Anti-Dimitrov

Francisco Martins Rodrigues


8. O centrismo em Portugal


“São os trabalhadores que se identificam com a nação e são os fascistas que se divorciam dela.”

ÁLVARO CUNHAL(1)

Não há melhor contraprova para avaliar o conteúdo político real do 7.º congresso do que examinar a sua aplicação no terreno que nos está mais próximo. As peripécias da transformação do PCP entre 1930 e 1960 documentam ao vivo a função do centrismo como veneno paralisante do comunismo e embrião do revisionismo.

Por isso mesmo, a corrente dita “marxista-leninista” portuguesa enovelou-se em contradições insuperáveis ao tentar criticar a “unidade dos portugueses honrados” e o “levantamento nacional” sem pôr em causa a herança do 7.º congresso da IC. Surgiu daqui a tendência para deformar a história do PCP, pondo a um lado o “cunhalismo” como excrescência oportunista maligna, e a outro lado a direcção de Bento Gonçalves nos anos 30 e de José Gregório nos anos 50, como representantes genuínos da Internacional e do Cominform.

A verdade é que, se houve oscilações políticas evidentes no percurso do PCP ao longo destes três decénios, elas inscreveram-se todas no mesmo quadro centrista posto em marcha pelo 7.º congresso da Internacional. Bento Gonçalves, Álvaro Cunhal, José Gregório exprimiram, com variantes diversas, os períodos sucessivos de ascensão, florescimento, declínio e crise final do centrismo no PCP. A natureza política e social do “cunhalismo” só pode ser plenamente entendida se for vista em relação com os outros produtos do centrismo no nosso país.

A crítica ao centrismo, como período intermédio na degeneração do comunismo, permite compreender melhor a transformação pequeno-burguesa do PCP sob a condução das ideias de Álvaro Cunhal. Transporta-nos do terreno romanesco dos “golpes” para o terreno da luta de classes no seio do partido. Mostra o ascenso gradual da pequena burguesia “comunista” no interior do partido operário.

Ela mostra também os limites do projecto do PC(R), o qual, ao pôr-se como objectivo a “reconstrução do verdadeiro partido Comunista de Bento, Alex, Militão e Gregório”, iria tentar uma tarefa impossível: o rejuvenescimento da velha política de fusão “popular” operária-pequeno-burguesa sob as cores do “25 de Abril do Povo” e da “revolução democrático-popular”.

Sem querer fazer a história da luta de tendências no PCP, impossível no âmbito deste trabalho, será útil mostrar as diversas fases atravessadas pelo centrismo português até cumprir o seu papel histórico — anestesiar ideologicamente o PCP, preparando-o para receber sem sobressaltos o revisionismo.

Como o 6.º congresso falhou em Portugal

Foi com o impulso do 6.º congresso da IC que o PCP, como outros partidos, passou pela primeira vez a existir como vanguarda operária revolucionária. A reorganização de Abril de 1929, conduzida por B. Gonçalves e J. Sousa, tirou o partido da apatia em que agonizava.

Os argumentos de que o fascismo impossibilitava a luta e de que se deviam poupar forças, à espera da “hora”, foram desmascarados como capitulação pequeno-burguesa. O partido lançou-se com energia à tarefa de conquistar a classe à influência anarco-sindicalista, criou com a CIS uma forte corrente sindical revolucionária, implantou-se no proletariado rural do Sul, tornou-se a breve prazo o dirigente reconhecido do movimento operário. Em 1931-1932, impulsionou e dirigiu grandes acções operárias contra a fome, o desemprego e o regime de Salazar.

Este trabalho positivo, na linha “classe contra classe” ditada pelo 6.º congresso, sofria de fraquezas graves. Na estratégia, não se traçou uma plataforma definida para a insurreição antifascista no quadro da revolução, o que não permitiu o corte com a velha visão do proletariado como ponta-de-lança de um golpe militar liberal. Na táctica, não se demarcou o antifascismo operário do antifascismo pequeno-burguês. Na organização, o partido não aplicou as directivas da IC para se estruturar na base de células de fábrica, o que limitou o peso operário na acção política, na ideologia e no estilo de trabalho.

