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Definição de “povo” e “soberania” — Funções da soberania: proteção e manutenção. — Períodos na história humana: Primeiro, a idade das selvas, a luta do homem com as feras. — Teoria evolucionista da origem do universo e do homem. — Contribuições geológicas à história antiga. — Segundo período: luta do homem com a natureza. — Surto da civilização em regiões favoráveis. — A primitiva civilização chinesa no vale do rio Amarelo. — Teocracia. — Terceiro período: luta do homem com o homem, surto das autocracias. — Período moderno das lutas dentro dos Estados, surto da democracia. — Está a China preparada para a democracia? — Ideias democráticas na antiga China. — A China deve seguir as modernas tendências mundiais. — A luta pela democracia no Ocidente. — A “Commonwealth” de Cromwell. — As revoluções americana e francesa. — A falsa teoria de Rousseau sobre os “direitos naturais” do homem. — Os fatos devem preceder a teoria. — A luta contínua pelo poder imperial na história chinesa. — A democracia, o único remédio. — O fracasso da Rebelião de Taiping foi devido a rivalidades em busca do poder. — Oposição egoística de Chien Chung Ming e de outros chefes militares à Revolução Chinesa.
Senhores: Hoje, iniciarei a discussão sobre a soberania do povo. Que é soberania do povo? A fim de definir essa expressão, devemos, em primeiro lugar, compreender o que é um “povo”. Qualquer corpo unificado e organizado de homens é um “povo.” Que é “soberania”? É o poder e a autoridade exercidos sobre o território do Estado. Os Estados, que dispõem atualmente de maior poder, são denominados, em idioma chinês, de “estados fortes” e nas línguas estrangeiras, de “potências”. A força mecânica é medida, na China, em “poder do cavalo”, e, nas outras nações, em “cavalos força”. O poder e a força são empregados intermutavelmente. O poder de fazer executar ordens e de regulamentar a conduta pública é denominado soberania, e, quando “povo” e “soberania” são ligados, temos o poder político do povo. Para compreender o “poder político”, devemos saber o que é Governo. Muita gente pensa que Governo é assunto muito abstruso e difícil, que as pessoas ordinárias não podem compreender. Os militares chineses dizem sempre: “Somos soldados e nada sabemos de política.” A razão porque se mostram ignorantes é porque consideram o Governo como uma questão profunda e abstrusa. Não sabem que se trata de uma coisa bem clara e compreensível. Se os militares dizem que não interferirão com o Governo, podemos não nos incomodar. Mas, se declaram que não podem compreender o que seja Governo, nesse caso mostram-se estúpidos. Uma vez que o soldado é a força em que se ampara o Governo, deve certamente compreender o que seja Governo. Em suma, o Governo é uma coisa do povo e pelo povo. É o controle dos negócios de todo o povo. O poder de controle é a soberania política, e, onde o povo controla o Governo, chamamo-lo de “soberania do povo.”
Agora, que compreendemos o que é a “soberania do povo”, devemos estudar suas funções. Quando observamos a vida em torno de nós ou estudamos o passado distante, vemos que o poder humano tem sido empregado, para colocar a questão em termos simples, a fim de manter a existência da raça humana. A fim de existir, a humanidade tem de contar com proteção e sustento, e, diariamente, empenha-se na satisfação dessas duas grandes necessidades. A proteção significa autodefesa. Quer se refira ao indivíduo, ou ao grupo, ou ao Estado, o poder de autodefesa é necessário à existência. O sustento significa a procura de alimentação. Autodefesa e procura de alimentação são, pois, os dois meios principais pelos quais a humanidade mantém sua existência. Mas, enquanto o homem procura manter sua existência, os outros animais tentam fazem a mesma coisa. Enquanto o homem se defende, os outros animais também se defendem. Enquanto o homem procura alimentos, os outros animais também procuram alimentos. E, assim, a proteção e o sustento do homem entram em conflito com a proteção e sustento dos outros animais, e a luta se segue. Para manter-se vivo, no meio da luta, o homem deve lutar, e, por isso, a humanidade nunca cessou de lutar desde o início da vida humana. Destarte, a raça humana tem empregado sua força no combate, e, desde seu aparecimento no planeta até agora, viveu num ambiente de lutas.
Essa luta da raça humana pode ser dividida em diversos períodos. O primeiro foi o período da selvageria primeva e universal antes do alvorecer da história humana. Não sabemos quão longo foi esse período, porém, nos tempos recentes, os geólogos o descobriram, quando estudaram os strata rochosos, fósseis de seres humanos em rochas com uma idade não superior a dois milhões de anos. As rochas com idade maior não apresentam vestígios humanos. O homem médio considera os acontecimentos ocorridos há vários milhões de anos como sendo excessivamente vagos e incertos, porém, com o progresso da moderna ciência geológica, os geólogos podem hoje distinguir muitos strata diferentes de rochas, cada qual representando certo número de gerações, e determinar quais os strata que pertenceram às diversas idades, descrevendo os vários períodos geológicos por suas rochas. Para nós, dois milhões de anos representam um tempo longo, porém, para os geólogos trata-se de um breve período. Há muitas camadas de rochas, que datam de mais de dois milhões de anos, porém, não existem dados para o estudo da história da terra antes da formação da rocha. A teoria geral prevalecente é que, antes das rochas, havia uma espécie de matéria líquida, e, anteriormente, uma espécie de matéria gasosa. Segundo a filosofia da evolução, a terra foi, originariamente, um corpo gasoso e parte do sol. No início, o sol e os corpos gasosos formavam uma nebulosa no espaço. Quando o sol começou a contrair-se, muitos corpos gasosos se desligaram dele, e vieram, finalmente, a condensar-se em corpos líquidos e, mais tarde, solidificar-se em rocha. As mais velhas rochas datam de dezenas de milhões de anos. Os geólogos possuem, agora, evidência definitiva de rochas de 20 milhões de anos, e, assim, calculam que a condensação de vapor em líquido deveria ter levado dezenas de milhões de anos, e a solidificação da matéria líquida em rocha deveria ter levado um tempo equivalente. Da fase formativa das rochas até a época atual medeia um período de, pelo menos, vinte milhões de anos. Em virtude de não termos uma crônica escrita desse período, parece-nos ser um tempo astronômico, porém, os geólogos o consideram como de uma idade relativamente recente.
Qual é a relação dessas considerações científicas com o nosso assunto de hoje? Da origem da terra podemos deduzir a origem do homem. O geólogo descobriu que a história do homem está nos últimos dois milhões de anos e que a civilização humana nasceu há apenas duzentos mil anos. Antes dessa época, o homem pouco diferia dos animais, e, assim, os filósofos dizem que o homem evoluiu de animais e não foi subitamente criado. O homem e todos os seres vivos passaram, nesses duzentos mil anos, por um processo de evolução gradual até formar o mundo atual. Que idade nós alcançamos? A idade do poder do povo, a idade da democracia.
Enquanto os germes da democracia já eram encontrados na Grécia e em Roma, há dois mil anos atrás, foi somente nos últimos 150 anos que a democracia se arraigou firmemente no mundo. A idade anterior foi da autocracia, precedida pela da teocracia. Anteriormente à teocracia, houve a idade da selvageria, quando os homens lutavam contra as feras. O homem procurava viver; e as feras também o procuravam. O homem tinha dois meios de preservar sua existência — buscando alimento e pela autodefesa. Nos tempos bastante remotos, os homens comiam as feras e estas os homens. Havia luta constante entre eles. A terra era recoberta de serpentes venenosas e povoada de animais bravios. O homem era assediado de perigos e, dessa forma, tinha de lutar por sua própria vida. A guerra desses dias era o conflito irregular entre o homem e as feras. Não havia a organização em grupos, “cada qual lutando por si próprio”.
Quanto ao lugar de nascimento, onde o homem se originou, sustenta-se que a espécie humana surgiu apenas em poucos lugares, porém, os geólogos asseveram que, depois do homem ter aparecido no globo, encontrou-se por toda parte, pois não importa onde procedamos a escavações encontraremos restos humanos. A luta entre o homem e as criaturas selvagens não cessou ainda. Se nos dirigirmos atualmente às bravias ilhas da Malásia, encontraremos ainda essa guerra prosseguindo. Se penetrarmos nas montanhas intransponíveis ou atravessarmos os grandes desertos onde não se vê nenhum homem e nenhuma fumaça, poderemos ter um quadro do ambiente em que viviam os homens e os animais naquelas idades. A razão, pois, porque podemos trazer à luz da história o passado longínquo, deve-se ao fato de termos encontrado esses vestígios e relíquias humanos. Sem eles, não poderíamos, possivelmente, saber qualquer coisa do que aconteceu.
O método usual de estudar os acontecimentos do passado é a leitura da história, porém, a história é uma crônica escrita e não há uma história da civilização antes da invenção da escrita. A China não possui mais de cinco ou seis mil anos de história escrita e o Egito não mais do que 10 mil anos. No estudo de todas as espécies de conhecimento, a China dependeu exclusivamente de livros. Mas os países estrangeiros procedem de outra maneira. Os alunos de suas escolas primárias e secundárias estudam em textos, porém, os estudantes de universidades fazem uso da investigação, e das rochas, dos animais e da vida das raças selvagens, bem como, do auxílio de textos, inferem a espécie de sociedade em que nossos ancestrais viveram. Por exemplo, a observação das raças selvagens na África ou na Malásia auxiliam-nos a compreender quais eram as condições de vida do antigo homem não civilizado. Assim, os estudantes modernos de ciência não confiam apenas nos livros para suas pesquisas e os livros que eles próprios elaboram são fruto do espírito de investigação, não passando de contribuições para a nossa crônica da raça humana. Dois métodos de investigação são empregados — a observação, ou o método científico, e o julgamento, ou o método filosófico. Os princípios da evolução humana foram determinados por esses dois métodos. Na luta primitiva entre o homem e as feras, o homem empregava apenas sua força física individual, ou, algumas vezes, as espécies lutavam juntas. Se, por exemplo, num lugar, algumas dezenas de homens estavam batalhando contra algumas dezenas de feras, é, em outro lugar, estivesse ocorrendo a mesma coisa, os homens de ambos os lugares podiam perceber suas relações de espécie com os outros e suas diferenças das feras, e, unindo-se como camaradas, juntos lutavam contra as outras espécies. É certo que o homem não se coligaria com outras espécies para lutar e devorar outro homem e violentar sua própria espécie. Tal agrupamento de espécie e a repulsa à aliança com os reptis e feras era coisa natural, não artificial. Assim que os reptis ou feras eram destruídos, os homens se dispersavam. Nesses tempos, tal coisa não existia como soberania popular. O homem, na luta contra os animais, empregava simplesmente sua própria força física e não exercia qualquer espécie de autoridade. Era a idade da força bruta.
Mais tarde, quando o homem acabara de exterminar os reptis venenosos e as feras selvagens, e seu meio foi, de certa maneira, melhorado e sua moradia melhor adaptada para seu tipo de existência, começaram a surgir grupos, vivendo num lugar, e a domesticar os animais menos bravios. Era o início da idade pastoral e também da civilização. O povo dessa idade vivia como os mongóis ou árabes vivem atualmente no Sudoeste da Ásia, que ainda estão no estágio pastoral. Uma grande mudança operou-se nas condições de vida do homem. Estava para terminar a guerra contra os animais, a civilização vinha emergindo, havia chegado o que denominamos de antigo período da história humana. O homem começava a dirigir seu instinto guerreiro contra as forças da natureza. Em suma, no primeiro estágio, o homem guerreava as feras e empregava sua própria força bruta ou a força conjunta de muitos homens para matá-las. No segundo estágio, o homem lutava contra a natureza. No primeiro estágio, devido ao homem ignorar quando um animal o atacaria, não estava certo se poderia viver de um momento para outro. Dispunha apenas de duas mãos e dois pés para a autodefesa, porém, era mais sábio que as feras e aprendeu a usar paus e pedras, conquistando, afinal, uma vitória sobre seus inimigos selvagens. Só então pôde o homem começar a fazer planos para o futuro. Enquanto lutava contra as feras, sua vida não oferecia segurança por um momento.
Quando as feras não mais o ameaçaram, a raça humana começou a multiplicar-se e os lugares mais favoráveis da terra principiaram a povoar-se. Quais eram os lugares mais favoráveis? Os lugares abrigados das chuvas e dos ventos ou as regiões não varridas pelas tempestades, tais como os vales do Nilo e da Mesopotâmia, na Ásia. Aí, o solo era bastante fértil e muito pouco chovia durante as quatro estações. As águas do Nilo devam-se uma vez por ano e, quando baixam novamente, uma rica camada aluvional é depositada em ambas as margens do rio. O cultivo era fácil e o trigo e o arroz floresciam em profusão. Somente no vale do Nilo e na Mesopotâmia, porém, se encontravam regiões tão férteis, de modo que se diz comumente que o vale do Nilo e a Mesopotâmia foram o berço da civilização do mundo. Devido à fertilidade desses dois vales e da ausência de chuvas e de tempestades durante todas as estações, o que facilitava o cultivo do solo e a criação de rebanhos, e, também, devido à abundância da vida animal em seus rios, a vida ali era fácil. Sem muito trabalho físico e mental, os homens passavam os dias ociosamente e seus descendentes multiplicavam-se rapidamente. Quando a raça se tornou bastante próspera, não havia oportunidade para todos, de modo que começaram as migrações para outros lugares, onde as condições não eram tão favoráveis e os homens se viam ameaçados por desastres naturais, como as tempestades e as inundações.
O vale do rio Amarelo foi o berço da civilização chinesa. Uma vez que essa região é assolada por tempestades e enchentes e é também muito fria e, uma vez que não era uma região natural para dar nascimento a uma civilização, como aconteceu que a antiga civilização chinesa ali se originou? Devido ao fato dos habitantes das margens do rio Amarelo terem imigrado de outras regiões, talvez da Mesopotâmia, cuja civilização antedatava à da China por mais de 10 mil anos. Antes da época dos Três Imperadores e dos Cinco Reis, esses progenitores da raça chinesa transferiram-se da Mesopotâmia para o vale do rio Amarelo e começaram a desenvolver a civilização da China. Depois de exterminarem os reptis venenosos e as feras selvagens, tiveram de enfrentar os desastres naturais, como as chuvas e as inundações. Naturalmente, procuraram evitar esses desastres e lutaram contra a natureza. Como proteção contra o vento e a chuva, foram obrigados a construir casas. Como proteção contra o frio, tiveram de confeccionar roupas. Quando o homem aprendeu a fazer essas coisas, estava adiantado em sua civilização. As calamidades naturais, porém, não ocorriam em tempos regulares, nem eras facilmente evitáveis. As tempestades derrubavam-lhes as casas, as enchentes levavam-nas de roldão, o fogo incendiava-as, ou um raio as demolia. Esses quatro desastres — inundação, fogo, tempestade e raio — não podiam ser compreendidos pelos antigos. Além do mais, suas casas eram construídas de capim e madeira e não podiam resistir a tais catástrofes, de modo que não havia meios de evitar sua destruição. Na idade da luta contra as feras, o homem podia empregar sua própria força física para lutar, porém, a simples luta não tinha nenhum valor nos dias da luta contra a natureza. A humanidade, então, sofreu muitas agruras até que alguns homens sábios apresentaram esquemas para o bem comum do povo. Assim, o Grande Yu (governante legendário da antiga história chinesa) submeteu as águas à ordem e evitou a calamidade da enchente e Yu Chao Shih (construtor de ninhos) ensinou o povo a construir casas nas árvores e a evitar os desastres da tempestade e das chuvas.
Dessa época em diante, a civilização começou a progredir lentamente, o povo começou a unir-se, e, como havia abundância de terras e os habitantes eram poucos, fácil era a obtenção de alimentos. Os únicos problemas eram as catástrofes da natureza, que não podiam ser combatidas como as feras selvagens, corri a força física, e, assim, surgiu a ideia do poder divino. Homens de profunda sabedoria começaram a advogar a doutrina dos deuses e dos ensinamentos divinos, introduzindo as orações como meios de afastar o mal e obter bênçãos. Não havia maneira de se afirmar então se suas orações eram efetivas ou não. Uma vez, todavia, que estavam lutando contra os céus não havia outro plano, na ocasião extrema, senão apelar para o poder dos deuses. Um homem de profundo discernimento era escolhido como líder, como os chefes das tribos selvagens o são, hoje, na África, e cujo dever especial era oferecer orações. Da mesma maneira, os mongóis e os nativos do Tibete escolhem hoje um “Buda Vivo” como seu governante e têm um governo teocrático. Assim, os antigos costumavam dizer que as duas grandes funções do Estado eram a adoração dos deuses e a guerra, a oração e a luta.
A República da China foi estabelecida há 13 anos. Derrubamos a monarquia e nos descartamos de uma autocracia. O Japão é ainda uma monarquia e adora seus deuses. Os japoneses dão a seu imperador o título de Tenno (Rei Celestial).
Costumávamo-nos referir ao imperador da China como o Filho do Céu, nos dias em que nos apegávamos às fórmulas teocráticas, apesar da autocracia ter começado a florescer muito tempo antes. O imperador japonês foi deposto há várias centenas de anos pelo Bushi, porém, quando se verificou a Restauração Meiji, há 60 anos, o Tokugawa foi derrubado, e o Rei Celestial restaurado. Assim, o Japão é, ao mesmo tempo, um Estado autocrático e teocrático. Outrora, o imperador romano era também o chefe religioso de seu Estado. Quando Roma caiu e o imperador foi deposto, a cidade perdeu seu poder político. Sua autoridade religiosa foi mantida, contudo, e os povos de todas as nações ainda prestam homenagem ao Papa, em Roma, exatamente como os diversos Estados, na época dos “Anais da Primavera e do Outono”, reverenciavam a dinastia Chou.
Assim, depois da idade da luta contra os animais selvagens, veio a luta contra a natureza e dela emergiu a teocracia. A fase seguinte na história foi a da autocracia, quando os poderosos guerreiros e os líderes políticos arrebataram o poder dos governantes religiosos ou se puseram à testa das igrejas e se proclamaram reis. Assim, evoluiu um período de luta entre os homens. Quando essas lutas entre os homens começaram a tomar o lugar das lutas contra a natureza, o povo compreendeu que a simples dependência do poder da fé religiosa não podia nem proteger a sociedade nem auxiliá-la na guerra e que um Governo esclarecido e uma poderosa força militar eram necessários a fim de competir com outros povos. Os homens têm lutado uns contra os outros, desde o início da história conhecida. A princípio, empregavam tanto o poder da religião como o da autocracia em suas lutas. Mais tarde, quando a teocracia se enfraqueceu e, depois da dissolução do Império Romano, que estava decaindo gradualmente, a autocracia tornou-se mais forte, até que, no reinado de Luiz XIV de França, atingiu o ápice de seu poderio. Luiz XIV costumava dizer que não havia diferença entre o rei e o Estado — “Eu sou o rei, e, portanto, sou o Estado.” Deteve em suas mãos todos os poderes do Estado e exerceu o despotismo sem limites, exatamente como o fizera Chin Shih Hwang, na China(1).
A monarquia absoluta tornava-se cada vez mais terrível até que o povo não pôde mais suportá-la. Foi nessa época que a ciência começava a realizar um progresso firme e a inteligência geral da humanidade também se elevava. Em consequência, surgiu uma nova consciência. O povo viu que a autocracia era alguma coisa que só procurava o poder, açambarcava a propriedade privada para o Estado e para o povo, contribuía para a satisfação dos desejos de apenas um indivíduo e não se importava com os sofrimentos da comunidade. À medida que se tornava insuportável, os povos compreenderam, com clareza cada vez maior, que, já que o sistema era iníquo, deviam resistir-lhe, e essa resistência importava numa revolução. Assim, durante os últimos cem anos, as marés do pensamento revolucionário estavam em estado de fluxo, provocando revoluções democráticas, lutas entre o povo e os reis.
Essa divisão em períodos auxiliar-nos-á a estudar as origens da democracia. Resumindo: o primeiro período foi o da luta entre o homem e a fera, em que 0 homem empregava a força física antes de qualquer espécie de poder. No segundo, o homem lutava contra a natureza e invocava em seu auxílio os poderes divinos. No terceiro, os homens entraram em conflito entre si, Estados contra Estados, raças contra raças, e o poder autocrático era a principal arma. Estamos, agora, no quarto período, das guerras dentro dos Estados, quando os povos lutam contra seus monarcas e reis. A questão, agora, jaz entre o bem e 0 mal, entre o direito e a força, e, como 0 poder do povo aumenta firmemente, podemos denominar esta era a da soberania do povo — a era da democracia. Trata-se de uma nova era. Entramos nela recentemente e derrubamos a autocracia dos velhos tempos.
Será essa mudança uma coisa boa ou má? Quando as massas não eram esclarecidas e dependiam dos reis sagrados e dos sábios virtuosos para guiá-los, a autocracia foi de considerável valia. Antes do aparecimento das autocracias, os homens santos fundaram as religiões, à maneira dos deuses, a fim de conservar os valores sociais. Nessa época, a teocracia prestou grande serviço. Mas, agora, a autocracia e a teocracia são coisas do passado e chegamos à era da democracia, à era do poder do povo. Existem quaisquer razões justas porque nos devamos opôr à autocracia e insistir sobre a democracia? Sim, porque com o rápido avanço da civilização, o povo está desenvolvendo sua inteligência e uma nova consciência de si mesmo, exatamente como nós, quando crianças, queremos que nossos pais nos sustentem, e, quando crescidos, queremos nos tornar independentes, procurar por nós mesmos os meios de subsistência. Mesmo assim, ainda existem intelectuais, hoje em dia, que defendem a autocracia e atacam a democracia. O Japão tem muitos desses intelectuais, bem como a Europa e a América. Muitos velhos sábios chineses ainda são monarquistas, e temos um grupo de velhos funcionários que, ainda hoje, advogam a restauração do imperador e a volta à forma monárquica de governo. Com parte de nossa classe educada apoiando a autocracia e outra parte advogando a democracia, não é de admirar que nosso Governo ainda não se tenha estabilizado. Estamos advogando a implantação de um Governo democrático e, assim, devemos fazer um estudo da democracia como ela existe nos diversos países do mundo.
De 200.000 anos até dez ou mais mil anos atrás, a humanidade viveu sob o regime teocrático, e a teocracia se adaptava bem às necessidades da época. Se se realizar qualquer tentativa no Tibete para substituir o chefe eclesiástico dali por um rei, o povo certamente se revoltará; pois, devido à sua fé no chefe religioso, fizeram do Buda Vivo seu governante, respeitando sua autoridade e determinações. A situação, na Europa, era semelhante, há mil ou mais anos atrás. A cultura chinesa floresceu antes da europeia, de modo que, em lugar da teocracia, tivemos a autocracia. A era da autocracia começou há muito tempo na China. Mas a própria palavra “democracia” — soberania popular — só em tempos recentes foi introduzida na China. Todos vós, que aqui viestes hoje, acreditais na democracia. Aqueles velhos funcionários, que querem restaurar monarquia, com um imperador à sua testa, são naturalmente adversários da democracia e acreditam na autocracia. Qual das duas formas — autocracia ou democracia — são mais adequadas à moderna China? Eis uma pergunta que merece sério estudo. Fundamentalmente, ambas são métodos de administrar o Governo e de tratar os negócios de Estado por todo o povo, porém, assim como as condições políticas variam de época em época, assim também os métodos de Governo devem variar.
A questão essencial é a seguinte: Está a China amadurecida para a democracia? Diz-se que os padrões do povo chinês são demasiado baixos e que não está preparado para ter um Governo popular. Apesar dos Estados Unidos serem um Estado democrático, quando Yuan Shih Kai estava tentando tornar-se imperador, um professor americano, de nome Goodnow(2) veio à China para servir de conselheiro sobre a forma monárquica de Governo, declarando que o povo chinês não era dotado de um pensamento progressivo e que sua cultura estava atrasada em relação à da Europa e da América, de modo que não devia tentar a democracia. Yuan Shih Kai fez bom uso desses argumentos de Goodnow e derrubou a República, tornando-se imperador. Agora, que estamos advogando a democracia para a China, devemos compreender bem claramente o que ela significa. A China, desde o início de sua história, nunca pôs em prática a democracia. Mesmo nos últimos treze anos, não tivemos democracia. Nos últimos 4.000 anos, através de períodos de ordem e de caos, a China nada conheceu além da autocracia. Se pesquisarmos na história se a autocracia foi realmente uma coisa boa para a China, verificaremos que seus efeitos foram ao mesmo tempo vantajosos e desvantajosos. Mas, se basearmos nosso julgamento sobre a inteligência e habilidade do povo chinês, chegaremos à conclusão de que a soberania do povo seria muito mais adequada para nós. Confúcio e Mêncio, há dois mil anos, referiram-se aos direitos do povo. Confúcio declarou: “Quando a Grande Doutrina prevalecer, tudo sob os céus trabalhará para o bem comum.” Ele advogava um mundo livre e fraternal, em que o povo dominasse. Constantemente, referia-se a Yao e Shun, simplesmente porque não tentaram monopolizar o império. Apesar de seu Governo ser autocrático nominalmente, na realidade deram poder ao povo e assim foram muito reverenciados por Confúcio. Mêncio disse: “O que há de mais precioso é o povo; depois vêm os espíritos da terra e os cereais; e, por último, os príncipes.” Também declarou: “Os céus vêem como o povo vê, os céus ouvem como o povo ouve”, e “Soube da punição do tirano Chou(3), porém nunca do assassinato de um soberano.” Ele, em sua época, já verificara que os reis não são absolutamente necessários e que não duram para sempre, de modo que denominou os que traziam felicidade ao povo de santos monarcas, mas, os que eram cruéis e desprovidos de princípios, ele chamou de individualistas, a quem todos deviam se opôr. Assim, a China, há mais de dois milênios, já considerara a ideia da democracia, porém, nessa época não podia pô-la em prática. A democracia era, então, o que os estrangeiros denominam de utopia, um ideal que não podia ser imediatamente realizado.
Em virtude dos estrangeiros terem má impressão dos chineses e de considerá-los no mesmo nível dos selvagens da África ou das regiões dos Mares do Sul, manifestam forte desaprovação quando os chineses lhes falam em democracia. Que direito, pensam eles, tem a China para falar em democracia no mesmo pé de igualdade com a Europa e a América? Esse ponto de vista errôneo provém do fato dos sábios estrangeiros não terem penetrado profundamente na nossa história ou nas condições de nosso país, não sabendo realmente se a China está preparada ou não para a democracia. Até os estudantes chineses, que regressam da Europa ou da América, acabam acreditando nessa teoria de que a China não está preparada para a democracia. Tais pontos de vista são despidos de qualquer base. Quando recorro à história, verifico que a China progredia muito antes da Europa e da América, e, há milhares de anos, já se empenhava na discussão da democracia. As ideias democráticas apareciam, na verdade, apenas em digressões teóricas e não se convertiam em realidade. Agora, quando a Europa e a América fundaram Repúblicas e têm aplicado os princípios democráticos desde 150 anos, nós, cujos antepassados sonhavam com essas coisas, deveríamos certamente acompanhar 0 curso dos acontecimentos mundiais e fazer uso do poder do povo, se esperamos que nosso Estado mantenha uma existência longa e pacífica e que nosso povo goze de felicidade. O surto, porém, da democracia é relativamente recente e muitos Estados ainda são autocráticos. Os que tentaram a democracia experimentaram muitos desapontamentos e fracassos. Enquanto a democracia era discutida, na China, há dois mil anos, ela se tornou fato consumado, nos últimos 150 anos, no Ocidente. Agora, está se propagando rapidamente sobre todo o mundo, levada nas asas do vento.
O primeiro exemplo de uma verdadeira democracia nos tempos modernos foi oferecido pela Inglaterra. Na época, compreendida entre o fim da dinastia Ming e o início da dinastia mandchu na China, verificou-se naquele país uma revolução popular, sob a chefia de Cromwell, que resultou na execução do rei Carlos I. Essa ação provocou horror entre todos os povos da Europa e da América, que nunca haviam visto antes coisa semelhante e que não pensavam que os governantes devessem ser tratados como traidores e rebeldes. O assassínio secreto de príncipes era comum em todos os países, porém, a execução de Carlos I por Cromwell não se realizou em segredo. O rei foi julgado em público e abertamente proclamado culpado de deslealdade ao Estado e ao povo, e, assim sendo, passível da pena de morte. A Europa pensava que o povo inglês defenderia seus direitos e daria grande impulso à democracia. Mas, para surpresa de todos, os ingleses preferiram a autocracia à democracia. Apesar de Carlos I ter sido morto, continuaram a desejar um rei. Dentro de menos de dez anos, verificava-se a restauração da monarquia e Carlos II foi sagrado rei. Isso acontecia exatamente na época em que os mandchus estavam transpondo a Grande Muralha, antes da queda dos Mings, não mais do que há 200 anos. Um pouco mais de 200 anos atrás, a Inglaterra teve um período de governo democrático, porém, este logo entrou em colapso e a autocracia foi reimplantada.
Cem anos mais tarde, ocorria a Revolução Americana, quando as colônias se desligaram da Inglaterra e declararam sua independência, formando o Governo Federal dos Estados Unidos da América. Esse Estado, que existe há 150 anos, foi o primeiro, no mundo moderno, a pôr em prática os princípios da democracia. Dez anos mais tarde, irrompia a Revolução Francesa. A situação, na época da Revolução Francesa, era mais ou menos a seguinte: Desde que Luiz XV se apoderou de todo o poder do Estado e passou a exercer um despotismo absoluto, o povo de França sofreu misérias inenarráveis. Quando seus herdeiros demonstraram uma crueldade e maldade ainda maiores, o povo não pôde mais suportá-las e iniciou uma revolta. Mataram Luiz XVI, exatamente como os ingleses haviam morto Carlos I, depois de julgá-lo em público e proclamar sua deslealdade ao Estado e ao povo. Mas, desta vez, todos os outros Estados da Europa se ergueram para vingar a morte do rei francês, iniciando uma guerra, que durou mais de dez anos, com o resultado que a Revolução falhou e a monarquia foi novamente implantada. Dessa época em diante, todavia, as ideias democráticas passaram a florescer com mais vigor no seio do povo francês.
Todos os que discutem a história da democracia conhecem as ideias do filósofo francês Rousseau, que advogou os direitos populares de uma forma extrema e cujas teorias democráticas geraram a Revolução Francesa. A obra mais importante de Rousseau sobre a democracia foi o Contrato Social. A ideia fundamental dessa obra é a seguinte. O homem vem ao mundo com os direitos de liberdade e igualdade, direitos que lhe foram doados pela natureza, porém, que foram por ele lançados fora. Segundo essa teoria, os direitos soberanos foram dados ao povo pela natureza. Mas, quando estudamos a evolução da história, vemos que a democracia não se originou nos céus, porém é oriunda das condições dos tempos e do movimento dos acontecimentos. Não podemos encontrar fatos na evolução da raça, que confirmem a filosofia de Rousseau, que, consequentemente, é desprovida de base. Os adversários da democracia tomam os argumentos sem base de Rousseau como material para seu ponto de vista, porém, nós, que acreditamos na democracia, não necessitamos começar discussões sobre ela. Os princípios universais baseiam-se primacialmente sobre os fatos, e, depois, sobre teorias. A teoria não precede o fato.
Tomemos, por exemplo, a ciência da tática de infantaria, que se tornou agora um estudo sistemático. Começou essa ciência com certas doutrinas ou com certos fatos? Os militares modernos dizem que deveis entrar numa escola militar e estudar a ciência militar antes que estejais capacitados a lutar por vosso país, o que parece colocar a teoria antes do fato. Mas, quando estudamos o progresso do mundo, encontramos o homem primitivo lutando contra os animais por mais de um milhão de anos antes que se tornasse capaz de eliminar os reptis venenosos e as feras selvagens. Tinham os homens dessa época a seu alcance a ciência militar? Eles poderiam tê-la, e, uma vez que não mantinham registo escrito, não podemos estudá-la. Depois, durante 200 mil anos, ou mais, os homens lutaram uns contra os outros, e países contra países. Uma vez que não existe uma história escrita dessa era, não dispomos de meios para saber por quantas guerras a humanidade atravessou. Ao estudar-se a história chinesa, verificamos que os escritos militares de há 2.000 anos se compunham de treze livros. Esses livros explicam os princípios da guerra conhecidos na época e foi deles que se originou a filosofia militar chinesa. Quando estudamos esses 13 livros, verificamos que a guerra precedeu certamente sua confecção.
A moderna ciência militar é também baseada sobre as experiências militares do passado, juntamente com os progressos realizados incessantemente desde então. Desde a invenção recente da pólvora sem fumaça, a arte da guerra sofreu uma grande transformação. Outrora, quando os soldados viam o inimigo, avançavam contra ele em linha reta, um após outro. Na guerra moderna, as tropas, quando avistam o inimigo, caem imediatamente ao solo para fazer fogo. É o uso dos projetis manufaturados com a pólvora sem fumaça, a verdadeira razão porque nos deitamos ao solo quando fazemos alto? O fato, a experiência precedem o livro, que trata dessa tática, ou o livro precede o fato? A disposição de tropas, que atiram de posição deitada e outros métodos correntes em países estrangeiros, datam da guerra dos boers, na África. Os soldados britânicos, em sua luta contra os boers, marchavam em colunas, enquanto os boers os esperavam deitados no solo. Em consequência, os britânicos sofreram baixas terríveis. A arte de lutar estendido no solo começou com esses boers. Quando emigraram da Holanda para a África, eram apenas 300.000 e tiveram de lutar contra os nativos. Quando as primeiras levas de boers aportaram à África, ficaram em grande desvantagem, pois os nativos lutavam contra eles deitados no solo. Foi, então, que aprenderam os métodos dos nativos. Quando os britânicos lutaram contra os boers tiveram grandes baixas. As tropas britânicas aprenderam então a tática dos boers e, quando regressaram à Inglaterra, a adotaram no Exército. O resto do mundo aprendeu da Inglaterra e, agora, todos os países empregam o novo método em sua ciência militar. Isso mostra claramente que os fatos e a experiência originam a teoria e não o contrário.
A teoria do Contrato Social, de Rousseau, no sentido de que os direitos e os poderes do povo são outorgados pela natureza, está fundamentalmente em conflito com o princípio da evolução histórica. Destarte, os inimigos da democracia empregam o argumento sem base de Rousseau para silenciar os adeptos da democracia. A ideia de Rousseau de que a democracia é naturalmente outorgada é desprovida de base, porém, também não é razoável que seus adversários empreguem uma sua falsa conclusão como argumento contra a democracia. Quando estudamos as verdades do universo, devemos começar por investigar os fatos e não depender simplesmente dos tratados de sábios. Por que todos os povos acolheram com agrado a filosofia de Rousseau apesar da mesma não ser baseada nos fatos? E como foi Rousseau capaz de produzir tal obra? Ele viu o poder do povo erguendo-se numa vaga inundadora e esposou a soberania do povo. Suas propostas democráticas adaptavam-se à psicologia da época, o que fez com que as massas o sagrassem. Assim, apesar de sua teoria da democracia colidir com os princípios do progresso histórico, o espírito da democracia, que já estava se tornando uma realidade em seu dia, fez com que ele fosse acolhido calorosamente, apesar de seus argumentos errôneos. Pode-se, também, acrescentar que a apresentação por Jean Jacques Rousseau de uma ideia original de democracia foi uma das maiores contribuições para o governo em toda a história.
