticientíficas do pensamento – empirismo rastejante posando de pensamento teórico.

Lenin, um gênio em aplicar a dialética revolucionária, muitas vezes alertou, seguindo Marx, contra confundir a concepção dialética da concreticidade com sua paródia eclética, muito porque esta confusão frequentemente adquiriu significado político direto.

Na falsificação oportunista do marxismo, a falsificação eclética da dialética engana as massas com mais facilidade, dando-lhes uma aparente satisfação, fingindo ter em conta todas as faces do fenômeno, todas as formas de desenvolvimento e todas as influências contraditórias; mas, de fato, isso não dá uma noção completa e revolucionária do desenvolvimento social (Lenin, 2007, p. 38)Referência 1.

Estas palavras se referem claramente não somente ao desenvolvimento social, mas a qualquer campo do conhecimento ou atividade, desse modo contendo um requisito lógico universal.

Um dos argumentos mais amplamente usados pelos inimigos do comunismo científico, que lutam contra a teoria de Marx, Engels e Lenin, é acusar essa teoria, e a linha política que a segue, de “unilateralidade teimosa”, “abstraticidade”, “falta de flexibilidade” etc.

Um exemplo característico da falsificação eclética da dialética é a posição oportunista de Bukharin na discussão sobre os sindicatos no 10º Congresso do Partido Comunista Russo (Bolcheviques) [PCR(B)]. Assumindo a postura de um árbitro na controvérsia entre o Partido e o grupo de Trótski, Bukharin fez uma tentativa numa fundamentação filosófica de sua posição. Em seus argumentos contra a posição da posição de Bukharin, Lenin mostrou brilhantemente a essência profunda da interpretação dialética da concreticidade da verdade. Esse episódio é muito instrutivo para a lógica como uma ciência.

Vamos relembrar brevemente as circunstâncias da sua controvérsia filosófica. O debate era em relação aos princípios da política do Partido sobre sindicatos. A posição do Partido neste ponto, registrado em um número de documentos, era a seguinte: sindicados soviéticos são uma “escola do comunismo”. Essa pequena fórmula assume que sindicatos, por seu lugar e papel no sistema da ditadura do proletariado, são uma organização de massas cujo objetivo é a educação e esclarecimento das massas no espírito do comunismo, e preparação das massas para participação consciente no gerenciamento da economia nacional. Essa concepção foi oposta por Trótski, que formulou sua própria plataforma, considerando os sindicatos, primeiro de tudo, como um “aparato técnico administrativo para o controle da produção”. Esse era um conflito de duas posições bem definidas, duas linhas políticas – a política leninista do Partido e a política esquerdista do trotskismo, a notória política do “apertando as porcas”.

Nesta situação, Bukharin fez uma excursão no campo da filosofia tentando encontrar nela uma fundamentação de sua posição política, uma posição que alegadamente reconciliava os extremos opostos.

A fórmula do Partido leninista definiu sindicatos como “a escola do comunismo”, a fórmula de Trótski, como “aparato técnico administrativo de controle”, enquanto Bukharin raciocinou assim:

Não vejo bases lógicas para provar que qualquer uma das proposições está errada; ambas, e uma combinação de ambas, está correta.

Lenin condenou rispidamente este argumento “lógico”:

O camarada Bukhárine fala de fundamentos “lógicos”. Todo o seu raciocínio mostra que ele, talvez inconscientemente, adopta aqui o ponto de vista da lógica forma ou escolástica, e não o da lógica dialéctica ou marxista (Lenin, 2004, pp. 450-451)Referência 2.

Tomando-se o exemplo elementar usado por Bukharin durante a polêmica, Lenin forneceu uma brilhante demonstração da diferença entre a interpretação dialética de “análise global” e sua variante eclética.

Um “argumento lógico” do tipo “por um lado, por outro lado”, um argumento mais ou menos acidental, isolando vários aspectos de objetos e colocando-os em uma conexão mais ou menos acidental, foi corretamente ridicularizada por Lenin como argumento no espírito da lógica formal escolástica.

O copo é, indiscutivelmente, um cilindro de vidro e um instrumento para beber. Mas o copo não tem apenas estas duas propriedades ou qualidades ou aspectos, mas uma quantidade infinita de outras propriedades, qualidades, aspectos, inter-relações e “mediações” com todo o resto do mundo. O copo é um objecto pesado que pode ser um instrumento de arremesso. O copo pode servir de pesa-papéis, de recipiente para uma borboleta capturada, o copo pode ter valor como objecto com uma gravura ou desenho artísticos, independentemente do facto de servir ou não para beber de ser ou não feito de vidro, da sua forma ser cilíndrica ou não, etc., etc. (Lenin, 2004, p. 451)Referência 3.