Deste modo, a corrente proletária avançada, que via numa revolução de tipo soviético a saída para a luta, não soube elaborar uma alternativa marxista-leninista ao oportunismo corrente no partido, não conseguiu libertar-se por completo do infantilismo anarco-sindicalista e não pôde desempenhar o papel-chave que lhe cabia no amadurecimento político do partido.

Surgiu assim o 18 de Janeiro, como resposta “total” à ofensiva da ditadura contra os sindicatos. Tentando precipitar a insurreição antifascista através da greve geral, sem para tal estar reunido o mínimo de condições, a vanguarda operária encontrou-se isolada da massa e foi facilmente batida.

O partido sofreu um golpe severo. Severo sobretudo no plano político, na medida em que semeou nos comunistas a descrença na linha de classe, que mal ensaiava os primeiros passos. Bento Gonçalves tirou do 18 de Janeiro conclusões de direita. A sua justa batalha para educar as massas através das reivindicações parciais evoluiu para um reformismo cada vez mais pronunciado. O soviete da Marinha Grande passou a ser visto como um sonho insensato. À sombra da crítica ao aventureirismo, ganhou terreno no partido a ideia de que o proletariado tinha de moderar as suas aspirações revolucionárias para não se isolar, espalhou-se de novo a crença paralisante de que “sem os republicanos não se consegue fazer nada”. Baniu-se a perspectiva do poder.

A viragem do 7.º congresso veio assentar como uma luva neste espírito derrotista. A timidez política e o reformismo puderam escorar-se na autoridade da linha democrática unitária da IC para rejeitar toda a experiência positiva acumulada. O projecto de uma luta proletária revolucionária foi arquivado como “sectarismo”. Caíram as resistências que durante alguns anos tinham contido a pressão do oportunismo de direita. O PCP foi invadido por uma maré oportunista.

A Frente Popular

O que os dirigentes trouxeram do 7.º congresso foi a decisão de apostar tudo numa ampla oposição unida ao regime, pondo de lado como sectária a linha “classe contra classe”. A nova direcção, em que já sobressaía A. Cunhal, estava esperançada em conseguir o mesmo êxito espectacular que conheciam as frentes populares em Espanha e França. A activação da oposição liberal e estudantil, muito marcada nesse ano de 1935, alimentava a euforia unitária e fazia esquecer a situação difícil do partido no movimento operário após a fascização dos sindicatos.

Lançaram-se de imediato propostas de frente única à CGT, então já cadáver. Acabou-se com a imprensa sindical clandestina, dissolveu-se a CIS, entrou-se em negociações com os grupos republicanos, adoptou-se uma perspectiva “democrática geral” para todo o povo. Seguindo os ventos novos que vinham da Internacional, declarou-se a revolução portuguesa como “democrático-popular”, sem tentar qualquer fundamentação de classe para essa perspectiva.

De início, tudo parecia ir de vento em popa. Em Fevereiro de 1936, o Avante! anunciava que “acaba de se constituir a Frente Popular, englobando uma dezena de organizações operárias e pequeno-burguesas”. Cresceu o poder de atracção do partido sobre largos sectores estudantis e intelectuais, entusiasmados pela nova política ao serviço da unidade antifascista. O Avante! passou a semanário.

Mas, entretanto, diminuía o número de operários organizados, não havia política sindical, decaía ao nível mais baixo a resistência operária à exploração. Reduzido ao papel de animador da Oposição unida, o partido perdia os laços com a classe e envenenava a consciência da vanguarda com um republicanismo rasteiro. O preço pago pela Frente Popular (que nunca passou do nome) foi a assinatura pelo partido de um programa unitário, no qual nada se dizia sobre o caminho para o derrube do fascismo e se reivindicavam as “províncias ultramarinas” como “parte integrante e inviolável da Nação”.(2)

Sob os êxitos aparentes, o partido seguia à deriva. A revolta dos marinheiros, de Setembro de 1936, derradeiro sobressalto do putchismo “comunista”, agravou mais ainda a situação: mutilou o partido de forças revolucionárias, acentuou o descrédito na via da insurreição, acelerou o crescimento do oportunismo.