Desde o início da história humana, tem variado inevitavelmente a espécie de poder, que os governos têm empregado, segundo as circunstâncias e tendências da época. Na época em que se reverenciavam os deuses, o poder teocrático florescia. Na época dos príncipes, tinha de ser empregado o poder autocrático. Podemos afirmar que a autocracia na China atingiu seu ápice no reinado de Chin Shih Hwang. Mesmo assim, outros reis ainda tentaram imitá-lo e não importa a soma de poder que a monarquia detinha, o povo a aceitava com satisfação. Mas, atualmente, as correntes da vida do mundo foram canalizadas para a época da democracia e incentiva-nos a estudar a significação da democracia. Não há razoes para nos opormos ao que existe de bom na democracia simplesmente porque alguns tratados, como 0 Contrato Social, de Rousseau, contenham algumas inconsistências com seus verdadeiros princípios. Nem devemos pensar que a democracia seja impraticável porque depois da Revolução de Cromwell, a monarquia foi restaurada na Inglaterra ou porque a revolução na França se tenha estendido durante um tempo muito longo. A Revolução Francesa necessitou de 80 anos para ser coroada de êxito. A Revolução Americana atingiu seus objetivos em oito anos, porém, a Inglaterra, depois de 200 anos de revolução, ainda tem um rei. Mas, se observarmos o firme progresso do mundo, sob os diversos aspectos, nos asseguraremos de que o dia da democracia chegou, e que, não importa quantos desapontamentos e derrotas a democracia venha a sofrer, ela se manterá sobre a terra durante um longo tempo por vir.
Há 30 anos passados, nós, companheiros de revolução, resolvemos firmemente que, se quiséssemos uma China forte e que nossa revolução fosse efetiva, deveríamos esposar a causa da democracia. Mas, naqueles dias, o simples fato de apresentar tal sugestão provocou oposição não somente dos chineses, mas também da parte dos estrangeiros. Quando o movimento revolucionário chinês estava em seu estágio inicial, o mundo ainda tinha alguns déspotas poderosos, que reuniam em torno de uma pessoa o poder supremo do Estado, tal como 0 Tzar da Rússia, e outros déspotas que colocaram poderosos Exércitos e Marinhas sob um único comando, tais como os imperadores da Alemanha e da Áustria. Com monarcas tão poderosos na Europa, como poderia a Ásia possivelmente aspirar à democracia? Foi fácil a Yuan Shih Kai dar ímpeto ao movimento monárquico e a Chang Hsun(4) tentar a restauração. Agora, porém, os poderosos governantes da Rússia e da Alemanha foram derrubados de seus tronos, enquanto esses dois países se converteram em Repúblicas, o que vem mostrar que o mundo inaugurou uma era de democracia. Os chineses, que se opunham à democracia, costumavam perguntar que força existia em nosso Partido Revolucionário capaz de derrubar o imperador mandchu. Mas, em 1911, ele caiu com um empurrão, como outra vítima da maré mundial. Essa tendência mundial assemelha-se ao rio Yangtze, que dá voltas e zigue-zagues, algumas vezes voltando-se para o Norte e outras para o Sul, mas acaba fluindo para Leste e nada pode detê-lo. Assim também, a vida da humanidade tem fluído da teocracia para a autocracia e desta para a democracia. Não há maneiras de deter a corrente. Se tentarmos fazê-lo, mesmo que disponhamos do poder de Yuan Shih Kai ou de um Exército bárbaro e cruel como o de Chang Hsun, acabaremos fracassando em nosso intento. Os déspotas militares do Norte estão se opondo agora às tendências mundiais, enquanto nós, do Sul, adeptos da democracia, os acompanhamos. Apesar do governo do Sul ser fraco, apesar de nosso Exército ser inferior aos do Norte em treinamento, abastecimentos e armamentos, mesmo assim seguimos a corrente da época, apesar de contratempos temporários, e eventualmente conseguiremos alcançar nosso objetivo, com resultados duradouros. Uma vez que o Norte está lutando contra a corrente e subvertendo todos os princípios de direito, não importa qual seja sua força atual ou a soma de êxito que venha a obter pela sorte no momento, acabará fracassando e nunca será capaz de se reerguer.
Uma revolução já está agitando a teocrática Mongólia para derrubar o Buda Vivo, tendo conseguido erradicar a teocracia. A teocracia no Tibete também está fadada a desaparecer, derrubada pelo povo. Na Mongólia e no Tibete, vemos os últimos dias da teocracia. Quando o dia de seu aparecimento vier, não importa quão árduas sejam as lutas para mantê-la, ela não poderá continuar a existir. A autocracia na Europa está em declínio. A Grã-Bretanha usa um partido político de preferência a um rei para governar o país. Pode ser considerada uma República com um rei. De tudo isso, depreende-se que não somente a teocracia, mas também a autocracia, logo se desmoronará ante a avassaladora corrente mundial. A época atual da democracia é uma sequência das ideias democráticas prevalecentes na época da Grécia e de Roma e, conquanto hajam decorrido apenas 150 anos desde os inícios da democracia, seu futuro se tornará cada vez mais brilhante.
Assim, em nossa Revolução, escolhemos a democracia, em primeiro lugar, para que pudéssemos acompanhar as tendências mundiais, e, em segundo lugar, para que pudéssemos reduzir o período da guerra civil. Desde os tempos antigos, na China, todos os homens de grande ambição queriam ser reis. Assim, quando Liu Pang (o fundador da dinastia Han) viu Chin Shih Hwang expulso do trono, declarou: “Eis a estrada para os homens de valor!” E Hsiang Yu (rival de Liu Pang) também declarou: “Deixem-me usurpar seu lugar!” De uma geração a outra, não tem havido fim a essa cobiça inescrupulosa pelo poder. Quando deflagrei a Revolução, seis ou sete de cada dez homens, que nos davam seu apoio, nutriam ideias imperialistas, porem, depois que fizemos saber que nossos princípios revolucionários visavam não apenas a derrubada da dinastia mandchu, mas também o estabelecimento de uma República, esse grupo desembaraçou-se gradualmente de suas ambições egoístas. Mas existem ainda uns poucos entre eles que, mesmo neste 13.° ano da República, se apegam à velha esperança de se tornarem reis, e eis a razão porque, mesmo entre nossos adeptos, existem grupos que lutam uns contra os outros. Quando primeiro proclamamos nossa Revolução, tomamos os direitos do povo como a base sobre a qual assentaríamos nossa República, com a esperança de que isso prevenisse a rivalidade em torno do poder imperial. Mas, infelizmente, há pessoas que são estúpidas e irregeneráveis. Nada podeis fazer com elas.
A Rebelião de Taiping constituiu uma advertência para nós. Quando Hung Hsiu Chuan ergueu, pela primeira vez, o estandarte da revolta no Kwangsi, conquistou o Hunan, o Hupeh, o Kiangsi e Anhwei, e estabeleceu sua capital em Nanquim, mais da metade do império mandchu caíra em seu poder. Por que veio, então, a Rebelião de Taiping a fracassar? Existem várias razoes. Alguns dizem que a principal foi os Taipings não conhecerem a diplomacia, pois quando a Grã-Bretanha, nessa ocasião, enviou seu ministro Pottinger a Nanquim para negociar um tratado com Hung Hsiu Chuan, foi-lhe permitido avistar-se somente com o Príncipe Oriental, Yang Hsiu Ching, e não com o “Rei Celestial”, Hung Hsiu Chuan. Para se avistar com Hung, Pottinger foi obrigado a ajoelhar-se, o que ele se recusou a fazer. Depois, dirigiu-se a Peiping, onde concluiu um tratado com o governo mandchu. Mais tarde, enviou tropas sob o comando de Gordon para atacar Soochow e, consequentemente, Hung Hsiu Chuan foi derrotado. Daí dizer-se que seu fracasso foi devido à sua ignorância da diplomacia. Poderia ter sido uma das razoes. Outros dizem que Hung Hsiu Chuan fracassou porque, quando chegou a Nanquim, não se aproveitou da oportunidade para marchar sobre Pequim. Esta é também uma das razões.
Como verifico, porém, no estudo da história, essas duas razoes parecem-me ter desempenhado papel bem insignificante no fracasso de Hsiu Chuan. A principal razão foi que a luta pelo trono irrompeu logo que os Taipings chegaram a Nanquim. Fecharam as portas da cidade e começaram a conspirar para assassinarem mutuamente. Primeiro, Yang Hsiu Ching e Hung Hsiu Chan lutaram pelo poder. Quando o último se tornou rei, o primeiro também queria ser coroado. Yang Hsiu Ching dispunha de 60 ou 70 mil soldados treinados, do Exército original, que trouxera a Nanquim, porém, quando irromperam
as dissensões internas, foi morto por Wei Chang Hwei, e seu Exército foi destruído. Depois, quando Wei Chang Hwei começou a mostrar suas tendências para a dominação e desafiou a autoridade de Hung Hsiu Chuan, foi morto pelos demais. Nessa época, Shih Ta Kai teve conhecimento das ocorrências em Nanquim e dirigiu-se apressadamente do Kiangsi para aquela cidade, a fim de oferecer seus préstimos como mediador. Constatou que não havia possibilidade de solucionar os dissídios, e ele próprio veio a ficar sob suspeita de alimentar pretensões ao trono. Assim, fugiu de Nanquim e levou seu Exército para o Szechwan onde, pouco tempo depois, foi desbaratado pelas tropas mandchus. Simplesmente, devido à rivalidade existente entre Hung e Yang pelo trono imperial, os quatro exércitos de Hung Hsiu Chuan, Yang Hsiu Ching, Wei Chang Hwei e Shih Ta Kai, e as principais unidades das forças de Taiping foram aniquilados, e o poder dos Taipings declinou rapidamente. Assim, o fracasso da causa dos Taiping foi devida, fundamentalmente, ao erro de Hung Hsiu Chuan em querer ser rei. Hung Hsiu Chuan, em sua revolução, não tinha uma ideia do que fosse a democracia, assim, logo no começo, conferiu o título de “príncipe” a cinco personalidades. Depois de vir a Nanquim e de assistir à luta entre Yang Hsiu Ching e Wei Chang Hwei, decidiu não criar mais príncipes. Mais tarde, Li Hsiu Cheng e Chen Yu Cheng tanto se distinguiram, que se tornou impossível não lhes conferir títulos. Mas Hung Hsiu Chuan, temendo que isso os tornasse infiéis à sua causa, criaram 30 ou 40 outros príncipes ao mesmo tempo, esperando que todos eles, dispondo da mesma graduação, serviriam como contrapesos uns aos outros. Mas, depois, Li Hsiu Cheng e Chen Yu Cheng e outros viram-se incapacitados em dirigir os príncipes, e, assim Hung Hsiu Chuan veio a fracassar. O colapso da rebelião pode ser atribuído inteiramente à ambição que todos os líderes alimentavam pelo trono.
Por que Chen Chung Ming chefiou uma revolta no ano passado contra nós em Cantão? Muitos dizem que ele queria apenas apoderar-se do Kwantung e do Kwangsi, porém, esse ponto de vista não corresponde à verdade. Antes de Chen Chiung Ming ter deflagrado sua revolta, propus que fosse enviada ao Norte uma expedição punitiva e esforcei-me para persuadi-lo da seriedade de nosso plano, porém ele sempre se opunha obstinadamente. Mais tarde, pensei que, talvez, como estivesse lutando pela posse das duas províncias, nossa expedição ao Norte pudesse parecer-lhe interferir em seu domínio. Assim sendo, na última de nossas conferências, disse-lhe com toda a franqueza:
— Se nossa expedição punitiva contra o Norte for coroada de êxito, nosso governo se transferirá ou para Wuhan ou para Nanquim e, certamente, não voltará para aqui, caso em que lhe confiaremos as duas províncias de Kwang e lhe pediremos para garantir nossa retaguarda. Se a expedição ao Norte fracassar, não estaremos em situação para regressar para cá e, nas relações diplomáticas que mantiver com o Governo do Norte, será certamente capaz de preservar sua esfera de influência. Mesmo se colocar seu destino ao lado do Norte, nós não o incomodaremos nem o criticaremos.
Ele pareceu ficar perplexo, incapacitado de dar uma resposta, o que veio provar que suas ambições não se limitavam às duas províncias de Kwang. Depois, quando nossas forças expedicionárias penetraram em Kanchowfu (no Kwangsi), deflagrou sua rebelião contra nós. Por que fez isso justamente nessa ocasião? Porque queria tornar-se rei e tinha de destruir as tropas revolucionárias, contrárias à entronização de reis, antes que pudesse mesmo construir os alicerces para seu esquema.
Há outra evidência, que prova a cobiça de Chen Chiung Ming pelo trono. Depois da Revolução de 1911, ele narrava constantemente ao povo o sonho que costumava ter em sua juventude, em que abarcava o sol com uma mão e a lua com outra. Num de seus poemas, há a seguinte linha: “Se eu não conseguir abarcar o sol e a lua, não serei fiel à minha mocidade”, ao que acrescentou, em notas, a história de seu sonho que costumava narrar a todos. O nome que ele adotou significa “Claro e Brilhante”, e também correspondia a seu sonho. E olhai os homens sob seu comando — Yin Chu, Hung Chao Lin, Yang Kun Ju, Chen Chiung Kwang e os demais componentes do grupo. Não havia um só membro do Partido Revolucionário entre eles, exceto Teng Keng, que foi secretamente executado há muito tempo. Chen Chiung Ming foi um dos elementos que provocaram a Revolução, porque aspirava ao trono, e sua ambição ainda não morreu. Além dele, havia outros, que costumavam acalentar esperanças ao trono. Não sei qual é sua atitude atualmente, neste décimo terceiro ano da República, e não tenho tempo de verificar.
Hoje, encontro-me aqui, falando sobre a soberania do povo e quero que todos vós compreendais claramente o que realmente quero dizer. A menos que entendais claramente, nunca poderemos nos desembaraçar das ambições imperiais entre nós, ambições que farão com que até camaradas numa causa e cidadãos do mesmo país lutem uns contra os outros. Todo o país, ano após ano, será despedaçado pela luta civil e não haverá um fim para os sofrimentos do povo. Foi porque queria afastar de nós tais calamidades, que levantei o estandarte da democracia logo que a Revolução começou e determinei que estabelecêssemos uma República. Quando formos uma verdadeira República, quem será o rei? O povo, nossos 400 milhões de compatriotas serão o rei. Isso evitará que os indivíduos lutem pelo poder e reduzirá os males da guerra na China. A história chinesa mostra que todas as mudanças de dinastias importaram em guerras. Quando o povo se opunha à tirania de Chin Shih Hwang, e Chen Che e Wu Kwang desencadearam uma revolta a que todas as províncias aderiram, houve o começo de uma revolução popular. Mas, então, Liu Pang e Hsiang Yu entraram na liça e foi iniciada a luta entre os Estados de Chu e de Han. Pelo que lutavam Liu Pang e Hsiang Yu? Pelo trono. E das dinastias de Han e de Tang em diante, nenhuma delas ficou isenta de competições pelo poder imperial. Na história chinesa, um período de paz sempre foi seguido por um período de desordem, desordem provocada pelas rivalidades motivadas pelas ambições dinásticas. Os países estrangeiros têm conhecido as guerras pela religião e as guerras pela liberdade, porém, a China, em sua história multimilenar, conheceu apenas uma espécie de guerra — a guerra pelo trono. A fim de evitar outras guerras civis, nós, logo que desencadeamos nossa Revolução, proclamamos que queríamos uma República e não reis. Agora, a República foi estabelecida, porém, ainda temos homens, como Chen Chiung Ming, no Sul, Tsao Kun, no Norte, Lu Yung Ting, no Kwangsi, e não sei quantos outros, que estão conspirando para obter o trono. Quando as velhas dinastias da China mudavam seus títulos, os homens que dispunham do maior poderio militar procuravam ser reis e os que tinham quantidade menor de soldados procuravam ser príncipes e marqueses. O fato dos militaristas de hoje não aspirarem à posição de príncipes ou de marqueses mostra que estamos, de qualquer modo, fazendo algum progresso desde a guerra civil!
9 de Março de 1924.
O lema da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. — As diferentes atitudes dos povos do Ocidente e da China para com a liberdade. — A paixão pela liberdade, no Ocidente, comparada com a paixão pela riqueza, na China. — A luta no Ocidente pela liberdade contra as opressões despóticas do feudalismo e da autocracia. — A autocracia da China não afetou seriamente o povo. — A realização da liberdade pessoal no Ocidente. — Excessos anteriores e limitações posteriores. — A liberdade pessoal não é considerada na China um direito inconcusso. — A doutrina ocidental da liberdade fora de lugar na China e geralmente mal aplicada. — Abuso de liberdade nas escolas e no Partido. — O objetivo da Revolução Chinesa deveria ser a unidade e a liberdade para a nação. — Necessidade do sacrifício individual.
Os publicistas estrangeiros sempre associaram o vocábulo “democracia” com a palavra “liberdade” e muitos de seus livros e ensaios discutem ambas as questões, lado a lado. Os povos da Europa e da América só lutaram pela liberdade nos últimos duzentos ou trezentos anos e, em consequência, a democracia está começando a florescer. O lema da Revolução Francesa foi Liberdade, Igualdade, Fraternidade, exatamente como o lema da nossa Revolução é Min Tsu, Min Chuan, Min Sheng (O Nacionalismo do Povo, a Soberania do Povo, a Subsistência do Povo). Podemos dizer que liberdade, igualdade e fraternidade são baseadas na soberania do povo ou que a soberania do povo se desenvolve desses três princípios. Enquanto discutimos a democracia, devemos considerar o significado do lema da Revolução Francesa.
Quando as ideias revolucionárias se propagaram pelo Oriente, a palavra “liberdade” também se propagou. Muitos estudantes e partidários devotados do novo movimento procuraram explicar, em detalhe, seu significado, como sendo algo de importância vital. O movimento em prol da liberdade desempenhou parte importante na história da Europa nos últimos duzentos ou trezentos anos e a maioria das guerras europeias foram travadas pela liberdade. Assim, os publicistas do Ocidente consideram a liberdade como o atributo mais significativo e muitos povos do Ocidente empenharam-se num estudo proveitoso de seu significado. Mas, desde que a palavra foi trazida u China, apenas poucos intelectuais tiveram tempo de estudá-la e compreendê-la. Se tivéssemos de nos dirigir ao povo comum da China, nas aldeias ou nas ruas, e falar-lhe sobre a “liberdade”, ele não teria nenhuma ideia de seu significado. Assim, podemos dizer que os chineses ainda não se aperceberam do significado do vocábulo. A própria nova juventude e os estudantes que estiveram no exterior, aqueles que prestam alguma atenção aos negócios políticos do Ocidente e os que constantemente ouvem falar de “liberdade” ou encontraram a palavra nos livros, têm concepção muito nebulosa sobre seu significado. Não é de admirar que os estrangeiros critiquem os chineses, declarando sua civilização inferior e seu pensamento imaturo e que não tem ideia do que seja liberdade, não dispõem de nenhuma palavra para designá-la, e, ao mesmo tempo, são desunidos como um lençol de areia movediça.
Essas duas críticas são absolutamente contraditórias. Que querem os estrangeiros dizer com a comparação de que a China é um lençol de areia movediça? Simplesmente que toda a pessoa age como quer, permitindo-se que a liberdade individual se estenda a todas as fases da vida, e, daí, não passar a China de uma porção de partículas de grãos de areia separados. Tomai um punhado de areia. Não importa quanto seja, as partículas escaparão sem qualquer tendência para a coesão — eis o que é a areia solta. Se lhe acrescentarmos, porém, cimento, endurecerá como uma rocha, em que, todavia, a areia não terá liberdade de se mover. Quando tomamos conio comparação a areia e a rocha, vimos claramente que a rocha era originariamente composta de partículas de areia e perdeu seu poder de locomover-se livremente. A liberdade, para colocar a questão em termos simples, importa no desembaraço de se locomover dentro de um grupo organizado. Devido ao fato da China não ter uma palavra para designar essa ideia, os chineses sentem-se perplexos ao apreciá-la. Temos uma frase que sugere a liberdade — “correr velozmente sem freios”, porém, essa expressão equivale à de “areia solta” — excessiva liberdade para o indivíduo. Assim, os estrangeiros que nos criticam, dizendo, por um lado, que não temos força para nos unir, somos areia solta e partículas livres, de outro, asseverando, que não percebemos o significado de “liberdade” — não compreendem que é a liberdade de todos que nos transforma num lençol de areia solta e que, se todos se unissem num forte bloco, não poderiam assemelhar-se à areia solta? Esses críticos estão “apontando suas lanças para suas próprias couraças.”
Nos últimos dois ou três séculos, os países estrangeiros gastaram soma enorme de energia na luta pela liberdade.
Será a liberdade realmente uma coisa boa? Que é a liberdade? Não penso que o povo da China tenha a menor concepção do que essa “liberdade”, pela qual ocidentais dizem que estão lutando, signifique. Em suas guerras, os ocidentais erguem ditirambos à liberdade, tornando-a sagrada. Chegam até a ter como grito de batalha o seguinte: “Dai-me a liberdade ou a morte”. Os estudantes chineses, ao traduzirem as teorias do Ocidente, introduziram essas palavras na China. Eles sustentam a liberdade e mostram-se determinados a lutar por ela. Em seus primeiros entusiasmos, quase rivalizam com os ocidentais de épocas passadas. A massa do povo, porém, na China, não compreende o significado da liberdade. Ela deve compreender que a liberdade se desenvolve à medida que o poder do povo se desenvolve. Assim, ao falar hoje sobre democracia, não posso deixar de me referir, em primeiro lugar, à liberdade. Devemos compreender que a Europa e a América derramaram muito sangue e sacrificaram muitas vidas na luta pela liberdade. Como vos disse na última conferência, estamos agora na era da democracia. A democracia existe há mais de um século no Ocidente, porém, historicamente, ela acompanha a luta pela liberdade. A vida foi, em primeiro lugar, sacrificada para a consecução da liberdade. O fruto da liberdade foi a democracia. Naqueles dias, os líderes esclarecidos da Europa e da América ergueram o estandarte da liberdade, exatamente como nós, em nossa Revolução, erguemos o estandarte dos Três Princípios do Povo. De tudo isso, depreende-se que as guerras no Ocidente foram travadas, em primeiro lugar, pela liberdade, e, quando se conseguiu a liberdade, seus resultados foram denominados de democracia pelos pensadores. O termo “democracia” provém de um velho vocábulo grego. Mesmo agora, os ocidentais não se mostram muito interessados no termo “democracia” e pensam dele, mais ou menos, como de um termo técnico da ciência política. Está longe de ser a questão de vida e morte que a liberdade tem sido. A democracia teve suas origens nos tempos de Roma e da Grécia. O governo era, então, uma República controlada pela nobreza e havia um vocábulo que designava a soberania do povo. Mais tarde, depois da decadência de Roma e da Grécia, a palavra caiu no esquecimento. As guerras pela liberdade, nos últimos dois séculos, trouxeram-na novamente à luz e, nas últimas décadas, tem andado nos lábios de muita gente. Grande número de chineses a adotaram e falam sobre ela.
Nas guerras modernas da Europa, porém, o objetivo proclamado tem sido mais a liberdade do que a democracia. A liberdade era uma palavra que todos na Europa podiam compreender facilmente. A reação dos europeus à palavra “liberdade” é semelhante à reação dos chineses, hoje, à expressão “fazer uma fortuna”, que é tão apreciada na China. Se disserdes aos chineses que desejais que lutem pela liberdade, eles não vos compreenderão e não abraçarão vossa causa. Mas, se os convidardes a fazer uma fortuna, multidões vos acompanharão. A liberdade tem sido o grito de batalha nas guerras europeias, pois os europeus percebem o significado do vocábulo e mostram-se dispostos a lutar e a se sacrificar por ela. Todos adoram a liberdade. Por que os europeus apreciam esta palavra enquanto os chineses não lhe prestam atenção, preferindo a expressão “fazer uma fortuna”? Existem muitas causas, que devemos estudar cuidadosamente a fim de apreciá-las. Os chineses preferem essa expressão, porque a China está em bancarrota e seu povo é pobre. O que aflige mais o povo é a pobreza, e em virtude da expressão “fazer uma fortuna” ser a única maneira que designa o alívio do pauperismo, ela é, em toda a China, apreciada. A emancipação do pauperismo significa a libertação do sofrimento, “a emancipação da miséria e da desgraça.” Quando o povo, que sofre a miséria do pauperismo, ouve de repente alguém falar sobre o enriquecimento e a libertação da desgraça, naturalmente adere e arrisca suas vidas na luta pela fortuna. Os ocidentais, nos últimos cem ou duzentos anos, responderam entusiasticamente, quando conclamados à luta pela “liberdade”, exatamente como os chineses, hoje, reagem diante da “fortuna”.
Os povos do Ocidente procuravam a liberdade, devido aos extremos a que chegara a autocracia. Estavam num estágio de civilização correspondente ao do fim da dinastia Chou e ao período dos Estados coordenados na China, mais ou menos na época do Império Romano. Contemporaneamente com as dinastias Chou, Chin e Han, Roma procedia à unificação da Europa. A princípio, Roma estabeleceu uma República, que, mais tarde, porém, se converteu numa monarquia. Depois da queda do Império Romano, surgiram, simultaneamente, na Europa, vários Estados, exatamente como o desmoronamento da dinastia Chou foi acompanhado do estabelecimento dos Estados coordenados. Assim, muitos sábios compararam o conflito dos “Sete Chefes”, ocorrido no fim da dinastia Chou, com a situação criada com a queda de Roma. Depois da fragmentação do Império Romano em pequenos Estados, surgiu o sistema feudal. Os chefes mais fortes tomaram-se reis e príncipes. Os menos fortes, marqueses. E ainda os menos fortes, condes, viscondes e barões. Todos detinham um poder autocrático e todo o sistema de governo era muito mais despótico do que o regime feudal durante a dinastia Chou, na China. Não podemos imaginar hoje o que o povo da Europa sofreu sob o sistema feudal. Era pior do que tudo o que os chineses sofreram sob a autocracia. Essa é a razão: a dinastia Chin, ao impor sua autocracia diretamente sobre o povo, fazia um sacrifício humano de quem quer que atacasse ou criticasse o governo e executava duas pessoas apenas por manterem uma conversação. Logo depois, a dinastia precipitou-se na ruína. Assim, as dinastias e governos, que sucederam à dinastia Chin, adotaram política muito mais liberal para com o povo. Além do pagamento do tributo regular em cereais, o povo não mantinha quase relações com os funcionários do governo. A tirania europeia, de uma maneira ou de outra, fazia-se sentir diretamente sobre o povo. Como essa situação perdurou durante muito tempo e o despotismo se desenvolvia cada vez mais sistematicamente, as condições tornaram-se piores do que qualquer coisa que tivéssemos jamais experimentado na China. Assim, os europeus, há duzentos anos, padeciam sob o jugo doloroso da autocracia, exatamente como os chineses atualmente padecem sob o jugo do pauperismo. Os europeus, depois desse longo período de tirania cruel, sentiram profundamente a desgraça, que a falta de liberdade acarretava. A única maneira que lhes restava para se desembaraçarem de sua miséria era, portanto, lutar pela liberdade, e, quando se falava em liberdade, reagiam entusiasticamente.
Depois da destruição do antigo sistema feudal da China, a pompa majestosa da autocracia mal afetou o povo. Desde a dinastia Chin. o objetivo primacial dos imperadores chineses foi proteger seus tronos a fim de que pudessem continuar a manter seu império nas mãos de suas famílias e que seus herdeiros pudessem reinar em paz para sempre. Assim, quaisquer atividades do povo, que parecessem fazer periclitar o trono, eram reprimidas da maneira mais drástica possível. Se alguém se metia numa rebelião, não somente o chefe, mas seus parentes de nove graus eram punidos, empregando-se as mais severas medidas para prevenir uma revolução popular. Esses monarcas absolutos queriam simplesmente manter a perpetualidade de seus tronos. Por outras palavras, enquanto o povo não cometesse qualquer ato ofensivo ao trono, podia fazer o que quisesse, sem que houvesse qualquer interferência por parte do Governo. Assim, desde a dinastia Chin, os imperadores apenas cuidavam de seu próprio poder real e muito pouco das vidas do povo. Quanto à felicidade do povo, nem mesmo figurava em seus pensamentos. A República já está em seu 13.° ano de existência. Devido ao fato de nosso Governo ser desorganizado e não termos ainda tempo para estabelecer um bom Governo, não se prestou ainda atenção às relações entre o povo e o Estado. Quais eram as condições sob a dinastia mandchu? Quais as relações existentes entre o povo e o imperador mandchu antes de 1911?
Durante a dinastia mandchu, cada província era governada por um vice-rei ou governador, sob cuja dependência ficavam os taotai e prefeitos, e, na escala inferior, vários magistrados e subordinados. O povo mantinha um grau mínimo de relações diretas com o imperador, afora o pagamento do tributo anual em cereais, e nada mais. Consequentemente, a consciência política do povo era muito fraca. O povo não se importava quem fosse o imperador. Assim que pagava seu tributo em cereais, considerava cumprido seu dever de cidadão. Os imperadores apenas se importavam em receber esse tributo e nada mais os interessava, permitindo que o povo vivesse e morresse como quisesse. Podemos ver que o povo chinês não estava diretamente sujeito à opressão da autocracia. Seus sofrimentos tinham causa indireta. Devido ao fato de nosso Estado ter sido fraco, caímos sob a dominação política e econômica dos países estrangeiros e não fomos capazes de resistir. Agora, nossa riqueza está exaurida e nosso povo na miséria, sofrendo a pobreza motivada por uma tirania indireta.
O povo chinês, portanto, nutria muito poucos ressentimentos contra seus imperadores. Por outro lado, a autocracia, na Europa, era bem diferente da existente na China. O despotismo, na Europa, desde a queda de Roma, até duzentos ou trezentos anos atrás, desenvolvera-se rapidamente, e o povo sofria cada vez mais a dominação de um jugo insuportável. Muitas espécies de liberdade eram-lhe negadas, principalmente a liberdade de pensamento, a liberdade de opinião e a liberdade de movimento. Essas restrições são, agora, coisas do passado, na Europa, e não podemos hoje ver as condições que então prevaleciam. Ainda dispomos, porém, uma maneira de ilustrar a restrição à liberdade de movimento. Conhecemos algumas das restrições que os emigrantes chineses têm de suportar nas possessões holandesas e francesas da Malásia. Tomemos Java, por exemplo, que foi outrora uma dependência chinesa e que pagava tributo à China, porém, agora, é colônia da Holanda. Desde que os holandeses se apoderaram da ilha, todo o homem de negócios, estudante ou trabalhador chinês, que vai à Java, deve, logo que o vapor atraca, sofrer um exame rigoroso por parte da polícia javanesa. O cidadão chinês é conduzido a uma pequena sala, onde é trancado. Tem de se despir para ser examinado, da cabeça aos pés, por um médico, que lhe extrai as medidas antropométricas e as impressões digitais, antes que possa se locomover no país. Mesmo depois disso, não importa para onde vá, tem de registar seu nome, sendo obrigado a tirar um salvo-conduto para viajar de um lugar para outro. Depois das nove horas da noite, esse passe não é suficiente. O chinês é obrigado a possuir um passe noturno e a andar munido de uma lanterna. Este é o tratamento a que os emigrantes chineses são submetidos pelo Governo holandês de Java. Tais violações da liberdade pessoal de movimento são certamente herança dos velhos tempos autocráticos da Europa, perpetradas pelos holandeses contra os chineses. Elas sugerem-nos o que era a velha autocracia europeia. Existem muitas outras espécies de restrições à liberdade: à liberdade mercantil, à liberdade de trabalho, à liberdade de crença, etc. Tomemos o caso da liberdade de crença. Quando os povos, que vivem em determinado lugar, são forçados a acreditar numa determinada religião, quer queiram ou não, a situação torna-se difícil de suportar. Os europeus, na verdade, sofreram os martírios das “águas profundas e do fogo escaldante”, decorrentes da negação da liberdade. Assim, todas as vezes que sabiam de alguém que dirigia a luta pela liberdade, rejubilavam-se e aderiam à causa. Assim teve início a ideia revolucionária na Europa.
As revoluções, na Europa, eram lutas pela liberdade. Pela causa da liberdade, o povo derramou quantidade ilimitada de sangue e sacrificou inúmeras vidas e lares. Não é de se admirar que, quando a liberdade foi conquistada, todos a aceitassem como uma coisa sagrada e, mesmo hoje, ainda a adoram. Essa concepção da liberdade foi recentemente introduzida na China, e certo grupo de sábios tornou-se seu ardente advogado. Em consequência, muitos já foram inflamados com a ideia da luta pela liberdade na China. Hoje, estamos discutindo a democracia. A teoria da democracia proveio da Europa e da América, e todos nós devemos compreender claramente o que ela implica. Devemos também compreender o que a ideia a fim de liberdade implica. Os europeus sofreram, outrora, uma escravidão até o ponto de não mais poderem suportá-la, e milhões deles tinham um só pensamento, uma só vontade: lutar pela liberdade. Quando conquistaram a liberdade, desenvolveu-se a democracia. Assim, se vamos discutir a democracia, devemos, em primeiro lugar, compreender a história da luta pela liberdade.
Como o fermento revolucionário do Ocidente se propagou ultimamente à China, os estudantes jovens e os sábios sinceros erguerem-se para proclamar a liberdade. Pensam eles que, devido ao fato das revoluções europeias, como a Revolução Francesa, terem sido lutas pela liberdade, nós, também, devemos lutar pela liberdade. Isso nada mais é do que “dizer o que os outros dizem.” Eles não se dedicaram ao estudo da democracia ou da liberdade e não penetraram ainda em seu sentido. Há um profundo significado na proposta de nosso Partido Revolucionário, no sentido de que os Três Princípios do Povo, mais do que a luta pela liberdade, deva constituir a base de nossa Revolução. O lema da Revolução Francesa era Liberdade; o lema da Revolução Americana: Independência; o lema de nossa Revolução são os “Três Princípios do Povo”. Dispendemos muito tempo e esforços antes de decidirmos a adoção desse lema. Não estamos simplesmente imitando os outros. Porque afirmamos que a advocacia da liberdade pela nossa juventude não é acertada, enquanto que 0 grito de liberdade dos europeus era adequado? Já expliquei os motivos. Quando propomos um objetivo para a luta, deve ele constituir alívio de algum sofrimento que afeta profundamente 0 povo, se quisermos que este tome parte ativa e sincera no movimento. Os povos da Europa sofreram tão amargamente com 0 despotismo que, logo que a bandeira da liberdade foi desfraldada, milhões deles se congregaram em torno dela. Se, nós, na China, onde o povo não sofreu tanto com o despotismo, adotássemos o grito da liberdade, ninguém nos prestaria atenção. Mas, se propormos o enriquecimento, todo o povo responderá ao chamado. Nossos Três Princípios do Povo assemelham-se em muitos pontos, a uma teoria de aquisição da riqueza. Devemos considerar isso em nossos espíritos e interpretar cuidadosamente antes que possamos apreciar suas consequências. Por que não falamos diretamente sobre a aquisição de riqueza? Porque a aquisição de riqueza não abrange todo o conteúdo dos Três Princípios, porém, estes incluem a aquisição de riqueza. O comunismo, que a Rússia pôs em prática logo no início de sua Revolução, assemelha-se a esse processo de aquisição de riqueza. Trata-se de uma política simples e direta de aquisição de riqueza. A política de nosso Partido Revolucionário tem mais do que um objetivo, assim “a aquisição de riqueza” não pode consubstanciá-lo. É mesmo mais difícil para a “liberdade” consubstanciá-lo.
