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Cada dia de guerra fazia tremer a frente, enfraquecia o governo, agravava a situação internacional do país. No princípio de Outubro, a frota alemã, marítima e aérea, opera activamente no golfo da Finlândia. Os marinheiros do Báltico combateram corajosamente, esforçando-se de cobrir o caminho de Petrogrado. Mas eles compreendiam melhor e mais intimamente que todos os outros contingentes da frente a profunda contradição do seu estado, a vanguarda da revolução e participantes forçados da guerra imperialista e, pela rádio dos seus barcos, lançaram um apelo à ajuda revolucionária internacional a todos os cantos do horizonte. «Atacada pelas forças alemãs superiores, a nossa frota morre uma luta desigual. Nem um dos nossos barcos esquivará o combate. A frota caluniada, estigmatizada, cumprirá o seu dever... não sobre a ordem de um miserável Bonaparte russo qualquer reinando graças à longa paciência da revolução... nem em nome dos tratados dos nossos dirigentes com os aliados que passam as algemas nas mãos da Liberdade russa. Não, mas em nome da defesa dos focos da revolução, Petrogrado. A hora onde as águas do Báltico são vermelhas de sangue do nossos irmãos, quando as águas cobrem os seus cadáveres, nós levantamos a voz: Oprimidos do mundo inteiro, levantai o estandarte da revolta!».
Sobre as batalhas e as vítimas, essas palavras não eram frases. A esquadra tinha perdido o navio Slava e tinha batido em retirada após o combate. Os alemãs tinham-se apoderado do arquipélago de Monsund. Uma nova página sombria tinha-se aberto no livro da guerra. O governo decidiu utilizar esse novo revés para deslocar a capital: o antigo plano voltava à superficie em cada ocorrência favorável. Os círculos dirigentes não tinham qualquer simpatia por Moscovo, mas detestavam Petrogrado. A reacção monárquica, o liberalismo, a democracia esforçava-se, uns após outros, em degradar a capital, obrigá-la a meter-se de joelhos, a esmagá-la. Os patriotas mais extremos odiavam agora Petrogrado com uma aversão muito mais ardente que eles não tinham por Berlim.
A questão da evacuação foi examinada com extrema urgência. Para a transferência do governo com o pré-parlamento, foram dadas duas semanas. Foi igualmente decidido evacuar no mais curto prazo as fábricas que trabalhavam para a defesa nacional. O Comité executivo central, como «instituição privada», deve ele próprio ocupar-se do seu caso. Os cadetes instigadores da evacuação compreendiam que a simples transferência do governo não resolvia a questão. Mas eles contavam assim liquidar o centro da infecção revolucionária pela fome, pela via de extinção, por esgotamento. O blocus interior de Petrogrado já estava em pleno funcionamento. Desencomendavam-se os trabalhos nas fábricas, os abastecimentos de combustível foram reduzidos ao quarto, o ministério dos Abastecimentos impediam as expedições de gado para a capital, pelos canais Maria os carregamentos pararam.
O belicoso Rodzianko, presidente da Duma de Estado que o governo tinha-se decidido, enfim, a dissolver no princípio de Outubro, se pronunciava com toda a franqueza no jornal liberal moscovita Outra Rossi (A Manhã russa) sobre o perigo que a guerra fazia pairar sobre a capital. «O raio que o parta, Petrogrado, é isso que eu penso... Teme-se que em Piter as instituições morrem porque elas não trouxeram à Rússia senão males. «É verdade que, com a tomada de Petrogrado, a frota do Báltico deve morrer. Mas não devemos de forma nenhuma nos entristecer: Há navios absolutamente pervertidos.» Graças a isso o gentil-homem não tinha o hábito de estar calado, o povo sabia quais eram os pensamentos mais íntimos da Rússia aristocrática e burguesa.
O encarregado de negócios da Rússia em Londres comunicou que o Estado-maior naval da Grande-Bretanha, apesar de todos os pedidos insistentes, não considerava possível aliviar a situação do seu aliado no mar Báltico. Os bolcheviques não eram os únicos a interpretar esta resposta no sentido que os Aliados, se associando às esferas superiores dos patriotas da Rússia, não esperavam que as vantagens para a causa comum de uma ofensiva sobre Petrogrado. Os operários e os soldados não duvidavam sobretudo após as confissões de Rodzianko, que o governo se preparasse conscientemente a lhes entregar à férula de Lundendorff e de Hoffmann.
No 6 de Outubro, a Secção dos soldados adoptou, com uma unanimidade desconhecida até aí, a resolução de Trotsky: «Se o governo provisório é incapaz de defender Petrogrado, ele tem a obrigação de assinar a paz, ou então ceder o lugar a outro governo.» Os operários pronunciavam-se de uma maneira não menos intransigente. Eles consideravam Petrogrado uma cidadela, eles ligavam a isso as suas esperanças revolucionárias, não queriam render Petrogrado. Assustado pelos perigos da guerra, pela evacuação, pela indignação dos soldados e operários, pela sobreexcitação de todos os habitantes, os conciliadores, pelo seu lado, deram o sinal de alarme: não se pode abandonar Petrogrado aos caprichos da sorte. Tendo constatado que a tentativa de evacuação encontrava oposição de todos os lados, o governo começou a bater em retirada: ele estava preocupado, pretensamente, não tanto pela sua segurança particular mas em escolher um lugar para a futura Assembleia constituinte. Mas não soube manter essa posição. Em menos de oito dias, o governo viu-se forçado em declarar que não somente ele tinha a intenção de continuar no palácio de Inverno, mas que projectava como no passado de convocar a Assembleia constituinte para o palácio Tauride. A situação militar e política não mudava nada a esta declaração. Mas ela manifestava de novo a força política de Petrogrado, que considerava como a sua missão de terminar com o governo de Kerensky e não o deixava sair do seu reduto. Só os bolcheviques ousaram então transferir a capital para Moscovo. Eles resolveram o assunto sem dificuldades, porque, para eles, a tarefa era efectivamente estratégica: não podia haver aí motivos políticos determinando a fuga de Petrogrado.
A declaração repetida sobre a defesa da capital foi feita pelo governo segundo as exigências da maioria conciliadora da comissão do Conselho da República da Rússia, isto é do pré-parlamento. Esta extravagante instituição nasceu enfim. Plekhanov, que gostava de gracejar, chamou com insolência o Conselho impotente e efémero da República «uma pequena isba montada sobre patas de galinha». Do ponto de vista político, esta definição não deixava de ser justa. É preciso somente acrescentar que como «pequena isba», o pré-parlamento tinha muito boa aparência: tinham-lhe reservado o magnífico palácio Maria que tinha serviço antes de asilo ao Conselho de Estado. O contraste entre o luxuoso palácio e o Instituto Smolny, sujo e impregnado de odores dos soldados, impressionou Sukhanov: «No meio de todas essas maravilhas – confessa – tinham vontade de repousar, de esquecer os trabalhos e a luta, a fome e a guerra, o desespero e a anarquia, o país e a revolução.» Mas para o repouso e o esquecimento, faltava pouco tempo.