Em 1938, a nova política começou a abrir falência. O fracasso da Frente Popular em França, o desastre iminente em Espanha, o ascenso do nazismo consolidavam o regime de Salazar e lançavam a pequena burguesia republicana na debandada. O partido foi forçado a constatar que “a união das organizações antifascistas arrasta uma vida passiva que desacredita a ideia da frente popular no nosso país” e que a situação nacional não era propícia aos acordos entre partidos como base da frente.(3)

A morte à nascença da Frente Popular não resultava contudo apenas nem principalmente do rumo ameaçador da situação internacional. O factor principal vinha da crise a que chegara o partido devido às suas concessões oportunistas. No desejo de abertura ao sentimento pequeno-burguês, deslocara-se o eixo da política para a campanha pela amnistia e para a denúncia dos perigos que Salazar trazia à “economia nacional”, à independência e à posse das colónias. Multiplicavam-se as exortações à pequena burguesia e aos “legionários honestos”. Não havia uma palavra sobre o derrube revolucionário do regime. Não era de estranhar que, com esta linha, se repelisse tudo o que havia de melhor na classe operária.

Aqui, como nos outros países, o engodo por atrair as forças intermédias a todo o preço resultou na perda do único pólo de atracção que as poderia arrastar à luta. Já não existia a corrente operária revolucionária que fizera as jornadas de 1931-1932 e o 18 de Janeiro, era inevitável que tudo se desmoronasse.

Privado de base operária séria, o PCP tornou-se um alvo fácil para a polícia. O Avante! deixou de se publicar em Maio de 1938. A direcção do partido, constantemente atingida, passava de mão em mão e foi tomada por elementos oportunistas e incapazes para a luta clandestina. Em 1939, a IC retirou o reconhecimento ao PCP.

Este descalabro, que Cunhal mais tarde atribuiu ao atraso nos métodos conspirativos, fora fruto directo da política ditada pelo 7.º congresso, que fizera do PCP uma organização radical democrática.

E o que exprime de forma chocante a defesa de Bento Gonçalves no tribunal, na qual o partido é rebaixado ao papel de continuador das tradições liberais e patrióticas da burguesia e se critica inclusive o governo de Salazar por não acautelar a posse das colónias contra a cobiça do “Eixo”! As últimas propostas de Bento no Tarrafal, para uma “política nova” de apoio a Salazar se este se dispusesse a defender a independência, retratam a degradação ideológica que o 7.º congresso produzira neste abnegado construtor do partido.

O “levantamento nacional”

A situação caótica a que se chegara provocou uma aguda luta de tendências no seio do partido em descalabro. Contra a ala direitista, que perdera todos os referenciais comunistas na busca ansiosa da unidade democrática, levantou-se em 1940-1941 o núcleo reorganizador chefiado por Cunhal, Fogaça, Guedes, Gregório, etc. Como dez anos antes, o corte com o oportunismo materializou-se na luta para salvar o partido, como única esperança da luta popular.

Em poucos anos, ao preço de duros sacrifícios, o PCP ressurgiu como a única força antifascista organizada. Combinando acertadamente o trabalho legal com o ilegal, minando os sindicatos nacionais fascistas, o partido dirigiu a classe operária em lutas de envergadura, em que se destacou a grande greve da região de Lisboa, de Julho de 1943. Restituiu-se ao proletariado a confiança nas suas forças e no seu partido.

