Camponeses de Barcouço:
Não vamos morrer agarrados à enxada

José A. Salvador


Coelhos? Eu não te perdoo mesmo que ele tenha sido parido naquele dia

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Aí uns dez a quinze passos de homem ao comprido, menos cinco pelo largo.Toneis diversos. Vazios. Um pequeno pipo com vinho tinto. Chove na rua. A adega está aconchegada. Uma barrica ao alto faz de de mesa. Um alguidar de enorme prato colectivo. Dez homens o rodeiam. A cada um sua colher, seu naco de broa, seu copo de vinho.

Coma.
Agora hão há conversa. Deixa o homem comer que já vem atrasado.
Já vamos no segundo alguidar.
Então que tal camarada?
Olhe que os doutores quando cá vêm também comem assim. É um alguidar e todos comem do mesmo.
Andamos desde as nove de manhã.
Foi até às quatro da tarde.
Depois, foi fazer a taina.
Apanhámos sete coelhos.
Coma.
De quem é esta cabeça?
Ai pões de lado?
Toca a comer.
Pesque.
O resto é para os cães.

Um a um os homens subiam a pequena ladeira da adega. O alguidar, o pipo de vinho, a cadela, o narrador, iam ficando sós em redor do pitéu. Junto à porta os homens retomavam o rodopio das palavras. Encostados aos toneis vazios, os olhos postos na memória da tarde. Eram nove horas. Noite cerrada. Duas mulheres tinha vindo recolher as colheres, o alguidar, o pão, os panos. O pipo e os copos continuaram.

A cadela está pranha?
Está. Está cansada.
Fui lá primeiro que tu.
Isso não conta.
Conta, conta.
Fui lá mais vezes que tu.
Fui lá com o Zé do Pisão e o Xico.
Essa gente não percebe nada.
Fui lá com o teu primo. Matámos 111 coelhos, 11 lebres...

Nem a torneira do pipo interrompe agora o silêncio da adega. Os nove caçadores apontaram os olhos para o que falava. Fora ele um coelho, e disparavam.

Fui com o Toino Maria, o Toino Pardo. Matámos 111 coelhos, 11 lebres, 27 perdizes.
Naquele tempo vocês ainda viam bem...
Matámos mais que vocês.
Matámos 106 só na encosta.
Quantos homens eram?
Não sei.
O Silva da Mata era à doida. Com um pau: pumba, pumba, aqui está outro. Eh rapazes: olha aqui! estavam lá 17. Matámos uma raposa. Foi uma coisa doida.
Quando as cadelas começavam a dizer: ai Jesus, aqui está ela!
A velha? A Joana?
Como aquela nunca se criou, nem volta a criar. Tem uns doze anos.
Deu praí treze cachorros.
A minha cadela mataram-na.
Com doze anos, já está... É a velhice total.
Quantos anos é que tem o teu cão?
Aí uns quatro.
Ele não é irmão da cadela do teu sogro?
É.
Este branco vira daqui, vira dali, aí está ela a correr.
Tu é que tiveste a culpa, cala-te!
Este vamos agarrá-lo à mão e já estava.
Mesmo com o pé. Se tem entrado assim com o pé, tapava o buraco.
Eu estava com a arma.
Ele matava-o.
O cão foi para outro lado.
Passou mesmo por cima das minhas mãos.
Se a gente metia a bota.
Não, não agarrava.
Puxei o cano direito. Voltei a puxar, mas nada. Ele já lá ia.

Ali não havia meios copos. Podia o coelho ter escapado, mas o copo não. Os homens abriam e fechavam a torneira do pipo. Abriam e fechavam a boca. À caça era uma discussão prolongada. Sem tiros.

Pró ano vou para o Alentejo. 63 anos: as pernas já não aguentam. Lá é plano.
Eu não o vi passar pela vinha.
Quando deitei o olho.
Viemos carregadinhos os dois.
A seca dá moléstia.
Lá é um sítio esplêndido.
Mas o coelho estava para a parte de baixo.
Andaste por lá parecias uma cegarrega.
A gente não pode matar todos.

O cão lambe a cadela. A cadela beija o cão. O cão percorre lentamente o pelo da cadela: olhos fechados a fêmea afoga-se em prazeres. Os homens espreitam o vinho e reavivam a memória da tarde.

Os cães hoje já estavam cansados.
Aquilo mata os cães.
Os cães têm épocas que andam bons.
O focinho é do Tordão.
E o rabo também. É o rabo virado.
Os coelhos grandes fogem, e você depois diz que são pequenos.
Ele vinha de testa para mim. Podia bem atirar. Eu não perdoo, mesmo que ele tenha sido parido naquele dia. Podendo atiro logo.
Se eu não mudo de sítio era eu que o matava. O primeiro não. Depois o cão agarrou-o pela frente.
Vocês ficam?

Um homem dorme poisado sobre os sacos. Ao lado, é a vez do cão também fechar os olhos. A cadela continua desperta e saboreia ainda a memória das carícias de há pouco. O rodopio das palavras é uma caçada.

Agora lindo foi o que ele matou ontem.
Eu não mato nada. Tenho que dar um tiro nem que seja num coelho morto.
Se vocês não andam tão desauridos, aquele coelho...
Vi os cães a correr para esse lado.
Eu podia-me ter adiantado mais, e adivinhar? Se eu adivinhasse largava a minha espingarda?
Se viesse para a vinha eu matava-o.
Filho da puta do coelho estava desconfiado de todo.
Ele veio com a cabeça, mas recolheu.
O cão picou-o.
Ele passou por cima dos canos da espingarda. Ele fintou. Ele ia feito uma bilharda. Ele escatilhou tudo.
Filho da puta saltou mesmo no meio dos cães.
Ele saíu como um tiro. Foi como um relâmpago.
A cadela não se precipitou. O coelho esteve para lá ficar.
A tua Tuxa picou lá em baixo, Aí para esse lado estavam dois cães.
Eu cá ainda estive para atirar donde eu estava.
Ele tapou-me o ângulo.
Tu ainda me apontaste a tua espingarda à cara.
Quantos atiram um tiro à sorte e depois: tam, já está um morto.
Eu atirava-lhe o tiro à confiança se lhe encontrasse o gatilho.
Ainda lho mandei.
Ele foi assim: saiu da silveira.
Ele parou na serventia.
Ele saiu é que nem uma seta.
Ele saiu direito ao milho.
Ai que carago: ele saiu como daqui para o tunel.
"Ele foi direitinho a você, chegou aos seus pés e virou.
Eu não o vi.
O teu tiro foi primeiro que o meu.
Foi o segundo.
Não. Eu quando ouvi o teu até estremeci: julguei que era a minha espingarda.
Depois deu a volta e passou sozinho.
Pronto vamos embora. São dez horas.
Quando lá chegou o dedo já não o via.

Cá fora uma chuva miudinha. Os homens separam-se. Todos procuram a lareira lá em casa. Ou a televisão. À caça era uma aventura adiada para o próximo domingo. A taina já era uma saudade.


Inclusão 14/06/2019