O que se chama a maioria «democrática» do pré-parlamento compunha-se de 308 pessoas: 120 socialistas-revolucionários (desse número cerca de 20 socialistas-revolucionários de esquerda), 60 mencheviques de diferentes nuanças, 66 bolcheviques; além dos cooperantes, dos delegados do Comité executivo dos camponeses, etc. As classes possuidoras tinham obtido 156 lugares, a metade ocupada por cadetes. Com os cooperantes, os cossacos e os membros bastante conservadores do Comité executivo dos camponeses, a ala direita, sobre um bom número de questões, aproximava-se da maioria. A repartição dos lugares na pequena isba confortável, montada sobre as patas de galinha, encontrava-se assim em contradição absoluta e gritante com todas as manifestações da vontade da cidade e da aldeia. Em contra-partida, contrariamente às representações incolores soviéticas, o palácio Maria tinha juntado no seu interior a «flor da nação». Dado que os membros do pré-parlamento não dependiam das vicissitudes de uma concorrência eleitoral, as influências locais e das preferência provinciais, cada grupo social, cada partido enviou os seus líderes mais conhecidos. A composição do pré-parlamento, segundo o testemunho de Sukhanov, era «excepcionalmente brilhante». Quando o pré-parlamento se reuniu pela primeira vez, muitos cépticos, segundo Miliokov, sentiram o coração aliviado: «Será bom se a Assembleia constituinte não é assim tão má como isso.» «A flor da nação» olhou-se com satisfação nos espelhos do palácio, não notando que ela era uma flor estéril.
Abrindo, no 7 de Outubro, o Conselho da República, Kerensky não deixou escapar a ocasião de lembrar que se o governo detinha «integralmente o poder», todavia ele estava pronto a escutar «todas as críticas válidas»; ainda se governo absoluto, restava-lhe ainda um poder esclarecido. No gabinete de cinco membros, presidido por Avksentiev, um lugar estava reservado aos bolcheviques: ele devia continuar desocupado. Os realizadores da comédia miserável e triste sentiam-se confusos. Todo o interesse de uma abertura triste num dia triste e chuvoso concentrava-se antecipadamente sobre a manifestação esperada dos bolcheviques. Nos corredores do palácio Maria propagava-se, segundo Sukhanov, «um rumor sensacional: Trotsky tinha vencido com a maioria de dois ou três votos... e os bolcheviques iam sair logo do pré-parlamento». Na realidade a decisão de sair de forma demonstrativa do palácio Maria tinha sido tomada no dia 5, na sessão da fracção bolchevique por todos os votos contra só um: o movimento para a esquerda era de tal forma grande nas duas semanas decorridas! Só, Kamenev continuou fiel à sua primeira posição, ou mais exactamente atrevia-se a defendê-la abertamente. Numa declaração especial dirigida ao Comité central, Kamenev caracterizava sem subterfugios o curso adoptado como «muito perigoso para o partido». As intenções incertas dos bolcheviques provocava uma certa preocupação no pré-parlamento: havia medo, na verdade, não da queda do regime, mas de um verdadeiro «escândalo» diante dos diplomatas aliados que a maioria acabava justamente de saudar por uma salva de aplausos patrióticos. Sukhanov conta como se destaca para os bolcheviques uma personalidade oficial – o próprio Avksentiev – para lhe colocar uma questão preliminar: o que ia se passar? «Uma bagatela – respondeu Trotsky – uma bagatela, um ligeiro tiro de revólver.»
Após abertura da sessão, foi acordado a Trotsky, segundo o regulamento herdado da Duma de Estado, dez minutos para fazer uma declaração de urgência em nome da fracção bolchevique. Na sala estabeleceu-se um silêncio absoluto. A declaração começava por demonstrar que o governo, por agora, era tão pouco responsável que antes da Conferência democrática, convocada diz-se para controlar Kerensky, e que os representantes da classes possuidoras tinham entrado no Conselho provisório num número tal que eles não tinham certamente o direito. Se a burguesia se preparava eficazmente para a Assembleia constituinte nas seis semanas, os líderes não tinham razão de defender agora com tal encarniçadamente a irresponsabilidade do poder, mesmo diante de uma representação alterada.» Tudo reside em suma nisto que as classes burguesas deram-se como objectivo de explodir a Assembleia constituinte.» A ala direita protesta energicamente. Não se afastando do texto da declaração, o orador ataca a política industrial, agrária e alimentar do governo: não se podia tomar outra direcção mesmo se tivessem como objectivo de levar as massas na via da insurreição. «A ideia de uma rendição da capital revolucionária às mãos das tropas alemãs... é considerada como um elo natural de uma política geral que deve facilitar... a conspiração contra-revolucionária.» O protesto torna-se uma tempestade. Gritos sobre Berlim, o ouro alemão, o vagão blindado, e, sobre esse ambiente de fundo, como um caco de garrafa na lama – injúrias de vagabundos. Nunca nada de igual se tinha produzido durante os debates mais apaixonados no sórdido Instituto Smolny, sujo, cheio de cuspe dos soldados. «Bastava-nos cair na boa sociedade do palácio Maria – escreve Sukhanov – para reencontrar imediatamente a atmosfera de cabaret que reinava na Duma censitária do Império.»
Abrindo caminho através das explosões de ódio que alternam com os movimentos de calma, o orador termina assim: «Nós, fracção dos bolcheviques, declaramos: com esse governo que atraiciona o povo e com esse Conselho defeituoso diante da contra-revolução, não temos nada em comum... Em deixando o Conselho provisório, apelamos à vigilância e à coragem os operários, os soldados e os camponeses de toda a Rússia. Petrogrado está em perigo! A revolução está em perigo! O povo está em perigo!... Dirigimo-nos ao povo. Todo o poder aos sovietes!»
O orador desce da tribuna. Várias dezenas de bolcheviques deixam a sala, acompanhados de injúrias. Após minutos de ansiedade a maioria está pronta a largar um suspiro de alívio. Só os bolcheviques saem – a flor da nação continua no seu posto. Só o flanco esquerdo dos conciliadores que se dobraram ao golpe dirigido, ao que parece, não contra ele. «Nós, que estamos mais perto dos bolcheviques – confessa Sukhanov – ficámos postrados diante de tudo que se passou.» Os puros cavaleiros da palavra sentiram que o tempo das frases tinha passado.
O ministro dos Assuntos exteriores Terechtchenko, num telegrama secreto aos embaixadores russos, informava-os da abertura do pré-parlamento: «A primeira sessão foi muito neutra, excepção feita de um escândalo suscitado pelos bolcheviques.» A ruptura histórica do proletariado com o mecanismo do Estado burguês era considerado por essa gente como simples «escândalo». À imprensa burguesa não lhe faltou ocasião em estimular o governo ao lhe assinalar a audácia dos bolcheviques: senhores ministros não sairão o país da anarquia senão depois de ter conquistado resolutamente e com vontade para a acção como se encontra em Trotsky». Como se tratava da resolução e da vontade de indivíduos, e não do destino histórico das classes. E como se a selecção dos homens e dos caracteres tivesse lugar independentemente das tarefas históricas. «Eles falavam e agiam – escreve Miliokov sobre a saída dos bolcheviques do pré-parlamento – como homens que sentem por detrás deles uma força, que sabem que o futuro lhes pertence».