O raciocínio deslizando de uma definição unilateral abstrata do objeto para outra, tão abstrata e unilateral, é sem fim e não leva a qualquer definição. Se o Partido raciocinasse sobre sindicatos de acordo com esse princípio, não haveria esperanças de qualquer linha política trabalhada, científica, principiada. Teria sido equivalente a uma rejeição completa de uma atitude teórica para com as coisas em geral.

A posição do Partido, claramente expressa por Lenin, de forma alguma rejeita o fato que sobre as diferentes condições sociais e em estágios diferentes no desenvolvimento da sociedade, sindicatos podem desempenhar diferentes papeis e podem ser usados para propósitos diferentes, e que as formas de sua organização e métodos de trabalho podem variar de acordo.

Mas, uma formulação concreta do problema procedendo da realização do papel que os sindicatos desempenham ou podem desempenhar objetivamente, independente dos desejos ou aspirações de alguém, no sistema dos organismos da ditadura do proletariado durante a transição do capitalismo ao socialismo, leva à conclusão de que sindicatos não são uma coisa, por um lado, e outra coisa, por outro lado, mas, visto de todos os lados, são uma escola do comunismo e somente uma escola do comunismo, uma escola da unidade, uma escola da solidariedade, uma escola da defesa dos interesses do proletariado pelo próprio proletariado, uma escola de gerenciamento e administração (Lenin, 2004, p. 453)Referência 4.

Lenin enfatiza particularmente este ponto, apontando que na polêmica contra a plataforma errônea proposta por Trótski, sindicados precisam ser considerados como uma escola e não de outra forma. Pois este é seu único papel objetivo, seu objetivo solicitado por sua posição no sistema da ditadura do proletariado.

Se alguém pudesse usar um copo não da forma que é para ser usado – digamos, como um míssil, ao invés de um recipiente para beber, não existe grande mal nisso. Mas quando tal “objeto”, como o sindicato, está envolvido, a coisa toda pode terminar em um desastre. É por isso que o PCR(B) reagiu tão fortemente à plataforma de Trótski para a qual os sindicatos são um “aparato técnico administrativo para o controle da produção” e à tentativa de Bukharin de justificar essa interpretação como “unilateral”.

Lenin representa o ponto de vista de que essa plataforma não pode ser aceita tanto como uma definição exaustiva quanto como uma definição unilateral abstrata da essência dos sindicatos.

O papel, propósito e lugar histórico concreto dos sindicatos no sistema dos órgãos da ditadura do proletariado são expressos somente na posição do Partido: sindicados soviéticos, de qualquer forma que se olha para eles, são uma escola. Todas as outras definições são derivadas desta definição determinante, principal, básica. Essa definição expressa a natureza específica dos sindicatos, a razão porque eles podem desempenhar seu papel como um órgão da ditadura do proletariado lado a lado com o Partido e estado e cooperação próxima com eles.

É por isso que Lenin, continuando a analogia irônica com o copo, define a posição de Trótski como a de um homem que precisa usar um copo em seu propósito real, como um instrumento para beber, mas deseja que ele não tivesse fundo. Enquanto considerando os sindicatos soviéticos como um instrumento da ditadura do proletariado, Trótski rejeita precisamente aquilo que os permite desempenhar seu papel específico e necessário distinto do papel do estado. “A plataforma de Trótski consiste em que o copo é um instrumento para beber, enquanto o copo em questão não tem fundo” (Lenin, 2004, p. 456)Referência 5.

Sobre a posição de Bukharin, Lenin a descreve como ecletismo morto e insignificante, isto é, enumeração sem sentido de uma definição abstrata de um objeto atrás do outro, uma enumeração que não para em qualquer coisa concreta e não leva a qualquer lugar, meramente desconcertando o Partido.

Para ambas as plataformas, Lenin opõe uma posição concreta, clara e principiada de Partido: os sindicatos soviéticos são um instrumento da educação comunista da ampla massa de trabalhadores, uma escola da unidade, solidariedade comunista, defesa dos interesses do proletariado dos elementos burocráticos dos órgãos do estado, uma escola de gerenciamento e administração, um instrumento para a transformação das pessoas trabalhadoras em construtores conscientes do comunismo.

Esta definição concreta expressa um papel objetivo dos sindicatos no sistema de organizações implementando a transformação socialista da sociedade, isto é, sua essência e natureza independente do capricho ou objetivos subjetivos de alguém.