Os modernos pensadores europeus, que observam, a China, dizem que nossa civilização é tão atrasada e nossa consciência política tão fraca que não podemos mesmo compreender a liberdade. “Nós, europeus”, declaram eles, “lutamos e nos sacrificamos pela liberdade há cem ou duzentos anos e ninguém sabe quantas ações espantosas levamos a efeito. Mas os chineses ainda não sabem o que ela significa. Isso mostra que o pensamento político de nós, europeus, é muito superior ao pensamento político dos chineses.” Pelo fato de não falarmos em liberdade, eles dizem que somos pobres de ideias políticas. Não penso que esse argumento tenha base. Se os europeus apreciam tanto a liberdade, por que chamam os chineses de um “lençol de areia solta”? Quando os europeus, estavam lutando pela liberdade, consideravam naturalmente a liberdade como coisa sagrada, porém, desde que a conquistaram, atingindo seu objetivo, sua concepção de liberdade tornou-se provavelmente mais fraca. Se a bandeira da liberdade tivesse de ser novamente desfraldada hoje em dia, não penso que despertasse 0 mesmo entusiasmo que antes. Além do mais, as lutas pela liberdade foram o método europeu da revolução há dois ou três séculos atrás e não poderiam repetir-se hoje. Tomemos a figura da “areia solta”. Qual é sua principal característica? Sua absoluta liberdade, sem o que não pode existir tal coisa como a areia solta. Quando a democracia europeia estava despontando, os europeus ainda falavam em luta pela liberdade. Quando atingiram seu objetivo começaram todos a estender os limites de sua liberdade individual e logo os excessos da liberdade geraram muitas consequências desastrosas. Foi, então, que um pensador inglês, John Stuart Mill, disse que somente a liberdade individual que não interfere com a liberdade dos outros poderia ser considerada como a verdadeira liberdade. Se a liberdade de uma pessoa é incompatível com a esfera de liberdade de outra deixa de ser liberdade. Antes disso, os povos ocidentais não estabeleciam limites à liberdade, porém quando Mill apresentou sua teoria sobre uma liberdade limitada, a proporção da liberdade pessoal foi consideravelmente reduzida. Evidentemente, os pensadores ocidentais vieram a compreender que a liberdade não era uma coisa sagrada que não pudesse ser regulamentada, mas sim que deve ser colocada dentro de certos limites. Os estrangeiros, que criticam os chineses, dizendo que estes não compreendem o que seja a liberdade e que são “areia solta” estão certamente se contradizendo. Se os chineses se assemelham à areia solta, já conseguiram a completa liberdade. Se não é boa coisa ser simplesmente areia solta, devemos adicionar-lhe cimento e água o mais depressa possível, consolidando-a em rocha e nos tornando um corpo firme. Quando isso ocorrer, a areia não poderá se locomover e não será mais livre. O mal de que padecem os chineses não é a falta de liberdade. Se a “areia solta” serve para descrever nossa natureza, então é porque dispomos de bastante liberdade. O que os chineses tiveram falta foi de uma palavra que designasse “liberdade” bem como sua ideia. Mas que tem a ver a ausência dessa ideia com o Governo? Gozam os chineses realmente de liberdade?
Quando pensamos nesse “lençol de areia solta”, compreendemos. que os chineses têm gozado grande soma de liberdade. Devido ao fato de termos muita liberdade, ninguém lhe presta atenção, nem mesmo ao nome. Por que acontece isso? Permiti-me que ilustre minha assertiva com um fato da vida quotidiana. Nossas grandes necessidades diárias são a alimentação e o vestuário — pelo menos duas refeições por dia e dois ternos por ano. Mas existe outra coisa, que é vitalmente mais importante do que a alimentação e o vestuário. A pessoa ordinária pensa que a alimentação é a coisa mais importante de sua vida, porque, se não comer, perecerá, porém, essa outra coisa é dez mil vezes mais importante que a alimentação. Devido ao fato de não ter uma consciência imediata dela, não apreciamos devidamente sua importância — o ar puro. Por que é o ar puro dez mil vezes mais importante do que a alimentação? Se fizermos duas refeições, ou mesmo uma, por dia, poderemos manter-nos vivos, porém, necessitamos de, pelo menos, 16 inalações de ar puro por minuto para nos sentirmos bem. Não podemos viver sem essa quantidade de ar. Se não me acreditais, tentai deter vossa respiração por um minuto, deixando de fazer essas 16 inalações. Não posso deixar de fazê-lo durante um minuto sem me sentir mal. Um dia tem 24 horas, cada hora 60 minutos, e em cada minuto fazemos 16 inalações, ou sejam 960 inalações por hora ou 23.040, por dia. Digo, portanto, sem temor de errar que o ar é mais importante que a alimentação. A razão porque não apreciamos o fato é que o ar fresco está por toda a parte em torno de nós, em quantidade ilimitada e inexaurível. Respiramo-lo durante o dia inteiro, sem termos que perder tempo e sem dispender energia, como acontece com a procura de alimentos, e, assim, julgamos fácil de obtê-lo, o mesmo não se dando com o alimento. O ar puro é tão fácil de se obter que não dedicamos um só pensamento à sua procura. Deter a respiração é apenas uma pequena experiência que prova a importância do ar puro. Uma experiência mais importante consistiria em fechar hermeticamente todas as janelas desta sala. O ar fresco para a respiração iria diminuindo gradualmente de volume e, dentro de poucos minutos, essas centenas de pessoas sentiriam grande desconforto. Ou, fechai uma pessoa num pequeno quarto durante o dia inteiro. Quando ela sair de sua prisão, sentir-se-á grandemente aliviada — outro exemplo que ilustra nosso princípio. Devido ao fato dos chineses terem gozado um excessivo grau de liberdade, não a apreciam devidamente, exatamente como no caso em que, existindo grande abundância de ar fresco no quarto, não compreendemos seu valor. Mas, quando fechamos as portas e janelas, não permitindo a entrada de ar, nos apercebemos de sua importância. Os europeus, há dois ou três séculos, quando estavam sob o jugo do despotismo, não conheciam qualquer forma de liberdade. Assim sendo, todos apreciavam a liberdade e estavam prontos a dar a vida por ela. Antes de conquistarem a liberdade, assemelhavam-se a homens trancados num pequeno quarto. Depois de a obterem, assemelhavam-se a homens que foram permitidos sair desse quarto para o ar livre. É natural que todos considerassem a liberdade como alguma coisa de valor maravilhoso e dissessem: “Dai-me a liberdade ou a morte.” A situação na China, porém, é diferente. Os chineses não conhecem a “liberdade”, mas somente a expressão “fazer fortuna.” Falar aos chineses sobre liberdade é como falar às tribos aborígenes yao, nas profundezas das montanhas do Kwangsi, sobre os meios de fazer fortuna em dinheiro. Os yaos aportam frequentemente do coração das montanhas, trazendo sacos de fel do urso e chifres de veado para trocar por outros artigos nos mercados, ao ar livre do mundo exterior. A princípio, os mercadores queriam dar dinheiro em troca de suas mercadorias. Os yaos sempre recusavam o dinheiro, porém ficavam contentes quando recebiam em troca sal ou tecidos. Nós pensamos que nada é melhor do que fazer fortuna em dinheiro, porém, os yaos contentam-se em possuir artigos de uso. Uma vez que nada sabiam dos meios de fazer fortuna, não davam valor ao dinheiro. Os pensadores modernos chineses, que estão oferecendo liberdade ao povo chinês, assemelham-se aos mercadores que ofereciam dinheiro aos yaos em troca de seus produtos. Os chineses não usam a “liberdade” e os pensadores ainda a pregam. Eles certamente ignoram os “sinais dos tempos.” Os europeus e americanos arriscaram suas vidas na batalha pela liberdade há 150 anos atrás, pois a liberdade era para eles coisa rara. Quando nações, como a França e os Estados Unidos, conquistaram a liberdade, tornaram-se o que consideramos pioneiras na implantação da forma democrática de governo. Mesmo nesses dois países, são todos livres, hoje em dia? Muitas classes, como os estudantes, soldados, funcionários e pessoas com menos de 20 anos de idade, que não atingiram ainda a maturidade, não gozam de liberdade. As lutas pela liberdade, no Ocidente, há duzentos ou trezentos anos, foram travadas por pessoas com mais de 20 anos de idade e pelas que não eram militares, funcionários do governo e estudantes. E, depois dessa liberdade ter sido conquistada, somente os que não pertenciam a esses grupos passaram a gozá-la. Mesmo atualmente, os cidadãos desses grupos não são totalmente livres. Os estudantes da China, tendo absorvido essas ideias de liberdade e não dispondo de ambiente para exercitá-las, deram-lhe expressão em suas escolas. Seguiram-se, então, as insurreições e greves de estudantes, sob a capa honrosa da luta pela “liberdade.” A liberdade, a que os ocidentais se referem, tem limites estritos e não pode ser descrita como sendo aplicável a todos. Os jovens estudantes chineses, quando falam sobre liberdade, removem todas suas restrições. Devido ao fato de ninguém, fora de seu meio, acolher sua teoria, podem apenas alimentá-la em suas escolas, resultando disso constantes desordens e greves. Trata-se de um abuso da liberdade. Que os estrangeiros não estejam familiarizados com a história chinesa e desconheçam que, nos tempos antigos, os chineses gozaram grande soma de liberdade, não é de estranhar. Mas, que nossos próprios estudantes tenham esquecido a Canção da Liberdade dos antigos chineses —
“Quando o sol se levanta, trabalho;
Quando o sol se põe, descanso;
Cavo poços d’água;
Semeio os campos;
Que tem a ver comigo o poder do Imperador?”
— é surpreendentemente estranho. Dessa Canção da Liberdade podemos depreender que, embora não tivesse em seu vocabulário a palavra “liberdade”, a China a gozava, de fato, nos velhos tempos e numa quantidade tão grande que não precisava procurar por mais.
Uma vez que a democracia se origina na liberdade, devemos, ao discutir a democracia, explicar claramente a história da luta dos ocidentais pela liberdade. De outra maneira, não poderemos aquilatar o valor da liberdade. A luta dos europeus pela liberdade revestiu-se de grande paixão, que, depois, arrefeceu. Isso mostra que a liberdade tem aspectos bons e maus e não é coisa sagrada. Se os estrangeiros dizem que somos um lençol de areia solta, reconhecemos a verdade, porém, não podemos aceitar sua assertiva de que os chineses não compreendem a liberdade e que têm uma fraca consciência política. Por que se tornou a China um lençol de areia solta? Simplesmente pelo excesso de liberdade individual. Os objetivos, portanto, da Revolução Chinesa são diferentes dos objetivos das revoluções estrangeiras, e os métodos que empregamos também são diferentes. Por que está a China atravessando por uma revolução? Para dar uma resposta direta, diremos que os objetivos de nossa revolução são exatamente opostos aos objetivos das revoluções da Europa. Os europeus rebelaram-se e combateram pela liberdade, porque gozavam de ínfima parcela de liberdade. Nós, porém, devido ao fato de termos uma quantidade demasiado grande sem qualquer forma de unidade e de poder de resistência, porque nos tornamos um lençol de areia solta e fomos invadidos pelo imperialismo estrangeiro, oprimidos pelo controle econômico e assolados pelas guerras mercantis desencadeadas pelas potências, sem termos sido capazes de resistir, devemos nos descartar de nossa liberdade individual e nos amalgamar num bloco compacto, como a rocha, que é formada pela adição do cimento à areia.
Os chineses, hoje em dia, estão gozando uma soma tão grande de liberdade que já evidenciam os malefícios da liberdade. Esses malefícios não estão aparecendo apenas nas escolas, mas também em nosso Partido Revolucionário. A razão está no fato de não termos sido capazes de estabelecer um governo, desda a queda da dinastia mandchu, devido à má aplicação da teoria da liberdade. Pelas mesmas razões, nosso Partido Revolucionário foi derrotado por Yuan Shih Kai (segunda revolução ocorrida em 1913). No segundo ano da República, Yuan Shih Kai contraiu vultosos empréstimos no estrangeiro sem a aprovação do Parlamento, assassinou Sung Chiao Jen (Presidente do Parlamento) e muito fez para prejudicar a República. Concitei todas as províncias para se levantarem imediatamente e punir Yuan, porém, devido ao fato de todos, no partido, estarem embriagados com a liberdade, não havia unidade.
Nas províncias do Sudoeste, por exemplo, desde os comandantes de divisão e dos brigadeiros-generais até às praças, todos se mostravam ciosos de sua liberdade individual. Todos se recusavam a trabalhar juntos. Depois, essa liberdade foi estendida às províncias, e cada província insistia por sua própria liberdade, recusando-se a cooperar com outras províncias. As provi ridas meridionais, que gozavam alguma coisa do que restara da glória da Revolução de 1911, demonstravam grande entusiasmo na superfície, porém o partido estava cindido em muitos grupos e não podia concordar na expedição de ordens. Quanto a Yuan Shih Kai, dispunha de uma organização de defesa, composta de seis exércitos, pertencentes ao Partido Peiyang. Os comandantes de divisão, os brigadeiros-generais, e todos os soldados nesses seis exércitos tinham esplêndida disciplina e estavam subordinados a um comando único. Numa palavra, Yuan Shih Kai tinha uma organização sólida, enquanto nós, no Partido Revolucionário, eramos um lençol de areia solta e, assim, Yuan Shih Kai derrotou o partido. Isso mostra que um princípio que se adapta a outros países não se adapta necessariamente à China. As revoluções no Ocidente fizeram uso da luta pela liberdade, porém, não se pode considerar que a Revolução Chinesa vise a liberdade. Se declararmos que estamos lutando pela liberdade, permaneceremos como o lençol de areia solta e não nos unificaremos; nunca atingiremos os desejados fins de nossa revolução.
As revoluções no Ocidente iniciaram-se com a luta pela liberdade. Somente depois das guerras e agitações durante dois ou três séculos é que se conseguiu a liberdade, da qual surgiu a democracia. O lema da Revolução Francesa foi Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Nosso lema é Nacionalismo do Povo, Soberania do Povo, Subsistência do Povo. Qual é a relação entre esses dois lemas? Segundo minha interpretação, nosso nacionalismo corresponde à sua liberdade, pois a colocação do nacionalismo do povo em efeito importa numa luta pela liberdade individual, porém, hoje temos um uso diferente para a liberdade. Como deverá o termo “liberdade” ser aplicado? Se o aplicarmos ao indivíduo, nos tornaremos um lençol de areia solta. De modo algum, devemos dar mais liberdade ao indivíduo. Ao invés, ampliemos a margem de liberdade para a nação. O indivíduo não deve gozar demasiada liberdade, porém, a nação deve ter completa liberdade. Quando a nação puder agir livremente, então a China poderá ser considerada uma nação forte. A fim de tornar a nação livre, deveremos sacrificar nossa liberdade individual. Os estudantes, que sacrificam sua liberdade pessoal, serão capazes de trabalhar diligentemente, dia após dia, e despender tempo e energias na aquisição do conhecimento. Quando completarem seus estudos, seu conhecimento estará ampliado e seus poderes multiplicados e, então, poderão fazer muita coisa pela nação. Os soldados, que sacrificam sua liberdade pessoal, serão capazes de obedecer ordens, de se dedicarem lealmente a seu país e de auxiliarem a nação a conquistar sua liberdade. Se os estudantes e soldados continuarem a falar sobre a liberdade, logo se entregarão à “licença sem limites”, para empregar uma frase chinesa que designa a liberdade. As escolas ficarão sem regulamentos e o Exército sem disciplina. Como pode funcionar uma escola sem regulamentos? Que espécie de exército é aquele que não tem disciplina?
Por que queremos que a nação seja livre? — Porque a China sob a dominação das potências perdeu sua posição nacional. Não é simplesmente uma semi-colônia; tornou-se, na realidade, uma hipo-colônia, inferior à Birmânia, ao Annam e à Coreia. Estes países são protetorados, escravos de um só senhor. A China é a colônia de todas as nações e escrava de todas. De fato, agora, somos escravos de mais de dez senhores. Nossa liberdade nacional está terrivelmente restringida. Se quisermos restaurar a liberdade da China, deveremos unir-nos num bloco compacto. Deveremos usar métodos revolucionários para dar firme unidade a nosso Estado. Sem os princípios revolucionários, nunca conseguiremos êxito para nosso empreendimento. Nossos princípios revolucionários são o cimento. Se pudermos consolidar nossos 400 milhões de compatriotas e formar uma união poderosa, tornando-a livre, o Estado chinês será livre e o povo chinês será também realmente livre. Comparai o lema da Revolução Francesa com o nosso. Liberdade no lema francês e Nacionalismo do Povo em nosso lema são semelhantes. O nacionalismo do povo advoga a liberdade de nossa nação. Igualdade é semelhante ao nosso Princípio da Soberania do Povo, que visa destruir a autocracia e tornar todos os homens iguais. Fraternidade, originariamente, significa a qualidade de irmãos e tem o mesmo significado da palavra chinesa tung-pao (compatriotas ). A ideia contida em Fraternidade é semelhante ao nosso Princípio da Subsistência do Povo, que visa dar a felicidade aos nossos 400 milhões de compatriotas. Essa questão será por mim explicada mais detalhadamente quando vier a discutir a Subsistência do Povo.
16 de março de 1924.
Igualdade. — A liberdade não é um dom natural. — Desigualdades artificiais, que acentuam as desigualdades naturais. — Classes sociais e políticas na Europa medieval. — O verdadeiro significado da igualdade. — A teoria da “igualdade natural” apresentada na Europa para contrabalançar a teoria dos “direitos divinos”, — A China não necessita de liberdade pessoal e de igualdade como os europeus necessitavam. — As revoluções na Inglaterra, América, França, Rússia. — A luta americana pela independência baseada na teoria da igualdade. — A segunda luta da América contra a escravatura, travada internamente. — Causas da Guerra Civil. — Liberdade conquistada para os escravos negros pelos brancos. — O ressentimento dos negros para com o Norte que os emancipara. — Os Três Princípios darão à China liberdade e igualdade. — A liberdade e a igualdade dependem da democracia. — A luta contínua pela igualdade no Ocidente. — A história da organização do trabalho. — Necessária a liderança intelectual. — Má compreensão da igualdade entre os trabalhadores chineses. — O bom governo essencial ao progresso trabalhista. — Filosofias egoísticas e altruísticas da vida em contraste. — Cooperação entre feitores, promotores e diretores. — O objetivo do serviço.
Min Chuan, a Soberania do Povo, é a segunda parte de nosso lema revolucionário e corresponde à Igualdade no lema francês. Assim, hoje, tomaremos a igualdade como lema para nosso estudo. A palavra “igualdade” é usualmente associada à palavra “liberdade”. Durante as revoluções de outrora, nos diversos países da Europa, todo o povo expendeu uma soma igual de energias e sacrificou-se no mesmo grau na luta pela liberdade e pela igualdade, e, consequentemente, apreciavam a igualdade tanto como a liberdade. Além do mais, muitos sentiam que, se pudessem assegurar a liberdade, certamente atingiriam a igualdade, e que, se não se tornassem iguais, não haveria oportunidade de manifestar sua liberdade. Consideravam a igualdade num plano mesmo superior ao da liberdade. Que é igualdade e de onde provem? A filosofia revolucionária da Europa e da América referia-se à liberdade como algo doado pela natureza ao homem. Por exemplo, a “Declaração da Independência” da Revolução Americana e a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” da Revolução Francesa proclamavam pronunciadoramente, enfaticamente, que a liberdade e a igualdade eram direitos naturais e inalienáveis do homem.
Nascem os homens, na realidade, com o direito especial de. igualdade? Em primeiro lugar, estudemos essa questão com cuidado. Na Primeira Conferência, estudamos a história dos direitos do povo, desde a idade do homem primitivo, há milhões de anos, até o início de nosso período democrático, porém não descobrimos qualquer princípio que estabelecesse a igualdade humana natural. No mundo da natureza, não encontramos duas coisas no mesmo nível, exceto à superfície da água. No terreno plano, não há lugares verdadeiramente no mesmo nível. Na secção da Estrada de Ferro Cantão-Hankow, entre a estação de Wongsha (Cantão) e Yinchanghwan, existe um plano natural. Mas, se olhardes da janela do vagão e observardes cuidadosamente a topografia da região, verificareis que não há um só quilômetro de linha, que não tivesse exigido a intervenção da engenharia e do trabalho humano para nivelá-lo. Mesmo o que chamamos plano natural tem, pois, nível perfeito. Ou tomemos o vaso de flores, que está nesta mesa. A flor que tenho em minha mão é uma alfarroba. Se a olhardes casualmente, podereis pensar que todas suas folhas e florescências são exatamente semelhantes. Mas, se a observardes cuidadosamente, verificareis que não existem duas folhas e duas florescências exatamente iguais. Mesmo nos milhões de folhas de uma alfarrobeira não encontrareis duas folhas inteiramente iguais. Projetai essa dissemelhança no tempo e no espaço. Esta folha de alfarrobeira não é semelhante a qualquer outra folha da mesma árvore. As folhas de alfarrobeira neste caso são diferentes das folhas do ano passado. Isso mostra que nada produzido no mundo se assemelha exatamente entre si, e que, desde que todas as coisas são diferentes, naturalmente não podem ser consideradas iguais. Se não existe igualdade no mundo natural, como poderá existir tal coisa como a igualdade humana?
A natureza, originariamente, não criou os homens iguais. Mas, quando a autocracia se desenvolveu entre a humanidade, os reis e príncipes despóticos elevaram as diferenças humanas ao extremo, e o resultado foi o estabelecimento de uma desigualdade muito pior do que a desigualdade da natureza. A desigualdade criada pelos reis e príncipes era uma desigualdade artificial. Para ilustrar as condições resultantes, permiti-me desenhar um diagrama no quadro-negro:
Estudai este diagrama cuidadosamente e compreendereis o significado da desigualdade artificial. Devido a essa graduação artificial, as classes especialmente privilegiadas tornaram-se excessivamente cruéis e iníquas, enquanto que o povo oprimido, incapaz de se conter, lançou-se, finalmente, à rebelião e à luta contra a desigualdade. O objetivo original nas revoluções tem sido a destruição das desigualdades criadas pelo homem. Quando atingem esse objetivo, os homens pensam que as revoluções já cumpriram seu programa. Os homens, porém, que ocupavam os altos cargos de imperador e rei irrogavam-se o caráter de representantes divinos para se manterem no trono. Afirmavam que haviam recebido sua posição especial das mãos de Deus e que o povo, que se lhes opunha, estavam também em oposição a Deus. As massas ignorantes, que não procuravam verificar se havia qualquer parcela de verdade nessas palavras, seguiam- nos cegamente e lutavam para a obtenção de mais privilégios para seus reis. Opunham-se mesmo às pessoas inteligentes., que se referiam à liberdade e à igualdade. Assim, os pensadores, que apoiavam a revolução, tiveram de inventar a teoria dos direitos da igualdade e da liberdade, doados pela natureza, a fim de destruir o despotismo dos reis. Seu propósito original foi destruir as desigualdades artificiais, criadas pelos homens. Mas, em tudo, certamente, “a ação é fácil, a compreensão difícil”. As massas da Europa, nessa época, acreditavam que os imperadores e reis haviam sido enviados por Deus e usufruíam “direitos divinos” e grande número de pessoas ignorantes os apoiavam. Não importa quais os métodos ou quanta energia empregasse um pequeno grupo de pessoas inteligentes e educadas, a massa não derrubava os monarcas.
Finalmente, quando a crença de que o homem nasce livre e igual e de que a luta pela liberdade e pela igualdade é o dever de todos permeara as massas, os imperadores e reis da Europa caíram automaticamente. Depois de sua queda, porém, o povo começou a crer firmemente na teoria da igualdade natural e a manter-se trabalhando, dia a dia, para fazer todos os homens iguais. Não sabiam que tal coisa é impossível. Só recentemente, à luz da ciência, começou o povo a compreender que não existe o princípio da igualdade natural. Se agíssemos, em conformidade com a crença das massas nessa época, irrespectivamente da verdade, e forçássemos uma igualdade sobre a sociedade humana, essa igualdade seria falsa,
Como este diagrama mostra, teríamos de nivelar a posição superior à mais baixa a fim de obter a igualdade, porém a linha representando a base desses tipos diferentes continuaria a não ser uniforme, colocada em níveis diferentes. A igualdade, que estabelecêssemos, seria uma igualdade falsa. A posição igual na sociedade humana é algo com que se começar. Todo homem constrói sua carreira sobre esse início, de acordo com seus dons naturais de inteligência e habilidade. Como todo homem tem dons diferentes de inteligência e de habilidade, suas carreiras também serão diferentes. E, uma vez que todo homem age diferentemente, certamente não podem atuar numa base de igualdade. Isso nos conduz ao único princípio verdadeiro da igualdade. Se prestarmos atenção aos dons intelectuais e à capacidade de cada homem, e forçarmos a descer os que se elevam a altas posições a fim de fazer a todos iguais, o mundo não progredirá e a humanidade retrocederá. Quando falamos de democracia e de igualdade, pois desejamos ao mesmo tempo o progresso do mundo, referimo-nos, porém, à igualdade política. Porque a igualdade é uma coisa artificial e não natural e a única igualdade que podemos criar é a igualdade no status político.
Depois da revolução, desejamos que todos os homens tenham uma posição política igual, tal como é representada pela linha básica no diagrama III. Essa é a única igualdade verdadeira e o verdadeiro princípio natural,
Nas revoluções da Europa, o povo despendeu muitos esforços e realizou sacrifícios inenarráveis em suas lutas pela igualdade e pela liberdade. A fim de compreender porque lutou tão encarniçadamente e se sacrificou tanto, devemos conhecer alguma coisa sobre a desigualdade que existia antes das revoluções. O primeiro diagrama, eme desenhei, representa as condições prevalecentes na Europa antes das revoluções e a desigualdade política que então existia. As graduações no diagrama — imperador, rei, príncipe, duque, marquês, conde, visconde, barão – mostram as várias classes no antigo sistema político da Europa. A China teve outrora essas distinções de classe, e não foi senão depois da revolução, que derrubou há 13 anos a autocracia, que elas desapareceram. A desigualdade, porém, então prevalecente na China não era tão séria como a da Europa. A Europa, há duzentos anos atrás, estava ainda sob um regime feudal semelhante ao feudalismo da China de há dois mil anos. Devido ao fato do governo da China ter progredido naquela época, o sistema feudal foi aqui destruído há dois mil anos, enquanto que na Europa não foi ainda completamente extirpado. Somente há dois ou três séculos é que os europeus começaram a compreender os males da desigualdade e a esposar as ideias da igualdade que a China já abraçara há dois milênios. A China já estava adiantada em sua organização política sobre a Europa, porém, nos últimos dois séculos, esta não somente a alcançou, mas até a ultrapassou. “Os últimos tornaram-se os primeiros”.
A situação, que existia durante o despotismo na Europa, antes dos tempos da revolução, era muito mais séria do que jamais o fora a situação na China. Por que acontecia isso? — Devido ao sistema hereditário da Europa. Os imperadores, reis, príncipes, duques, marqueses e outros nobiliarcas europeus legavam seus títulos, de geração à geração. Ninguém modificava sua vocação hereditária. As ocupações do povo comum também eram hereditárias. Nunca podia o povo fazer outra coisa. Se um homem era camponês,, seus filhos e netos também teriam de ser camponeses. Os filhos e netos de um trabalhador também teriam de se devotar ao trabalho rude. O neto não podia escolher ocupação diferente da do avô. Essa impossibilidade de mudar a profissão era uma espécie de desigualdade que existia naquela época na Europa. Desde a destruição do sistema feudal na China, essas barreiras profissionais também foram completamente destruídas. Assim, vemos que a China, juntamente com os países estrangeiros, tivera um sistema de classe e uma espécie de desigualdade. Mas, mesmo assim, a China tinha vantagem, uma vez que apenas o posto de imperador era hereditário. A menos que o imperador fosse destronado, o direito de reinar era legado, de uma geração à outra, na mesma família. Somente quando havia mudança de dinastia é que a linha de imperadores se modificava. Mas, quanto aos duques, marqueses, condes, viscondes e barões, esses títulos eram mudados de geração em geração, nos velhos tempos. Muitos plebeus tornavam-se ministros de Estado ou eram elevados à categoria de príncipes e de nobres. Não eram distinções hereditárias.
Há, na Europa, uns poucos plebeus que se tornaram ministros de Estado ou que foram elevados à categoria de príncipes e nobres, porém, a maioria dos títulos era hereditária e o povo comum não tinha liberdade de escolher suas profissões. Essa falta de liberdade era que determinava a inexistência de igualdade. Não somente era a hierarquia política desigual, mas também as classes do povo comum. Consequentemente, era muito difícil ao povo: primeiro, atingir a posição de duque, marquês, conde, visconde ou barão e, segundo, mudar suas ocupações livremente e, assim, subir na vida. O povo finalmente sentiu que não podia mais suportar as restrições desse sistema e que devia lançar suas vidas numa luta pela liberdade, emancipar-se da falta de liberdade de escolher ocupações e esforçar-se em progredir. Tal guerra pela liberdade, tal demolição da desigualdade tirânica de classes nunca ocorreu na China. Apesar dos chineses terem as distinções de classe, nunca sacrificaram suas vidas ou suas famílias como um tributo à liberdade. As revoluções dos povos europeus concentraram-se sobre a conquista da liberdade e da igualdade, porém os chineses nunca compreenderam realmente o significado dessas coisas. A razão disso está na autocracia da China que, em comparação com a da Europa, não era severa. E, apesar do governo da China ter sido autocrático nos tempos antigos e não ter realizado qualquer progresso nos últimos dois m51 anos, mesmo assim, antes desse período, foram feitas muitas reformas, tendo o abuso do despotismo sido consideravelmente reduzido. Consequentemente, o povo não sofreu muito com o sistema autocrático e não lutou pelo princípio da igualdade.
Desde que a civilização europeia propagou sua influência para o Oriente, os sistemas políticos e econômicos e a ciência europeus também penetraram na China. Quando os chineses ouvem falar de doutrinas políticas europeias, geralmente as copiam palavra por palavra, sem pensar em introduzir-lhes quaisquer modificações. As revoluções europeias de dois ou três séculos eram “lutas pela liberdade”, e, assim, a China deve também lutar pela liberdade. Os europeus lutavam pela igualdade, assim a China deve também lutar pela igualdade!
A fraqueza da China de hoje, porém, não está na falta de liberdade e de igualdade. Se tentarmos despertar o espírito do povo com “Liberdade e Igualdade”, estaremos realizando uma tarefa inútil. Nosso povo não está profundamente influenciado por essas coisas. Não é sensível a elas, e, assim, certamente, não aderiria à nossa causa. Mas, o povo da Europa, há dois ou três séculos, suportou “as águas da tribulação e o fogo do tormento” com a falta de liberdade e de igualdade. Viu que, a menos que conseguisse obter a liberdade e a igualdade, não poderia resolver nenhum de seus problemas, e, assim, arriscou sua vida na luta para consegui-las.
Essa agitação produziu as três revoluções dos últimos três séculos: a primeira, na Inglaterra, a segunda, na América e a terceira, na França. As revoluções Americana e Francesa foram coroadas de êxito. A Revolução Inglesa pode ser considerada como um fracasso, e, consequentemente, o sistema político inglês não se modificou em grande extensão. A Revolução Inglesa teve lugar contemporaneamente com o fim da dinastia Ming e com o início da dinastia mandchu. Os ingleses apearam o rei do trono e o mataram, porém, em menos de dez anos, verificou-se a restauração da Monarquia. Assim, até nossos dias, o Governo inglês ainda tem a forma monárquica e a nobreza continua a existir. As colônias americanas, depois de se separarem da Inglaterra e de se tornarem independentes, descartaram-se inteiramente das velhas classes políticas e fundaram um sistema republicano de governo. A França seguiu-lhe os passos e subverteu todo o velho sistema de classes. Exatamente há 6 anos, a Rússia desencadeou uma revolução, subvertendo também seu sistema de classes e tornando-se uma República. Os Estados Unidos, a França e a Rússia são Estados poderosos e podemos determinar a origem de sua força, que se encontra no êxito que tiveram suas revoluções. A Rússia empreendeu a revolução mais recente e também aquela que se revestiu do maior sucesso. Ela não apenas eliminou o sistema de classes políticas, mas também todas as classes capitalistas da sociedade.
Apreciemos novamente o caso dos Estados Unidos. O objetivo que estava nos espíritos do povo americano durante sua revolução foi a independência do país. Por que? Devido ao fato das treze colônias serem todas território britânico e estarem sob o controle britânico. A Grã-Bretanha era uma Monarquia despótica e oprimia o povo americano muito mais severamente do que oprimia seu próprio povo. Quando os americanos se aperceberam de que eles e os britânicos estavam sob o mesmo Governo, mas que os súditos britânicos eram tratados mais liberalmente, ao passo que eles sofriam muitos abusos, sentiram profundamente a desigualdade da situação. Resolveram separar- se da Grã-Bretanha, governar-se a si próprios e estabelecer um Estado independente. Para obterem sua independência, resistiram à Grã-Bretanha, lutando contra ela durante oito anos até que conseguiram seu objetivo. O Governo americano tem tratado as raças brancas num pé de igualdade, porém seu tratamento de outras raças tem sido bem diferente. Os negros africanos, por exemplo, eram tidos como escravos. Apesar de, depois da Revolução Americana, os brancos terem uma posição política de igualdade, os pretos não a tinham. Esse fato era inconsistente com a Constituição americana e com a Declaração da Independência, cujo preâmbulo dizia que “todos os homens são criados iguais, e são dotados por seu Criador com certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a Vida, a Liberdade e a Busca da Felicidade”. A Constituição adotada ulteriormente era baseada nesses princípios, porém, apesar da existência de uma Constituição que acentuava os direitos iguais da humanidade, os negros continuavam a viver sob o regime da escravidão.
Certos advogados ilustres da liberdade e da igualdade viram que essa situação não estava em harmonia com o espírito que presidira a fundação da nação, e opuseram-se à existência de grande número de escravos numa República livre e fundada no princípio da igualdade. Como os americanos dessa época tratavam os negros? Eles abusavam cruelmente dos negros, fazendo-os trabalhar como se fossem cavalos e bois. Tinham de trabalhar como escravos em fainas pesadas, esgotando-se diariamente em rudes tarefas e, no fim, não recebiam qualquer remuneração, apenas alimentação. Quando o povo da nação se apercebeu dessas tristes condições?, compreendeu quão injustas, desiguais e inconsistentes eram as mesmas com os princípios da Constituição. Assim, começou-se a pedir mais humanidade para os negros e a atacar o desigual sistema de escravatura. À medida que a ideia se propagava, conquistava um número cada vez maior de aderentes. Nessa época, existiam muitas pessoas humanitárias, que realizaram investigações quanto aos sofrimentos dos escravos e que publicaram relatórios do que viram. O mais famoso desses trabalhos descrevia muitos fatos trágicos da vida do escravo na forma de uma novela, que foi lida por toda a gente com intenso interesse. Trata-se do livro intitulado O grito do escravo negro aos céus(5), que fez o povo compreender o que os escravos estavam sofrendo, despertando a seu favor a indignação popular. Então, todos os Estados do Norte, que não empregavam o trabalho escravo, começaram a advogar a libertação dos negros. Nos Estados do Sul, existia grande número de escravos negros. Cada Estado do Sul tinha numerosas e vastas plantações, que dependiam somente da mão de obra escrava para seu cultivo. Se libertassem os escravos, não teriam mais mão de obra para trabalho rude e não poderiam plantar seus campos. Os sulistas, por motivos egoístas, opunham-se à emancipação, declarando que o sistema de escravatura não fora iniciado por um homem somente. Os americanos haviam trazido negros da África para serem escravos, exatamente como, há várias décadas, os ocidentais transportaram chineses para o continente americano e para a Malásia para serem “porcos”. Os escravos negros eram os “porcos” africanos. Os Estados do Sul combateram contra a emancipação sob o fundamento de que os escravos eram seu capital e exigiram indenização no caso dos escravos serem libertos. Nessa época, um escravo negro valia no mercado entre cinco a seis mil dólares; e, como existiam vários milhões de escravos no Sul, seu valor total atingia a cifra de biliões de dólares. A nação não tinha recursos para pagar uma soma tão enorme aos proprietários de escravos.