A perca das ilhas Monsud, o perigo crescente para Petrogrado e a saída dos bolcheviques do pré-parlamento forçaram os conciliadores a se questionarem qual atitude tomar em relação à guerra. Após três dias de debates, com a participação dos ministros da Guerra e da Marinha, os comissários e os delegados das organizações do exército, o Comité executivo central encontrou enfim uma solução de saída: «Insistir sobre a participação dos representantes da democracia russa na conferência dos Aliados em Paris. «Após ter trabalhado bastante, os representantes designaram Skobelev. Uma instrução detalhada foi elaborada: a paz sem anexações nem contribuições, a neutralidade dos estreitos, assim como os canais do Suez e de Panamá – as perspectivas geográficas dos conciliadores eram maiores que suas perspectivas políticas – a abolição da diplomacia secreta, o desarmamento progressivo. O Comité executivo centra explicava que a participação do seu delegado às conferências de Paris «teria por objectivo de exercer a pressão sobre os Aliados». A pressão de Skobelev sobre a França, a Grande Bretanha e os Estados-Unidos! Um jornal cadete pôs uma questão cáustica: que fará Skobelev se os Aliados afastassem as suas condições sem cerimónia?» Ameaçaria-os com o lançamento de um novo apelo aos povos do mundo inteiro?» Infelizmente! Os conciliadores eram há já bastante tempo incomodados pelo seu próprio apelo de outrora.
Preparando-se para impor aos Estados-Unidos a neutralização do canal de Panamá, o Comité executivo central estava na realidade incapaz de pressionar o palácio de Inverno. A 12 de Outubro, Kerensky enviou a Lloyd George uma carta cheia de reprimendas, de queixas tristes e de ardentes promessas. A frente encontra-se «numa situação melhor do que na primavera passada». Bem entendido, a propaganda derrotista – o primeiro-ministro da Rússia apresentou queixa diante do primeiro-ministro da Grande-Bretanha contra os bolcheviques russos – impediu de realizar todas as tarefas que se tinham dado. Mas não podia tratar-se de paz. O governo só conhece uma questão: «Como continuar a guerra?» Bem entendido, contra o enrequecimento do seu patriotismo, Kerensky pedia apoios financeiros.
Livre dos bolcheviques, o pré-parlamento também não perdia tempo: no dia 19, abriram-se os debates sobre as capacidades combativas do exército. O colóquio que preencheu três sessões fastidiosas desenvolveu-se sobre um esquema invariável. É preciso convencer o exército que ele combate pela paz e a democracia, dizia-se à esquerda. Impossível de convencer, é preciso obrigar, respondiam à direita. Não há meios de obrigar: para obrigar é preciso primeiro persuadir, os bolcheviques são mais fortes que vocês, respondiam os cadetes. Dos dois lados tinham razão. Mas o homem que se afoga tem razão também quando grita antes de se afundar.
No dia 18 veio a hora de uma decisão que não podia mudar nada à natureza das coisas. A formula dos socialistas-revolucionários reuniu 95 votos contra 127 e 50 abstenções. A formula das direitas reuniu 135 votos contra 139. É espantoso, não há maioria! Na sala, segundo os relatos dos jornais, «movimentos diversos e perturbação». Apesar da unidade de perspectivas, a flor da nação viu-se incapaz de votar uma resolução platónica sobre a questão mais grave da vida nacional. Não era um acidente: isso repetia-se, de dia a dia, sobre todas as questões, nas comissões como nas assembleias. Os fragmentos de opinião não se adicionavam. Todos os grupos viviam nuanças de um pensamento político difíceis de capturar: o próprio pensamento estava ausente. Talvez tivesse abalado com os bolcheviques?... O impasse do pré-parlamento era o impasse do regime.
Era difícil modificar as convicções do exército, mas era impossível forçá-la. Sobre um novo apelo estridente de Kerensky dirigido à frota do Báltico, que tinha lutado e com vítimas, o congresso dos marinheiros dirigiu-se aos Comité executivo central, pedindo-lhe que elimine das fileiras do governo provisório «um personagem que desonrava e arruinava pela sua chantagem política desavergonhada a grande revolução». Kerensky ainda não tinha ouvido tal linguagem, mesmo dos marinheiros. O comité regional do exército, da frota, e os operários russo em Finlândia, agiam como um poder, embargaram sobre os cargamentos governamentais. Kerensky ameaçou prender os comissários dos sovietes. A resposta dizia: «O comité regional aceita com calma o desafio do governo provisório.» Kerensky calou-se. No fundo, a frota do Báltico já se encontrava em estado insurreccional.
Na terra firme, na frente, o assunto ainda não tinha sido levado tão longe, mas desenvolvia-se no mesmo sentido. A situação dos abastecimentos no decorrer do mês de Outubro piorava rapidamente. O comandante em chefe da frente Norte declarava que a penúria «era a causa principal da decomposição moral do exército». Enquanto que, sobre a frente, os dirigentes conciliadores continuavam a afirmar – na verdade já por detrás das costas dos soldados – que as capacidades combativas do exército se restabeleciam, em baixo um regimento após o outro reclamava a publicação dos tratados secretos e uma proposição de paz imediata. Jdanov, comissário da frente Oeste, escrevia nos primeiros dias de Outubro: «O estado de espírito é extremamente ansioso por cauda da aproximação dos frios e da alimentação que é cada vez pior... Os bolcheviques gozam de um notável sucesso.»
As instituições governamentais sobre a frente estavam suspensas. O comissários do segundo exército relata que os tribunais militares não podem agir, dado que os soldados citados como testemunhos recusam em comparecer. «Os relatórios do comando e dos soldados agravaram-se. Considera-se que os oficiais como os culpados da continuação da guerra.» A hostilidade dos soldados em relação ao governo e ao comando tinham-se transmitido à muito tempo aos comités do exército, que não se renovaram desde do princípio da revolução. Passando por cima das suas cabeças, os regimentos enviavam delegados a Petrogrado, ao Soviete, queixando-se da situação intolerável nas trincheiras, sem pão, sem equipamento, sem fé na guerra. Na frente romena, onde os bolcheviques são muito fracos, regimentos inteiros recusam disparar. «Em duas ou três semanas, os próprios soldados declararão o armistício e baixarão as armas.» Os delegados de uma das divisões comunicam: «Os soldados decidiram que quando surgirem as primeiras neves, eles voltarão para casa.» Uma delegação do 33º corpo do exército ameaçava assim a assembleia do Soviete de Petrogrado: se não houver verdadeiramente luta pela paz, «os próprios soldados tomarão o poder e encontrarão um armistício». O comissário do segundo exército relata so ministro da Guerra: «Fala-se muito em abandonar as trincheiras quando vierem os frios.»