Mas não se tiraram as lições políticas do período anterior, que era o principal. Não se denunciaram as concessões à pequena burguesia como origem do fracasso da Frente Popular e da corrupção do partido. Não se deu o balanço ao 18 de Janeiro, para separar o positivo do negativo. Não se perguntou por que conduzira a aplicação do 7.º congresso à desagregação do partido. Não se compreendeu que, sem traçar uma linha de classe para a insurreição antifascista, tendo na mira a revolução socialista, todos os ganhos imediatos estavam ameaçados. O partido começou assim, no meio da embriaguez de um crescimento impetuoso, a caminhar para um novo desastre.

Em 1944, reuniam-se as condições para uma ofensiva política de massas em todas as frentes. A agitação propagara-se das concentrações proletárias de Lisboa e do Alentejo ao campesinato do Norte, a largos sectores de empregados, estudantes, etc. O heroísmo com que a União Soviética golpeava o nazismo multiplicava as energias dos comunistas, despertava a vanguarda operária de novo para a perspectiva de coroar a queda do fascismo com a revolução.

Foi nesta crise mortal para o regime que se revelou a moderação oportunista da política de Cunhal. O movimento antifascista foi enquadrado no MUNAF [Movimento de Unidade Nacional Antifascista], e depois no MUD [Movimento de Unidade Democrática], reedições da Frente Popular de 1936, que deram à burguesia liberal o controle político das massas. Convencido de que a pedra que faltava para a queda de Salazar era uma unidade mais estreita da Oposição, Cunhal sentou-se à mesa das negociações para elaborar o programa de um mítico Governo Democrático de União Nacional, quando o movimento operário e popular precisava que lhe abrissem vias para a insurreição.

O medo de afugentar a burguesia levou mesmo Cunhal a inverter o alvo da luta ideológica. Dissolveu os GAC (Grupos Antifascistas de Combate), alegando o perigo de putchismo, travou a “linguagem demasiado de classe” da imprensa comunista, preocupou-se em “satisfazer os anseios da pequena burguesia”, combateu o “sectarismo” e o “obreirismo”.

A partir de 1945, todo o seu esforço vai no sentido de explicar à pequena burguesia que nada tem a recear da classe operária e dos comunistas. A política do “levantamento nacional”, pela “unidade de todos os portugueses honrados”, sem esquecer os “oficiais patriotas”, formulada no 2o congresso de 1946, consagrou a busca por Cunhal de uma linha intermédia, que fechasse o caminho ao impulso revolucionário popular sem cair nos excessos oportunistas da “política de transição” defendida por Fogaça. Esta habilidade centrista de “subordinar a esquerda à direita sob frases de esquerda” (a expressão é de Staline), ia daqui em diante marcar toda a política de Cunhal Era a tradução portuguesa do 7.º congresso.

O “levantamento nacional” pareceu viável enquanto durou o ascenso de massas. Mas, com a viragem para o Plano Marshall e para a guerra fria, a burguesia liberal tratou de se ver livre da associação comprometedora com os comunistas. O MUD entrou em crise. A campanha eleitoral à Presidência, em 1949, decorreu em plena desagregação da Unidade e, o que foi pior, em plena decomposição ideológica do movimento operário e do partido. Aquilo que podia ter sido a crise final da ditadura perdeu-se como um rio num pântano.

O período “sectário”

O fim do MUD e a viragem à direita da burguesia democrática sob a ofensiva reaccionária provocaram uma viragem na política do partido, cuja direcção coube a J. Gregório. Foi o período mais tarde classificado como “sectário” e que traduziu no nosso país a nova orientação geral do movimento comunista antes da morte de Staline (Cominform).

Com o movimento operário e popular em refluxo e sob severos golpes policiais, a direcção de J. Gregório defendeu o partido e manteve de pé a bandeira da resistência, aglutinou a democracia radical no MND, conduziu uma intensa campanha anti-imperialista, criticou as tendências de capitulação no partido e no movimento da Oposição.