Apesar, portanto, da agitação para a emancipação dos escravos ter se iniciado muito tempo antes, houve ainda um período de fermentação, e foi somente há 60 anos que a explosão final se verificou, precipitando a guerra entre o Norte e o Sul. Essa guerra durou cinco anos e foi uma das maiores guerras do mundo. A luta foi terrível, de ambas as partes, e o Norte e o Sul perderam várias centenas de milhares de homens. Foi uma guerra contra a desigualdade do escravo negro, uma guerra contra a desigualdade humana, uma guerra pela igualdade. Até então, os europeus e americanos haviam lutado pela igualdade em consequência do seu próprio despertar e para aliviar sua própria sorte. Mas, a Guerra Civil americana foi travada pela igualdade do escravo negro e não porque o próprio negro se abalançasse a lutar. Os negros foram escravos por um período tão longo, que não podiam compreender nada, exceto em se manterem perfeitamente contentes enquanto seus proprietários lhes dessem alimento, vestuário e habitação. Havia provavelmente alguns donos de escravos que eram bem generosos para seus escravos, e enquanto um escravo soubesse que tinha um bom senhor, que não o tratasse com severidade especial, ele não pensava em resistir, em exigir emancipação ou tornar-se senhor de si mesmo. Assim, na Guerra Civil americana, foram os brancos que lutaram pela igualdade dos negros. Essa guerra foi travada por homens que não pertenciam ao grupo oprimido e não se iniciou devido ao despertar processado dentro desse grupo.
A guerra resultou na derrota do Sul e na vitória para o Norte, e o Governo dos Estados Unidos emitiu imediatamente uma proclamação, libertando os escravos em todo o país. Os derrotados Estados sulistas não tiveram outra alternativa senão obedecer, porém, depois disso, descartaram-se de toda a responsabilidade para com os negros. Desde o dia da emancipação, deixaram de dar-lhes alimentos, roupas e casas de moradia. Foi então que os negros, apesar de terem sido libertados pelos homens brancos, de se terem tornado cidadãos da República e de fazerem face a um brilhante futuro com a igualdade e liberdade políticas recém-outorgadas, sentiram que “haviam perdido o apoio de Tai Shan”(6) e sentiram-se abandonados, pois não mais trabalhavam para seus amos e não podiam obter alimentos, vestuário e abrigo. Começaram a alimentar ressentimento contra os Estados que os haviam emancipado, principalmente contra o grande presidente do Norte, que havia advogado sua libertação. Quem era esse presidente? Todos sabeis que os Estados Unidos tiveram dois grandes presidentes. Um foi Washington, o primeiro, que é sempre mencionado quando se fala dos estadistas fundadores da nação. Ele ocupa um lugar glorioso na história da luta do homem pela igualdade. O outro é Lincoln, que advogou a libertação dos escravos, com maior ardor do que qualquer outra personalidade de sua época, e que, devido ao fato de os haver emancipado, atingiu posição de glória eminente. O povo de todo o mundo ainda o honra. Os recém-libertados escravos, porém, devido ao fato de, no momento, sofrerem as consequências da falta de alimentos, roupas e habitação, alimentavam-lhe ódio. Há um soneto insultuoso contra Lincoln, em que é considerado um dilúvio de água e uma fera selvagem. Os autores de tais coisas são os contrarrevolucionários de hoje, que dirigem insultos contra o Partido Revolucionário. Os negros inteligentes de hoje, que compreendem ter a emancipação sido uma benção, naturalmente venerara Lincoln. Existem, porém, negros ignorantes que odeiam o mesmo Lincoln, como o fizeram seus antepassados.
A libertação dos escravos foi uma das lutas pela igualdade na história americana. Os dois períodos mais esplendidos da história americana foram: primeiro, quando o povo, sofrendo o tratamento de desigualdade que lhe era dado pelos britânicos, travou a Guerra da Independência e, depois de oito anos de conflito, se separou da Grã-Bretanha e estabeleceu um Estado independente; segundo, quando, 60 anos mais tarde, se travou a guerra entre o Norte e o Sul, por uma causa semelhante à da Guerra pela Independência. A Guerra Civil durou cinco anos, enquanto a Guerra Revolucionária durou oito. Mas os sacrifícios e o derramamento de sangue foram muito maiores na última guerra. Em suma, a primeira guerra americana foi uma guerra travada pelo povo por sua própria independência e igualdade; a segunda foi uma luta em prol da igualdade dos negros, sendo que foram feitos sacrifícios maiores e mais sangue foi derramado nela do que na primeira guerra. A história americana é uma história de lutas pela igualdade e é uma página brilhante na história do mundo.
Depois da guerra pela igualdade na América, também irrompeu na França uma luta revolucionária pela igualdade. O conflito experimentou vicissitudes durante um período de oitenta anos, antes que pudesse revestir-se de êxito. Mas, depois de ter sido assegurada a igualdade, o povo aplicou a palavra “igualdade” ao extremo e pretendeu colocar todos no mesmo nível. Era a espécie de igualdade representada no diagrama II: a linha de igualdade não era colocada no plano inferior, mas no superior — a falsa igualdade.
A maré das ideias revolucionárias da China proveio da Europa e da América e a teoria da igualdade também procedeu do Ocidente. Nosso Partido Revolucionário, porém, advoga uma luta não pela liberdade e igualdade, mas pelos Três Princípios do Povo. Se pudermos colocar esses Três Princípios em prática, teremos a liberdade e a igualdade. Apesar das nações ocidentais terem lutado pela liberdade e igualdade, têm sido. desde então, constantemente desviadas por elas. Se colocarmos em efeito os Três Princípios e alcançarmos a verdadeira liberdade e igualdade, como nos poderemos assegurar de sua manutenção num plano adequado? Se, como no diagrama II, pusermos a linha de igualdade no plano superior, não estaremos trilhando o caminho certo. Mas, se, como no diagrama III, tomarmos a linha de igualdade e a considerarmos na base de nossa construção, estaremos no verdadeiro caminho da igualdade. Assim, se quisermos saber se os princípios que adotamos em nossa revolução são desejáveis ou não e se estão seguindo o caminho verdadeiro, deveremos, em primeiro lugar, estudar cuidadosa mente a história das revoluções europeias, desde suas origens. E, se o povo quiser compreender perfeitamente nossos Três Princípios e certificar-se se são realmente uma boa coisa, adaptáveis às necessidades de nosso país, se quisermos ter fé em nossos Três Princípios e nunca vacilar nessa fé, terá também de estudar cuidadosamente a história das revoluções no Ocidente, desde suas origens.
Os Estados Unidos tiveram duas guerras pela “Liberdade e Igualdade” — a primeira durou oito anos, a segunda cinco — antes de atingirem seus objetivos. A China nunca teve uma guerra pela liberdade e igualdade. Todas as guerras, nos milênios de história da China, foram lutas pelo trono. Todos os que participaram nelas acalentavam a esperança de se tornarem reis algum dia. A recente revolução, com a qual destronamos a dinastia mandchu, pode ser considerada como a primeira luta que não foi travada pelo poder real. Mas essa ausência de ambições realistas verifica-se apenas no seio do Partido Revolucionário. Os que não pertencem ao Partido, como Tassao Kun e Wu Pei Fu no Norte, eram aderentes nominais da República, mas, na realidade, advogavam a unificação pela força e cobiçavam o poder autocrático. Se seus planos para a unificação pela força tivessem tido sucesso e ninguém se lhes tivesse oposto, cada qual, certamente, pretenderia ser o imperador. Por exemplo, quando a dinastia mandchu foi derrubada em 1911, Yuan Shih Kai apoiou a República? Advogara ele a Monarquia? O povo de toda a nação acreditava, então, que a Monarquia nunca seria novamente restaurada na China. E todavia, quando, no segundo ano da República, Yuan Shih Kai empregou a força militar para derrotar o Partido Revolucionário e expulsar seus membros do país, ele modificou imediatamente o sistema de governo e tornou-se imperador. E essa casta militar da China está agora dominada por ideias insuportavelmente corruptas, exatamente como as ideias de Yuan Shih Kai. Ninguém pode profetizar que o mesmo perigo não nos ameace novamente. Assim, a razão porque a revolução na China não atingiu ainda seus objetivos e porque ainda não nos desembaraçamos, ainda não suprimimos completamente essas ambições pela realeza. Se quisermos desarraigá-las e suprimi-las completamente, deveremos lutar contra elas mais uma vez e iniciarmos outra revolução,
Muitos dos jovens e ardentes intelectuais da China estão ainda advogando que lutemos pela liberdade e pela igualdade. A Europa lutou por esses princípios há cem anos, porém, na realidade, o resultado foi o aparecimento da democracia. Só quando o povo conquistou seus direitos é que a liberdade e a igualdade tiveram oportunidade de sobreviver. Sem a democracia, a liberdade e a igualdade não passariam de expressões vazias. A origem da democracia remonta aos tempos imemoriais da história. Há dois mil anos, Roma e Grécia já conheciam as ideias dos direitos do povo e eram Estados democráticos. No Sul do Mediterrâneo, na mesma época, existia outra República chamada Cartago e vários pequenos Estados, que depois se seguiram, também eram Repúblicas. Apesar da Grécia e de Roma, nessa época, serem nominalmente democracias, na realidade não haviam atingido ainda a verdadeira liberdade e igualdade. A soberania do povo não era exercida. A Grécia aplicava o sistema de escravatura. A nobreza possuía muitos escravos. Na realidade, dois terços da população eram escravos. Os guerreiros de Esparta recebiam, cada um, cinco escravos do Estado, mantendo-os como auxiliares. Assim, na Grécia, as pessoas que gozavam dos direitos soberanos eram pequena minoria. A grande maioria não tinha direitos. O mesmo acontecia em Roma. Destarte, Grécia e Roma, há dois mil anos, eram República somente no nome. Aplicavam, ainda, o sistema de escravatura e não podiam, pois, compreender o ideal da liberdade e da igualdade. Não foi senão quando os Estados Unidos, há 60 anos, libertaram seus escravos, destruíram o sistema de escravatura e fizeram da igualdade dos homens uma realidade, que a esperança da verdadeira liberdade e igualdade começou a despontar na democracia moderna. A verdadeira liberdade e igualdade firma-se na democracia e ambas são dependentes da democracia. Somente onde a democracia floresce é que a liberdade e a igualdade podem sobreviver permanentemente. Não há meios de preservá-las se se perde a soberania do povo. Assim, o Partido Revolucionário da China, desde seu nascimento, considerou a liberdade e a igualdade como objetivos em sua luta, porém tomou a democracia — A Soberania do Povo — como seu princípio e lema. Somente se conquistarmos a democracia poderá nosso povo ter a realidade e gozar das bênçãos da liberdade e da igualdade. Elas estão abrangidas em nosso princípio da Soberania do Povo, de onde as abordamos em conexão com nosso tema principal.
Depois de lutar tão duramente e derramar tanto sangue pela liberdade e pela igualdade, quão altamente devemos esperar que a Europa e a América apreciem esses princípios! Quanto cuidado deverão eles empregar para pesá-las e evitar seu abuso desmedido ! A verdade, porém, é que, como disse antes, muitas práticas condenáveis surgiram da recém-adquirida liberdade no Ocidente. Há mais de cem anos, as Revoluções Americana e Francesa asseguraram a igualdade. A igualdade também sofreu abusos? Penso que sim. Não podemos permitir, depois da experiência das nações ocidentais, que sigamos nosso caminho e lutemos apenas pela igualdade. Devemos lutar pela democracia. Se a democracia prevalecer, teremos uma verdadeira igualdade. Se a democracia perecer, nunca teremos igualdade. Por que a igualdade sofreu tantos abusos no Ocidente? Porque seu princípio foi concebido de maneira muito leviana e porque a democracia não foi plenamente desenvolvida e, portanto, a igualdade não foi mantida no adequado caminho. Eis a razão porque os povos europeus ainda estão lutando pela democracia. Para que a luta fosse mais efetiva, o povo organizou-a, naturalmente, e, compreendendo o valor da organização, conseguiu a liberdade de assembleia e de associação. Essa liberdade resultou na formação de vários grupos, tais como os partidos políticos e os sindicatos trabalhistas.
Os corpos organizados mais importantes, hoje em dia, são os sindicatos trabalhistas, que se desenvolveram depois das revoluções, quando se conquistou a liberdade. A história de seu desenvolvimento é mais ou menos a seguinte: Nos tempos antigos, os trabalhadores eram ignorantes e não tinham a consciência de grupos. Não compreendiam que sua posição era desigual ou que estavam sendo duramente oprimidos pelos capitalistas. Eram como os negros americanos, que somente sabiam que eles e seus antepassados eram escravos. Não sentiam que estavam sendo tratados injustamente e não viam a liberdade e a igualdade, que se situavam além dos horizontes da escravidão. Os trabalhadores de todos os países não tinham uma concepção da sua situação até que vieram ao seu encontro homens de boa vontade, que não estavam satisfeitos com as condições de trabalho e que proclamaram entre os trabalhadores a desigualdade existente entre o capital e o trabalho, a necessidade da organização e o dever de resistir contra os nobres e os capitalistas. Somente então começou o trabalho a se organizar. Qual tem sido a arma do trabalho em sua luta contra o capital? Apenas a arma negativa da não-cooperação, através das greves. Esta arma, porém, tem sido mais mortal do que qualquer instrumento bélico. Se os trabalhadores fazem solicitações ao Estado ou aos capitalistas, que não são atendidos, podem unir-se e entrar em greve como um só todo. Tal parede afeta o povo de todo o país, em escala não menor do que a guerra. Devido ao fato dos trabalhadores terem tido esses intelectuais como líderes para guiá-los e para mostrar-lhes como organizarem-se fortemente e como fazerem greves, foram capazes de evidenciar grande poder logo que se levantaram em grupos. Com seu grande poder recém-adquirido, os trabalhadores começaram a ter consciência de si mesmos e a falar em igualdade. Os trabalhadores britânicos e franceses notaram, então, que os líderes e os mestres, dentro de suas organizações, eram homens de ocupações diferentes das suas, ou nobres ou pensadores de outras classes, de modo que acabaram expulsando-os de seu seio. Esse movimento no Ocidente desencadeado contra os líderes de organizações do trabalho, que pertencem a outras classes, tem se incrementado durante as últimas décadas, tudo porque os trabalhadores se desviaram em sua tarefa de buscar a igualdade. Assim, os sindicatos, apesar de seus membros não possuírem a necessária inteligência para a liderança, abandonaram seus sábios guias. Depois, apesar de sua grande organização, não somente fracassaram em seu progresso e na demonstração de um grande poder, como também se desintegraram internamente e perderam sua força unida, devido à falta de organizadores.
Nos últimos dez anos, também foram formadas, na China, muitas organizações trabalhistas. Desde a revolução, os trabalhadores de todas as profissões começaram a unir-se e a formar sindicatos. Entre os líderes trabalhistas também figuravam muitos que não eram trabalhadores. É natural que não possamos dizer que todos esses líderes estivessem agindo em prol dos melhores interesses dos trabalhadores. Muitos aproveitaram-se do nome da organização e utilizaram-se dos trabalhadores como instrumentos para seus interesses egoísticos e pessoais. Mesmo assim, existe um número substancial que serviu os trabalhadores, motivados por um verdadeiro senso de justiça. Os trabalhadores, portanto, deveriam compreender esse fato e distinguir as cores de seus líderes.
Os trabalhadores chineses também estão abusando da ideia da igualdade. Por exemplo, há poucos dias, recebi um jornal trabalhista de Hankow, onde estavam estampados dois enormes dísticos: “Nós, os trabalhadores, não queremos líderes de togas” e “Nós, os trabalhadores, estamos lutando somente pelo pão; não nós interessamos pela política”. Tais dísticos são semelhantes aos ataques que os líderes não trabalhistas recebem no Ocidente. Mas os trabalhadores ocidentais, apesar do fato de denunciarem os líderes não trabalhistas, ainda se interessam pela política, e, assim, o segundo dístico não corresponde exatamente às ideias prevalecentes no Ocidente. A felicidade e o bem-estar de um povo dependem inteiramente da questão de governo e o maior problema do Estado é o governo. Se o governo é corrupto, nenhum problema do Estado pode ser resolvido. A China, por exemplo, está agora manietada pelas algemas do controle econômico estrangeiro e perdendo anualmente cerca de 1.200.000.000 de dólares. Isso passa-se simplesmente devido ao fato do Governo chinês não prestar. Suas finanças não prosperam e o país perde anualmente grande soma. A maior parte dessa perda é representada pelo excesso da importação sobre a exportação, que atinge, anualmente, a 500 milhões de dólares. Esse meio milhão de dólares em mercadorias é o produto do trabalho humano, e perdemo-lo porque nossos industriais estão definhando. Estudemos brevemente essa perda. Os trabalhadores chineses podem trabalhar com salários menores e mais afincadamente do que quaisquer outros trabalhadores do mundo — dez horas a fio por dia — o que os capacitaria a vencer quando em concorrência com a indústria estrangeira. Mas por que a exportação de mercadorias manufaturada na China não rivaliza com a importação de artigos fabricados no estrangeiro? Por que perdemos meio milhão de dólares anualmente, só no domínio industrial? A razão principal está na corrupção do Governo chinês. Não tem nenhum poder. Se o tivesse, poderia evitar essa perda à indústria. A eliminação dessa perda significaria a utilização de meio bilião de dólares para emprego em atividades produtivas. Como poderia um governo forte evitá-la? — Mediante o aumento dos direitos alfandegários. As mercadorias estrangeiras encontrariam naturalmente dificuldades em entrar em nossos portos, e os produtos nativos teriam um mercado mais amplo. Nesse caso, os trabalhadores de todo o país teriam um acréscimo de 500 milhões de dólares em sua renda global. Mas, segundo os dísticos do órgão trabalhista de Hankow, os trabalhadores não se interessam pela política e, portanto, não exigem que o governo aumente os direitos contra as mercadorias estrangeiras e apoie a indústria nativa. A menos, porém, que isso seja feito, a China paralisará sua indústria e os trabalhadores não terão emprego. Depois, como ganharão os operários sua subsistência? Isso mostra que, sem uma boa liderança, os trabalhadores apenas abrirão as bocas para dizer disparates. Tais organizações trabalhistas não poderão prosperar e logo se desintegrarão. Serão muito estúpidos se não souberem que o pão é um problema econômico c que a política e a economia estão estreitamente relacionadas. Se não se interessarem pelo governo, como poderão resolver a questão econômica do pão e ganhar a subsistência? Os dísticos dos trabalhadores de Hankow representam os maus efeitos de uma incompreensão da igualdade. Em nossa revolução, portanto, não devemos cuidar apenas de obter a igualdade. Devemos sustentar os direitos do povo. A menos que a democracia seja plenamente desenvolvida, a igualdade pela qual lutamos será apenas temporária e logo desaparecerá. Mas, apesar de nossa revolução não ter a igualdade como seu dístico, ainda assim incluímos a igualdade na Soberania do Povo. Quando a igualdade for uma boa coisa, a aplicaremos. Quando não for, nos descartaremos dela. Somente assim poderemos desenvolver a democracia e fazer uso vantajoso da igualdade.
Certa vez, sugeri que os povos do mundo fossem divididos, de acordo com seus dons naturais, em três grupos: os que conhecem e percebem antes, os que sabem e percebem depois e os que não sabem e percebem — os descobridores, os promotores e os homens práticos. Se esses três grupos pudessem usar um ao outro e cooperar harmoniosamente, a civilização humana avançaria “dois mil quilômetros por dia”.
Apesar da natureza produzir os homens com inteligência e habilidade variáveis, o coração humano continua a esperar que todos os homens venham a ser igualmente iguais. Este é o mais elevado dos ideais morais e a humanidade deve esforçar-se ardorosamente em persegui-lo. Mas, como começar? Compreenderemos melhor o assunto mediante o contraste entre duas filosofias de vida — a egoísta, que traz benefícios apenas ao indivíduo, e a altruística, que beneficia os semelhantes. Os que só tratam de si mesmos prejudicam continuamente os outros, sem qualquer remorso na consciência. Quando essa filosofia prevalece, os homens inteligentes e hábeis empregara todos os seus poderes para usurpar os direitos e privilégios dos outros, formando gradualmente uma casta autocrática e criando desigualdades políticas — eis a situação do mundo antes das revoluções pela democracia. Os que se interessam com o bem-estar da coletividade mostram-se dispostos a se sacrificar. Onde essa filosofia prevalece, os homens hábeis e inteligentes estão sempre prontos a empregar todos os seus poderes para promover o bem-estar dos outros, e as religiões do amor e as empresas filantrópicas florescem. O poder religioso sozinho, porém, é insuficiente e a filantropia só não pode remediar a todos os males. Destarte, devemos procurar uma solução fundamental, efetuar uma revolução, derrubar a autocracia, elevar a democracia e nivelar as desigualdades. Doravante, deveríamos harmonizar os três tipos que atrás mencionei e dar a todos uma posição de igualdade. Todos deveriam ter em mira o trabalho e não a exploração. Os que são dotados de maior inteligência e habilidade devem servir os milhares e dezenas de milhares com todas as suas forças e tornar esses milhares e dezenas de milhares felizes. Os que dispõem de inteligência e habilidade menores devem servir as centenas de seus semelhantes com todas as suas forças para fazê-los felizes. O anexim “Os hábeis são escravos dos estúpidos” enfeixa esse princípio. Os que não dispõem nem de inteligência nem de habilidade deveriam ainda, até o limite de seu poder individual, servir uns aos outros e tornar felizes seus semelhantes. Desta maneira, apesar dos homens variarem quanto à inteligência e habilidade naturais, enquanto as ideias morais e o espírito do dever prevalecerem, se tornarão cada vez mais iguais. Eis a essência da igualdade.
A democracia do Ocidente não trouxe para seus povos uma contribuição plena de direitos políticos. — Dificuldades na administração de um governo democrático. — Luta entre Jefferson e Hamilton nos primeiros dias da República Americana. — A vitória dos federalistas e a política de centralização. — A Constituição dos Estados Unidos. — Porque a China não necessita de uma união federal como os Estados Unidos. — A China já foi um país unificado sob um só governo. — Os falsos argumentos pela federação apresentados por chineses ambiciosos. — Equilíbrio entre os direitos federais e estaduais nos Estados Unidos. — Desenvolvimento do sufrágio nas democracias ocidentais. — O sufrágio feminino é uma conquista moderna. — O domínio das multidões durante a Revolução Francesa e os resultantes contratempos à democracia. — O movimento democrático na Grã-Bretanha, as concessões britânicas à democracia. — A poderosa ação de Bismarck na unificação e construção do Estado alemão. — Sua hábil oposição aos movimentos democráticos e socialistas na Alemanha. — Avanço da democracia apesar de contratempos. — Os novos direitos políticos e a democracia direta na Suíça. — Governo representativo no Ocidente; seu fracasso na China.
Nas conferências anteriores, vimos que os europeus e americanos se empenharam durante dois ou três séculos em sua luta pela democracia. Hoje. desejo falar-vos sobre a extensão dos direitos conquistados pelo povo e o progresso que realizou na democracia durante esse período. As ideias democráticas já se propagaram à China e continuam a impressionar o povo chinês através de livros e jornais. Os livros e jornais, que advogam a democracia, são, necessariamente, pregoeiros ardentes da democracia. Referem-se ao “rugido da maré democrática” e ao “crescimento fenomenal das ideias democráticas” de uma maneira que, evidentemente, inspira a todos nós que os lemos. E os que estão fazendo um estudo da democracia mostram-se naturalmente inclinados a ler somente esses livros e jornais. Começamos a acalentar pensamentos democráticos e supomos que, desde que os povos ocidentais conquistaram grandes vitórias em sua luta pelos direitos políticos, a democracia está se aproximando, em plena florescência, de todas as nações do inundo. A China, dizemos, está colocada na corrente dos acontecimentos de hoje e deve também promover e favorecer a causa da democracia. Além do mais, há muitos que pensam que, se a democracia chinesa puder atingir o padrão da democracia do Ocidente, realizará seu objetivo e será considerada um Estado civilizado e progressista. Há grande divergência, porém, entre a democracia ocidental, que nos é exposta nos livros, e a que vemos na prática. Olhai para os chamados pioneiros do governo democrático no Ocidente, como os Estados Unidos e a França, cujas revoluções ocorreram há um século — quantos direitos políticos conquistou o povo na realidade? Para o crente na democracia, parece ter o povo conquistado uma soma diminuta de poder. Os que lutaram pelos direitos do povo pensavam que poderiam atingir o ideal democrático imediatamente, de modo que sacrificavam tudo e congregavam seus recursos de força numa luta de vida e de morte. Depois de terem vencido, porém, no campo de batalha, verificaram que haviam ganho, durante a revolução, muito menos poder do que esperavam. Não haviam ainda atingido a perfeita democracia.
Tomemos mais uma vez o caso da Guerra da Independência empreendida pelos Estados Unidos contra a Grã-Bretanha. As colônias levaram oito anos para ganhar a guerra e para atingir seus ideais de soberania popular. De conformidade com a Declaração de Independência, a liberdade e a igualdade são direitos naturais e inalienáveis. Os revolucionários americanos esperavam conquistar uma liberdade e igualdade completas, porém, mesmo depois de seus oito anos de lutas, ainda não gozavam de muitos direitos populares. Por que? O grande inimigo da soberania do povo nas colônias americanas era o rei britânico. Sua opressão provocou o movimento de independência e a guerra contra a Grã-Bretanha — uma guerra da democracia contra a autocracia. Desde que a guerra resultou na vitória da democracia, parece que o povo deveria ter conquistado todos os seus direitos. Mas por que não se realizou o ideal democrático? Porque, depois da independência ter sido obtida e a autocracia derrubada, surgiram entre seus aderentes os problemas pertinentes à administração do governo democrático. Em que extensão podia a soberania popular ser posta em prática? Aqui, os partidários da democracia começaram a divergir em suas opiniões. Em consequência, houve uma divisão em dois grandes partidos. Todos vós já conheceis o ilustre líder daRevolução Americana, o estadista-pai dos Estados Unidos — Washington. Houve, porém, outros heróis, que também auxiliaram na luta contra a Grã-Bretanha. Entre eles, figurava o Secretário do Tesouro, de Washington, Hamilton, e o Secretário de Estado Jefferson. Como estes dois últimos divergissem radicalmente sobre os métodos de administração e ambos contassem com numerosos partidários, tornaram-se os fundadores de dois partidos políticos absolutamente diferentes. O partido de Jefferson acreditava que o povo era dotado de direitos naturais e que, se fosse dado completo poder democrático ao povo, este usaria da descriminação no uso de sua liberdade, dirigiria seu poder para a realização de grandes tarefas e faria com que todas as atividades da nação progredissem na maior extensão. A teoria de Jefferson baseava-se na bondade da natureza humana, e asseverava que, se o povo, sob o completo regime democrático, não expressa, às vezes, sua virtude natural e deixa de praticar o bem, porém abusa de seu poder e pratica o mal, é porque encontrou algum obstáculo, sendo forçado temporariamente a agir dessa maneira. Em suma, todo o homem é naturalmente dotado da liberdade e da igualdade, e por isso, deve ter poder político. Todo homem é inteligente c, se lhe fora dado poder político para governar, faria grandes coisas para a nação. Se todos os cidadãos assumissem a responsabilidade pelo bom governo, o Estado prosperaria em paz durante muito tempo. Tal era a fé do partido de Jefferson nos direitos do povo.
A política proposta pelo partido de Hamilton opunha-se diretamente às ideias de Jefferson. Hamilton não achava que a natureza humana fosse, em todos os casos, perfeita. E sentia que, se o poder democrático fosse distribuído igualmente a todos os homens, os homens maus dirigiriam seu poder político para a consecução de fins condenáveis. E, se indivíduos corruptos se assenhoreassem do poder do Estado, empregariam os direitos e privilégios do Estado em seu benefício pessoal e em proveito de seu próprio partido. Não levariam em conta qualquer resquício de moralidade, direito, justiça ou de ordem na nação, c o resultado final seria um “Estado com três governantes” — autoridade dividida e falta de unidade — ou o domínio das multidões, isto é, de liberdade e igualdade elevadas ao extremo do excesso e da anarquia. Tal aplicação da democracia não promoveria o progresso da nação, mas a lançaria, apenas, na desordem e a faria perder terreno. Assim, Hamilton propôs que o poder político do Estado não fosse dado inteiramente ao povo, mas centralizado no governo, investido numa autoridade central. O povo comum deveria gozar somente limitado grau de democracia. Se o povo dispusesse de poder ilimitado e o empregasse no mau sentido, o efeito produzido sobre a nação seria mais sério do que as ações condenáveis de um rei. Um mau rei ainda conta com muita gente para vigiá-lo e restringi-lo, porém, o povo, que detém um poder ilimitado em suas mãos e o emprega com propósitos condenáveis, não tem ninguém para vigiá-lo e restringi-lo. Hamilton, portanto, declarava que, como a autocracia tinha de ser restringida, a democracia devia também ser limitada, e, assim, fundou o Partido Federalista, que advogava a centralização e não a difusão do poder soberano.
Antes da Guerra da Independência, as treze colônias originais eram governadas pela Grã-Bretanha e eram incapazes de se unir. Mais tarde, quando verificaram que não podiam suportar o despotismo extremo do Governo britânico, resistiram, nascendo do seu objetivo comum um espírito comum. Mas, depois da guerra, as colônias dividiram-se novamente e encontram-se incapacitadas de chegar a um acordo. Na época da revolução, a população total das treze colônias não era superior a 3 milhões de habitantes, dos quais apenas dois milhões se opunham à Grã-Bretanha. O outro milhão conservava-se leal ao rei britânico; isto é, um terço do povo, nos Estados, ainda eram “lealistas”. Somente dois terços do povo eram verdadeiros revolucionários, e os distúrbios provocados pelo terço de lealistas em seu meio fez com que a guerra se prolongasse durante oito anos, antes da consecução da vitória final. Depois da vitória sobre a Inglaterra, os lealistas não tiveram onde se esconder, e, assim, fugiram para o Norte, atravessaram o rio São Lourenço, e auxiliaram a fundar a grande colônia do Canadá, que ainda hoje é território britânico, leal à mãe-pátria.
Depois dos Estados terem assegurado sua independência, deixaram de ser incomodados por seus inimigos internos, porém seus três milhões de habitantes estavam espalhados pelos treze Estados, sendo que cada um não tinha, em geral, população superior a 200.000 almas. Os Estados não estavam em muito boa harmonia. Uma vez que não podiam unir-se, o poder da nação era fraco. Esta poderia ser facilmente dominada por outra potência europeia. O futuro apresentava-se cheio de perigos. Foi, então, que estadistas de visão de Estados diferentes sentiram que deveriam aumentar a força nacional, em escala considerável, a fim de evitar os perigos, que estavam pela frente da nação, e para estabelecer uma posição nacional permanente. Assim, propuseram que todos os Estados se unissem e formassem um grande Estado. Alguns deles advogavam o estabelecimento de uma soberania puramente popular, enquanto outros uma soberania puramente nacional como meio de promover a união. O primeiro grupo advogava o estabelecimento da autoridade local, e o segundo, a centralização da autoridade e a limitação do poder popular. Pleiteavam que todos os Estados congregassem seus direitos e podei es num forte governo central, e, por isso, eram chamados de federalistas. A luta travada entre esses dois grupos , na tribuna e na imprensa, foi longa e renhida. Finalmente, os federalistas, que advogavam a limitação da soberania popular, venceram o prélio, e os Estados reuniram-se, formando uma União Federal e promulgando a Constituição dos Estados Unidos. Desde o início da República até agora, os Estados Unidos têm aplicado essa Constituição, que divide claramente os poderes ao governo, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, de modo que não se verifiquem usurpações mútuas. Foi a primeira Constituição completa conhecida na história humana e os Estados Unidos foram a primeira nação a adotar uma Constituição escrita, com a separação dos três poderes. Os Estados Unidos “irromperam pelos céus desertos” — criaram um precedente — ao adotar essa Constituição escrita. Essa Constituição é o que chamamos de Constituição Federal dos Estados Unidos. Desde que formaram uma União Federal e adotaram a Constituição, os Estados Unidos tornaram-se a nação mais próspera do mundo, e, desde a Guerra Europeia, a mais poderosa nação do mundo.
Devido ao fato dos Estados Unidos terem iniciado o caminho para sua presente posição de riqueza e de poder com uma Constituição federal, que deixa os assuntos locais do povo entregues ao controle do Estado, um grupo de intelectuais e pensadores chineses, durante a última década, propuseram que a China, a fim de se tornar poderosa e rica, deveria também formar uma União Federal. Pensam, assim, resolver os atuais problemas da China, porém, não estabeleceram uma comparação fundamental das condições da China e dos Estados Unidos. Seu único argumento é que, uma vez que a União Federal tornou os Estados Unidos uma nação forte e rica, deveríamos também constituir uma União Federal composta das províncias. A vantagem fundamental do sistema federal americano derivava do fato de que cada Estado já tinha uma Constituição e um governo próprios. Se quisermos adotar o sistema federal dos Estados Unidos e formar uma união de províncias, em primeiro lugar as províncias deveriam promulgar Constituições e estabelecer seus próprios Governos, para depois unirem-se e promulgar uma Constituição nacional. Numa palavra, teríamos de tomar o país já unido, dividi-lo em vinte e tantas unidades independentes, correspondentes aos doze ou mais Estados americanos independentes existentes há mais de um século, para depois amalgamá-los. Tais opiniões e ideias são totalmente falazes. Tornamo-nos meros papagaios, repetindo de olhos fechados o que os outros nos dizem. Devido ao fato dos Estados Unidos, com seu sistema federal, terem se tornado a potência mais rica e poderosa do mundo, pensamos que devemos copiar seu sistema a fim de que a China possa tornar-se rica e poderosa. Isso assemelha-se ao que disse antes: enquanto os ocidentais lutaram pela democracia, não se referiram à democracia, mas à liberdade e à igualdade; assim, nós chineses, em nossa revolução, devemos adotar os dísticos ocidentais e proclamar que estamos lutando pela liberdade e pela igualdade! Tudo isso não passa de um sectarismo cego e estúpida incompreensão. Os que propõem a autonomia para as províncias desta União argumentam superficialmente que os Estados Unidos foram construídos sobre os alicerces formados por diversos pequenos Estados autônomos e que a China dispõe de alicerces em suas muitas províncias que também poderiam torná-la independente, rica e forte. Eles não têm ideia das condições que existiam quando a independência americana foi declarada. Quando os Estados se libertaram da Grã-Bretanha, por que pensaram na união? Porque os treze Estados eram completamente separados, não estavam sob um controle unificado, e, portanto, tinham de se unir, a fim de formar uma só nação.