A confraternização que tinha sido quase interrompida após as Jornadas de Julho recomeçaram e estenderam-se rápidamente. De novo, após um período de calma, multiplicara-se não somente as prisões de oficiais pelos soldaos, mas os assassinatos dos chefes mais odiados. Essas represálias aconteciam quase abertamente, sob os olhos dos soldados. Ninguém intervinha: a maioria não queria, uma pequena maioria não ousava. O assassino tinha sempre tempo de se esconder, como se ele se tivesse afogado sem deixar traços na massa dos soldados. Um dos generais escrevia: «Nós agarramo-nos convulsivamente a qualquer coisa, nós invocamos um milagre, mas a maioria compreende que já não há salvação.»
Combinando a perfídia com a inépcia, os jornais patriotas continuavam a escrever sobre o prolongamento da guerra, da ofensiva e da vitória. Os generais acenavam a cabeça, davam o tom de acompanhamento de uma maneira «Só os verdadeiros loucos é que podem sonhar com a ofensiva actual», escrevia, no dia 7, o barão Budberg, comandante do corpo que se encontrava perto de Dvinsk. Um dia depois, ele foi obrigado a notar no seu próprio diário: «Estou consternado e aturdido de receber directiva sobre uma ofensiva para o dia 20 de Outubro o mais tardar.» Os estados-maiores que tinham perdido a fé em tudo e baixavam os braços, elaboravam planos de novas operações. Havia grande número de generais que só viam a salvação na renovação da experiência de Kornilov com Riga sobre um plano grandioso: arrastar o exército na batalha e tentar fazer cair a derrota sobre a cabeça da revolução.
Sobre iniciativa do ministro da Guerra, Verkhovsky, foi decidido disponibilizar na reserva homens das velhas classes. As vias férreas partiam-se sob o peso dos soldados que regressavam. Nos vagões sobrecarregados, as molas partiam-se, os soalhos abatiam-se. Os estado de espírito dos que continuavam na frente não era melhor. «As trincheiras desfazem-se – escreve Budberg – as passagens de comunicação abatem-se e se fecham; por todo o lado lixo e excrementos... Os soldados recusam categóricamente limpar as trincheiras... Terrível pensar ao que tudo isso levará quando vier a primavera e quando tudo começar a apodrecer e a se decompor.» No seu estado de passividade furiosa, os soldados recusariam todos mesmo as injecções profilácticas: isso torna-se também uma forma de luta contra a guerra.
Após inúteis tentativas para levantar a moral combativa do exército reduzindo os efectivos, Verkhovsky chegou repentinamente à conclusão que o país não podia ser salvo senão pela paz. Numa conferência particular com os líderes cadetes que o jovem e ingénuo ministro esperava trazer para o seu lado, Verkhovsky descreveu o quadro de desespero material e moral do exército: «Todas as tentativas para continuar a guerra só se aproximam da catástrofe.» Os cadetes não podiam compreender, mas, diante do silêncio dos outros, Miliokov levantava com desprezo os ombros: «dignidade da Rússia», «fidelidade aos Aliados»... Sem acreditar uma só palavra, o líder da burguesia esforçava-se obstinadamente a enterrar a revolução sob as ruínas e cadáveres da guerra. Verkhovsky mostrou audácia política: sem que o governo soubesse, ele fez, no dia 20, à comissão do pré-parlamento, uma declaração sobre a necessidade de concluir imediatamente a paz, independentemente do consentimento ou do não consentimento dos Aliados. Contra ele insurgiram-se furiosamente todos os que, nas entrevistas particulares, estavam de acordo com ele a imprensa patriótica escrevia que o ministro da Guerra «tinha saltado para a traseira do carro do camarada Trotsky». Bortsev fazia alusão ao ouro alemão. Verkhovsky foi despedido. Frente a frente, os patriotas repetiam: no fundo ele tem razão. Budberg, no seu diário, mostrava-se prudente: «Do ponto de vista da fidelidade à palavra dada – escrevia – a proposição de Verkhovsky é perfídia, mas, a única que dá esperança de salvação.» De passagem, o barão confessava o ciúme que ele tinha dos generais alemãs aos quais «a sorte dava a felicidade de vencer». Ele não tinha previsto que brevemente o tempo dos revés viria também para os generais alemãs. Essa gente em suma nada tinha previsto, mesmo os mais inteligentes deles. Os bolcheviques tinham muito previsto e era a sua força.
A sorte do pré-parlamento fazia saltar aos olhos do povo os últimos pontos que ligava ainda o partido da insurreição à sociedade oficial. Com uma nova energia – quando o objectivo se aproxima, as forças são duplas – os bolcheviques agitaram de forma que os adversários chamavam de demagogia porque ela trazia à praça pública o que eles escondiam nos gabinetes ministeriais e nos escritórios. A força persuasora desta infatigável propaganda provinha do que os bolcheviques compreendiam a marcha da evolução, aí submetendo a sua política, não temendo as massas, tinha uma fé inquebrável na vitória. O povo não se cansava de ouvi-los. As massas sentiam a necessidade de se manterem unidas, cada um queria controlar-se a si próprio a través dos outros, e todos, de um espírito atentivo e tenso, procuravam ver como um só e mesmo pensamento se desenvolvia na sua consciência com as suas diversas nuanças e características. Multidões sem conta mantinham-se nos circos e outros grandes edifícios onde os bolcheviques mais populares, trazendo as últimas deduções e os últimos apelos.
O número de agitadores diminuía bastante lá para Outubro. Antes de tudo faltava Lenine como agitador e, ainda mais, como inspirador directo e diário. Faltavam as suas simples e profundas generalizações que mergulhavam solidamente na consciência das massas, dos sues vivos impulsos tomados pelo povo e enviados a Este. Faltava um agitador de primeira ordem, Zinoviev: perseguido e escondendo-se, como acusado no «levantamento» de Julho, ele tinha-se voltado resolutamente contra a insurreição de Outubro, e, mesmo por aí, todo o período crítico, tinha desaparecido do campo de acção. Kamenev, propagandista insubstituível, instrutor experiente pela política do partido, condenava a direcção tomada em direcção à insurreição, não acreditando na vitória, vendo diante dele uma catástrofe e retirou-se, triste, no esquecimento. Sverdlov, mais organizador por natureza do que agitador, falava muitas vezes nas reuniões de massas, e a sua voz de baixo, potente, incansável, propagava a certeza. Estaline não era nem agitador nem orador. Tinha figurado mais de uma vez como relator nas conferências do partido. Mas tinha-se mostrado uma só vez nas assembleias de massas da revolução? Nos documentos e nas memórias não ficou rasto disso.
Uma viva agitação era desenvolvida por Volodarsky, Lachevitc, Kollontai, Tchoudnovsky. Atrás deles vinham dezenas de agitadores de calibre menor. Com um interesse e uma simpatia à qual se juntava, entre os mais educados, a indulgência, escutavam Lunatcharsky, orador experiente que sabia apresentar convenientemente um facto, uma generalização, e pathos, uma piada, mas que não pretendia conduzir ninguém: ele próprio tinha necessidade de ser conduzido. À medida que nos aproximávamos da insurreição, Lunatcharsky empalidecia rapidamente.