Ecletismo, que tem sempre servido como a metodologia do oportunismo e revisionismo, se orgulha em seu amor pela abordagem multilateral. Um eclético irá voluntariamente pregar sobre o “dano de qualquer unilateralidade” e sobre a necessidade de levar em conta mil e uma coisas. Em suas mãos, entretanto, o requisito para a consideração multilateral se torna um instrumento para lutar contra a dialética e o princípio da concreticidade em seu significado real.

O caminho para uma concepção teórica concreta é aqui substituído por divagações sem fim de uma abstração a outra de forma alguma diferente da primeira. Ao invés de ascender do abstrato ao concreto, um eclético moverá do abstrato a algo tão abstrato quanto. E sua ocupação é tão fácil quanto é infrutífera.

É fácil porque até mesmo o menor e mais insignificante objeto de fato possui um número verdadeiramente infinito de aspectos e elos com o mundo em volta. Cada gota de água reflete toda a riqueza do universo. Até mesmo fenômenos aparentemente desconexos a mundos de distância vão, através de bilhões de elos intermediados, provar ter algo em comum; até mesmo o resfriado de Napoleão era um fator na Batalha de Borodino. Se se interpreta o requisito da análise concreta como uma demanda de levar em conta absolutamente todos os detalhes empíricos, sem exceção, fatos e circunstâncias conectados de alguma maneira ou outra com o objeto em estudo, a concreticidade (assim como qualquer categoria interpretada metafisicamente) provará ser uma mera abstração nua, um tipo de ideal inexequível existindo meramente na imaginação, mas nunca realizado no conhecimento verdadeiro. O teórico professando essa concepção de concreticidade se encontra na posição do herói de Maeterlinck perseguindo o Pássaro Azul, que cessa de ser azul no momento que ele o toca.

Aqui, no problema da relação do abstrato e do concreto, a metafísica prova ser aquela ponte pela qual o pensamento inevitavelmente alcança o agnosticismo e na análise final a liquidação da teoria enquanto tal, na visão de que a teoria está para sempre condenada a se mover na esfera das abstrações mais ou menos subjetivas, nunca agarrando a concreticidade objetiva.

A interpretação metafísica da concreticidade como levando em conta absolutamente todas as circunstâncias disponíveis, inevitavelmente faz com que a pessoa professando isso fique extremamente suscetível aos argumentos dos idealistas subjetivos e agnósticos.

O argumento “da complexidade e confusão infinita” do mundo é provavelmente usado mais que qualquer outro argumento pelos filósofos burgueses contemporâneos em sua lua contra a teoria marxista-leninista do desenvolvimento social. Karl Jaspers, o existencialista, francamente inicia seu ataque ao marxismo com a afirmação de que toda a teoria de Marx é baseada na crença no um e único e é por natureza uma perspectiva total. Essa crença na habilidade do pensamento em agarrar o objeto em sua totalidade de todos seus aspectos necessários e de percebê-los como “unidade da diversidade” é, de acordo com Jaspers, um preconceito filosófico obsoleto abandonado pela “ciência moderna”. “A ciência moderna real [...] sendo oposta à ciência marxista do integral, é particularista” (Jaspers, 1950, S. 13, 14)Referência 6, diz Jaspers; faz muito tempo que abandonou seu orgulho, estando modestamente satisfeito com “particulares”. “Unidade do conhecimento” é um ideal ou mito inatingível, de acordo com Jaspers.

Jaspers expressa bastante abertamente a razão de seu desgosto pela “visão total de Marx”. Ele ressente “a unidade da teoria” e “a unidade da teoria e prática”, nomeadamente a prática da transformação comunista do mundo: “E essa política acredita em sua habilidade, baseada neste entendimento, de fazer o que nenhuma outra política foi capaz de fazer. Tendo uma visão total do passado, pode fazer planos totais e realiza-los” (Jaspers, 1950, S. 15)Referência 7.

Henri Niel, um adepto francês de Jaspers, ecoa o ponto de vista do último. Ele rejeita a concepção materialista dialética da concreticidade pelas mesmas razões, escrevendo que se na forma hegeliana ou marxista, a dialética é baseada na habilidade do homem de agarrar mentalmente a totalidade da existência, assim inevitavelmente se torna uma religião do plano.(1)

Existencialistas acreditam que a forma do conhecimento foi emprestada de Hegel e aplicada, por um tour de force, ao conteúdo especificamente moderno.

Na verdade, a concepção de Marx e Lenin da concreticidade da teoria é hostil e estranha a qualquer “superimposição da forma do conhecimento” sobre seu material, sobre a diversidade real dos fenômenos.