Qual é, porém, a situação na China? A China propriamente dita foi aparentemente dividida em 18 províncias; acrescentai as três províncias da Mandchúria e a província de Sinkiang, e teremos vinte e duas províncias. Depois, há o Jehol, o Suiuan, o Kokonor e muitas outras áreas especiais, além da Mongólia, do Tibete e de outras dependências. Durante os 260 anos da dinastia mandchu, todas essas circunscrições estavam sob o controle do Governo mandchu. Durante a dinastia Ming, as províncias foram unidas. Durante a dinastia Yuan, não somente foi todo o território chinês unificado, mas a Europa e a Asia haviam quase sido unificadas sob um só Governo. Remontando à época da dinastia Sung, verificamos que as províncias estavam estreitamente unidas e, ao Sul do Yangtze, todas as províncias meridionais formavam também um país unificado. Até na época das dinastias Tang e Han, as províncias da China estavam unidas sob um só governo. Por aí, podemos ver que as províncias, no decurso de nossa história, têm sido unidas, e são separadas, como partes componentes da China e não se mostraram incapazes de se colocar sob um regime unificado. Além do mais, os períodos de unidade foram também períodos de bom governo e os períodos de desunião fases de desordem. A riqueza e o poder dos Estados Unidos não provieram apenas da independência e da autonomia dos Estados originais, mas, antes, do progresso de seu governo unificado, que se seguiu à federação dos Estados. Sua riqueza e poder foram resultado da união dos Estados e não da divisão em Estados. Desde que a China foi originalmente unificada, não devemos dividi-la novamente em províncias separadas.
A atual falta de unidade da China não passa de um fenômeno temporário de desordem, resultado da usurpação de domínios pelos militares. Devemos acabar com esses processos. De modo nenhum, poderemos permitir novamente a má aplicação do princípio da federação para servir como uma escusa destinada a proteger os militaristas em suas usurpações de território. Se os militaristas conseguirem uma escusa para dividir a China em domínios, a China nunca será rica e poderosa. Se dissermos que o sistema federal americano é a chave da riqueza e do poder, estaremos colocando o efeito antes da causa. Por que as nações estrangeiras estão pretendendo impor um controle internacional sobre a China? Onde percebem elas que estão nossas fraquezas? Elas vêm a classe intelectual na China expressando opiniões e apresentando propostas que vão contra as tendências dos tempos, e, consequentemente, passam a considerar-nos como nação inferior. Julgam que não podemos administrar nossos próprios negócios de modo que devem administrá-los por nós.
Se nós, os povos do Extremo Oriente, que estamos na encruzilhada dos movimentos mundiais modernos, quisermos fazer uso correto da expressão “federação de Estados”, deveremos cogitar da formação de uma união da China e do Japão, ou da China, Annam, Birmânia, Índia, Pérsia e Afeganistão. Pois esses Estados nunca foram unidos, e sua união, a fim de tornar a Ásia rica e poderosa, em oposição à Europa, seria o único uso consistente da ideia de federação. Quanto às 18 províncias da China propriamente dita, as três províncias da Mandchúria e todas as outras divisões especiais da China, já se encontravam unificadas durante a dinastia mandchu. Foi somente quando derrubamos a dinastia mandchu e herdamos seu território que fomos capazes de estabelecer a atual República. Por que devemos agora provocar a divisão do país, que sempre foi unificado? Os que advogam a divisão da China são movidos pela ambição. Querem transformar as províncias em domínios particulares. Tang Chi Yao apoderou-se do Yunnam. Chao Heng Tan conquistou o Hunan. Lu Yung Tin, o Kwangsi. Chen Chiung Ming, o Kwantung — tal tipo de federação seria uma federação militar, e não uma federação de povos autônomos. Tal federação em nada aproveitaria à China, mas apenas traria vantagens a esses indivíduos ambiciosos. Devemos estabelecer uma clara distinção quanto a esse ponto.
Quando os 13 Estados americanos asseguraram sua independência da Inglaterra, não tinham nenhuma unidade política, e a formação de uma nação unificada constituía tarefa tremendamente difícil. Assim, os debates entre os partidos de Hamilton e de Jefferson eram bem renhidos. Quando a Constituição foi elaborada, a cada Estado foi dada a liberdade de votar. Finalmente, o partido de Hamilton venceu e a política jefersoniana começou a perder terreno. Devido ao fato do povo do país, na ocasião em que a Constituição foi elaborada, estar dividido nesses dois grandes partidos, com diferentes teorias políticas, a Constituição que foi promulgada era um documento de compromisso entre os dois partidos. Os poderes políticos importantes, que eram da alçada do governo central, estavam claramente definidos na Constituição. As questões não reguladas pela Constituição foram deixadas à alçada dos governos locais
A cunhagem da moeda, por exemplo, foi colocada sob o controle do governo central, e os governos locais não podiam transgredir esse dispositivo. As relações exteriores foram delegadas ao governo central e nenhum Estado podia concluir, individualmente, tratados com país estrangeiro. Outros assuntos, como a defesa nacional, o treinamento de forças terrestres e navais, o direito de movimentar as milícias estaduais, foram confiados ao governo central. As questões de detalhe, que não foram delegadas pela Constituição ao governo central, foram deixadas à regulamentação individual dos Estados. Essa divisão de poder era medida de compromisso entre o governo central e os governos estaduais. Que direitos obteve o povo com esse compromisso? — Apenas um sufrágio limitado. O sufrágio, nessa época, era limitado à eleição de representantes do Congresso e de funcionários estaduais e locais. O presidente e os senadores eram ainda eleitos indiretamente por eleitores escolhidos pelo povo. Mais tarde, os poderes do povo foram gradualmente ampliados até que, hoje, o presidente, os senadores, e todos os funcionários estaduais e locais, que têm qualquer relação direta e importante com o povo, são eleitos pelo sufrágio popular direto. Eis o que chamamos de sufrágio universal.
A evolução, portanto, nos Estados Unidos, do sufrágio limitado ao sufrágio universal, foi muito gradual. A princípio, o sufrágio era privilégio somente dos homens. Há apenas uma 011 duas décadas, as mulheres não possuíam o direito de votar. Há vinte anos, o movimento em prol do sufrágio feminino tornou-se muito forte na Europa e na América. Todos vós sabeis que, nessa época, muita gente pensava que as mulheres não obteriam êxito em sua luta, sob o fundamento de que eram inferiores aos homens em intelecto e habilidade, e não podiam fazer todas as coisas de que os homens eram capazes. Assim, havia muitos opositores ao sufrágio feminino, não apenas entre os homens, mas até entre as próprias mulheres. Mesmo se todas as mulheres da nação tivessem lutado violentamente pelo direito do voto, mal poderiam esperar conseguir êxito. Há sete ou oito anos atrás, porém, as mulheres da Grã-Bretanha, e, não muito depois, as mulheres dos Estados Unidos, lograram êxito na sua luta. A causa foi a Guerra Europeia. Durante a guerra, os homens foram para o Exército e despenderam suas energias nos campos de batalha. Consequentemente, grande parte das atividades da nação ficaram sem homens para executá-las. Não havia homens em quantidade suficiente para trabalhar como funcionários e trabalhadores nos arsenais, para ser motorneiros e condutores de bondes e para assumir a responsabilidade pelas diversas espécies de atividades, que exigiam uma atenção enérgica na frente interna. As mulheres foram convocadas para preencher os lugares dos homens, e, então, os que se opunham ao sufrágio feminino, alegando que as mulheres não podiam executar os trabalhos dos homens, ficaram sem seus argumentos e não ousaram mais frustrar o movimento.
Os advogados do sufrágio feminino conquistaram, então, vitória completa e, depois da guerra, a questão foi finalmente resolvida. Podemos ver daí que o objetivo das revoluções ocidentais foi originariamente a democracia. A Guerra da Independência americana foi uma guerra pela democracia. Depois da guerra, todavia, os camaradas de causa dividiram-se em dois grupos — um advogando a completa democracia, outro pleiteando a outorga de poderes limitados ao povo, porém grandes poderes para o Estado. Muitos acontecimentos ulteriores vieram provar que o povo comum não possuía a necessária inteligência e poder para merecer completa soberania. O fato de Jefferson e seus discípulos terem tentado obter maior soma de direitos para o povo e terem fracassado mostra que o povo comum não sabia como exercer a soberania política. Assim, apesar das revoluções do Ocidente nos últimos duzentos ou trezentos anos terem sido promovidas sob o estandarte da democracia, o resultado real foi somente a consecução do sufrágio para os homens e mulheres.
A Revolução Francesa também tinha como objetivo a democracia. Sábios advogados da democracia, como Rousseau, declaravam que todos os homens têm direitos naturais, que os reis e príncipes não podiam usurpar, e tais teorias deram nascimento à revolução. Quando a democracia começou a ser aplicada depois da revolução, os nobres e membros da realeza ficaram numa posição tão embaraçosa que não puderam mais permanecer na França e tiveram de fugir para outros países. O povo francês encontrava-se, então, realizando sua primeira experiência numa completa democracia. Ninguém, no país, ousava dizer que o povo não possuía inteligência e poder. Se alguém o fizesse, seria acusado de ser contrarrevolucionário e imedia tamente guilhotinado. O resultado foi a implantação da tirania das multidões. Seguiu-se a anarquia, a sociedade foi apoderada de pânico, ninguém se sentia com a vida garantida, da manhã à noite. Até um membro do Partido Revolucionário podia ser sentenciado à morte, devido ao fato de ter pronunciado uma palavra que ofendesse as multidões. Nessa experiência de pura democracia, não somente muitos príncipes., senhores e nobres foram assassinados, mas também não poucos revolucionários da época, como Danton, foram mortos pela populaça porque pronunciaram algumas palavras que a desagradou. Quando, depois, o povo francês compreendeu que tal estado de coisas era demasiado opressivo, muitos, que haviam sido partidários ardorosos da democracia, desanimaram, esfriaram seus ardores, voltaram-se contra o governo democrático e apoiaram Napoleão na sua pretensão de tornar-se imperador.
A democracia encontrava, agora, um grande obstáculo. Não da autocracia: o movimento democrático já se tornara poderoso e, como venho dizendo, o mundo já alcançara a idade da democracia. Era óbvio que a democracia continuaria a progredir. Por que, então, depois da democracia ter suplantado a autocracia, se ergueram tais barreiras ao seu progresso? Que as criou? Uma causa foi a atitude dos partidários conservadores da democracia, que advogavam uma limitação definida da soberania do povo e a centralização do poder do Estado, antes do que a realização da completa democracia. Mas esse grupo não era poderoso e não impedia muito seriamente o progresso da democracia. A verdadeira obstrução foram os partidários da democracia absoluta. Quando, durante a Revolução Francesa, o povo conquistou o poder integral, não quis mais lideres e sentenciou à morte muitos dos mais sábios e capazes. Os grupos de partidários violentos, que ficaram, eram despidos de percepção clara e facilmente transformados em instrumentos por outros. Sem seus “bons ouvidos e olhos”, o povo da nação era incapaz de distinguir quem tinha razão e quem não a tinha, em qualquer questão que surgisse. Bastava que alguém o incitasse para que todos o seguissem cegamente. Tal estado de coisas era extremamente perigoso. Assim, quando o povo despertou para a realidade, no devido curso do tempo, não ousou advogar novamente a democracia. Dessa reação contra a democracia, desenvolveu-se um grande obstáculo ao seu progresso, um obstáculo criado pelo próprio povo que advogava seus próprios direitos.
Desde a Revolução Francesa, pequenos países da Europa, como a Dinamarca, Holanda, Espanha e Portugal desenvolveram quase inconscientemente movimentos democráticos. O movimento democrático na Europa encontrou muitos obstáculos, principalmente a oposição da autocracia, porém não pôde ser destruído. Quando surgiam óbices internamente, não se detinha e prosseguia em seu progresso natural. Por que acontecia isso? Porque não há maneiras de se deter uma grande corrente ou tendência fluindo em sua direção natural. Devido a esse princípio, muitos Estados autocráticos estão acompanhando a maré e preparando suas velas para se pôr ao mar. A Inglaterra, por exemplo, teve outrora uma revolução e sentenciou à morte seu rei, porém, depois de dez anos, a Monarquia foi restaurada. A nobreza britânica, todavia, tem sido constituída de oportunistas. Viu que a democracia era uma força demasiado poderosa para se lhe opôr resistência, e, assim, ao invés de lutar, chegou a um compromisso com ela. Os inícios da moderna democracia encontram-se originariamente na Inglaterra. Depois da restauração da Monarquia e da eliminação da democracia na Inglaterra, o governo caiu nas mãos da nobiliarquia. Somente os nobres podiam tratar dos assuntos governamentais e todas as outras classes eram mantidas afastadas do Governo. Depois de 1832, foi outorgado ao povo o direito do voto, e, depois da Guerra Europeia, o sufrágio foi estendido às mulheres. No tratamento dispensado às suas colônias, a Grã-Bretanha também empregou o método da concessão gradual à medida que a maré democrática avançava. Tomemos o caso da Irlanda, que é uma das três ilhas da Grã-Bretanha. A princípio, a Inglaterra empregou a força militar para submeter a Irlanda, porém, quando viu o surto do movimento democrático na Irlanda, abandonou sua política de supressão, concordou em satisfazer as aspirações dos irlandeses e concedeu-lhes a independência.
O governo britânico não semente tem cedido terreno nas Ilhas Britânicas, mas também fora delas. Cedeu terreno ao Egito. Durante a Guerra Europeia, o Egito prestou valiosa colaboração. à Grã-Bretanha e, a fim de encorajar os egípcios em sua luta, o Governo britânico prometeu-lhes a concessão de muitos direitos depois da guerra e sua independência definitiva. Depois da guerra, a Grã-Bretanha repudiou sua palavra e não concedeu nenhum dos direitos que havia prometido ao Egito, que exigiu sua independência e a execução dos compromissos assumidos. Seguiu-se tremenda agitação, tendo a Grã-Bretanha recuado, e o Egito obtido sua independência. A Índia está agora exigindo uma extensão do sufrágio e a Grã-Bretanha está lhe prometendo tudo o que lhe é solicitado. O fato da Inglaterra ter um Partido Trabalhista e conceder aos trabalhadores o direito de representação na formação de seus gabinetes é suficiente para mostrar que a nobreza está fazendo concessões e que a democracia está avançando. A nobreza britânica compreendeu o grande poder da democracia e tem seguido a tendência dos tempos ao invés de se lhe opôr. Consequentemente, pode ainda manter sua velha forma de Governo e o Estado não confronta qualquer perigo sério.
Desde as Revoluções Americana e Francesa, os ideais democráticos têm se propagado firmemente por todo o mundo. As teorias mais recentes sobre a democracia têm sua verdadeira origem, todavia, na Alemanha. O espírito alemão sempre foi rico em ideias democráticas. Os sindicatos são numerosos na Alemanha, e o maior partido trabalhista do mundo ainda se encontra na Alemanha. A filosofia democrática desenvolveu-se cedo na Alemanha, porém até a Guerra Europeia, não produzira tantos frutos como na França ou na Grã-Bretanha. A razão disso está nos métodos empregados pelo Governo alemão no que diz respeito à democracia, diferentes dos métodos empregados pelo Governo britânico. Os resultados, portanto, alcançados também foram diferentes. Quais foram os métodos empregados pelo Governo alemão? Quem impediu o crescimento da democracia na Alemanha? Muitos pensadores afirmam que a obstrução começou com Bismarck, o afamado e talentoso estadista alemão, que, há 30 ou 40 anos atrás, determinava todas as importantes normas políticas do mundo. Os estadistas mundiais não podiam escapar à sua influência, de modo que a Alemanha de seu tempo foi o Estado mais poderoso do mundo. O poder da Alemanha foi inteiramente construído pelas mãos de Bismarck. Antes dele ter assumido o governo, a Alemanha compunha-se de vinte ou mais pequenos Estados habitados por povos homogêneos, porém, sob domínios separados, sendo mesmo mais desunidos do que as 13 colônias americanas. Sob o jugo de Napoleão, o povo sofreu desgraças intoleráveis. Foi então que Bismarck surgiu e empregou sua sabedoria e habilidade, juntamente com sua grande energia política, para fundir os vinte Estados vizinhos com seus povos homogêneos numa grande confederação, e colocou a Alemanha na estrada da riqueza e do poder.
Há dez anos, a Alemanha era a nação mais poderosa do mundo, enquanto os Estados Unidos era a mais rica. Devido ao fato da Alemanha e dos Estados Unidos serem federações de Estado, muita gente pensa que a China, para ser rica e poderosa, deve seguir seus exemplos. Não compreende que a Alemanha, de 30 ou 40 anos atrás, começara apenas com a Prússia. Foi depois que Bismarck assumiu as rédeas do governo, fez da Prússia o alicerce da nova nação, organizou o Exército, preparou o país para a guerra, expurgou o governo dos elementos corruptos e ineficientes e uniu os vinte ou mais Estados, que surgiu a moderna Alemanha. Quando Bismarck estava formando a Confederação, a França e a Áustria opunham-se-lhe com todo seu poderio. A razão porque a Áustria se opunha ao estabelecimento da união federal na Alemanha era o seguinte: apesar da Áustria e da Alemanha serem povoadas pela mesma raça teutônica, o imperador austríaco também estava lutando pelo poder supremo na Europa e, assim, não queria que a Alemanha se unisse e se tornasse mais forte do que a Áustria. Ninguém, porém, mais hábil do que Bismarck. Ele decidiu entrar nessa luta pela supremacia e, em 1866, num movimento fulminante, declarou guerra à Áustria. A Áustria foi imediatamente derrotada. A Alemanha, após sua vitória, poderia ter eliminado a Áustria do mapa, porém Bismarck sentiu que, apesar do Governo austríaco se ter oposto à Alemanha, o povo austríaco era do mesmo sangue que o da Alemanha e não representaria para ela grande perigo no futuro. Bismarck era dotado de grande visão, bem sabendo que as nações que representavam um grande perigo para a Alemanha eram a Inglaterra e a França. Assim, imediatamente depois de sua vitória sobre a Áustria, Bismarck apresentou-lhe as mais magnânimas condições de paz, e a Áustria, com a derrota fresca ainda em seu espírito, ficou, naturalmente, muito grata. Somente seis anos depois, em 1870, a Alemanha declarava guerra à França, derrotava Napoleão III e capturava Paris. Quando se celebrou a paz, a França teve de ceder a Alsacia-Lorena à Alemanha. Em consequência dessas duas guerras, os vinte ou mais pequenos Estados alemães tornaram-se poderosamente unidos e converteram-se numa nação unificada. Desde o estabelecimento da Confederação Germânica até a Guerra Europeia, a Alemanha era o Estado mais poderoso do mundo. Era a senhora da Europa e as nações europeias consideravam-na como guia. A Alemanha atingiu a essa posição eminente graças inteiramente ao gênio criador de Bismarck. Vinte anos depois de ter assumido o governo, Bismarck transformou uma Alemanha fraca num Estado poderoso. Depois de tal feito, apesar da democracia florescer na Alemanha não dispunha de força suficiente para desafiar o governo.
Enquanto Bismarck esteve no poder, não somente dominou o mundo no campo político e militar bem como na esfera diplomática, mas também empregou sua habilidade consumada ao tratar com o movimento democrático e para obter vitórias sobre seu próprio povo. Na última parte do século XIX, depois da Guerra Franco-Prussiana, começaram a irromper guerras econômicas bem como guerras em prol da democracia. A paixão exaltada pela democracia começara a arrefecer gradualmente, porém outra coisa estava surgindo — o socialismo. O socialismo é semelhante ao Princípio da Subsistência do Povo, que tenho advogado. Quando o povo se assenhoreou da teoria do socialismo, começou a abandonar sua luta ardorosa pelos direitos democráticos e a lutar, ao invés, pelos direitos econômicos. Tratava-se de uma guerra de classes, entre os trabalhadores e a classe abastada. As organizações trabalhistas haviam sido formadas, em primeiro lugar, na Alemanha, e, assim, o socialismo teve seu primeiro surto nesse país. Os grandes pensadores socialistas foram alemães. Todos conheceis o grande socialista Marx, que era alemão. O veterano partido revolucionário na Rússia, que tentou praticar o socialismo marxista era composto de discípulos de Marx. Nessa época, o socialismo alemão dispunha de uma influência muito grande.
O socialismo foi originariamente ligado estreitamente à democracia e ambos se desenvolveram simultaneamente. Mas, por que as ideias democráticas na Europa provocaram as revoluções democráticas, enquanto que a propagação das teorias socialistas não provocaram revoluções econômicas? Porque o nascimento do socialismo, na Alemanha, coincidiu com o regime de Bismarck. Outros estadistas certamente empregariam a força política para esmagar o socialismo, porém Bismarck escolheu outros métodos, ele sabia que o povo alemão era esclarecido e que as organizações trabalhistas haviam sido firmemente estabelecidas. Se tentasse a supressão do socialismo pela força política, agiria em vão. Bismarck já se manifestara a favor do exercício do controle absoluto por parte de uma autoridade centralizada. Quais os métodos que empregou para tratar com os socialistas? O Partido Socialista advogava re formas sociais e a revolução econômica. Bismarck sabia que não podiam ser suprimidas mediante a força política, e, assim, pôs em efeito uma espécie de socialismo de Estado como um antídoto contra o programa dos socialistas marxistas. As estradas de ferro, por exemplo, são um meio vital de comunicações e uma indústria fundamental em qualquer nação, essencial para o desenvolvimento de outras indústrias. Antes da construção da Estrada de Ferro Tientsin-Pukow, Chihli, Shan-tung e o Norte do Kiangsu eram regiões extremamente pobres. Depois da construção dessa ferrovia, as regiões ao longo de seu leito tornaram-se muito produtivas. Antes da construção da Estrada de Ferro Peiping-Hankow, Chihli, Hupeh e Honan eram regiões estereis, porém, depois da construção da estrada, essas províncias tornaram-se bastante prósperas. No tempo em que Bismarck tomou as rédeas do governo na Alemanha, a maior parte das estradas de ferro da Grã-Bretanha e da França eram de propriedade da classe abastada, todas as indústrias da nação tornaram-se monopólio da classe privilegiada, e começaram a aparecer os inúmeros males decorrentes de uma distribuição desigual da riqueza. Bismarck não quis que tais condições surgissem na Alemanha, e, assim, pôs em prática um socialismo de Estado. Colocou todas as estradas de ferro do país sob a posse e controle do Estado e todas as indústrias sob a administração do Estado. Fixou as horas de trabalho e estabeleceu pensões para a velhice e seguros de acidentes no trabalho. Essas medidas figuravam nos programas de reforma, que o Partido Socialista estava tentando executar. Bismarck, com sua grande visão, tomou a dianteira e empregou o poder do Estado para executá-las. Além do mais, empregou os lucros das estradas de ferro, bancos e outras empresas exploradas pelo Estado para a proteção dos trabalhadores, o que naturalmente os contentou. Antes disso, todos os anos, várias centenas de trabalhadores costumavam emigrar da Alemanha, porém, de- pois que a política econômica de Bismarck foi posta em prática, não só deixaram os trabalhadores alemães de emigrar como também grande número de operários de outros países passaram a imigrar para a Alemanha. Bismarck enfrentou o socialismo, antecipando-o e tomando precauções contra ele, ao invés de desferir um ataque frontal. Por meios invisíveis, provocou a dissolução das questões pelas quais o povo estava lutando. Quando não havia mais nada por que o povo lutar, as revoluções deixaram de irromper. Esse foi o método ardiloso pelo qual Bismarck resistiu à democracia.
Volvendo agora o olhar por toda a história do progresso democrático, vemos que o primeiro contratempo ocorreu depois da Revolução Americana, quando os partidários da democracia se dividiram em dois campos, o grupo de Jefferson advogando a democracia absoluta e o de Hamilton a centralização do poder no governo, quando a política de centralização saiu vencedora da liça. O segundo contratempo ocorreu durante a Revolução Francesa, quando o povo conquistou a completa soberania, porém abusou dela e transformou-a no domínio das multidões. O terceiro contratempo verificou-se quando Bismarck restringiu o poder do povo com a aplicação de seus ardilosos planos. O pensamento democrático no Ocidente atravessou essas diversas fases e experimentou esses contratempos, mas, mesmo assim, contrariamente a todas as expectativas, continuou a caminhar para a frente com suas próprias forças e nenhuma força humana tem sido capaz de detê-lo ou de apressá-lo. Hoje em dia, a democracia tornou-se o maior problema do mundo, e os pensadores, sejam conservadores ou progressistas, compreendem que a ideia democrática não pode ser suprimida. À medida, porém, que se desenvolve, a democracia sofrerá inevitavelmente abusos, da mesma maneira que a liberdade e a igualdade o sofreram.
Resumindo: as lutas europeias e americanas pela liberdade e igualdade frutificaram na democracia. Depois da democracia ter prevalecido, foi muito abusada. Antes do desenvolvimento da democracia, as nações ocidentais tentaram suprimi-la e destruí-la com o poder autocrático. Quando a autocracia foi destruída, os partidários da democracia tornaram-se obstrucionistas da democracia. Quando a democracia se concretizou em realidade, produziu muitos males, surgindo desse modo um obstáculo ainda maior. Finalmente, Bismarck viu que o povo não podia ser sopitado em seu desejo pela democracia e, assim, empregou o poder do Estado como um sucedâneo do poder do povo e pôs em prática o socialismo de Estado. Essa política também dificultou a marcha da democracia. Depois da Guerra Europeia, os governos despóticos da Alemanha e da Rússia foram derrubados e as mulheres, em vários países, conquistaram o direito do voto. Assim, a democracia, hoje, tornou-se um problema mais importante, cuja solução não é fácil.
Remontando ao início da aplicação da democracia, vemos que o povo americano, depois de sua revolução, conquistou, em primeiro lugar, o direito do voto. Nessa época, os ocidentais pensavam que a democracia importava no sufrágio e em nada mais. Se todo o povo, irrespectivamente de sua situação social, riqueza ou capacidade intelectual, tinha o direito do voto, a democracia atingira seu objetivo final. Que está, porém, acontecendo nos últimos três ou quatro anos, depois da Guerra Europeia? Apesar dos muitos contratempos que sofreu, a democracia continua a marchar para a frente e não pode ser detida. Recentemente, o povo da Suíça conquistou, em acréscimo ao direito do voto, os direitos da iniciativa e do referendum. Se o povo tem o direito de escolher os funcionários, também goza do direito de iniciar e emendar as leis. Os direitos de iniciativa e de referendum estão relacionados com a promulgação das leis. Se uma maioria pensa que certa lei será benéfica, poderá apresentá-la — eis o direito da iniciativa. Se acha que certa lei é desvantajosa, pode emendá-la — eis o direito do referendum.O povo suíço goza, assim, de mais dois direitos populares não usufruídos por outros povos. Ao todo, são três esses direitos. Alguns dos Estados recém-desenvolvidos, situados na parte Noroeste dos Estados Unidos, obtiveram, nos anos recentes, outro direito, além dos que goza o povo suíço — o direito de exonerar funcionários. Apesar, desse direito não se revestir de caráter universal em todo o país, vários Estados o exercem, de modo que grande número de americanos goza os quatro direitos populares — sufrágio, iniciativa, referendum e exoneração de funcionários. Em alguns dos Estados do Noroeste, esses direitos têm sido exercidos com muito êxito, e, no futuro, poderão vir a ser aplicados em todo o território dos Estados Unidos e, talvez, em todo o mundo. No futuro, qualquer nação, que desejar uma democracia completa, deverá certamente seguir o exemplo desses Estados americanos, que outorgaram quatro direitos ao povo. Esses quatro direitos, quando aplicados, resolvem completamente os problemas da democracia? Os pensadores do mundo, ao verificarem que, apesar do povo ter esses quatro ideais de direitos populares, não foi completamente resolvido o problema da democracia, dizem que se trata apenas de uma questão de tempo. As ideias do governo popular direto – dizem eles — desenvolveram-se recentemente. A velha teocracia durou milhares de anos. A autocracia, hoje, na Grã-Bretanha, no Japão e na Itália está ainda se confrontando com sérios problemas e certamente não durará mais tempo. A democracia direta é uma coisa muito nova. Apareceu somente nas últimas décadas. Não é de admirar que seja uma grande questão ainda não resolvida!
Qual é a participação do povo no governo nas nações que possuem o mais elevado grau de democracia? Quanto poder possuem? A única realização registada nos últimos cem anos foi o direito de eleger e ser eleito. Depois de eleitos representantes do povo, os cidadãos podem reunir-se em Congresso ou Parlamento, a fim de administrar as questões do Estado. Todas as medidas de importância nacional deverão passar pelo Parlamento antes de serem postas em vigor. Sem a aprovação do Parlamento, não poderão ser executadas. Trata-se do governo representativo ou parlamentar. Mas essa forma de governo assegura o perfeito desenvolvimento da democracia? Antes de ter sido assegurado um sistema representativo de governo, os povos europeu e americano lutaram pela democracia, pensando que conseguiriam o grau mais elevado de soberania popular, exatamente como o Partido Revolucionário chinês pensa em alcançar o padrão do Japão ou do Ocidente, considerando sua colimação o maior êxito que poderia conseguir. Se acreditais que nos tornando como o Japão ou as nações ocidentais atingiremos o limite da perfeição, ouvi minhas próximas ponderações.
Os europeus e americanos pensavam que, se pudessem atingir o estágio do governo representativo, se dariam por absolutamente satisfeitos. Depois de nossa revolução de 1911, não conseguimos o governo representativo? Quais os benefícios que o povo realmente obteve da democracia? Todos vós sabeis que nossos representantes se tornaram meros “porcos”. Se houver dinheiro, estão prontos a se vender, dividir o botim, cobiçando sempre mais ganho. São desprezados por toda a nação. Nenhuma nação, que adotou um sistema representativo de governo, pode evitar alguns desses abusos, porém, na China, o governo representativo tem provocado males intoleráveis. Se todo o povo ignora o seu governo representativo e não tenta remediá-lo, porém, coloca os negócios da nação nas mãos dos representantes “porcos” e lhes permite uma conduta condenável, o futuro da nação fica em terrível perigo. Assim, a esperança alimentada pelos estrangeiros de que o governo representativo assegurará a estabilidade e a existência pacífica do Estado não se funda na realidade da situação. A democracia, logo que surgiu, teve de enfrentar muitas dificuldades. Depois de aplicada, experimentou muitas humilhações, porém ainda continua a crescer. O fruto, todavia, da democracia consistiu até agora no governo representativo. Quando é colhido, as nações pensam que alcançaram o limite. Recentemente, a Rússia desenvolveu novo tipo de governo, não um governo representativo, mas um governo absoluto do povo. Não dispomos ainda de muitos dados que nos permitam julgar essa nova forma de Governo, porém poder-se-ia pensar que um governo absoluto do povo ofereça muitas vantagens sobre um governo representativo.
A democracia, porém, advogada nos Três Princípios, em cuja base o Partido Kuomintang se propõe a reconstruir a China, é diferente da democracia ocidental. Quando nos utilizamos da história do Ocidente como material para estudo, não estamos copiando servilmente o Ocidente nem trilhando o seu caminho. Adotaremos o nosso Princípio da Soberania do Povo e refaremos a China, transformando-a numa nação sob o completo domínio popular, na vanguarda da Europa e da América. Para colimar esse objetivo, devemos, em primeiro lugar, estudar a democracia até que a compreendamos com perfeita clareza. O propósito principal de minha conferência de hoje foi o de fazer-vos ver que as nações adiantadas do Ocidente, que praticaram a democracia nos últimos cem anos, alcançaram apenas uma versão do governo representativo. Esse sistema transplantado para a China gerou muitos abusos, de sorte que a democracia é ainda um problema intrincado para nós. Farei ainda mais duas conferências sobre a Soberania do Povo e tentarei encontrar uma solução fundamental de nossas dificuldades na China. Sc não pudermos remover nossas dificuldades, a China continuará ainda a marchar na retaguarda das nações do Ocidente. Se encontrarmos uma solução, a China será capaz de sobrepujar a Europa e a América.
13 de Abril de 1924.
A oposição intimorata dos boxers aos ocidentais e sua confiança nas antigas armas de guerra chinesas. — A derrota dos boxers mostrou à China a superioridade da civilização material do Ocidente e foi seguida de uma fé extrema e imitação do Ocidente. — As ciências materiais ocidentais progrediram muito mais do que a ciência ocidental de governo. — O rápido progresso da ciência militar do Ocidente; couraçados e canhões. — O avanço lento nos métodos de aplicação da democracia política. — Os sistemas políticos do Ocidente não podem ser aplicados “in totum” na China. — Necessidade para um estudo e formulação de pensamento cuidadosos na adaptação da democracia à China. — O temor dos ocidentais de um governo demasiado poderoso e de sua influência sobre o espírito chinês. — Reverência decrescente pelos antigos e sábios imperadores da China. — Uma nova teoria é proposta: distinção entre soberania e habilidade. — Os três tipos, descobridores, promotores e operadores, comparados com os engenheiros, capatazes e trabalhadores. — A democracia não pode esperar pela inteligência e previsão de todo o povo. — Necessidade de uma nova atitude para com o governo. — A ilustração dos “Três Reinados”, Ah Tou e Chu Ko Liang. — Os hábeis imperadores dos velhos dias. — O povo, como acionista, devia escolher hábeis gerentes. — O emprego de especialistas aplicado ao governo. — O governo como “chauffeur” ou mecânico perito. — Lição extraída de um passeio de automóvel em Xangai.
As ideias sobre a democracia política do povo chinês provieram do Ocidente e, assim, ao executarmos os princípios de nossa revolução e a reforma de nosso governo, estamos imitando os métodos ocidentais. Por que? Porque vemos que a civilização ocidental “tem voado como um galo, abrindo seu caminho, percorrendo dois mil quilômetros num só dia”, que é de todos os modos mais adiantada do que a civilização chinesa. Somente no que diz respeito às armas militares, o Ocidente está realizando diariamente aperfeiçoamentos e muito adiante da China. Durante milhares de anos, as armas chinesas foram o arco e a flecha, a espada e a lança, e, há 20 ou 30 anos atrás, essas armas ainda estavam sendo empregadas. Em 1900, os boxers, cujo objetivo original era eliminar toda a influência ocidental da China, empenharam-se numa guerra com as forças aliadas de oito nações, e as armas que usavam eram longas espadas! As grandes espadas contra as metralhadoras e canhões dos alliados! Esta era urria reação dos chineses à nova cultura dos europeus e americanos, uma espécie de oposição a seu progresso material. Os boxers não acreditavam que a civilização ocidental fosse superior à civilização chinesa, e, a fim de demonstrar a grandeza da civilização chinesa, foram ao extremo de duvidar da superioridade dos fuzis e dos canhões dos ocidentais, essas armas mortíferas e precisas, frente às espadas chinesas. Assim, iniciou-se a rebelião dos boxers.
O valor dos boxers, quando se levantaram pela primeira vez contra os ocidentais, era quase irresistível. Tomemos a batalha de Yangtsun. Quando o almirante britânico Seymour, à frente de 3.000 soldados aliados, tentou dirigir-se de Tientsin para Peiping, a fim de levantar o cerco das legações, foi cercado pelos boxers em Yangtsun. Os boxers não dispunham de fuzis ou canhões estrangeiros, mas apenas de espadas, enquanto que as forças aliadas sitiadas contavam com excelentes fuzis e canhões. Para os boxers, a batalha foi uma luta corpo-a-corpo. Quando Seymour verificou que havia sido cercado, ordenou que suas metralhadoras ceifassem os boxers, porém, apesar de grande número deles terem sido mortos pelo fogo das metralhadoras e os fragmentos de corpos humanos voarem em todas as direções, os boxers não demonstraram medo nem vacilaram. À medida que os soldados da linha de frente caíam, eram substituídos por outros, decididos a cercar os aliados, mesmo se tivessem de encontrar a morte.