Sokhanov conta isto sobre o presidente do Soviete de Petrogrado (Trotsky): «Saía do trabalho no estado-maior revolucionário e voava da fábrica de Obokhovsky à fábrica Trubotchny, da fábrica Potilov à fábrica Báltico aos quartéis, e, parecia, falava simultaneamente em todos os lugares. Ele era conhecido pessoalmente e era escutado por cada operário e soldado de Petrogrado. Sua influência, nas massas, e no estado-maior, era enorme. Era a figura central nesses dias e o herói principal dessa página notável da história.»
Mas, incomparavelmente mais eficaz neste último período antes da insurreição era a agitação molecular que levava os anónimos, operários, marinheiros, soldados, conquistando um após outro simpatias, destruindo as últimas dúvidas, vencendo as últimas hesitações. Meses de vida política febril tinham criado numerosos quadros de base, tinham educado centenas de milhares de autodidactas que se habituaram a observar a política de baixo e que, consequentemente, apreciavam os factos e as gentes com justeza nem sempre acessíveis aos oradores do genero académico. Em primeiro lugar estavam os operários de Petrogrado, proletários hereditários, que tinham destacado um efectivo de agitadores e de organizadores de uma qualidade revolucionária excepcional, de uma grande cultura política, independentes de pensamento, na palavra, na acção. Torneiros, serralheiros, ferreiros, instrutores das corporações e das fábricas tinham já à volta deles as suas escolas, os seus alunos, futuros construtores da República dos sovietes. Os marinheiros do Báltico, os mais próximos companheiros de armas dos operários de Petrogrado, provenientes em boa parte destes, enviaram brigadas de agitadores que conquistariam com muita luta os regimentos atrasados, as capitais de distrito, os cantões mujiques. A formula generalizadora lançada ao Circo Moderno pelos líderes revolucionários tomavam forma e corpo em centenas de cabeças pensantes e abanavam todo o país.
Das províncias bálticas, da Polónia e da Lituânia, milhares de operários e de soldados revolucionários foram evacuados, os exércitos russos batendo em retirada, com as empresas industriais, ou individualmente: e todos eram agitadores contra a guerra e os seus responsáveis. Os bolcheviques letões, arrancados ao chão natal e inteiramente colocados desde então no terreno da revolução, convencidos, obstinados, decisivos, levavam dia após dia um trabalho de sapa em todas as partes do país. Caras de traços duros, com acento rouco e, em russo, frases muitas vezes incorrectas davam uma impressão particular aos seus indomáveis apelos à insurreição.
A massa já não tolerava mais no seu meio os hesitantes que duvidavam, os neutros. Eles esforçavam-se por se apoderar de todos, de os atrair, de os convencer, de os conquistar. As fábricas com os regimentos enviavam delegados à frente. As trincheiras ligavam-se aos operários e ao camponeses da frente-retaguarda mais próxima. Nas cidades desta zona tinham lugar numerosos comícios, conciliábulos, conferências, nas quais os soldados e marinheiros combinavam a sua acção com a dos operários e dos camponeses: uma região atrasada próxima da frente, a Rússia Branca, foi assim conquistada pelo bolchevismo.
Lá onde a direcção locale do partido era hesitante, continuava na expectativa, como, por exemplo, em Kiev, em Voroneje e noutros lugares, as massas caíam frequentemente na passividade. Para justificar a sua política, os dirigentes alegavam o enfraquecimento da opinião que eles próprios tinham provocado. Em contra-partida: «O mais audacioso e o mais ousado era o apelo à insurreição – escreveu Povoljsky, um dos agitadores de Kazan – mais a massa dos soldados se mostrava confiante e ligados ao orador.»
As fábricas e os regimentos de Petrogrado e de Moscovo batiam cada vez com mais insistência às portas de madeira da aldeia. Cotizavam-se, os operários enviavam delegados nas províncias donde eles eram originários. Os regimentos decidiam chamar os camponeses a apoiar os bolcheviques. Os operários das empresas estabelecidas fora das cidades peregrinavam nos campos à volta, distribuíam os jornais, fundavam células bolcheviques. Desses passeios, ficavam-lhes, no regresso, no olhar, o reflexo dos incendios postos pela guerra camponesa.
O bolchevismo conquistava o país. Os bolcheviques tornavam-se uma força irresistível. Atrás deles vinha o povo. As dumas municipais de Cronstadt, de Tsaritsyne, de Kostsroma, de Chula, eleitas no sufrágio universal, estavam entre as mãos dos bolcheviques. Estes obtiveram 52% dos votos nas eleições das dumas de distrito em Moscovo. Na longínqua e pacífica cidade de Tomsk, como em Samara, nada industrial, eles encontravam-se no primeiro lugar na duma. Sobre quatro mandatários do zemstvo do distrito de Ligovsky, os bolcheviques reuniram 50% dos votos. Não ia bem por todo o lado. Mas, em todo o lado, havia uma modificação no mesmo sentido: o peso específico do partido bolchevique subia rapidamente.
A bolchevização das massas se manifestava todavia muito mais claramente nas organizações de classe. Os sindicatos juntavam na capital mais de meio milhão de operários. Os mencheviques que conservavam ainda entre as suas mãos a direcção de certos sindicatos sentiam-se eles próprios tornarem-se sobrevivências da véspera. Qual foi a parte do proletariado que se juntou e qualquer que fossem as suas tarefas imediatas, ela chegava inevitavelmente às conclusões bolchevistas. E não por acaso: os sindicatos, os comités de fábrica, os grupos económicos e culturais da classe operária, permanentes e temporários, eram obrigados pela situação de colocar, a propósito de cada problema, uma única questão: quem é que manda em casa?
Os operários das fábricas de artilharia, convocados a uma conferência para regularizar suas relações com a administração, respondem sobre a maneira de aí chegar: pelo poder dos sovietes. Já não é uma formula sem sentido, é um programa de salvação económica. Aproximando-se do poder, os operários chegam cada vez mais concretamente às questões da indústria: a conferência da artilharia criou mesmo um centro especial para elaborar métodos de transformação das fábricas de guerra tendo em vista uma produção pacífica.
A conferência moscovita dos comités de fábrica e de oficina reconheceu a necessidade do Soviete local, sob o regime dos decretos, em consentir todas as greves, reabriu a autoridade da empresas fechada pelos partidários do lock-out e, ao enviar os seus delegados em Sibéria e na bacia do Donetz, assegurou às fábricas o trigo e o carvão. A conferência dos comités de fábrica e oficina de Petrogrado consagrou a sua atenção à questão agrária e elaborou, num relatório de Trotsky, um manifesto aos camponeses: o proletariado tem consciência dele próprio não somente como de uma classe particular, mas como de dirigente do povo.
A conferência pan-russa dos comités de fábrica e oficina, na segunda quinzena de Outubro, elevou a questão do controlo operário ao estatuto de problema de ordem nacional. «Os operários estão mais interessados que os patrões no trabalho regular e contínuo das empresas.» O controlo operário «é do interesse do país inteiro e deve ser apoiado pelo campesinato como pelo exército revolucionário». A resolução que abre a porta à nova ordem económica é votada pelos representantes de toda as empresas industriais da Rússia, contra cinco votos, nove abstenções. Algumas unidades que se abstiveram eram esses velhos bolcheviques que já não podia caminhar com o partido, mas que não se decidiam ainda a levantar francamente a mão pela insurreição bolchevique. O que farão amanhã.