Por estes aspectos positivos, a corrente anti-revisionista valorizou a linha do PCP neste período, contrapondo-a ao oportunismo de Cunhal. Contudo, ao deixar intactas as bases da política do PCP que vinham do 7.º congresso, a política de J. Gregório não fez uma ruptura com o oportunismo acumulado e acabou por fracassar, enredada em contradições. Atacavam-se os políticos republicanos, mas mantinha-se a linha do “levantamento nacional”, que assentava precisamente na aliança com eles. Elaborou-se o primeiro programa do partido, mas sem clarificar o carácter da revolução e a questão do poder, ficando pelo compromisso de um regime “popular” de tipo parlamentar. Criticou-se a “política de transição”, mas sem pôr a nu o seu parentesco com o “levantamento nacional”. Amarrou-se a denúncia do imperialismo americano a uma campanha pacifista por um pacto de paz entre as quatro grandes potências. Reduziu-se a degeneração titista a um golpe de espiões e provocadores, ocultando as suas lições de classe. Popularizou-se a plataforma oportunista exposta por Cunhal na sua defesa em tribunal como linha orientadora do partido.

Não era possível nestas condições fazer a ruptura que se impunha. Mais: a tentativa de levar à prática uma política radical e combativa sem criticar o cunhalismo, sem reconhecer o antagonismo de interesses entre o proletariado e a burguesia oposicionista, sem sair do quadro centrista do 7.º congresso, conduziu rapidamente o partido para uma prática rígida e sectária, com a qual se tentavam “corrigir” as bases moderadas da sua política.

Desarmados ideologicamente para uma acção política independente, os dirigentes do partido, ao tentar combater o oportunismo, caíam na rigidez e no imobilismo, fomentavam o sectarismo perante as massas, abafavam a democracia interna, alimentavam o dogmatismo.

Não foi difícil nestas condições à corrente de direita chefiada por J. Fogaça crescer no partido, reclamando que a prática política fosse harmonizada com os pressupostos da linha do “levantamento nacional” que ninguém se atrevia a pôr em causa. O novo ascenso do movimento da oposição democrática-burguesa iniciado em 1954, o afastamento forçado de J. Gregório e sobretudo a brutal guinada à direita na União Soviética e no movimento comunista após a morte de Staline fizeram amadurecer em poucos meses as condições para o triunfo no PCP da linha ultra-oportunista do “afastamento pacífico de Salazar”.

Assim, a meia viragem à esquerda de J. Gregório, incapaz de atacar os fundamentos oportunistas da linha do partido, não conseguiu mais do que retardar por meia dúzia de anos a eclosão do revisionismo.

No PCP, como em todo o MCI, o último período de “esquerda” provou historicamente a impossibilidade de se fazer uma política revolucionária sem romper com a política do bloco operário-pequeno-burguês instituída pelo 7.º congresso. Por estranho que pareça, hoje, a trinta anos de distância, é ainda com essa ilusão centrista que se continuam a debater os marxistas-leninistas portugueses.

Balanço ao centrismo

O balanço que atrás fica feito a um quarto de século da vida do PCP permite compreender a dinâmica política que o impediu de se consolidar como partido operário revolucionário e o transformou gradualmente em partido pequeno-burguês para operários. Fica claro que o processo de degenerescência do PCP é muito mais vasto do que a simples política da “unidade dos portugueses honrados”. O cunhalismo foi a forma mais acabada de uma corrente oportunista que vinha de trás e cujas raízes mergulham na tradicional submissão política do proletariado à pequena burguesia.

A influência do 6.º congresso da IC, virado para uma política operária independente e para fazer do partido uma autêntica vanguarda, bolchevizada, abalou mas não destruiu a tradição oportunista no nosso país. A medida que o PCP se foi implantando na classe operária e afirmando como a única força organizada de resistência ao fascismo, a corrente oportunista aprendeu a adaptar-se aos novos tempos e assumiu o carácter novo do centrismo.