Em consequência, os três mil soldados de Seymour não ousaram marchar diretamente sobre Peiping, passando por Yangtsun, porém, retiraram-se para Tientsin, onde ficaram em expectativa. Somente depois de obterem importantes reforços foi que conseguiram chegar a Peiping e levantar o cerco das lega- ções. Comentando a batalha de Yangtsun, Seymour declarou que, se os boxers dispusessem dos canhões e fuzis aliados, juntamente com sua maravilhosa bravura, teriam certamente aniquilado as forças aliadas. Os boxers, porém, do princípio ao fim, não tiveram fé nas armas estrangeiras e empregaram somente suas espadas e corpos na luta contra os aliados. Apesar de dezenas de milhares terem sido mortos e os feridos ficarem empilhados uns sobre os outros, os soldados da retaguarda sempre preenchiam os claros na linha de frente. Sua coragem era indômita e mereceu-lhes o temor e o respeito de todos. Somente depois dessa sangrenta guerra com os boxers foi que os estrangeiros compreenderam que os chineses ainda tinham um espírito nacionalista, que não podia ser destruído.
Os boxers de 1900, porém, foram os últimos chineses a acreditar que suas próprias ideias e força poderiam resistir à nova civilização do Ocidente. Depois da derrota dos boxers, os chineses viram que seus velhos arcos e flechas, espadas e lanças não podiam competir com os fuzis e canhões estrangeiros. Perceberam que a nova civilização do exterior era realmente muito superior à antiga civilização da China. No domínio das armas militares, o contraste entre o novo, no Ocidente, e o velho, na China, era naturalmente bem acentuado. Volvamos, porém, nossas atenção para outras coisas. No campo das comunicações, as estradas de ferro e o telégrafo são muito superiores ao velho sistema do coolie e do mensageiro postal, empregados na velha China. Os trens podem naturalmente transportar mercadorias mais rápida e facilmente do que os coolies. Os telégrafos transmitem as notícias de maneira mais rápida e eficiente do que os mensageiros postais. Tomemos as máquinas que servem as necessidades da vida diuturna e os métodos empregados na agricultura, indústria e comércio — o Ocidente progrediu muito mais do que a China.
Assim, desde a derrota dos boxers, os pensadores chineses têm argumentado que, para tornar a China forte e capaz de vingar a vergonha do Protocolo de Peiping, ela deve imitar os países estrangeiros em tudo. Não somente deve apreender a ciência material do Ocidente, mas também as ciências políticas e sociais. Assim, desde a rebelião dos boxers, os chineses perderam a confiança em seu próprio poder, prestando-se um respeito cada vez maior aos países estrangeiros. Em consequência dessa imitação e respeito pelas naç5es estrangeiras, a China absorveu grande quantidade de ideias estrangeiras. Ideias, que os estrangeiros apenas consideraram, mas que não executaram, foram tentadas e postas em prática por nós. Em nossa revolução, há 13 anos atrás, copiamos as revoluções do Ocidente e estabelecemos uma forma democrática de governo. Queríamos adotar os melhores padrões, e, assim, tentamos aplicar na China a mais elevada filosofia política e as mais recentes teorias políticas do Ocidente. Isso provocou uma grande mudança no pensamento político da China. Antes da rebelião dos boxers, a China dedicava-se ao comércio externo e estava ao par de muitas das vantagens de outros países, porém, o povo, em seu todo, não acreditava que as nações estrangeiras tivessem realmente uma civilização, e, na época dos boxers, destruía as estradas de ferro e os telégrafos construídos de acordo com os padrões do Ocidente. Mesmo os fuzis e canhões estrangeiros não inspiravam confiança e, os velhos arcos e espadas chineses eram empregados como armas. Quando a China, porém, foi derrotada, o povo mudou por completo seu modo de pensar e começou a acreditar no Ocidente.
Tudo o que a China passou a usar era copiado do Ocidente. Assim, podemos ver que a velha China era extremamente conservadora, resistia à influência estrangeira e estava absolutamente convencida de que a China sobrepujava todas as outras nações. Depois que a China foi derrotada pelo Ocidente, tornou-se extremamente liberal, começou a dedicar reverência absoluta às nações estrangeiras e ficou convencida de que todas as outras nações eram superiores à China. Dai, os chineses não quererem mais nada da velha China. Tudo deveria ser copiado do Ocidente. Se ouvíamos algo de novidade do estrangeiro, apressávamo-nos em copiá-lo e tentávamos aplicá-lo na China. Depois da Revolução de 1911, todo o país foi acometido de loucura e insistia na aplicação na China da democracia política, que os ocidentais apregoavam, sem qualquer estudo de seu verdadeiro significado.
Nas últimas conferências, descrevi detalhadamente a história da luta democrática no Ocidente e os resultados que se seguiram à vitória da democracia. Desses estudos, depreendemos que o regime democrático não foi plenamente aplicado no Ocidente e que a democracia teve de sobrepujar muitos obstáculos em sua marcha para a frente. Agora, a China está propondo a prática da democracia. Se imitarmos o Ocidente, teremos de imitar os métodos ocidentais, também. Não foi, porém, encontrada, até agora, uma solução fundamental na política ocidental para o problema da democracia. Continua a ser ainda uma questão séria. Os ocidentais, que estão empregando os métodos científicos mais recentes para auxiliar a encontrar uma solução, não realizaram ainda quaisquer descobertas de valor na teoria democrática, nem tão-pouco encontraram qualquer solução satisfatória às dificuldades da democracia. Assim, os métodos da democracia ocidental não podem servir de modelo ou de guia para nós.
Desde a época dos boxers, os chineses pendam, em geral, somente em imitar os países estrangeiros, durante todos os momentos do dia e a respeito de todas as coisas imagináveis. Devemos imitar as coisas estrangeiras? Se nos referirmos às armas militares, não há comparação entre a metralhadora e a espada ou o arco. É certo que a metralhadora é mais eficiente e mais mortífera. Todas as espécies de outros artigos estrangeiros também são melhores do que os nossos. Não se pode negar que o Ocidente tenha avançado muito mais do que a China no estudo das ciências físicas. Mas, que dizer a respeito de governo? Que ciência realizou um progresso maior no Ocidente, a filosofia política ou a ciência física? A ciência de governar permaneceu em grande atraso em relação ao progresso das outras ciências.
Tomemos a ciência militar: a arte ocidental bélica está sendo constantemente desenvolvida e melhorada; “renova-se todos os dias e torna-se diferente todos os meses”, de modo que ninguém hoje em dia utiliza os textos militares de cem anos atrás. Os textos militares de dez anos atrás são até considerados obsoletos. Em cada decênio, verificam-se grandes mudanças nos armamentos e métodos de guerra do Ocidente. Por outras palavras, em cada dez anos, realiza-se uma revolução nas suas ciências militares. A arma de guerra maior e mais dispendiosa no Ocidente é o encouraçado. Cada encouraçado custa de 50 a 100 milhões de dólares. Uma unidade de guerra menos dispendiosa não poderá ser considerada um encouraçado. As armas de guerra têm sido desenvolvidas mais rapidamente do que qualquer outra coisa no campo material e, entre as armas de guerra, o encouraçado é o que foi beneficiado com o mais elevado desenvolvimento. Um encouraçado torna-se obsoleto depois de dez anos, no máximo. Os encouraçados construídos antes da Guerra Europeia estão sendo agora reduzidos à sucata. Também se verificaram grandes mudanças nos armamentos terrestres. Todos os dias, assistimos a alguns melhoramentos e, em cada década, grandes mudanças, praticamente, uma revolução e uma renovação. O tipo de fuzil, que estamos empregando atualmente já não está mais em uso em outros países. Os grandes canhões, que foram usados na Guerra Europeia, já sao considerados obsoletos. Não são apenas os equipamentos militares, todavia, que estão sendo constantemente aperfeiçoados. Todos os artigos manufaturados estão sofrendo melhoramentos contínuos e novas invenções estão constantemente aparecendo. A civilização material do Ocidente, na verdade, ''renova-se diariamente e torna-se diferente todos os meses” — nunca é a mesma, de um dia para o outro.
Qual foi a extensão do avanço do Ocidente em relação à China no que diz respeito às questões de governo? Nos últimos dois ou três séculos, a Europa e a América passaram por muitas revoluções, e. seu progresso político foi muito mais rápido do que o da China. Os tratados, todavia, sobre ciência política do Ocidente não mostram que houve grande avanço em relação ao passado. Por exemplo, viveu, na Grécia, há 2.000 anos, um grande filósofo político chamado Platão. Sua obra A República é ainda estudada pelos sábios, que dizem que a mesma muito contribuiu para a formação dos sistemas políticos modernos. Não se assemelha a encouraçados e a manuais de exercícios militares, que se tornam obsoletos depois de dez anos de uso. Por aí vemos que as ciências físicas, do Ocidente sofrem transformações marcantes, de dez em dez anos. Estão realizando um progresso muito rápido. Mas, no domínio da teoria política, verificamos que A República, de Platão, escrita há dois milênios, ainda é digna de estudo e reveste-se de grande valor nos tempos modernos. Assim, o avanço da filosofia política do Ocidente não manteve o mesmo ritmo do avanço das suas ciências materiais. Não houve mudança radical no pensamento político nesses dois mil anos. Se copiarmos a forma de governo do Ocidente, estaremos copiando suas ciências materiais e incorreremos em grave erro. A civilização material do Ocidente modifica-se diariamente, e é excessivamente difícil acompanhar-lhe o ritmo. O pensamento político, porém, no Ocidente, avançou muito mais lentamente do que sua civilização material. Os Estados Unidos, por exemplo, estão aplicando a democracia há 150 anos, porém, não existe muita diferença entre a atual democracia e aquela de um século atrás. A moderna democracia francesa não progrediu tanto como a democracia da revolução, que tinha uma concepção tão lata que até o povo sentiu sua impraticabilidade e se lhe opôs. Consequentemente, a democracia francesa não colheu praticamente frutos no último século. Se quisermos acompanhar outros países, deveremos, em primeiro lugar, analisar tais condições muito cuidadosamente. A razão porque a democracia do Ocidente não realizou progresso maior deve-se ao fato das nações ocidentais não terem resolvido fundamentalmente o problema da administração da democracia.
Vimos nas conferências anteriores que o Ocidente não encontrou ainda o método adequado para executar a democracia e que as verdades da democracia não foram ainda plenamente manifestadas. O espírito democrático avolumou-se como uma torrente barulhenta nos últimos dois ou três séculos. Nas questões em que o pensamento dos homens não podia penetrar, as massas do povo simplesmente seguiram a natureza e flutuaram com a maré dos acontecimentos. O recente surto da democracia não é uma realização do pensamento esclarecido, mas o resultado do povo estar seguindo as tendências naturais. Por essa razão, não foi elaborado anteriormente um método fundamental de dirigir a democracia, o problema não foi considerado desde suas origens até o fim, e, assim, os povos ocidentais sofreram inúmeros desapontamentos e dificuldades no meio da jornada da democracia. Desde a revolução, a China quis seguir o exemplo da Europa e da América e aplicar a democracia política. Desde que a democracia política no Ocidente se desenvolveu até atingir a fase de governo representativo, a China, também, deveria ter um governo representativo! A China, porém, não aprendeu os melhores aspectos do governo representativo ocidental. Os piores aspectos copiou-os, multiplicando os malefícios por 10 vezes, por 100 vezes! Os membros do Parlamento tornaram-se meros “porcos”, sujos e corruptos, piores do que qualquer coisa que o mundo haja conhecido antes — um fenômeno extraordinário do governo representativo. A China não somente fracassou em assimilar perfeitamente as teorias sobre o governo democrático do Ocidente, mas foi corrompida por elas.
Pelo que já disse, devereis compreender que o governo democrático do Ocidente não possui qualquer método fundamentalmente bom de aplicação. Assim, ao esposarmos a democracia, não deveríamos copiá-la inteiramente do Ocidente. Então, qual a rota que devemos seguir? A China ainda tem muitos elementos conservadores, reacionários poderosos, que estão advogando a derrubada da República, a restauração da autocracia e o reestabelecimento do trono, como único meio de salvar a China. Nós, que compreendemos as tendências mundiais, sabemos naturalmente que essa fórmula está errada. Devemos opôr-nos a ela, acompanhar as tendências mundiais, aplicar a democracia e trilhar a estrada acertada do governo. Se quisermos perlustrar o caminho acertado de governo, devemos, em primeiro lugar, compreender a verdadeira significação de governo. Vós vos lembrais da definição que apresentei na primeira conferência: governo é o controle dos negócios de todo o povo. Durante milhares de anos, os sentimentos sociais, os costumes e hábitos dos chineses diferiram consideravelmente daqueles prevalecentes na sociedade ocidental. Daí, os métodos de controle social na China serem diferentes dos existentes no Ocidente, e nós não devemos copiar simplesmente do Ocidente como copiamos o uso da maquinaria. Logo que aprendamos a manejar a maquinaria do Ocidente, poderemos usá-la a qualquer tempo, em qualquer lugar. A luz elétrica, por exemplo, pode ser instalada e usada em qualquer casa chinesa. Mas os costumes e sentimentos sociais do Ocidente são diferentes dos nossos em inúmeros pontos. Se, sem levar em consideração os costumes e sentimentos populares da China, tentarmos aplicar os métodos de controle social do Ocidente, como fazemos com a sua maquinaria — de maneira intensiva e rápida — estaremos incorrendo em sério erro. Apesar do governo (leis e sistemas pelos quais a sociedade é controlada) ser também uma espécie de máquina invisível, como é evidenciado pelo fato de nos referirmos à administração organizada como um órgão, a maquinaria visível é construída sob as leis da física, enquanto a maquinaria invisível do governo é construída sob as leis da psicologia. Foram feitas descobertas há várias centenas de anos no campo da física, porém, a ciência da psicologia surgiu há apenas 20 ou 30 anos e não está muito avançada. Daí a existência da seguinte diferença: quanto aos métodos de controle de forças e objetos físicos, devemos aprender com o Ocidente, porém, quanto aos métodos de controlar os homens, não devemos aprender somente do Ocidente. O Ocidente, há muito tempo, pensa de conformidade com os princípios e aplica os métodos do controle físico. Assim sendo, podemos seguir inteiramente sua civilização material — poderíamos mesmo segui-la cegamente quando a introduzimos na China, e não nos desviarmos dela. Mas o Ocidente ainda não pensa através dos princípios de governo, e seus métodos de governo não foram ainda fundamentalmente elaborados. Assim, a China de hoje, quando está colocando a democracia em funcionamento e reformando seu governo, não pode seguir apenas o Ocidente. Devemos conceber radicalmente um novo método. Se seguirmos cegamente os outros, prejudicaremos seriamente nossos interesses nacionais e a vida de nosso povo. O Ocidente tem sua sociedade; nós temos a nossa, e os sentimentos e costumes de ambas não são os mesmos. Só quando nos adaptarmos, de conformidade com nossas condições sociais peculiares, às modernas tendências mundiais, poderemos pensar na reforma de nossa sociedade e no progresso de nossa nação. Se não prestarmos atenção às nossas próprias condições sociais e tentarmos apenas seguir as tendências mundiais, nossa nação entrará em declínio e nosso povo ficará em perigo. Se quisermos que a China progrida e que nossa raça tenha sua sobrevivência assegurada, deveremos, nós mesmos, pôr a democracia em prática e formularmos um pensamento radical quanto à melhor maneira de realizar seus ideais.
Poderemos encontrar uma maneira segura de pôr em prática o governo democrático? Apesar de não podermos copiar inteiramente a Europa e a América, mesmo assim poderemos observá-las e estudar suas experiências democráticas muito cuidadosamente. Pois, apesar da democracia não ter ainda atingido perfeito estágio de desenvolvimento ou encontrado soluções fundamentais para seus problemas, muitos pensadores do Ocidente estão dedicando bastante tempo ao estudo da democracia e constantemente apresentando novas teorias. As nações ocidentais, além disso, adquiriram vasta experiência nos últimos cem anos, e essa experiência, juntamente com suas inúmeras teorias, deveria ser empregada como elementos subsidiários para nosso estudo. De outra maneira, estaremos perdendo tempo, nos prejudicando, ou simplesmente seguindo as pegadas do Ocidente.
Os pensadores estrangeiros, ao estudar os fatos históricos da democracia, deduziram muitas teorias. Uma das mais recentes foi apresentada por um pensador americano, que diz que o maior temor dos modernos Estados democráticos é um governo todo-poderoso, difícil de ser contido pelo povo, porém, que o ideal seria um governo todo-poderoso a serviço de todo o povo, que trabalhasse pelo bem-estar de todo o povo. Essa é uma teoria muito recente: o que se deseja e se teme, ao mesmo tempo, é um governo todo-poderoso. Em primeiro lugar, a teoria declara que o povo teme um governo todo-poderoso, que não possa controlar, e, em seguida, pergunta como um governo todo-poderoso, que trabalhe pelo bem do povo, poderá ser assegurado e como poderá ser tornado maleável à vontade do povo? Em muitas nações, onde a democracia está se desenvolvendo, os governos estão se tornando impotentes, enquanto que, nas nações, onde a democracia é fraca, os governos são poderosos. Como disse antes, o governo mais forte que existiu, na Europa, nas últimas poucas décadas, foi o de Bismarck, na Alemanha. Foi, certamente, um governo todo-poderoso; não advogava a democracia, pois, a principio, se opunha à democracia, porém, era todo-poderoso. Nenhum dos governos que apoiaram a democracia poderá ser considerado como todo-poderoso. Certo pensador suíço declarou que, desde que as nações puseram em prática a democracia, o poder do governo declinou, e a razão disso foi o temor por parte do povo de que o governo pudesse enfeixar em suas mãos uma soma de poder que não pudesse ser controlado por ele. Daí, o povo ter sempre estado em guarda contra seus governos, não lhes permitindo o acréscimo de poder, procurando evitar que se tornassem todo-poderosos. Os países democráticos, portanto, devem encontrar uma solução para essa dificuldade, porém, a solução não será alcançada até que o povo mude sua atitude para com o governo. A razão porque o povo sempre se tem oposto ao governo está em que, depois das revoluções, a liberdade e a igualdade por elas obtidas foram excessivamente desenvolvidas, e certos grupos abusaram delas, não colocando limites em sua esfera de ação e praticando toda sorte de excessos, com o resultado que o governo se tornou impotente, e o Estado, apesar de ter um governo, não se tomou diferente de um Estado sem governo. O pensador suíço, que já mencionei, viu essa maléfica sequência de fatos, e, como remédio, propôs que o povo modificasse sua atitude frente ao governo. Que pretendeu ele? Que tem a ver a atitude do povo para com o governo?
Na longa história da China, qual tem sido a atitude do povo para com o governo? Quando estudamos a história chinesa, verificamos que os governos de Yao, Shun, Yu, Tang. Wen Wang e Wu Wang (imperadores da antiga China) sempre foram elogiados e admirados pelo povo chinês. Os chineses de todas as épocas sempre alimentaram esperanças de que tivessem governos como esses, que se dedicassem ao bem-estar do povo. Antes das ideias democráticas terem penetrado na China, o mais profundo desejo do povo chinês foi ter imperadores como Yao, Shun, Yu, Tang, Wen Wang e Wju Wang, de modo que o povo pudesse gozar da felicidade e da paz. Essa era a antiga atitude do povo chinês para com o governo. Desde nossa recente revolução, porém, o povo passou a absorver as ideias democráticas e não se satisfaz mais com governantes semelhantes aos antigos imperadores. Todos eram governantes autocráticos, e, segundo o povo, não merecem ser admirados apesar de terem sido esplêndidos dirigentes. Isso mostra que o surto da democracia desenvolveu uma atitude de oposição ao governo entre o povo. Não importa quão bom seja o governo, o povo nunca está contente com ele. Se deixarmos que essa atitude de espírito persista, sem qualquer tentativa para a modificar, será excessivamente difícil ao governo fazer qualquer progresso. Como deveremos agir para modificar essa, atitude? Os pensadores do Ocidente sabem apenas que essa atitude deve ser modificada, porém, até agora, não encontraram maneira de proceder a essa mudança.
Quando desencadeamos nossa revolução, advogamos a prática da democracia. Consegui elaborar um método para resolver o problema. Esse método é uma nova descoberta no campo da teoria política e representa uma solução fundamental de todo o problema. Minha proposta é semelhante à tese do pensador suíço, no sentido de que a atitude do povo para com o governo deve ser modificada, e o recente aparecimento de tais teorias no Ocidente prova que o princípio que advoguei é correto, isto é, há necessidade de se estabelecer uma distinção entre soberania e habilidade. Os pensadores ocidentais ainda não descobriram esse princípio. Para tornar claro o que quero dizer, devo, em primeiro lugar, passar em revista minha teoria sobre as classes em que a sociedade humana se divide.
Sobre que baseei minha divisão da sociedade humana? —- Sobre a inteligência e habilidade naturais do indivíduo. O primeiro grupo é constituído dos que vêm e percebem antes: são as pessoas dotadas de superior sabedoria, que lançam um olhar a uma coisa e logo discernem os princípios envolvidos em torno dela, que ouvem uma palavra e imediatamente executam grandes feitos, cuja visão no futuro e cujas muitas realizações fazem o mundo progredir e dão à humanidade sua civilização. Esses homens, dotados de visão e presciência, são os criadores, os descobridores da humanidade. O segundo grupo abrange os que vêm e percebem depois: sua inteligência e habilidade estão abaixo do padrão dos componentes do primeiro grupo. Não podem criar ou descobrir, mas somente seguir e imitar, aprendendo o que o primeiro realizou. O terceiro grupo é composto dos que não vêm ou percebem: são dotados de um grau ainda mais baixo de inteligência e habilidade e não compreendem mesmo o que se tenta ensinar-lhes; dedicam-se simplesmente à ação. Na terminologia dos movimentos políticos, o primeiro grupo é dos descobridores; o segundo, dos promotores; o terceiro, dos operadores. O progresso, em tudo, depende da ação, e, assim, a responsabilidade para o progresso do mundo está nos ombros do terceiro grupo.
Por exemplo, a construção de um grande edifício, de estilo estrangeiro, não é algo que possa ser empreendido por uma pessoa ordinária. Primeiro, tem-se de contar com o engenheiro arquiteto, que faz um orçamento completo da obra e dos materiais necessários para a construção, e, depois, elabora um plano detalhado para o empreiteiro ou capataz. O capataz, em primeiro lugar, estuda cuidadosamente o plano, e, depois, contrata a mão de obra para a movimentação dos materiais e para a execução do plano. Os trabalhadores não podem interpretar o plano; apenas trabalham sob as diretivas do capataz e obedecem às suas ordens para a colocação de um tijolo aqui e de uma telha acolá — trata-se de tarefas simples. O capataz, por sua vez, é incapaz de elaborar um orçamento completo da construção ou de desenhar uma planta ; pode, apenas, executar o projeto elaborado pelo engenheiro e dar ordens aos trabalhadores no que concerne à colocação dos tijolos e telhas. O engenheiro, autor do projeto, é o que vê e percebe antes; o capataz, que executa o projeto, é o que vê e percebe depois; o trabalhador, que coloca o tijolo e a telha, é o que não vê nem percebe. Os edifícios de estilo estrangeiro em todas as cidades dependem desses três grupos para a sua construção — engenheiros, capatazes e trabalhadores — e de seus esforços em cooperação. Todas as grandes realizações do mundo também dependem desses três grupos, porém, o grupo maior é o que consiste dos operadores práticos, que não sabem nem percebem. Um grupo menor é o composto dos que sabem e percebem depois; o grupo ainda menor é o composto daqueles que sabem e percebem antes. Sem os homens dotados do poder de visão e percepção, o mundo seria carente de originadores; sem os homens, que vêm e percebem depois, o mundo não teria elementos de apoio; sem os homens, que não vêm nem percebem, o mundo não contaria com trabalhadores práticos. As atividades do mundo requerem, em primeiro lugar, iniciadores; depois, muitos promotores; e, em último lugar, um grande número de operadores, a fim de que as realizações possam revestir-se de êxito. O progresso do mundo depende desses três tipos e nenhum deles é dispensável. As nações do mundo, quando começam a aplicar a democracia e a reformar seus governos, devem dar uma parte a todo homem — ao homem que vê antes, ao homem que vê depois e ao homem que não vê. Devemos compreender que a democracia política não nos é outorgada pela natureza. É criada pelo esforço humano. Devemos criar a democracia para, depois, dá-la ao povo e não esperar até que o povo se decida lutar por ela.
Há poucos dias, recebi a visita de um funcionário japonês da Coreia. Depois de termos palestrado por algum tempo, aproveitei a oportunidade para perguntar-lhe sobre a revolução na Coreia, sobre a opinião que alimentava em suas possibilidades de êxito. Como ele não dispunha de uma resposta pronta para essa, questão, perguntei-lhe sobre a atitude dos funcionários japoneses na Coreia para com os direitos políticos do povo coreano. Ele respondeu-me: “Apenas poderemos esperar para ver que espécie de ideias democráticas os coreanos terão, se tiverem capacidade para lutar por seus direitos, teremos certamente de devolver-lhes sua soberania política. Presentemente, porém, eles não possuem capacidade suficiente para lutar por seus direitos, de modo que nós, japoneses, não poderemos deixar de administrar a Coreia em seu lugar.” Tal argumento reveste-se de uma lógica interessante, porém, nós, revolucionários, não devemos tratar o povo de nossa nação como os japoneses estão tratando a Coreia, esperando que o povo lute pela democracia antes de lha darmos. Pois, na China, os que não vêm nem percebem constituem a maioria, e duvido que daqui a milhares de anos o povo saiba que deve lutar pelos seus direitos. Assim, aqueles que se orgulham de ser homens dotados do poder de previsão ou homens de visão ulterior aos fatos não deveriam, como os japoneses, calcular apenas para a promoção de seus próprios interesses. Deveriam, em primeiro lugar, cuidar dos interesses do povo e depositar a soberania política de todo o Estado nas mãos do povo.
Uma vez que o Ocidente não removeu as dificuldades da democracia, não podemos, hoje em dia, encontrar solução copiando simplesmente seus processos. Devemos procurar nova maneira, e que essa nova maneira depende, como o disse o pensador suíço, de uma modificação da atitude para com o governo. Mas, para assegurar essa modificação de atitude, devemos distinguir claramente entre soberania e habilidade. A fim de facilitar o estudo dessa distinção, passemos em revista alguns dos pontos mencionados na conferência anterior. O primeiro ponto é a definição da soberania do povo; em resumo, ela importa no controle do governo pelo povo. Para tornar mais clara nossa explanação: Quem controlava 0 governo nos tempos antigos? Dois antigos provérbios chineses, “Quem não tem um cargo no governo não se interessa pelo governo” e “O povo comum não toma parte nos conselhos”, mostram que a soberania política costumava estar inteiramente nas mãos do imperador e nada tinha a ver com o povo. Hoje, nós, que advogamos a democracia, queremos colocar a soberania política nas mãos do povo. Qual, pois, será a posição do povo? Desde que a China passou por uma revolução e adotou a forma democrática de governo, o povo deveria governar em todas as questões. O governo atual pode ser considerado um governo popular; em outras palavras, sob a República, fazemos do povo o rei.
Remontando aos milênios da história chinesa, os únicos imperadores que assumiram a responsabilidade do governo paia o bem-estar e a felicidade do povo foram Yao, Shun, Yu, Tang, Wen Wang e Wu Wang. Nenhum dos outros foi capaz de usar do cargo para semear bênçãos sobre o povo. De todos os imperadores da China, apenas Yao Shun, Yu, Tang, Wen Wang e Wu Wang cumpriram tão bem seus deveres de governo que puderam permanecer “de cabeça erguida perante os céus e perante os homens, na terra.” Foram capazes de atingir esse elevado ideal e merecer ditirambos de inúmeras gerações porque possuíam duas qualidades especiais — uma extraordinária qualidade inata, que os capacitava a estabelecer um bom governo e a procurar o bem-estar do povo; e um nobre caráter, “misericórdia para o povo e bondade para todas as criaturas, respeito pelo povo, como para os feridos e os doentes, amor pelo povo como se fossem por seus filhos.” Devido ao fato de possuírem essas duas belas qualidades, foram capazes de assumir plena responsabilidade pelo governo e atingir seus objetivos. São os únicos imperadores que conquistaram a veneração da posteridade. A China teve outros imperadores — não sabemos quantos — e a maioria deles foi esquecida pela posteridade. Somente Yao, Shun, Yu, Tang, Wen Wang e Wu Wang possuíam grande habilidade natural e caráter nobre. A maioria dos outros não possuía nem habilidade nem caráter e, contudo, detinham o poder soberano.
Todos vós já lestes a história chinesa. Estou certo que quase todos que aqui se encontram já leram A História dos Três Reinados(7). Podemos encontrar uma ilustração de nossas assertivas nesse livro. Como vos lembrais, Chu Ko Liang era um estadista sábio e capaz, o primeiro chefe a quem serviu foi Liu Pei. Mais tarde, apoiou Ah Tou. Ah Tou era excessivamente estúpido e não tinha nenhuma habilidade, razão pela qual Liu Pei, pouco tempo antes de sua morte, declarou a Chu Ko Liang: "‘Se ele merecer vosso apoio, apoiai-o; em caso contrário, substituí-o.” Depois da morte de Liu Pei, Chu Ko Liang ainda demonstrou seu esplêndido caráter; apesar de Ah Tou não ter valor algum, Chu Ko Liang auxiliou-o com a lealdade de sempre, “exaurindo-se no cumprimento dos deveres de seu cargo até morrer.” Assim, na época da autocracia, o governante podia deixar de ter habilidade, mas dispunha de grande poder. Ah Tou e Chu Ko Liang no período dos Três Reinados, tornaram bem claro para nós o seguinte: Chu Ko Liang tinha habilidade, mas não poder; Ah Tou tinha poder, mas não habilidade. Ah Tou era incompetente, porém, entregava os assuntos de Estado para Chu Ko Liang administrar. Chu Ko Liang era extraordinariamente capaz e pôde continuar um admirável governo no Shu ocidental (moderno Szechwan). Além do mais, foi capaz de conduzir suas tropas seis vezes, através das montanhas de Chi, numa expedição punitiva contra o Norte e a estabelecer um trípode de poder juntamente com os reinados de Wei e Wu. A comparação entre Chu Ko Liang e Ah Tou auxilia-nos a compreender a distinção entre soberania e habilidade.
Na época da autocracia, os pais e os primogênitos eram os reis e os filhos e irmãos mais jovens eram os herdeiros. Apesar de não terem nenhuma habilidade, podiam vir a ser reis. Assim, os homens incompetentes ainda dispunham do poder soberano. Agora, que estabelecemos uma República e reconhecemos o povo como o governante, procurareis ver a que grupos os nossos 400 milhões de compatriotas pertencem? Naturalmente que todos não podem pertencer ao grupo dos que vêm e percebem antes. A grande maioria é composta dos que não têm visão nem previsão. Atualmente, o governo democrático depende do domínio do povo, e daí nossos 400 milhões de compatriotas representarem uma grande força. O povo da nação, com poder soberano para controlar o governo, são esses 400 milhões. A quem podemos comparar esses detentores da sobrerania política? Penso que são muito semelhantes a Ah Tou. De fato, cada um deles é um Ah Tou com grande poder soberano. Ah Tou não tinha habilidade, porém Chu Ko Liang a tinha. Assim, depois da morte de Liu Pei, o Shu ocidental era ainda bem governado. Os ocidentais opõem-se atualmente a um governo poderoso. O pensador suíço, para remediar esse defeito, propôs que a atitude do povo para com o governo fosse mudada — não devia mais mostrar-se hostil a um governo forte. Mas, qual será o próximo passo, depois da atitude popular para com o governo ser mudada? O princípio que estou formulando é que a soberania deve ser distinguida da habilidade. Sem o estabelecimento dessa clara distinção, não podemos esperar modificar a atitude do povo para com o governo. Ah Tou sabia que era incompetente, confiando toda a autoridade política do reinado a Chu Ko Liang para que este governasse por ele. Assim, quando Chu Ko Liang entregou a Ah Tou a expedição, aconselhou-o a separar claramente as questões do palácio e da Corte. Ah Tou podia executar os deveres do palácio, porém, os deveres da Corte não podia executar sozinho, pois eram os deveres do governo. A distinção estabelecida por Chu Ko Liang entre o palácio e a Corte era uma distinção entre a soberania e a habilidade. No governo do Estado, devemos fazer essa distinção. Como a faremos? Só o conseguiremos, se tivermos perspectiva ampla e desapaixonada dos problemas mundiais. Todos possuem, agora, uma ideia peculiar do governo, que se desenvolveu em milênios de autocracia. Nesse longo período de governo autocrático, homens incompetentes ocuparam o trono, enquanto os 400 milhões de chineses foram seus escravos. Agora, apesar da autocracia ter sido derrubada, de uma República ter sido estabelecida, e sermos aparentemente livres, o povo ainda não se desembaraçou de sua ideia de autocracia e ainda teme que o governo o oprima como o fizeram os imperadores. O temor de um governo imperial despótico faz com que ele queira destruir o governo. desenvolvendo-se, portanto, uma atitude de hostilidade para com o governo. Essa hostilidade é ainda a reação da velha reverência pelo imperador. Por outras palavras, de uma atitude de extrema veneração pelo imperador, o povo mudou para uma atitude de oposição a todos os governos. A antiga adoração do imperador estava errada, naturalmente, porém, a atual hostilidade para com todos os governos é também um erro.