As municipalidades democráticas recentemente criadas morrem, paralelamente com os órgãos do poder governamental. Os problemas mais importantes tais como o abastecimento das cidades em água, em electricidade, em combustíveis, em alimentação, caiem cada vez mais a cargo dos sovietes e das outras organizações operárias. O comité de fábrica da estação eléctrica de Petrogrado percorria a cidade e os arredores, procurando seja carvão, seja óleo para as turbinas, e obtinha um ou outro por intermédio dos comités de outras empresas, numa luta contra os patrões e a administração.
Não, o poder dos sovietes não era uma quimera, uma construção arbitrária, a invenção de teóricos de partido. Ele subia irresistivelmente a partir de baixo, o desespero económico, impotência dos possuidores, a necessidade das massas; os sovietes tornavam-se o poder na realidade – para os operários, os soldados, os camponeses, não havia outra via. Sobre o poder dos sovietes, o tempo não era já de procurar razões ou objecções: era preciso realizá-lo.
No 1º Congresso dos sovietes, em Junho, tinha sido decidido convocar congressos todos os três meses. O Comité executivo central, todavia, longe de convocar o 2º Congresso com data fixa, tinha manifestado intenção em não convocar de forma nenhuma para não se encontrar face a face com uma maioria hostil. A conferência democrática tinha tido por objectivo principal afastar os sovietes, substituindo-os por órgãos da «democracia». Mas não era assim tão simples. Os sovietes não tinham intenção nenhuma de ceder a quem que quer que fosse.
No 21 de Setembro, um pouco antes do encerramento da conferência democrática, o Soviete de Petrogrado levantou a voz para reclamar urgentemente o congresso dos sovietes. Nesse sentido foi votado, sobre os relatórios de Trotsky e de Bukarine, convidado de Moscovo, uma resolução que partia formalmente da necessidade de se preparar para «uma nova vaga de contra-revolução». O programa da defesa que abria o caminho à próxima ofensiva apoiava-se sobre os sovietes como sobre as únicas organizações capazes de lutar. A resolução exigia que os sovietes consolidassem as suas posições nas massas. Lá onde eles tinham efectivamente o poder na mão, eles não deviam em nenhum caso ceder. Os comités revolucionários criados durante as jornadas kornilovianas devem estar prontos a agir. «Para a unificação e a coordenação dos actos de todos os sovietes na sua luta contra o perigo iminente e para a solução dos problemas de organização do poder revolucionário, é indispensável convocar imediatamente um congresso dos sovietes.» Assim, a resolução de defesa chega ao ponto de derrubar o governo. Sobre esta diapasão política se desenvolverá doravante a agitação até ao momento da insurreição.
Os delegados dos sovietes que se tinham reunido na conferência colocaram logo no dia seguinte a questão do congresso diante do comité executivo central. Os bolcheviques exigiam a convocação do Congreso nos quinze dias e ofereciam, mais exactamente ameaçavam, criar com esse objectivo um órgão especial apoiando-se sobre os sovietes de Petrogrado e de Moscovo. Na realidade, eles preferiam que o congresso fosse convocado pelo velho comité executivo central: isso afastava antecipadamente os debates sobre a legitimidade do congresso e permitia derrubar os conciliadores com a sua própria ajuda. A ameaça apenas disfarçada dos bolcheviques teve o seu efeito: sem se arriscar ainda a romper com a legalidade soviética, os líderes do comité executivo central declararam que eles não delegavam a ninguém o direito de cumprir as suas obrigações. O congresso foi marcado para o 20 de Outubro, em menos de um mês.
Mal os delegados provinciais se tinham dispersado, todavia, os líderes do comité executivo central abriram os olhos, descobrindo que o congresso não era oportuno, que eles desviavam para as localidades os militantes da campanha eleitoral e prejudicaria a Assembleia constituinte. A verdadeira apreensão era encontrar no congresso um potente pretendente ao poder; mas mantinham-se diplomaticamente silenciosos sobre isso. No 26 de Setembro, Dan apressava-se já em apresentar ao Bureau do Comité executivo central, que não se ocupava dos preparativos necessários, a proposição de diferir o Congresso.
Quanto aos princípios elementares da democracia, os democratas patentados nem faziam caso de forma nenhuma. Eles tinham acabado de rejeitar a resolução tomada pela Conferência democrata, convocada por eles próprios, desautorizando a coligação com os cadetes. Agora eles manifestavam o seu soberano despreso pelos sovietes, a começar por aquele de Petrogrado, que os tinha levado ao poder. Sim, e que poderiam eles de facto, sem romper a sua aliança com a burguesia, tomar em consideração as esperanças e as reivindicações de dezenas de milhões de operários, de soldados e de camponeses que eram pelos sovietes?
Trotsky respondeu à proposição de Dan no sentido que o Congresso seria mesmo assim convocado, senão pela via constitucional, pelo menos pela via revolucionária. O Burô, geralmente tão servil, recusou, desta vez, de se comprometer no caminho de um golpe de Estado soviético. Mas a pequena derrota não o obrigou de forma nenhuma os conspiradores a depor as armas, ela foi pelo contrário como um excitante para eles. Dan encontrou apoio influente na Secção militar do Comité executivo central, que decidiu de abrir um «inquérito» entre as organizações da frente para saber se se convocaria o Congresso, isto é, se se executaria uma decisão tomada duas vezes pelo mais alto órgão soviético. Entretanto, a imprensa dos conciliadores iniciou uma campanha contra o Congresso. Os socialistas-revolucionários mostraram-se particularmente exasperados. «Que o Congresso seja ou não convocado – escreve o Delo Naroda (A causa do povo) – isso não pode ter qualquer importância no que diz respeito à questão do poder... O governo de Kerensky não se submeterá em qualquer caso.» Ao quê que ele não se submeteria? Perguntava Lenine. «Ao poder dos sovietes – explicou ele – ao poder dos operários e dos camponeses que o Delo Naroda, para não ficar de parte com os fazedores de progromes e os antisemitas, os monárquicos e os cadetes, chama o poder de Trotsky e de Lenine.»
O congresso executivo camponês julgou, pelo seu lado, a convocação do congresso «perigosa e indesejável». Nos círculos dirigentes sovietes instaurou-se uma confusão voluntariamente perniciosa. Os delegados dos partidos conciliadores que circulavam no país mobilizavam as organizações locais contra o congresso oficialmente convocado pelo órgão soviete supremo. A gazeta oficiosa do Comité executivo central imprimia, a cada dia, as resoluções provenientes dos fantasmas de Março, trazendo, na realidade, os nomes imponentes. As Izvestia enterravam os sovietes num editorial, declarando que eram barracas provisórias que deviam ser demolidas logo que a Assembleia constituinte «tivesse coroado o edifício do novo regime».