Pensar concretamente significa “construir uma fundação confiável de fatos precisos e indisputáveis que podem ser confrontados com quaisquer dos argumentos ‘gerais’ ou ‘baseados em exemplos’ agora tão grosseiramente usados em certos países” (Lenin, 1964b, p. 272)Referência 8.

Fatos estabelecidos com precisão e indisputáveis em sua interconexão total adequada, fatos tomados como um todo, como condicionadas concretamente e historicamente – é isso o que Lenin insiste, primeiro de tudo, ao explicar o princípio marxista da “concreticidade do pensamento”. A questão do princípio é que “nós não devemos tomar fatos individuais, mas a soma total dos fatos, sem uma única exceção, relacionados à questão em discussão” (Lenin, 1964b, p. 272)Referência 9.

Essa é a questão atacada por Jaspers na medida em que faz uma virtude do “particularismo” alegadamente inerente à ciência moderna, isto é, daquele artifício ou isolamento arbitrário dos fatos de sua interconexão objetiva para ser posteriormente interpretada fora dessa conexão, fora do todo, fora de sua interdependência, o que é extremamente característico do pensamento burguês desses dias.

Aqui está outra tirada do mesmo tipo.

“A realidade é muito confusa. Mas nem o pensamento, nem a experiência estão em posição de apresentar a realidade em sua unidade e totalidade. Nós não podemos conceber a realidade ou agarrá-la empiricamente; nós só podemos experimentá-la em sua totalidade” (Vito, 1941, S. 332)Referência 10.

Quanto ao conhecimento, o raciocínio é o seguinte:

Qualquer conhecimento mental da realidade infinita pelo espírito humano finito é encontrado na suposição silenciosa de que cada vez somente uma parte finita do mesmo pode ser o assunto da percepção científica e que isso é a única parte ‘essencial’ no sentido de que é digno de conhecer (Weber, 1951, S. 171)Referência 11.

A questão de o que nós deveríamos estar interessados e o que nós poderíamos negligenciar, o que “digno de conhecer” e o que não é, “é uma questão de valor e só pode ser resolvida com base em avaliações subjetivas” (Weber, 1924, S. 420)Referência 12.

Em outras palavras, um todo objetivamente (isto é, sobre uma base objetiva) circunscrito nunca pode formar o assunto da ciência – somente uma área particular de fatos cujas fronteiras qualquer cientista é livre para traçar onde quiser.

Escolha é sempre da necessidade subjetiva. Fazer escolhas é o negócio de cada homem individual da ciência. Ninguém pode prescrever ou ajuda-lo, pois a escolha é sempre vinculada com valor. Mas não podemos provar valor (Tagwerker, 1957, S. 43)Referência 13.

Quando é uma questão do assunto da economia política, esse ponto de vista passa a significar o seguinte: o assunto da economia política é “o campo de interesse de todos aqueles que se designam como economistas ou aqueles que são chamados assim pelos outros” (Tagwerker, 1957, S. 26)Referência 14. O assunto da economia política desse modo compreende tudo que é então referido por “todas as pessoas educadas”. “A unidade do objeto [...] não é a estrutura lógica dos problemas [...]; são as conexões conceituais dos problemas que constituem a área de trabalho da ciência” (Tagwerker, 1957, S. 28)Referência 15.

Estes argumentos são tomados do trabalho dos mais diversos autores – economistas burgueses contemporâneos, filósofos existencialistas, neopositivistas e representantes da “sociologia do conhecimento”. Eles diferem em muitos aspectos, ainda assim eles formam uma unidade contra a concepção materialista da “concreticidade do conhecimento”. A linha de raciocínio é em todo lugar a mesma: desde que nenhum todo pode ser agarrado pelo pensamento por causa de sua complexidade infinita, é preciso se satisfazer com o “conhecimento particularista”, com grupos de fatos selecionados mais ou menos arbitrariamente.

“O método mais amplamente usado, e mais falacioso, no reino dos fenômenos sociais é arrancar pequenos fatos individuais e fazer malabarismos com exemplos” (Lenin, 1964b, p. 272)Referência 16, escreveu Lenin. A filosofia burguesa contemporânea faz uma virtude dessa prática afiada. É naturalmente muito mais fácil selecionar exemplos e fatos menores para se adequar a uma proposição escolhida previamente e completamente não comprovada considerando “valores” do que estudar fatos com a mesma profundidade de Marx ao coletar materiais para O Capital no espaço de mais de 25 anos. Mas a ciência não pode ser guiada pelo princípio do “fácil” ou “economia de esforço mental”. Ciência é um trabalho difícil. E seu mais alto princípio é o princípio da concreticidade do conhecimento e verdade.