Devemos remontar a milhares de anos na história política para compreender como essa concepção errada de hoje deve ser eliminada. Antes da época dos imperadores despóticos, a China tivera esplêndidos governantes, como Yao e Shun. Ambos tornaram o trono acessível ao povo, não tentando mantê-lo para suas famílias. A autocracia apenas floresceu depois de Yao e Shun. Antes de sua época, não havia autocracia e os homens de habilidade, que pudessem trabalhar pelo bem-estar de todos e organizar um bom governo, eram investidos do poder real. Na idade selvagem do conflito entre os homens e as feras, que descrevi antes, não existia uma organização completa de Estado. O povo vivia em clãs e dependia de um homem hábil e forte para lhe dar proteção. Nessa época, o povo temia o ataque das serpentes venenosas e das feras selvagens, de modo que tinham de arranjar um homem capaz para ser investido da responsabilidade de lhe dar proteção. A responsabilidade pela proteção exigia habilidade para combater. O homem, que podia dominar as serpentes venenosas e as feras selvagens, era considerado o mais capaz, e, como os homens dessa época não dispunham de armas, mas somente das mãos, para lutar, aquele que tivesse o físico mais poderoso era escolhido pelo povo para o cargo de chefe. A China, todavia, tivera casos de outros líderes, que não foram lutadores e que se tornaram reis. Suijen Shih (figura legendária da antiga história chinesa) produziu o fogo mediante a fricção de dois pedaços de madeira e ensinou o povo a cozinhar com o fogo. Assim, os perigos da deglutição de carne e vegetais crús foram evitados, descobrindo-se várias espécies de condimentação para agradar ao paladar, Assim, o povo fez Suijen Shih rei. Produzir o fogo com a fricção da madeira e cozinhar com ele é trabalho de cozinheiro, e, assim, podemos dizer que um cozinheiro se tornou rei. Shen Nung provou mais de cem ervas e descobriu muitas propriedades medicinais para a cura de doenças e para o revigoramento dos fracos — trabalho maravilhoso e meritório — e assim o fizeram rei. A experiência com ervas é trabalho de médico, e assim podemos dizer que um médico se tornou irei. Hsien Yuan ensinou o povo a fazer suas roupas, e assim um alfaiate tornou-se rei. Yu Chao Shih ensinou o povo a construir casas, e, assim, um carpinteiro tornou-se rei. Destarte, na história chinesa, encontramos não somente os que se tornaram reis combatendo; qualquer indivíduo, com destacada habilidade, que tivesse realizado descobertas ou que tivesse feito grandes coisas pela humanidade, podia tornar-se rei e organizar o governo. Cozinheiros, médicos, alfaiates, carpinteiros e todos os. outros que tivessem habilidade especial podiam tornar-se reis. Um professor americano, William P. Martin, certa vez, realizou uma excursão às Colinas Ocidentais, situadas nas, imediações de Pequim. No caminho, encontrou um agricultor e começou a palestrar com ele. O agricultor perguntou ao professor. Martin: “Por que um estrangeiro não vem à China e se torna imperador?” Martin respondeu: “Poderia um estrangeiro ser imperador da China?” O agricultor apontou para a linha telegráfica que corria pela borda do campo e disse: “O homem, que fez isso poderia ser o imperador da China.” O agricultor pensava que a pessoa, que fizesse um cabo de aço transportar notícias e mensagens, era um homem de grande habilidade e poderia certamente tornar-se imperador da China. Daí, podemos depreender que a psicologia geral dos chineses é que um homem, que possua habilidade marcante, pode tornar-se rei.
Desde a época de Yao e Shun, os imperadores da China foram se tornando gradualmente déspotas, dispostos a monopolizar o império e recusando-se a permitir que o povo escolhesse livremente homens capazes para o trono. Se, agora, nossos 400 milhões fossem solicitados a eleger um imperador nas urnas, se tivessem completo poder e liberdade de escolha sem qualquer interferência externa, e se, ao mesmo tempo, Yao e Shun tivessem ressuscitado, quem pensais vós que seria eleito? Penso que, sem dúvida alguma, Yao ou Shun. Os chineses não alimentam os sentimentos dolorosos e amargos para com seus imperadores, a exemplo dos ocidentais, pois o despotismo na China nunca foi tão severo como o despotismo no Ocidente. Na Europa, há dois ou três séculos atrás, a tirania dos reis havia atingido seus limites: o povo considerava seus governantes do mesmo modo que considerariam um dilúvio arrasador ou uma fera selvagem — com terror mortal. Assim, o povo dispunha-se a rejeitar não somente seus reis, mas tudo estreitamente relacionado com os reis, como o governo. Agora, que a democracia prevalece no Ocidente e o povo detém o poder, essa rejeição do governo é muito fácil. Não teria sido fácil para Ah Tou do Shu ocidental derrubar Chu Ko Liang? Mas, se ele tivesse destituído Chu, poderia o governo do Shu ocidental durar muito tempo, poderiam as tropas serem enviadas seis vezes através das montanhas de Chi para punir o Norte? Ah Tou compreendeu tudo isso, e, assim, concedeu completa autoridade a Chu Ko Liang. O estabelecimento em ordem do governo, a supressão do Sul, a expedição punitiva contra o Norte, foram levados a efeito por Chu Ko Liang. Estamos agora colocando a democracia em prática: os 400 milhões de chineses são os reis; eles são os Ah Tous, e como Ah Tous deveriam naturalmente acolher os Chu Ko Liangs, dando-lhes a administração do governo, permitindo-lhes que executassem as grandes tarefas do Estado. À medida que as nações ocidentais têm aplicado a democracia, o povo desenvolveu uma atitude de hostilidade para com o governo, e razão fundamental disso é o fracasso em distinguir entre a soberania e a habilidade. A menos que baseemos nossa ação no princípio que apresentei, estaremos simplesmente seguindo as pegadas do Ocidente. Só quando 0 povo, de conformidade com a teoria que apresentei, apreender a diferença entre a soberania e a habilidade, a hostilidade contra o governo deixará de existir e este terá oportunidade de se desenvolver. Deve ser bem fácil à China estabelecer a distinção, pois podemos citar o precedente de Ah Tou e Chu Ko Liang. Se o governo for bom, nós, os 400 milhões de chineses, permitiremos que ele seja o nosso Chu Ko Liang, e lhe conferiremos toda a autoridade do Estado. Se o governo for mau, nós, os 400 milhões, no exercício de nossos privilégios reais, o destituiremos e voltaremos a tomar em nossas próprias mãos a soberania. Os ocidentais não estabeleceram uma distinção clara entre soberania e habilidade, de modo que ainda não resolveram os problemas da democracia, surgidos nos últimos duzentos ou trezentos anos.
Façamos outra comparação entre o passado e o presente. Nos velhos tempos, os que sabiam combater eram coroados reis. Hoje, as famílias abastadas contratam combatentes para protegê-las. Os militares, por exemplo, depois de terem roubado as terras nas províncias e de terem amealhado suas fortunas, transferiram-se para as concessões estrangeiras de Xangai, com receio que o povo os atacasse e os despojasse de seus haveres. Assim, contratam soldados sikh para montar guarda em suas residências. Se o velho princípio, no sentido de aquele que protege os outros poder ser rei, fosse seguido, esses policiais sikh, que protegem os militares, deveriam ser coroados reis. Mas, como acontece, eles nada têm a ver com os negócios particulares desses militares. Os guerreiros, que lutavam com suas próprias mãos nos velhos tempos, tornavam-se reis; os modernos policiais sikh, com seus longos fuzis, deveriam, por maiores rações, ser reis! Os militares, porém, não os tratam como reis, mas como simples escravos, e, apesar dos escravos com seus fuzis serem muito poderosos, são recompensados por aqueles não com a glória do reinado, mas somente com algum dinheiro. Se continuarmos nesse raciocínio, os antigos reis poderiam ser assemelhados a esses modernos guardas sikh ou os guardas sikh aos antigos reis. E, para levar ainda mais adiante a analogia, uma vez que os reis protetores são semelhantes aos guardas sikh, por que se os rejeita?
Hoje, quando homens abastados organizam uma companhia ou inauguram uma fábrica têm de contratar um homem dotado da capacidade natural para desempenhar as funções de gerente-geral e para controlar a empresa. Esse gerente-geral é um perito, que possui habilidade; os acionistas detêm a autoridade ou soberania. Na fábrica, somente o gerente-geral dá ordens; os acionistas apenas mantêm supervisão sobre seus atos. O povo de uma República são os acionistas, o presidente é o gerente-geral; o povo deve considerar o governo como um perito. Com tal atitude, os acionistas podem utilizar-se do gerente para melhorar a fábrica, produzir uma grande quantidade de mercadorias com pequeno capital e realizar grandes lucros para a companhia. Mas, em nenhum dos Estados democráticos do Ocidente o povo mantêm tal atitude para com o governo, e daí não poder fazer uso dos homens talentosos para dirigirem o governo. Em consequência, os homens que atuam na vida política são geralmente incompetentes e o governo democrático está se desenvolvendo com um ritmo cheio de interrupções. Os Estados democráticos progrediram menos rapidamente do que os Estados autocráticos, como a Alemanha e o Japão. O Japão íoi modernizado somente nas últimas poucas décadas, e, agora, é nação rica e poderosa. A Alemanha era um Estado excessivamente pobre e fraco, porém, quando Guilherme I e Bismarck assumiram as rédeas de governo, uniram os Estados numa confederação, e traçaram ousados pianos políticos, a Alemanha, dentro de algumas décadas, foi capaz de dominar a Europa. As outras nações, porém, que apoiam a democracia, não foram capazes de avançar, como o Japão e a Alemanha, dando diariamente grandes passos, devido ao seu fracasso em resolver alguns dos problemas básicos da democracia. Para resolvê-los, deveriam colocar as importantes questões da nação nas mãos de homens capazes,
Os ocidentais estão, hoje, utilizando-se, constantemente, de peritos: ao treinar soldados, utilizam-se de militares experimentados, na operação de suas fábricas, empregam engenheiros e, na administração do governo, sabem que deveriam empregar especialistas. Não conseguiram realizar esse desideratum devido à sua incapacidade de modificar hábitos profundamente arraigados no espírito do povo. Nesta nova era, porém, deve-se seguramente estabelecer uma distinção entre soberania e habilidade. Em muitas coisas, temos de confiar nos peritos e não deveríamos impor limitações à sua ação. Tomemos o caso dessa invenção recente, cujo uso está tão propagado — o automóvel. Quando os automóveis foram introduzidos no mercado, há 20 ou 30 anos atrás, não havia condutores peritos para guiá-los, nem mecânicos habilitados para consertá-los. Tenho um amigo, que comprou um automóvel, e ele próprio tinha de servir de chauffeur e de mecânico, o que lhe representava sério inconveniente, pois não se pode esperar que uma pessoa qualquer faça anibas as coisas bem. Agora, porém, há muitos chauffeurs e mecânicos e o proprietário de um automóvel precisa apenas desembolsar dinheiro e contratar alguém para dirigir ou reparar o seu carro. Os chauffeurs e os mecânicos são especialistas na condução e na reparação, sendo suas atividades essenciais se usarmos automóveis. A nação é como um grande automóvel e os funcionários governamentais são os grandes chauffeurs. Quando os ocidentais conquistaram, pela primeira vez, a soberania política, se assemelhavam aos abastados proprietários de automóveis de há 20 anos atrás, que não dispunham de peritos para auxiliá-los, de sorte que tinham de guiar e de reparar sozinhos seus carros. Hoje, porém, há tantos especialistas de talento, que o povo deveria contratar seus serviços. Guiar e consertar sozinhos importa apenas em “procurar aborrecimentos e dissabores”. Nessa ilustração, podemos fazer outra distinção, entre o chauffeur, que tem habilidade, mas não soberania sobre seu carro, e o proprietário do carro, que tem soberania mas não habilidade. O proprietário soberano eleve depender do perito hábil para guiar seu carro e o mesmo princípio deve ser aplicado nas questões vitais da nação-. O povo é o proprietário; deve ser soberano. O governo é o especialista; deve ser homem dotado de habilidade. Devemos, portanto, considerar os funcionários do governo, desde o presidente e o primeiro-ministro até os chefes de departamentos, como se fossem chauffeurs especialmente treinados. Se são hábeis e leais à nação, devemos confiar a soberania do Estado às suas mãos. Não devemos limitar-lhes os movimentos, mas dar-lhes liberdade de ação. Então, o Estado poderá progredir, progredir com um ritmo rápido. Se, pelo contrário, tentarmos deter tudo em nossas mãos, oti embaraçar nossos peritos a cada passo, não lhes dando liberdade de ação, mal poderemos esperar que o Estado progrida e marche para a frente.
Posso citar boa ilustração desse princípio com minha própria experiência. Certa vez, quando morava em Xangai, marquei uma entrevista com um amigo de Hongkew. Quando chegou o dia, porém, esqueci-me da entrevista, só me lembrando quinze minutos antes do tempo aprazado. Eu morava, então, na concessão francesa, que está à grande distância de Hongkew. Era quase impossível chegar a essa localidade em 15 minutos. Sem perder tempo, chamei um chauffeur e perguntei-lhe excitadamente se poderia levar-me a Hongkew em 15 minutos. Respondeu-me que poderia com toda a certeza. Tomei meu lugar no automóvel e partimos. Eu estava muito familiarizado com as ruas de Xangai. A viagem da concessão francesa até Hongkew é algo como o trajeto entre Shakee e Tungshan (em Cantão), que pode ser abreviada, indo-se pelo Bund e Chuan Lung Kou. Meu chauffeur, porém, não escolheu a rota pelo Bund e Chuan Lung Kou. Dirigiu-se, a princípio, pela Estrada de Fungning, tomou a Estrada de Taoteksun e atravessou a pequena Porta do Norte, antes de atingir a Grande Porta Oriental e, depois, Tungshan. O automóvel marchava à toda velocidade e fazia tal barulho, que não conseguia fazer-me ouvir pelo chauffeur. Eu estava bastante perplexo, todavia, e com raiva do chauffeur, pois pensava que ele estivesse deliberadamente tornando a viagem mais longa. A situação era semelhante a de uma nação, quando o governo, por uma razão especial, faz algo de extraordinário que o povo não compreende, interpretando mal e encontrando faltas na ação. O chauffeur, porém, seguindo a rota que escolhera, chegara a Hongkew exatamente em 15 minutos. Minha indignação arrefeceu. Perguntei ao chauffeur porque escolhera uma rota tão cheia de voltas. Ele respondeu: “Se tivéssemos seguido a rota direta, teríamos de marchar pela Estrada de Nanquim, onde o tráfego é intenso, com o movimento de bondes, automóveis, rickshas, pedestres, carroças de mudanças, difícil de atravessar.” Essa explicação afastou minha má compreensão. Compreendi que a maneira por que eu planejara o itinerário, pela Estrada de Nanquim, atravessando a Ponte dos Jardins, no Bund, foi concebida apenas em termos de distância, porém o chauffeur possuía a experiência. Ele sabia que um automóvel pode marchar velozmente, a 30 ou 40 kms. horários, e que mais alguns poucos kms. e mais algumas voltas seriam contrabalançadas pelo aumento de velocidade, e estaríamos em nosso destino na hora aprazada. Tomou como base de seu cálculo o tempo. Ele não era filósofo e não compreendia a relação formal entre o tempo e o espaço, porém, era um especialista em seu ramo. Sabia que um automóvel tem o poder de encurtar distâncias, e que, se pudesse aumentar a velocidade de seu carro, algumas voltas a mais não evitariam que chegasse a Hongkew em 15 minutos. Se não tivesse dado ao chauffeur autoridade completa bem como liberdade de movimento, e insistisse em que seguisse minha rota, eu não poderia certamente chegar a tempo. Como confiasse em sua habilidade e não lhe tolhesse a liberdade de ação, ele foi capaz de seguir a rota que melhor lhe pareceu, chegando no tempo aprazado. Uma vez, porém, que eu não era perito, não podia compreender porque se afastara da rota direta. O povo é o senhor da nação e deve agir para com o governo como eu procedi com o chauffeur na minha ida a Hongkew, isto é, deixar que ele dirija e escolha o caminho. Somente tal concepção do governo modificará a atitude do povo para com ele.
A hostilidade dos povos ocidentais contra seus governos é devida ao seu fracasso em separar a soberania da habilidade, e, consequentemente, não resolveram ainda as dificuldades da democracia. Quando praticarmos a democracia, não copiemos o Ocidente. Estabeleçamos uma distinção clara entre soberania e habilidade. Apesar das ideias democráticas terem vindo da Europa e da América, a administração da democracia não se revestiu de êxito nesses dois continentes. Conhecemos, agora, uma maneira de utilizar a democracia e sabemos como modificar a atitude do povo para com o governo, porém, a maioria do povo não possui visão. Nós, que somos dotados da previsão, devemos conduzi-lo e guiá-lo pela boa estrada, se quisermos escapar às confusões da democracia ocidental e não seguir as pegadas do Ocidente. Os pensadores ocidentais já chegaram a compreender que a atitude do povo para com governo é errada e deve ser modificada, porém, não vêm ainda como modificá-la. Acabo de descobrir a maneira — devemos distinguir entre soberania e habilidade. Os alicerces do governo de uma nação devem ser construídos sobre os direitos do povo, porém, a administração do governo deve ser confiada a peritos. Não devemos tratar esses peritos como grandes e majestosos presidentes e ministros, mas, simplesmente, como nossos chauffeurs, como guardas de nossas portas, como cozinheiros, médicos, carpinteiros ou alfaiates. Não importa qual seja a espécie de trabalhadores por que o povo os considere. Enquanto mantiver essa atitude geral para com eles, o Estado poderá ser governado e a nação marchar para a frente.
16 de Março de 1924.
A maquinaria do governo. — Rápido desenvolvimento da maquinaria manufatureira no Ocidente comparado com o lento. desenvolvimento da maquinaria política. — Dificuldade de experimentação no governo. — A máquina a vapor. — A evolução do pistão de ação simples para o pistão de ação dupla. — A moderna maquinaria política é principalmente de “ação simples”. — Métodos para o perfeito controle sobre a maquinaria política. — Temor de um governo de grande potência.— Soberania e habilidade na máquina.— Desvantagens na copia da velha maquinaria política do Ocidente. — Uma nova maquinaria deve ser criada. — A superioridade do Ocidente nas ciências materiais não importa, necessariamente, na superioridade das ciências políticas. — Uma anedota sobre Newton. — O plano para a nova maquinaria de governo da China. — Governo de grande potencial e de controle efetivo. — Métodos fáceis e seguros de controle sobre a maquinaria material, v. g., luz elétrica, aviões, devem ser aplicados à maquinaria política.— Os quatro poderes de controle do povo: sufrágio, cassação de mandato, iniciativa e “referendum— Os cinco poderes administrativos do governo: legislativo, judiciário, executivo, exames ao funcionalismo público, censura. — Precedentes na história política chinesa nos dois últimos poderes. — Uma Constituição de cinco poderes. — Equilíbrio de poder no novo sistema.
Os estadistas e jurisperitos do Ocidente referem-se, atualmente, ao governo, como sendo uma maquinaria e à lei, como um instrumento. Grande número de livros chineses sobre o governo e sobre leis são traduções de obras japonesas. Os japoneses deram à organização de governo a designação de chi-kuan (órgão ou bureau). Chi-kuan significa o mesmo que a palavra “maquinaria” na China. Os chineses empregavam outrora a palavra chi-kuan no sentido de “oportunidade”, porém, desde que os japoneses começaram a empregar o vocábulo para designar organização de governo, veio a ter na China um significado semelhante à “maquinaria”. Costumávamos falar do yamên do governo e hoje nos referimos ao chi-kuan administrativo, o chi-kuan financeiro, o chi-kuan militar, o chi-kuan educacional. Esses chi-kuan, ou departamentos, correspondem à expressão japonesa que designa órgão de governo. Não há diferença entre elas. Quando dizemos chi-kuan queremos dizer a mesma coisa que maquinaria. Um fuzil chi-kuan é uma metralhadora. E um órgão administrativo, ou departamento, pode, portanto, ser chamado uma máquina administrativa. Qual é, a diferença existente entre maquinaria política e maquinaria manufatureira? A maquinaria manufatureira é composta inteiramente de coisas materiais — madeira, aço, correias, etc., mutuamente adaptadas. A maquinaria política consiste de seres humanos, depende de seres humanos e não de coisas materiais, para sua ação. Assim, há grandes diferenças entre a maquinaria política e a industrial, porém, o fato que se destaca é que a maquinaria política é movimentada por forças humanas, enquanto a maquinaria industrial é movimentada por forças materiais.
Nas conferências anteriores, vimos que a civilização e a cultura do Ocidente têm se desenvolvido e progredido com grande rapidez. Mas, quando analisamos esse progresso, verificamos que a civilização material, representada pela maquinaria industrial, tem avançado muito rapidamente, enquanto que a maquinaria humana, representada na organização política, tem realizado um avanço muito lento. Qual é a razão disso? Quando a maquinaria material é construída, pode ser facilmente experimentada, os defeitos podem ser imediatamente eliminados e as partes imperfeitas melhoradas. Mas, depois da maquinaria humana ter sido erigida, não é facilmente experimentada, e os melhoramentos não são de fácil introdução, exceto mediante revoluções. A única maneira de sanar esse inconveniente seria tratá-la como socata, como fazemos com a maquinaria industrial, porém, isso é manifestamente impossível. De onde, a maquinaria industrial no Ocidente ter progredido rapidamente, enquanto que a sua maquinaria política avança com dificuldades. Quando a maré democrática começou a surgir no Ocidente, todas as nações queriam pôr em prática a democracia. A nação pioneira foi os Estados Unidos. Já decorreram 140 anos desde o nascimento da República Americana. A soma de soberania, todavia, exercida pelo povo, no início, é a mesma dos tempos atuais, sem quaisquer diferenças marcantes, e a Constituição atualmente em vigor é a mesma que foi promulgada nos Estados Unidos por ocasião da implantação do regime republicano, sem grandes modificações fundamentais introduzidas nos últimos cem anos. A maior parte da maquinaria industrial foi inventada há mais de cem anos, e quem usaria, agora, a maquinaria de há um século? Desde há muito se converteu em sucata. Nada há nada, com mais de dez anos, entre as máquinas empregadas na agricultura, indústria e comércio de hoje, pois, em cada década, processam-se numerosas invenções e melhoramentos, e, em todos os anos, registam-se avanços na técnica. A maquinaria política, contudo, de há cem anos, ainda está em uso hoje em dia. Os seres humanos, individualmente considerados, nessa maquinaria de forças humanas, podem modificar-se à vontade, porém toda a organização não é facilmente reconstruída de alto abaixo, devido aos hábitos profundamente arraigados e à sequência estreita das atividades da vida. Sem as revoluções, é impossível, em tempos normais, descartar-se da velha organização. Isso explica o rápido avanço da maquinaria material no Ocidente, enquanto que a maquinaria política avança com tamanha lentidão e com tanta dificuldade.
Nas duas últimas conferências, declarei que os ocidentais não haviam ainda encontrado um método fundamental para o exercício do governo democrático. Isso deve-se ao fato de não terem experimentado cuidadosa e habilmente sua maquinaria política. Entre as primeiras invenções da maquinaria industrial e a que vemos hoje, verificaram-se não sabemos quantos milhares de experiências e de melhoramentos. Remontemos aos primeiros dias das invenções mecânicas e que vemos? Aqueles dentre vós que estudaram a história da máquina conhecem os interessantes pormenores de seu desenvolvimento. Tomemos a história do motor, por exemplo. Os primeiros motores movimentavam-se apenas numa direção; eram de ação simples e não dupla como são os motores modernos. Todas as máquinas de hoje, como as locomotivas e vapores, são de ação dupla. A potência é gerada da seguinte maneira: a água é colocada numa caldeira e aquecida pelo carvão na fornalha, que fica debaixo, até que entra em estado de ebulição e se transforma em vapor. O vapor, com seu tremendo poder de expansão, é levado por meio de tubulações até o cilindro, onde existe o que chamamos de “parada viva” e os estrangeiros de “pistão”. O pistão é que faz o motor mover-se e é a parte mais importante de toda a máquina. O pistão numa das extremidades do cilindro recebe o vapor e é levado até outra extremidade pelo poder do vapor. Quando o vapor se exaure, novo jato penetra na outra extremidade do cilindro e devolve o pistão à posição anterior. A movimentação ininterrupta do pistão proporciona um movimento contínuo à máquina, A água costumava ser o único material empregado para gerar o movimento, porém, atualmente, o petróleo também é empregado. É altamente volátil e, quando se atomiza, propele o pistão. Mas, seja a água ou o petróleo empregado como força motora, o princípio é o mesmo; o movimento ininterrupto do pistão faz com que a máquina execute qualquer trabalho à vontade do homem.
A máquina movimenta os vapores e puxa os trens, caminha milhares de quilômetros por dia ou transporta toda a carga que quisermos movimentar. Parece, hoje, uma coisa maravilhosa; todavia, a origem do pistão foi excessivamente simples. Quando o pistão foi inventado, podia receber o vapor apenas por um lado e movia-se só numa direção; não podia receber o vapor na outra extremidade, para se movimentar em direção contrária, isto é, era de ação simples. Esse fato acarretava muitos inconvenientes no emprego da máquina. Quando, por exemplo, a máquina primitiva foi empregada na tecelagem do algodão, todas as máquinas eram cuidadas por uma criança, que puxava o pistão para trás, depois de cada movimento para a frente; de outra maneira, o vapor não podia impelir novamente o pistão para a frente. As crianças eram empregadas para auxiliarem a movimentação do pistão. Que contraste em eficiência com a ação dupla do moderno pistão! Quais foram as fases do desenvolvimento do moderno e eficiente pistão? O engenheiro, que construiu aquela máquina de tecer algodão, não tivera a ideia de fazer com que o pistão se movimentasse também em direção contrária, por seus próprios meios. A tecelagem de algodão daquela época não era grande, e, apesar de ter somente entre dez e vinte daquelas máquinas de ação simples, cada máquina necessitava de uma criança para cuidá-la. Essas crianças, empregadas para puxar os pistões, dia após dia, sempre fazendo os mesmos movimentos, achavam seu trabalho extremamente desinteressante e monótono. Um capataz tinha de cuidar das crianças e evitar que faltassem ao trabalho. Se o capataz deixava a sala de trabalho por um momento, as crianças deixavam de trabalhar e começavam a brincar. Uma das crianças era bastante inteligente e também muito preguiçosa. Não gostava de puxar continuamente o pistão com as mãos, e, assim, tentou encontrar um método substitutivo. Fixou um pedaço de corda e uma vara em cima da máquina de tal modo que o pistão, depois de seu movimento para a frente, voltava sozinho à posição primitiva. Sem a intervenção da criança, o pistão voltava e continuava os movimentos em ambas as direções sem interrupção. Essa invenção da criança propagou-se imediatamente entre outras crianças e logo todas estavam fazendo suas máquinas trabalhar automaticamente com a ajuda da corda e da vara, ao mesmo tempo que se dedicavam aos folguedos sem dar atenção às máquinas. Quando o capataz regressou esse dia à tecelagem e viu todas as crianças brincando ao invés de estarem cuidando de suas máquinas, ficou estupefacto e disse: “Como é que as crianças estão brincando e as máquinas continuam a funcionar com seus próprios meios? Que espécie de estratagema essas crianças estão usando? É certamente estranho.” O capataz foi então investigar a causa do movimento automático e informou os resultados dessa investigação ao engenheiro. Este percebeu que o método era de grande utilidade, e, adotando-o, introduziu-lhe vários melhoramentos. Essa invenção serviu de base às nossas máquinas automáticas modernas.
A maquinaria do governo democrático não foi alterada nos últimos cem anos. Se estudarmos essa maquinaria, verificaremos que a democracia em efeito nos diversos países resume-se simplesmente no direito do voto. Isso quer dizer que o povo tem o poder apenas de um movimento e não de dois; pode apenas fazer avançar sua soberania, mas não pode mover-se em direção contrária. Isso assemelha-se aos motores primitivos. Mas, uma vez, uma criança descobriu que um pedaço de corda e uma vara, acrescidos ao próprio poder da máquina, podiam fazer a máquina mover-se automaticamente para trás e para a frente. O governo democrático moderno, todavia, não teve uma criança preguiçosa para encontrar uma maneira de cassar o mandato dos delegados do povo. A maquinaria do governo democrático, portanto, depois de mais de cem anos, está limitada ao direito do povo. Não se registou nenhum avanço além desse estágio, depois de longo tempo. Não há outra maneira de controlar os homens, que são eleitos para os cargos públicos, sejam eles bons servidores ou incompetentes. Tal condição é devida às imperfeições existentes na maquinaria da democracia, e, consequentemente, o governo democrático ainda não encontrou um processo adequado, registando apenas um progresso muito limitado. Se quisermos melhorar a maquinaria, que deveremos fazer? Como disse em minha conferência anterior, deveremos estabelecer uma distinção clara entre soberania e habilidade.
Empregando novamente a ilustração fornecida pela maquinaria: o controle e o poder são claramente separados na máquina, uma parte realiza o trabalho, a outra inicia o movimento, e cada uma tem seus limites de atividade. Tomemos a maquinaria de um vapor. Os maiores vapores têm atualmente um deslocamento de 50 ou 60 mil toneladas e a maquinaria que os movimenta tem uma potência conjunta de 100 mil cavalos. Um só homem, todavia, pode controlá-la perfeitamente. Se esse homem quer que o navio se ponha em movimento, imediatamente o faz. Se quer pará-lo, também faz cessar imediatamente o movimento. O desenvolvimento da maquinaria atingiu esse estágio maravilhoso. Quando a maquinaria foi inventada, os homens não ousavam empregar máquinas com potência superior a algumas centenas ou um milhar de cavalos de força, pois, se a potência era muito grande, ninguém podia controlá-la. Medimos comumente a potência pelo número de cavalos-vapor; um cavalo vapor é equivalente ao poder conjunto de oito homens. A força motriz nos gigantescos transatlânticos e encouraçados modernos tem uma potência de 100 a 200 mil cavalos de força.
Se o controle não for perfeito, toda a maquinaria, uma vez colocada em movimento, não poderá volver em sentido contrário; “pode ser iniciada, mas não parada.” A falta de controle tem causado a morte de muitos inventores, quando estes experimentavam suas máquinas. A história humana está cheia de tais tragédias. Os estrangeiros dão o nome de Frankenstein à máquina que pode ser posta em movimento, mas que não pode ser controlada. Mas, quando a construção da maquinaria melhorou sensivelmente, máquinas de até mesmo 100 ou 200 mil cavalos passaram a ser facilmente controladas por um só homem, sem qualquer partícula de perigo. Cem mil cavalos de força equivalem à força conjunta de 800 mil homens; 200 mil cavalos à de 1.600.000 homens. Não seria fácil controlar da mesma maneira 1.600.000 homens; é difícil para um só homem dirigir um exército com efetivos de 10 ou 20 mil soldados. Um só homem, contudo, pode dirigir facilmente a força de mais de 1.600.000 homens numa máquina. Assim, podemos ver que a maquinaria moderna realizou grandes avanços, tendo melhorado consideravelmente os métodos de controle.
Os estadistas e jurisperitos estão, agora, referindo-se ao governo como sendo uma máquina e ao direito como um instrumento e nossa era democrática considera o povo como a força motriz do governo. Na era da autocracia, o rei era a força motriz e todas as atividades do Estado eram iniciadas por ele.
Quanto maior o poder do governo, maior era a majestade do trono. Um governo forte era essencial para a execução efetiva dos editos imperiais. Uma vez que o rei era o poder que movimentava a maquinaria, uma forte organização governamental tornava possível ao rei, em sua exaltada posição, fazer o que lhe apetecesse — iniciar reformas políticas, empreender “agressões em vasta escala”, preparar para a guerra, ou quaisquer outras empresas. Assim, na era da autocracia, o aumento de poder investido ao governo trazia vantagens e não prejuízos ao rei. Na era da democracia, porém, o povo é a força motriz do governo. Então, por que mostra seu ressentimento a um governo forte? Porque, se o governo é muito poderoso, não pode controlá-lo e será oprimido por ele. Devido ao fato de ter, outrora, sido excessivamente oprimido por seus governos e sofrido muito com isso, o povo tenta evitar a opressão no futuro, limitando o poder do governo. Nos primeiros dias da maquinaria, uma criança podia fazer o pistão regredir à posição anterior, o que mostra a muita pouca força de que dispunha a máquina — nunca ultrapassando uns poucos cavalos. Uma máquina com 10 mil cavalos não podia, naturalmente, ser manejada por uma criança. Uma vez que os métodos de controle da maquinaria eram deficientes, o povo não ousava empregar senão máquinas de pequena potência. Os nossos tempos também são assim e nossos métodos para o controle do governo são também deficientes. O povo é, naturalmente, a força motriz numa democracia, porém, deve também ser capaz de, a qualquer tempo, fazer parar o poder que pôs em movimento. O povo, portanto, empregará somente um governo de pequena potência, pois não pode controlar um governo de várias centenas de cavalos-vapor e não ousará operá-lo. O temor sentido pelos povos do Ocidente, hoje em dia, de um governo poderoso é exatamente como o temor pelo emprego da maquinaria poderosa nas fábricas dos tempos de antanho. Se as pequenas máquinas, no início, não tivessem sido melhoradas, a maquinaria nunca teria feito qualquer progresso, sendo sempre necessário que o trabalho humano complementasse sua ação. Devido, porém, aos melhoramentos contínuos verificados até nossos dias, a maquinaria não apenas deixou de necessitar desse complemento do trabalho humano, mas tornou-se capaz de se movimentar automaticamente. Quanto à sua maquinaria política, todavia, o povo não cuidou de melhorá-la, mostrando-se temeroso de que lhe fosse dado uma potência excessivamente grande, tornando impossível o seu controle. Ao invés, está constantemente pensando em métodos para limitar a ação do governo até privá-lo da oportunidade de se desenvolver, o mesmo acontecendo à democracia. Considerando às atuais tendências mundiais, podemos afirmar a existência de um progresso firme nas ideias democráticas, porém, não se verificou nenhum progresso no controle do governo democrático. Esta é a razão porque as nações democráticas do Ocidente não encontraram ainda um método fundamental de ação.
Como disse em minha conferência anterior, devemos estabelecer uma distinção entre soberania e habilidade. Quando aplicamos essa distinção à ilustração da máquina, onde colocamos a habilidade ou poder? A própria máquina é que possui a habilidade ou poder. Uma máquina com uma força de 100 mil cavalos, alimentada com quantidades adequadas de carvão e água, gerará uma soma adequada de habilidade e poder. Onde está a soberania? O engenheiro no controle da máquina possui a soberania. Não importa qual seja a potência da máquina, o engenheiro tem apenas de mover a mão para que a máquina comece a funcionar imediatamente ou parar imediatamente se já estiver funcionando. O engenheiro pode controlar a máquina e fazer dela o que quiser. Logo que a máquina entra em funcionamento, ele pode graduar a velocidade do navio ou da locomotiva, e, parando a máquina, pode fazer cessar o movimento do vapor ou da locomotiva. A máquina é, pois, uma coisa capaz e poderosa, enquanto o engenheiro é uma pessoa dotada de elevado grau de soberania. Se o povo, no controle do governo, estabelecer distinção entre soberania e habilidade ou poder, assemelhar-se-á ao engenheiro que controla a maquinaria. Quando a democracia é altamente desenvolvida e os métodos de controle do governo são aperfeiçoados, o governo disporá de grande poder. Mas o povo só tornará suas opiniões conhecidas em seu congresso nacional. Se atacar o governo, poderá derrubá-lo, se elogiar o governo, fortalecê-lo-á. Mas, conforme é, na realidade, se o governo age de maneira incondizente com as necessidades nacionais, o povo não tem meios de o controlar. Não importa em que grau o povo possa criticar ou elogiar o governo, suas palavras tornam-se ineficazes, e o governo não lhes presta atenção. Hoje, o governo não está fazendo progresso, enquanto o espírito democrático está florescendo. Os povos de todos os países estão verificando que a atual maquinaria política não se adapta às suas ideias ou necessidades.