A agitação contra o Congresso era o menos que seria feito para tomar os bolcheviques de surpresa. Desde do dia 24 de Setembro, o Comité central do partido, não se fiando à decisão do Comité executivo central, decidiu levantar na base, por intermediário dos sovietes locais e das organizações da frente, uma campanha para o Congresso. À comissão oficial do Comité executivo central que se ocupava de convocar, mais exactamente de sabotar o congresso, os bolcheviques delegaram Sverdlov. Sob a sua direcção foram mobilizadas as organizações locais do partido, e, por intermediário seu, os sovietes também. No 27, todas as instituições revolucionárias de Reval exigiram a dissolução imediata do pré-parlamento e a convocação, para criar um poder, de um congresso dos sovietes, e elas comprometiam-se a solenemente a apoiar «com todas as forças e recursos que dispunha a fortaleza». Muitos sovietes locais, a começar pelos distritos de Moscovo, propuseram desconvocar o congresso ao desleal comité executivo central. No sentido oposto às resoluções dos comités do exército contra o Congresso, vindo dos batalhões, regimentos, corpos do exército, das guarnições.«O congresso dos sovietes deve tomar o poder sem parar diante de nada», declarou a assembleia geral dos soldados em Klychtym, no Oural. Os soldados da província de Novgorod convidam os camponeses a participar no Congresso, sem terem em conta a decisão do comité executivo camponês. Os sovietes de província, de distrito, mesmo os dos lugares mais recuados, das fábricas e das minas, os regimentos, os barcos de guerra, os hospitais militares, comícios, a companhia de carros blindados de Petrogrado e os serviços de ambulância de Moscovo, todos exigiam a eliminação do governo e a entrega do poder aos sovietes.
Não se limitando à campanha de agitação, os bolcheviques criaram para eles próprios uma importante base de organização, ao convocarem um congresso dos sovietes da região Norte, contando cento cinquenta delegados vindos de vinte e três pontos diferentes. A acção foi bem feita! O comité executivo central, sob a direcção desses grandes mestres dos pequenos assuntos, declarou que o congresso do Norte era uma conferência particular. Um punhado de delegados mencheviques não participou nos trabalhos do congresso, assistindo somente a «título de informação». Como se isso pudesse diminuir o significado de um congresso ao qual estavam representados os sovietes de Petrogrado e da periferia, de Moscovo, de Cronstadt, de Helsingfors e de Reval, isto é das duas capitais, das fortalezas marítimas, da frota do Báltico e das guarnições dos arredores de Petrogrado.
Aberto por Antonov, o Congresso, ao qual tinham dado a intenção de uma nuança militar, teve lugar sob a presidência do alferes Krylenko, o melhor agitador do partido sobre a frente, futuro comandante em chefe das tropas bolcheviques. O relatório político de Trotsky tratava essencialmente sobre a nova tentativa feita pelo governo para afastar de Petrogrado os regimentos revolucionários: o Congresso não permitirá «desarmar Petrogrado e de abafar o Soviete». A questão da guarnição de Petrogrado é um elemento do problema fundamental do poder. «Todo o povo vota pelos bolcheviques. O povo confia em nós e encarrega-nos de tomar o poder.» A resolução proposta por Trotsky diz: «A hora chegou onde somente uma marcha audaciosa e unanime de todos os sovietes que pode ser resolvida a questão do poder central.» Este apelo apenas disfarçado à insurreição é adoptado unanimemente salvo três abstenções.
Lachevitch chamava os sovietes a assegurar-se, segundo o exemplo de Petrogrado, das guarnições locais. O delegado letão Peterson prometeu para a defesa do Congresso dos sovietes quarenta mil caçadores letões. A declaração de Peterson, acolhida com entusiasmo, não deixava de ter peso. Alguns dias mais tarde, o soviete dos regimentos letões proclamou isto: «É somente uma insurreição popular... que tornará possível a passagem do poder para as mãos dos sovietes». A rádio dos barcos de guerra propagou, no dia 13, em todo o país, o apelo do Congresso do Norte à preparação do Congresso Pan-russo dos sovietes. «Soldados, marinheiros, camponeses, operários! O vosso dever é de ultrapassar todos os obstáculos...»
Aos delegados bolcheviques do Congresso do Norte, o Comité central do partido propôs que não se abandonasse Petrogrado, esperando o próximo Congresso dos sovietes. Alguns delegados, sob mandato do Burô eleito do Congresso, foram às organizações do exército e dos sovietes das localidades para fazer relatórios, isto é, para preparar a província para a insurreição. O comité executivo central viu então ao seu lado um potente aparelho que se apoiava sobre Petrogrado e Moscovo, que se mantinham em contacto com o país através das estações de emissão dos couraçados e que estava pronto a se substituir, no momento oportuno, ao órgão supremo já antiquado dos sovietes, para convocar o Congresso. As pequenas manhas na organização não podiam ser de qualquer utilidade para os conciliadores.
A luta para e contra o Congresso deu nas províncias a última impulsão à bolchevização dos sovietes. Num grande número de províncias atrasadas, por exemplo na de Smolensk, os bolcheviques, sós, ou acompanhados pelos socialistas-revolucionários de esquerda, obtiveram pela primeira vez a maioria depois da campanha para o Congresso ou as eleições de delegados. Mesmo no Congresso siberiano dos sovietes, os bolcheviques conseguiram, no meio de Outubro, a criar com os socialistas-revolucionários de esquerda, uma sólida maioria que meteu facilmente a sua marca sobre todos os sovietes locais. No 15, o Soviete de Kiev, por 159 votos contra 28, com 3 abstenções, reconheceu o futuro Congresso dos sovietes «órgão soberano do poder». A 16, o Congresso dos sovietes da região do Noroeste, em Minsk, isto é no centro da frente Oeste, reconheceu a urgência da convocação do Congresso. A 18, o Soviete de Petrogrado procedeu às eleições para o próximo Congresso: a lista bolchevique (Trotsky, Kamenev, Voldarsky, Ioreniev e Lachevitch) obteve 443 votos; os socialistas-revolucionários tiveram 162; eram todos socialistas-revolucionários de esquerda que tendiam para os bolcheviques; os mencheviques obtiveram 44 votos. O Congresso dos sovietes do Ural, ao qual presidia Krestirisky, onde se contava, sobre 110 delegados, 80 bolcheviques, exigiu, em nome de 223 900 operários e soldados organizados, a convocação do Congresso dos sovietes a uma data fixa. No mesmo dia, 19, a Conferência dos comités de fábrica e de oficina, a mais directa e incontestável representação do proletariado de todo o país, pronunciou-se pela transmissão imediata do poder para os soviets. No 20, Ivanovo-Vomessensk declarou todos os sovietes da província «em estado de luta aberta e implacável com o governo provisório», e os convidou a resolver com a sua autoridade as questões económicas e administrativas. Contra a resolução que significou o derrube das autoridades governamentais nas localidades, houve somente um voto e uma abstenção. No 22, a imprensa bolchevique publicou um nova lista de 56 organizações que exigiam a passagem do poder para os soviets: são inteiramente as verdadeiras massas, em grande medida armadas.
O potente apelo lançado pelos contingentes da próxima insurreição não impediu Dan de relatar ao Burô do Comité executivo central que sobre novecentas e dezassete organizações soviéticas existentes, somente cinquenta tinham consentido em enviar delegados, e isso «sem qualquer entusiasmo». Pode-se compreender sem dificuldades que os poucos sovietes que pensavam que era indispensável confessar os seus sentimentos ao Comité executivo central consideravam o Congresso sem entusiasmo. Todavia, na sua esmagadora maioria, os sovietes locais e os comités ignoravam puramente e simplesmente o Comité executivo central.
Traídos e comprometidos pela sua acção visando fazer do Congresso um malogro, os conciliadores não se atreveram a levar o assunto até ao fim. Quando se tornou evidente que não se conseguiria evitar o Congresso, converteram-se bruscamente, chamando todas as organizações locais a eleger delegados ao Congresso, para não cederem a maioria aos bolcheviques. Mas, tendo reagido demasiado tarde, o Comité executivo central viu-se forçado, três dias antes da data fixada, a diferir o Congresso para o 25 de Outubro.
O regime de Fevereiro e, com ele, a sociedade burguesa obtiveram, graças à última manobra dos conciliadores, um prazo imprevisto ao qual eles não podiam portanto tirar o essencial. Em contra-partida, os bolcheviques utilizaram os cinco dias suplementares com grande sucesso. Mais tarde, isso foi reconhecido mesmo pelos inimigos. «O atraso da manifestação – conta Miliokov foi utilizado pelos bolcheviques antes de tudo para consolidar as suas posições entre os operários e os soldaos de Petrogrado. Trotsky mostrava-se nos comícios, em diversas partes da guarnição da capital. O estado de espírito que ele criou se caracteriza assim, por exemplo, que, no regimento Semenovsky, os membros do Comité executivo que queriam falar depois dele, Skobolev e Gotz, não puderam dizer uma palavra.»
A conversão do regimento Semenovsky, cujo nome estava inscrito na história da revolução em caracteres sinistros, tinha um sentido simbólico: em Dezembro 1905, os Semenovsky tinham feito a maior parte do trabalho para esmagar a insurreição em Moscovo. O chefe do regimento, o general Min, tinha dado esta ordem: «Não fazer prisioneiros.» No sector ferroviário de Moscovo-Golotvine, os Semenovsky fuzilaram cento e cinquenta operários e empregados. Felicitado por essas proezas pelo tsar, o general Min foi, no outono de 1906, morto pela socialista-revolucionária Konopliannikova. Completamente comprometido nas redes das velhas tradições, o regimento Semenovsky tinha resistido mais tempo que a maioria dos outros efectivos da Guarda. A sua fama de contingente «seguro» era tão sólida que, apesar do lamentável fiasco de Skobelev e de Gotz, o governo teimou em contar com os Samenovsky até ao dia da insurreição e mesmo depois.
A questão do Congresso dos sovietes continuou a ser a questão política central durante as cinco semanas que separam a Conferência democrática da insurreição de Outubro. Já, a declaração dos bolcheviques na conferência democrática proclamava o próximo Congresso dos sovietes «órgão soberano do país». «Essas somente decisões e proposições da presente conferência... podem encontrar uma via de realização, que terão sido aprovadas pelo Congresso pan-russo dos deputados operários, camponeses e soldados.» A resolução de boicotar o pré-parlamento, apoiada por uma maioria dos membros do Comité central contra a outra metade, dizia: «A questão da participação do nosso partido ao pré-parlamento, nós metêmo-la actualmente em dependência directa das medidas que tomará o Congresso pan-russo dos sovietes para criar um poder revolucionário.» O apelo ao Congresso dos sovietes apareceu em todos os documentos bolcheviques desse período quase sem excepção.
Diante do tumulto da guerra camponesa, a agravamento do movimento nacional, diante do crescente desespero, a queda da frente, diante um governo que se afunda, os sovietes tornam-se o único apoio das forças criadoras. Toda a questão torna-se uma questão de poder, e o problema do poder leva ao Congresso dos sovietes. Ele deverá dar uma resposta a todas as questões, incluindo a da Assembleia constituinte.
Nenhum dos partidos não suprimia ainda a palavra de ordem da Assembleia constituinte, nem mesmo o partido bolchevique. Mas quase insensivelmente, no decurso dos acontecimentos da revolução, a principal palavra de ordem democrática, que, desde de uma quinzena de anos, dava cor à luta heróica das massas, tinha empalidecido, mesmo murchado, e, de certa forma, tinha sido moída, deixando somente a casca, uma forma vazia, sem conteúdo, uma tradição e não uma perspectiva. Nesse processo, não havia nada de enigmático. O desenvolvimento da revolução concluía-se num corpo a corpo imediato pelo poder entre as duas classes principais da sociedade: a burguesia e o proletariado. Nem a uma, nem a outra, a Assembleia constituinte não podia dar mais nada. A pequena burguesia das cidades e dos campos não podia, nesse conflito, senão jogar um papel auxiliar e secundário. Tomar nas mãos o poder, em todos os casos, ela era incapaz: se os meses precedentes tinham demonstrado qualquer coisa, foi exactamente isso. Ora, na Assembleia constituinte, a pequena burguesia podia ainda obter – e obteve efectivamente – a maioria. Para que serviria? Somente para ignorar que uso ela poderia fazer disso. Nisso se traduzia a inconsistência da democracia formal numa profunda reviravolta histórica. A força da tradição se mostra nisto que, mesmo na véspera da última batalha, nem um dos campos tinha ainda renunciado ao nome da Assembleia constituinte. Mas, de facto, a burguesia apelava de Assembleia constituinte a Kornilov, e os bolcheviques ao Congresso dos sovietes.
Pode-se avançar com segurança esta hipótese que as camadas largas do povo, mesmo certas camadas intermediárias do partido bolchevique, mantinham, em relação ao Congresso dos sovietes, ilusões de certa forma constitucionais, isto é ligavam ao Congresso a ideia de uma transmissão automática e sem dor do poder das mãos da coligação para a dos sovietes. Na realidade, o poder deveria ser arrancado pela força, isso não se podia fazer pelo voto: só, a insurreição armada podia resolver a questão.
Todavia, de todas as ilusões que acompanham – inevitável mistura – todo o movimento popular, mesmo o mais realista, a ilusão de um «parlamentarismo» soviético era, no conjunto as condições, a menos perigosa. Os sovietes lutavam efectivamente pela conquista do poder, apoiavam-se cada vez mais sobre as forças militares, tornavam-se eles próprios poderes nas localidades, conquistavam com grande esforço e luta o seu próprio congresso. Para as ilusões constitucionais já não restava mais lugar, e o que restava disso era varrido no processo da luta.
Coordenando os esforços revolucionários dos operários e dos soldados de todo o país, dando-lhes unidade com o objectivo e fixando um só prazo, a palavra de ordem do Congresso dos sovietes cobria ao mesmo tempo a preparação meio conspiradora, meio aberta da insurreição por um apelo constante a uma representação legal dos operários, dos soldados e dos camponeses. Facilitando a unidade das forças para a insurreição, o Congresso dos sovietes devia em seguida sancionar os seus resultados e formar um novo poder incontestável para o povo.
Inclusão | 19/08/2012 |