A China encontra-se, atualmente, num período de revolução. Estamos advogando uma forma democrática de governo. Nossas ideias democráticas provieram do Ocidente. Estivemos pensando, recentemente, como poderíamos copiar essas ideias para colocarmos a nação sob um governo popular. Quando, primeiro, consideramos essa espécie de Estado, um grupo de revolucionários entusiastas acreditava que, se imitássemos exatamente o Ocidente, seguíssemos exatamente suas pegadas, e copiássemos tudo dos ocidentais, a democracia chinesa se desenvolveria até os limites da perfeição. A princípio, tais ideias não eram inteiramente erradas, pois o velho governo autocrático da China era tão corrupto que, se pudéssemos, depois de efetuar a revolução e derrubá-lo, começar nossos esforços construtivos aprendendo do Ocidente, certamente ficaríamos em melhor situação do que sob o velho regime. Estão, porém, os povos do Ocidente inteiramente satisfeitos com a situação prevalecente em sua vida nacional e social? Se fizermos um estudo cuidadoso do governo e da sociedade do Ocidente, verificaremos que, nos chamados Estados revolucionários pioneiros, como os Estados Unidos e a França, os povos estão propondo melhoramentos no governo e pensando ainda na revolução. Por que ainda pensam em revolução, quando tiveram várias durante o último século? Isso demonstra que estávamos errados, quando pensávamos que, seguindo o Ocidente, iríamos ter ao auge da perfeição. E, se devêssemos copiar fielmente as instituições dos Estados Unidos e da França, que ainda estão contemplando a revolução, não poderíamos escapar a outra revolução daqui a cem anos. A maquinaria governamental dos Estados Unidos e da França apresenta ainda muitos defeitos e não satisfaz os desejos de seus povos, nem lhes dá uma soma completa de felicidade. Assim, nós, em nossa projetada reconstrução, não devemos pensar que, se imitarmos o Ocidente de hoje, atingiremos o último estágio do progresso e seremos perfeitamente felizes. Se seguirmos as pegadas do Ocidente, cada geração não se mostrará mais insatisfeita do que a anterior e não teremos finalmente de empreender outra revolução? Se outra revolução for necessária, a atual não terá sido um esforço vão? Que devemos fazer para que esta revolução não seja um fútil desperdício de energias? Quais os planos que devemos formular, a fim de assegurar um governo permanente e uma paz duradoura — “repouso durável depois de um esforço supremo” — e evitar calamidades no futuro?
Poderemos importar os métodos do Ocidente e aplicá-los em massa na China? Tomemos as características mais recentes da civilização material do Ocidente. O meio de comunicação mais importante é a estrada de ferro. A primeira nação oriental a construir estradas de ferro, segundo o modelo ocidental, foi o Japão. Somente, em época recente, a China veio a compreender o valor da estrada de ferro e a necessidade de construí-las, de modo que foi muito mais lenta do que o Japão em adotar o sistema ferroviário estrangeiro. Comparai, porém, as estradas de ferro existentes atualmente na China e no Japão. Se já viajastes, tanto em trens chineses como em japoneses, ti- vestes oportunidade de ver que a bitola japonesa é muito estreita e os vagões são pequenos, enquanto a bitola chinesa, como das Estradas de Ferro Xangai-Nanquim e Peiping-Hankow, é muito larga e os vagões são bastante grandes. Por que as estradas chinesas, que foram construídas depois das do Japão, têm a bitola mais larga e os vagões maiores? Porque a China copiou as invenções mais recentes do Ocidente, enquanto que o Japão copiou modelos mais antigos. Se a China tivesse adotado os velhos estilos do Japão, ao invés das últimas invenções do Ocidente, estaríamos satisfeitos? A Europa e a América usavam, outrora, somente a bitola estreita e pequenos vagões. O Japão, no início, copiou esses modelos e, inconscientemente, caiu numa armadilha. Devemos nós, também, ao construir nossas estradas de ferro, copiar esses velhos e inconvenientes modelos? Na realidade, a China não copiou o antiquado modelo do Japão, porém, copiou os modelos mais recentes e eficientes do Ocidente, e, consequentemente, nossas estradas de ferro são melhores do que as do Japão. “Os últimos tornaram-se os primeiros”. Por essa mesma razão, em nossa reforma política, não deveríamos copiar as características antiquadas do Ocidente, mas deveríamos proceder a um estudo cuidadoso das condições políticas prevalecentes no Ocidente, verificar o progresso real feito pelas nações ocidentais no domínio do governo e aproveitar as suas últimas descobertas. Somente assim poderemos esperar sobrepujar outras nações.
Como disse numa de minhas conferências anteriores, a Europa e a América não esgotaram ainda as possibilidades de estudo dos problemas da democracia, e, consequentemente, seus povos estão empenhados num conflito diuturno com seus governos. A força da democracia é nova, porém, a maquinaria da democracia é velha. Se quisermos remover as dificuldades da democracia, deveremos construir outra maquinaria, uma nova maquinaria, sobre o princípio de que a soberania e a habilidade são coisas diferentes. O povo deve ter soberania, a maquinaria deve ter habilidade e poder. A eficiente e poderosa maquinaria moderna é operada por homens, que podem pô-la em funcionamento ou pará-la à sua vontade. O Ocidente realizou as invenções mais completas no campo da maquinaria, porém fez descobertas muito imperfeitas no domínio do governo. Se quisermos levar a efeito uma mudança completa no governo, não temos nenhum modelo para copiar, mas devemos nós próprios descobrir novos caminhos. Seremos capazes de fazer tal coisa? Desde a época dos boxers, os chineses perderam completamente a confiança em si próprios. A atitude do povo é de absoluta fé nos países estrangeiros e de desconfiança para consigo mesmo. Parece-lhe impossível que possa realizar algo ou fazer qualquer descoberta original. Não, deve seguir as pegadas do Ocidente e copiar seus métodos e princípios. Antes da guerra dos boxers, tínhamos bastante confiança em nós mesmos; o povo acreditava que a antiga civilização da China era superior à civilização ocidental, que os chineses eram superiores em capacidade mental aos ocidentais e que podíamos realizar quaisquer espécies de invenções ou descobertas.
Agora, pensamos que tal coisa está fora de questão. Não vemos que a civilização ocidental é poderosa apenas em seus aspectos materiais e não em seus vários aspectos políticos. Sob o ponto de vista das teorias científicas de uma civilização material, a Europa e a América desenvolveram-se notavelmente nos anos recentes. Mas, porque um homem se destaca num domínio do conhecimento, não significa, necessariamente, que seja igualmente proficiente em todos os campos do conhecimento; em muitos deles, ele pode mesmo ser cego. Suas ciências físicas desenvolveram-se ao mais elevado grau no último século e suas inúmeras invenções “usurparam os poderes da natureza”, indo além dos sonhos mais fantásticos. Mas dizer que aquilo que não realizaram no campo da ciência política não podemos pensar ou descobrir parece-nos não ser razoável. A maquinaria ocidental realizou muitos progressos nos tempos recentes, mas isso não prova que os sistemas políticos do Ocidente tenham progredido também. Durante os últimos dois ou mais séculos, a especialidade do Ocidente tem sido somente a ciência. Os grandes cientistas estão, naturalmente, muito adiantados em seus ramos de conhecimento, porém, isso não os torna, necessariamente, adiantados em todos os ramos do conhecimento. Vou narrar-lhes uma anedota interessante para ilustrar meus pontos de vista.
Viveu na Inglaterra um famoso cientista, Newton, que não foi ultrapassado por nenhum outro sábio moderno. Newton era homem dotado de grande sabedoria e conhecimento, que fez importantes descobertas no campo da física, sendo que a mais famosa foi a da lei universal da gravidade. Essa teoria foi enunciada, em primeiro lugar, por Newton e, desde então, passou a ser um princípio básico da ciência, mais importante do que qualquer outro princípio até então descoberto. Newton dispunha de uma aptidão extraordinária para a ciência, mas vejamos se era também inteligente em outros assuntos. Quando estudo sua vida, não penso que fosse sábio em todas as questões, e há uma anedota muito interessante que prova meu ponto de vista. Newton, desde sua infância, aparte sua paixão pelo estudo e pela experimentação, nutria grande amor pelos gatos. Possuía dois, de diferentes tamanhos, que o seguiam por toda parte, dentro ou fora de casa. Devido ao seu amor pelos gatos, satisfazia-lhes todos os desejos; se estivesse estudando ou fazendo experiências em seu quarto e os gatos quisessem sair, ele parava seus trabalhos e abria-lhes a porta; se os gatos queriam entrar no quarto, ele parava suas atividades para deixá-los entrar. Os gatos, porém, tanto entravam e saíam, que se tornaram excessivamente inconvenientes. Assim sendo, um dia, Newton pensou em inventar uma maneira pela qual os gatos pudessem ir e vir, livremente, sem perturbar seus trabalhos. Qual foi essa maneira? Fez dois buracos na porta, um grande e outro pequeno, um para o gato grande e outro para o gato menor! Esse plano derivou da sabedoria de um grande cientista! O bom senso diz-nos que, se o gato grande podia atravessar o buraco maior, o gato menor também o poderia, de modo que apenas um buraco seria suficiente. Por que, então, perder tempo em fazer um buraco menor? Mas o grande Newton insistiu em fazer dois buracos. É o cientista sábio em todas as questões? Essa história mostra-nos que não. O fato de ser versado num domínio não implica que também o seja nos demais.
A ciência ocidental progrediu até o ponto de tornar a maquinaria material de dupla ação automática, porém, a soberania do povo sobre o governo é ainda de ação simples; somente pode mover-se numa só direção. Enquanto advogamos a democracia para a reconstrução de nossa República, adotemos uma democracia inteiramente nova e uma República inteiramente nova. Se não devemos seguir integralmente os Estados adiantados do Ocidente, devemos, por outro lado, elaborar um novo e melhor processo. Seremos capazes dessa empresa? Se quisermos responder a essa questão, não deveremos desprezar- nos continuamente, considerando-nos “pequenos e baixos.” A torrente da democracia fluiu para a China e nós a acolhemos na reconstrução de nossa nação. Poderemos, porém, encontrar nova e melhor maneira de usá-la? Durante milhares de anos, a China tem sido um país independente. No nosso antigo desenvolvimento político, nunca tomamos emprestado material de outros países. A China tem uma das civilizações mais antigas do mundo e nunca necessitou de copiar inteiramente outras nações. Somente, em tempos recentes, a cultura ocidental ultrapassou a nossa, e a paixão por essa nova civilização estimulou a nossa revolução. Agora, que a revolução é uma realidade, desejamos naturalmente ver a China sobrepujar o Ocidente e construir o Estado mais moderno e mais progressista do mundo. Possuímos, certamente, as qualidades necessárias para atingir esse ideal, porém, não devemos imitar simplesmente os sistemas democráticos do Ocidente. Esses sistemas transformaram-se em maquinaria obsoleta.
Para atingir nosso ideal, devemos construir uma nova maquinaria. Existe material no mundo para essa nova maquinaria? Sim, há muito material espalhado por diversos países, porém, devemos, em primeiro lugar, decidir sobre uma linha fundamental de processo. E essa linha de processo é a separação da soberania e da habilidade, que já abordei. Depois, quando pusermos a democracia em funcionamento, deveremos separar a organização do Estado e a administração da democracia. As nações ocidentais não formularam seus conceitos através desses princípios básicos e não estabeleceram distinção entre soberania e poder ou habilidade, e, consequentemente, o poder do seu governo não se expande. Agora, que formulamos nosso pensamento, através de nosso princípio básico, podemos dar um passo à frente e dividir a maquinaria de governo. A fim de realizarmos isso, devemos compreender bem a ideia de governo. Na primeira conferência, apresentei uma definição de governo – uma coisa do povo e pelo povo e controle dos negócios de todo o povo. A maquinaria governamental, que é construída de conformidade com o princípio da soberania distinta da habilidade e poder, é exatamente como a maquinaria material que tem o poder em si e é controlada por um poder de fora. Ao construirmos o novo Estado, de acordo com as descobertas mais recentes, deveremos separar claramente essas duas espécies de poder. Mas como? Deveremos partir do significado de governo. Governo ou política é uma empresa de todo o povo e sua força centralizadora é a soberania política. A soberania política significa, pois, soberania popular e o governo que centraliza as forças de controle da vida do povo é chamado poder governamental ou autoridade governamental.
Existem, pois, duas forças em política, a força política do povo e o poder administrativo do governo. Um é o poder de controle, o outro é o poder do próprio governo. Que significa isso? Um navio tem uma máquina com 100 mil cavalos; a geração dos 100 mil cavalos e a movimentação do navio dependem do poder da própria máquina, e esse poder pode ser comparado ao poder do governo. Mas o movimento para a frente e para trás, para a direita ou para a esquerda, a parada, sua velocidade, dependem do controle de um bom maquinista. Ele é essencial à direção e ao controle de uma máquina perfeita; mediante um perfeito controle, o poderoso navio poderá partir ou parar, à vontade. Esse poder de controle pode ser comparado ao controle sobre o governo, que é a soberania política. A construção de um novo Estado é como a construção de um navio. Se instalarmos nele uma máquina de pequena potência, sua velocidade será naturalmente pequena, sua capacidade de carga reduzida e os lucros provenientes de sua operação baixos. Se instalarmos, porém, uma máquina poderosa, o navio terá uma grande velocidade, será capaz de transportar muita carga e produzirá grandes lucros. Suponhamos que um navio, com uma potência de 100 mil cavalos e uma velocidade horária de 20 nós, pudesse realizar um lucro de 100 mil dólares numa viagem bissemanal de ida e volta entre Cantão e Xangai. Depois, suponhamos que devêssemos construir um grande navio, instalando-se nele uma maquinaria com uma potência de 1.000.000 de cavalos, de modo que sua velocidade atingisse a 50 nós horários. A viagem de ida e volta entre Cantão e Xangai levaria uma semana e daria um lucro de um milhão de dólares. Os navios mais velozes, que sulcam atualmente os mares do mundo, não podem desenvolver uma velocidade superior a vinte ou trinta nós. Se pudéssemos, porém, construir um navio com uma velocidade de 50 nós, nenhum outro vapor poderia competir com ele e teríamos a maior e mais rápida unidade mercante do mundo. O mesmo princípio aplica-se à construção de um Estado. Se erigirmos um governo fraco, de pequena potência, suas atividades serão limitadas e suas realizações reduzidas. Mas, se construirmos um governo forte, de grande potência, suas atividades terão escopo amplo e realizará grandes coisas. Se um governo poderoso fosse instalado no maior Estado do mundo, esse Estado não ultrapassaria todos os demais? Teria esse governo rival no mundo?
Por que as nações do Ocidente dispõem de navios dotados de maquinaria de alta potência, mas não de Estados com governos poderosos? Devido ao fato de poderem apenas controlar a maquinaria de alta potência, mas de não terem encontrado maneira para controlar um governo poderoso. É uma tarefa fácil descartar-se de um velho navio, com uma máquina de pouca potência; porém, o Estado tem raízes muito profundas e a construção de um poderoso governo em lugar de um governo fraco é uma coisa difícil. A China, com seus 400 milhões de habitantes, é o Estado mais populoso do mundo; seu território é extenso e sua produção, rica e abundante, excedendo à dos Estados Unidos. Os Estados Unidos são, atualmente, a nação mais rica e poderosa do mundo, e nenhuma outra nação se lhe pode comparar. Quando comparamos nossos recursos naturais, parece que a China deveria ultrapassar os Estados Unidos, mas, na realidade, não somente isso é impossível agora, mas nem mesmo os dois países podem ser mencionados lado a lado. A razão é que os chineses têm as necessárias qualificações, porém, são carentes de esforços humanos. Nunca tivemos um governo realmente bom. Mas, se acrescentarmos o esforço humano a nossas qualificações naturais, se construirmos um governo forte e completo, que evidencie grande poder e movimente toda a nação, a China poderá começar imediatamente a marchar, lado a lado, com os Estados Unidos.
Depois da China assegurar-se um governo poderoso, não devemos ter receio, como os povos ocidentais o têm, de que o governo se torne demasiado forte e escape ao nosso controle, pois nosso plano para a reconstrução do Estado abrange a divisão do poder político de todo o Estado em duas partes. O poder político será depositado nas mãos do povo, que terá plena soberania e estará capacitado a controlar diretamente os negócios de Estado; esse poder político é a soberania popular. O outro poder é o governo, cujo exercício colocaremos na alçada de diversos órgãos, que serão poderosos e administrarão os negócios de toda a nação; esse poder político é o poder do governo. Se o povo dispuser de plena soberania política e os métodos para o exercício do controle popular sobre o governo forem bem elaborados, não necessitaremos temer que o governo se torne demasiado poderoso e escape ao nosso controle. Os ocidentais não ousavam outrora construir máquinas com uma potência superior a 100 mil cavalos. Devido ao fato das máquinas não serem de construção perfeita e os meios de controle não serem compactos, temiam seu poder e não arriscavam controlá-las. Atualmente, porém, quando maravilhosos melhoramentos foram introduzidos nas máquinas, estas são tão bem construídas e seu mecanismo de controle é tão compacto que os ocidentais estão construindo máquinas de potência considerável. Se quisermos construir uma maquinaria política melhorada, deveremos seguir as mesmas diretrizes: deveremos ter um órgão governamental completo e poderoso, e, ao mesmo tempo, um método compacto de soberania popular para o exercício do controle sobre esse órgão. Os governos do Ocidente carecem desse controle compacto e efetivo, de modo que ainda não estão fazendo muito progresso nesse domínio. Não sigamos suas pegadas. Que o povo, ao considerar o governo, estabeleça a distinção entre soberania e poder. Que a grande força política do Estado seja dividida: primeiro, o poder do governo, e, depois, o poder do povo. Tal divisão fará do governo a maquinaria, e, do povo, o engenheiro. A atitude do povo para com o governo será, então, semelhante à atitude do engenheiro para com a máquina.
Tais progressos foram feitos na construção da maquinaria que, não somente adultos possuidores de conhecimento mecânico, mas mesmo crianças sem qualquer conhecimento de maquinaria, poderão controlá-la. Tomemos, por exemplo, a luz elétrica que é de uso quotidiano. Quando a eletricidade foi descoberta, era uma coisa perigosa, oferecendo tantos perigos como o raio, e, sem meios seguros de controle, poderia matar. Em consequência, houve numerosas vítimas entre os cientistas que primeiro a estudaram. O perigo era tão grande que, durante muito tempo, depois da descoberta da» luz elétrica, o povo não ousava usá-la. Depois, foi inventado um método compacto e efetivo de controle, e, com uma volta no comutador, qualquer pessoa pode hoje acender ou apagar a luz. Esse pequeno movimento da mão é seguro e conveniente; uma pessoa sem qualquer conhecimento de eletricidade, uma criança da cidade ou o homem mais rude do campo, pode mover o comutador com a mão. Assim, a força mais perigosa, a eletricidade, nos dá agora a luz.
O desenvolvimento de outras máquinas oferece uma história semelhante. A máquina de invenção mais recente, o avião, é uma coisa extremamente perigosa. Quando começou a ser usado, inúmeras pessoas pereceram em acidentes. Lembrai-vos de Feng Ju, do Kwangtung? Ele construía aeroplanos e, quando pilotava uma dessas máquinas, caiu ao solo, morrendo. Nos primeiros dias que se seguiram à invenção, o povo não sabia como usá-la, e, assim, o construtor tinha também de ser o piloto. Os primeiros aviadores, devido à carência de mecanismos compactos e efetivos de controle e de não terem experiência de voo, não manejavam bem suas máquinas, e muitos vieram a morrer. Esse fato tornava o avião impopular no seio do povo. Mas, atualmente, o mecanismo de controle é delicado e compacto, e muita gente já adquiriu experiência de voo, a exemplo dos pássaros no ar, indo e vindo, para a frente e para trás. para cima e para baixo, verificando a conveniência e a segurança dessas máquinas. Em consequência, os aviões são hoje um meio regular de comunicação. A estrada entre Kwangtung e Szechwan é muito longa e cheia de perigos. A viagem fluvial ou por terra é extremamente difícil e monótona. O avião, porém, pode atingir rapidamente Szechwan.
A China acalenta atualmente a ideia da democracia, porém, ainda não foi inventada em todo o mundo uma maquinaria perfeita para expressar essa ideia. O povo não sabe como usá-la. Nós, que possuímos visão e descortino, devemos ser os primeiros a construir essa máquina. Devemos construir uma torneira de grande utilidade, uma espécie segura de comutador elétrico, que o povo comum possa aprender a usar com um sim- pies movimento da mão; então, a ideia da democracia tornar-se-á uma realidade. A China atrasou-se do Ocidente na aquisição da ideia da democracia, como também se atrasou do Japão na construção de estradas de ferro. Apesar do Japão ter iniciado a construção de ferrovias antes da China, suas estradas de ferro são de modelo antigo e não são adequadas para o uso moderno. Nossas estradas de ferro recém-construídas estão bem adaptadas às exigências modernas. Quais os métodos que empregamos, na aplicação da democracia, que importamos do Ocidente? Somente depois que elaborarmos esses métodos é que a democracia poderá ser por nós usada. Se insistirmos em aplicar a democracia sem uma preparação prévia e cuidadosa, verificaremos que sua extrema periculosidade será capaz de nos destruir. Já foram inventados tais métodos para a aplicação da democracia? A Suíça já tentou a aplicação de alguns métodos parciais; são radicais e dão ao povo soberania direta, porém, não são completos. As nações maiores da Europa não chegaram a experimentar esses métodos incompletos. O fato de que somente o pequeno Estado da Suíça tenha tentado aplicar uma forma parcial de soberania direta faz com que muita gente duvide de sua aplicabilidade em grandes Estados. Por que os grandes Estados não estão empregando os métodos da Suíça? Assemelham-se ao Japão, que já tem estradas de ferro de bitola estreita excessivamente onerosas em tempo e dinheiro e, sob o ponto de vista econômico, representam uma má política. Porque “temem as dificuldades e procuram a tranquilidade”, porque possuem uma mentalidade financeira conservadora, esses povos adiantados, apesar de familiarizados com os modelos recentes, não usam esses métodos. Mas, nós, na China, nunca tivemos uma maquinaria obsoleta de democracia, de modo que devemos ser capazes de escolher e usar as descobertas melhores e mais recentes.
Quais são as descobertas mais recentes no domínio da democracia aplicada? Primeiro, há o sufrágio, que é o único método em operação em todas as chamadas democracias modernas.
É essa forma de soberania popular suficiente para o exercício do governo? Esse poder em si pode ser comparado ao das máquinas primitivas que somente podiam movimentar-se numa direção. O segundo desses métodos é o poder de cassação de mandato. Com esse poder, o povo pode movimentar a máquina em direção contrária. Esses dois direitos, o direito de eleger e o direito de cassar o mandato, dão ao povo o controle sobre seus mandatários, capacitando-o a colocar e a remover de suas posições os funcionários governamentais. A nomeação e demissão de mandatários obedece à vontade livre do povo, exatamente como as máquinas modernas se movimentam em todas as direções pela ação livre do motor. Outra coisa importante num Estado, além do seu funcionalismo, são as leis; “com homens para governar, deve haver também meios de governar.” Que poder deve o povo possuir a fim de controlar as leis? Se todo o povo pensasse que uma certa lei lhe fosse de grande vantagem, deveria ter o poder para decidir sobre sua adopção e incumbir o governo de aplicá-la. Essa terceira espécie de poder popular é chamada a iniciativa. Se todos pensam que uma velha lei não é benéfica para o povo, deveriam ter o poder para emendá-la ou pedir ao governo a aplicação da lei revista e a ab-rogação da lei velha. Esse poder chama-se referendume é a quarta forma da soberania popular. Somente quando o povo dispuser desses quatro poderes, poderemos afirmar a existência de uma democracia completa, e somente onde esses quatro poderes são efetivamente aplicados poderemos dizer que existe uma soberania popular direta e completa. Antes da existência de uma democracia completa, o povo élegia seus funcionários e representantes e, depois, não podia responsabilizá-los. Tratava-se apenas de uma democracia indireta ou de um sistema representativo de governo. O povo não podia controlar o governo diretamente, mas somente através de seus representantes. Para o controle direto do governo é necessário que o povo pratique essas quatro formas de soberania popular. Somente então poderemos falar de governo por todo o povo. Isso significa que nossos 400 milhões de compatriotas serão os reis, exercendo sua autoridade real e controlando as grandes questões do Estado por meio dos quatro poderes do povo. Com a torneira, podemos controlar diretamente o escoamento da água, com o comutador elétrico, podemos controlar diretamente a luz elétrica, com os quatro poderes do povo, poderemos controlar diretamente o governo do Estado. Esses quatro poderes são também denominados poderes políticos e são os poderes para o controle do governo.
O poder do governo para efetuar operações pode ser chamado de poder de trabalho, trabalho a favor do povo. Se o povo for poderoso, a possibilidade do governo de trabalhar ou não e a espécie de trabalho que fizer dependerão apenas da vontade do povo. Se o governo for muito poderoso, logo que inicia suas atividades, poderá revelar grande força, e, todas as vezes que o povo cessar seu funcionamento, deixará imediatamente de funcionar. Em suma, se o povo tiver realmente de exercer um controle direto sobre o poder do governo, deverá ser capaz de, a qualquer tempo, exercer domínio sobre as ações do governo. Pode-se ilustrar nosso ponto de vista com o encouraçado. Um encouraçado estrangeiro obsoleto dispunha de 12 canhões, montados em seis torres diferentes e os artilheiros tinham de trabalhar separadamente para determinar o alcance, a fim de fazer fogo sobre o inimigo. O oficial encarregado do controle não podia controlar os tiros diretamente. Mas, nos encouraçados modernos, há um instrumento para a determinação do alcance na torre de observação e os cálculos para os artilheiros são feitos na sala do oficial encarregado do controle do tiro, de onde os canhões são regulados por um controle elétrico direto. Assim, quando um encouraçado defronta o inimigo, não é necessário aos diferentes artilheiros ajustarem suas miras e disparar os canhões; o oficial de controle, sentado em sua sala, depois de ouvir as informações dos observadores, calcula a distância e manipula o mecanismo elétrico peso qual um canhão dispara numa direção ou todos os doze canhões são assestados e disparados conjuntamente. Todos os canhões abrem fogo e atingem o objetivo. Somente um dispositivo como esse pode ser considerado como um controle direto, porém, o controle direto não significa que o oficial encarregado do controle faça sozinho todo o trabalho. Uma máquina só se torna útil quando executa o trabalho para a pessoa que a emprega.
Com o povo exercendo esses quatro grandes poderes de controle sobre o governo, que métodos usará o governo na execução de suas atividades? Para que o governo possa ter um órgão completo através do qual possa atuar da melhor forma, deve ser dotado de uma Constituição de cinco poderes. Um governo não é completo e não pode atuar da melhor maneira para o povo a menos que seja baseado numa Constituição de cinco poderes. Já me referi a um pensador americano, que apresentou uma teoria no sentido de que todas as nações temem os governos poderosos, difíceis de controlar, mas que ainda assim o que mais desejam é um governo todo-poderoso de que o povo se possa utilizar e que persiga seu bem-estar. O domínio popular não poderá prevalecer senão quando existir a última espécie de governo. Estamos fazendo uma distinção entre soberania e habilidade; comparamos o povo ao engenheiro e o governo à maquinaria. Por um lado, queremos que a maquinaria de governo seja poderosa de modo que possa executar qualquer espécie de trabalho; de outro, queremos que o povo- engenheiro seja bastante forte para que possa controlar essa maquinaria poderosa. Quais os poderes que o povo e o governo deverão ter a fim de que se estabeleça um equilíbrio mútuo? Já tratei dos quatro poderes do povo — o sufrágio, a cassação de mandato, a iniciativa e o referendum. O governo, por seu lado, deve ter cinco poderes — executivo, legislativo, judiciário, exames para o serviço público e censura. Quando os quatro poderes políticos do povo controlarem os cinco poderes do governo, disporemos de um órgão governamental completamente democrático, e a força do povo e do governo estarão bem equilibradas. O seguinte diagrama nos auxiliará a compreender mais claramente a relação entre esses poderes:
PODER POLÍTICO DO POVO
Sufrágio — Cassação de mandato — Iniciativa — Referendum
PODER ADMINISTRATIVO DO GOVERNO
Legislativo — Judiciário — Executivo — Serviço Público — Censura
O poder político está nas mãos do povo, o poder administrativo, com o governo. O povo controla o governo através do sufrágio, da cassação de mandato, da iniciativa e do referendum; o governo trabalha para o povo através de seus departamentos legislativo, judiciário, executivo, serviço público e censura. Com esses nove poderes em operação, preservando o equilíbrio, o problema da democracia será resolvido e o governo terá uma rota definitiva para seguir. Os materiais para a execução desse plano já haviam sido descobertos. A Suíça já aplicou três desses poderes, com exclusão do de iniciativa. Alguns dos Estados do Noroeste dos Estados Unidos já aplicam todos esses quatro poderes. O sufrágio é o poder do povo mais amplamente exercido no mundo hodierno. A Suíça já aplica três dos poderes populares e uma quarta parte dos Estados Unidos já exerce todos os quatro. Onde quer que os quatro poderes tenham sido exercidos de maneira cuidadosa, compacta, os resultados colhidos foram excelentes. Tratam-se de fatos de experiência, e não meras ideias hipotéticas. Estaremos em segurança aplicando esses métodos e não correremos quaisquer perigos.
Todos os poderes governamentais eram antigamente monopolizados pelos reis e imperadores, mas, depois das revoluções, foram divididos em três grupos: assim, os Estados Unidos, depois de assegurar sua independência, estabeleceram um governo com três departamentos coordenados, obtendo esplêndidos resultados. Outras nações seguiram o exemplo dos Estados Unidos. Mas os governos estrangeiros nunca exerceram mais do que esses três poderes — o legislativo, o executivo e o judiciário. Onde está a origem dos dois novos elementos de nossa Constituição de cinco poderes? Originaram-se na China. Há muito tempo, a China possuía os sistemas independentes do exame ao serviço público e da censura, sistemas que eram dotados de grande efetividade. Os censores imperiais ou historiógrafos da dinastia mandchu e os conselheiros oficiais da dinastia Tang estabeleceram um excelente sistema de censura. O poder de censura abrangia o poder de impedimento, que outros governos possuem, mas investido no corpo legislativo e não constituindo um poder governamental separado. A seleção de elementos capazes, através de exames, tem sido uma característica da China durante milhares de anos. Os pensadores estrangeiros modernos, que estudaram as instituições chinesas, não poupam encômios ao sistema independente de exames prevalecentes na velha China, tendo algumas nações do Ocidente imitado o sistema para a seleção de homens capazes. Os exames ao serviço público na Grã-Bretanha foram copiados do velho sistema chinês, porém, somente funcionários ordinários são submetidos a exames. O sistema britânico não assimilou ainda o espírito do sistema independente de exames da velha China. Na história política chinesa, os três poderes governamentais – judiciário, legislativo e executivo — eram investidos no imperador. Os outros poderes, exames ao serviço público e censura, eram separados do trono. O velho regime autocrático da China também contava com os outros três departamentos e, destarte, era bastante diferente dos governos autocráticos do Ocidente cujos reis ou imperadores monopolizavam todo o poder. Durante o período da autocracia na China, o imperador não exercia uma autoridade absoluta sobre os poderes de seleção e censura. Assim, pode-se dizer que a China tinha três departamentos coordenados de governo, como o têm as modernas democracias do Ocidente, com a seguinte diferença — o governo chinês exerceu os poderes de autocracia, censura e de seleção de candidatos ao serviço público durante milhares de anos, enquanto os governos do Ocidente exercem os poderes legislativo, judiciário e executivo há apenas pouco mais de um século. Os três poderes governamentais, todavia, do Ocidente, foram aplicados de maneira imperfeita e os três poderes coordenados da antiga China levaram à prática de muitos abusos. Se quisermos, agora, aproveitar o que havia de melhor na antiga China e em outros países, ao mesmo tempo nos prevenindo contra todas as espécies de abusos no futuro, deveremos adicionar os poderes governamentais do Ocidente — o executivo, o legislativo -e o judiciário — aos velhos poderes da China, o da seleção ao serviço público e da censura, e amalgamá-los numa Constituição de cinco poderes. Tal governo será o mais completo e o mais esplêndido do mundo, e o Estado, que o tiver, será, na verdade, um Estado do povo, pelo povo e para o povo.
Cada um desses quatro poderes populares e cinco poderes governamentais tem seu próprio foco e função; devemos separá-los claramente e não confundi-los. Há muita gente, hoje cm dia, que não pode distinguir esses vários poderes — não me refiro apenas ao povo, mas também aos especialistas, que, frequentemente, cometem erros em sua apreciação. Recentemente, encontrei-me com um camarada, que acabava de concluir seus estudos nos Estados Unidos. Perguntei-lhe: “Que pensa sobre estes princípios revolucionários?” Ele redarguiu: “Sou sinceramente a favor deles”. Perguntei-lhe novamente: “Que estudou no estrangeiro?” Respondeu-me: “Ciências políticas e direito”. “Qual é a sua opinião sobre a soberania popular que estou advogando?”, perguntei-lhe outra vez: “A constituição de cinco poderes é uma coisa esplêndida!” respondeu-me. “Todos a apreciam”. A resposta desse especialista em ciências políticas e em direito fugiu inteiramente ao escopo de minha pergunta, o que demonstra que ele não compreendera claramente a diferença existente entre os quatro poderes do povo e os cinco poderes governamentais e ainda se mostrava embaraçado sobre a relação entre o povo e o governo; ele não sabia que os cinco poderes são poderes governamentais.
Sob o ponto de vista funcional, os poderes governamentais são poderes mecânicos. Para fazer com que essa grande maquinaria, que pode desenvolver tremenda potência, funcione da maneira mais efetiva, fazemo-la trabalhar em cinco direções. Os poderes populares são os poderes de controle que o povo exerce diretamente sobre essa maquinaria de grande potência. Os quatro poderes do povo são, por assim dizer, quatro controles que o povo maneja, a fim de fazer com que a maquinaria se movimente ou deixe de funcionar. O governo trabalha para o povo e seus cinco poderes são cinco formas de trabalho ou cinco direções de trabalho. O povo controla o governo e seus quatro poderes são quatro métodos de controle. Somente quando ao governo se outorga tal poder e a oportunidade para trabalhar nessas diferentes direções, é que manifesta grande dignidade e autoridade, tornando-se um governo poderoso. Somente quando ao povo se concede grande poder e os necessários contrapesos sobre o governo, é que ele deixa de temer que o governo fique poderoso e lhe escape ao controle. O povo poderá, então, a qualquer tempo, dirigir os movimentos do governo. O prestígio do governo crescerá e o poder do povo será incrementado. Com tal poder administrativo por parte do governo e com tal poder político por parte do povo, seremos capazes de realizar as ideias do pensador norte-americano — a formação de um governo poderoso que persiga o bem-estar do povo — e de preparar as bases para a construção de um mundo novo.
Quais são as condições atuais sob o regime democrático e como deveremos administrar uma democracia? Essas questões as compreenderemos de maneira mais clara e profunda depois de regulamentarmos o sufrágio, a cassação de mandato, a iniciativa e o referendum. Não fui capaz de descrever todos os seus detalhes nestas conferências sobre a Soberania do Povo. Aqueles que desejarem fazer um estudo mais detalhado poderão valer-se da tradução feita por Liao Chung Kai do livro Governo por todo o Povo.
26 de Abril de 1924.
continua>>>Notas de rodapé:
(1) Trata-se de um desposta que uniu a China e fundou a dinastia Chin, em 255 A. C. (retornar ao texto)
(2) Dr. Frank J. Goodnow, da Universidade John Kopkins. (retornar ao texto)
(3) O último membro da dinastia Shang ou Yin, que caiu em 1122 A.C. Foi um tirano cruel, condenado por todos os historiadores chineses. (retornar ao texto)
(4) O “general-bandido de tranças” que conseguiu restaurar a dinastia mandchu em Peiping, durante dez dias, no mês de Julho de 1917. (retornar ao texto)
(5) Título chinês da Cabana do Pai Tomás. (retornar ao texto)
(6) A época exatamente anterior à nova colheita, quando a provisão de cereais está quase esgotada. (retornar ao texto)
(7) O período dos Três Reinados entre 122 e 265 A. D., conheceu muitos heróis militares e feitos de valor e foi imortalizado nessa famosa novela. (retornar ao texto)
Inclusão | 19/07/2019 |