Aquilo que distinguiu o centrismo português dos anos 30-50 foi a forma original como encaixou os princípios da revolução russa e da IC — construção de um partido leninista para a revolução violenta e a ditadura do proletariado, política de hegemonia do proletariado e de aliança operário-camponesa, internacionalismo proletário e apoio à União Soviética — nas velhas concepções oportunistas de estratégia e de táctica. Sob o álibi de uma imaginária “primeira etapa democrática”, adiou-se a revolução, atrelou-se o movimento operário à oposição burguesa, subestimou-se o movimento camponês, ignorou-se o potencial revolucionário dos povos das colónias, embaciaram-se todos os princípios revolucionários.

A linha do 7.º congresso veio permitir ao centrismo embrionário que se formava no PCP expandir-se impetuosamente como corrente ideológica dominante.

A tacanhez pequeno-burguesa, reformista até à medula, ao aparecer coberta com o selo da autoridade da IC, ganhou um enorme campo de acção entre a vanguarda operária, ainda em menoridade ideológica depois de duas décadas de anarco-sindicalismo. Não teve dificuldade em fazer-lhe crer que a estreiteza oportunista da política diária se inseria num projecto revolucionário. Em nome da fidelidade “inabalável” ao caminho de Outubro, o Partido Comunista tornou-se a plataforma de fusão da luta económica dos operários com a luta política da pequena burguesia.

Com cambiantes mais radicais ou mais direitistas, conforme as conjunturas e a correlação de forças, o centrismo foi arrastando o PCP, em bloco e sem rupturas internas sérias, para o pântano da colaboração de classes desavergonhada em que se afundou em 1956.

A primeira corrente centrista (1935-1940), desencadeada pela viragem do 7.º congresso e pelo desastre do 18 de Janeiro, teve um cunho oportunista acentuado. Descrença nas capacidades de luta do movimento operário, aposta desesperada numa coligação democrática negociada por cima, sob a bandeira da “Frente Popular”, rebaixamento da ideologia ao nível do republicanismo, do nacionalismo e do pacifismo, perda dos laços com a classe, desagregação do partido. As “novas perspectivas” do 7.º congresso vieram acabar no charco da “política nova” de Bento Gonçalves.

A segunda corrente centrista (1941-1949), dirigida por A. Cunhal, tirou como lição do fracasso da primeira a necessidade de um partido com influência na classe operária para conseguir carregar às costas a oposição democrática burguesa. A isto se pode resumir toda a sabedoria “marxista” de Cunhal. O fundo da política não mudou, tornou-se mais refinado, mais elaborado. Sob a linha do “levantamento”, a burguesia democrática pôde fazer degenerar a crise do fim da guerra mundial numa impotente exibição liberal-eleitoralista, que o regime digeriu sem abalos de maior. Em 1949, o proletariado encontrou-se frustrado de todo o seu esforço e mais descrente do que nunca na sua capacidade para travar uma luta independente. O partido chegou de novo à beira da destruição.

A terceira corrente centrista (1950-1955), dirigida por J. Gregório, fez uma meia inflexão à esquerda, sem se atrever a pôr em causa os pressupostos do 7.º congresso e do “levantamento nacional”. Com isso, conduziu o partido à rigidez política e ao sectarismo perante as massas, levando o centrismo a um beco sem saída. Sob a acção da conjuntura internacional, ela acentuou mesmo o pacifismo em larga escala, adubando assim o terreno para a eclosão do revisionismo. O papel histórico da terceira corrente foi ajudar involuntariamente a provar que a única solução viável para a fusão de interesses do proletariado com a pequena burguesia só podia ser dada pelo revisionismo moderno. Estava completado o ciclo do centrismo.

A trajectória do PCP entre 1935 e 1956 confirma, pela nossa experiência nacional, que os pretensos “erros de aplicação” da política do 7.º congresso mais não foram do que os frutos necessários da sua linha centrista. Através de um movimento pendular de fugas para a direita e de reajustamentos à esquerda, a busca de uma associação “equilibrada” operário-pequeno-burguesa acabou por desembocar na capitulação incondicional das ideias marxistas, no triunfo da pequena burguesia no partido.

Explicar a degenerescência do PCP pela simples traição de um indivíduo é nada explicar. Cunhal teve êxito pela sua invulgar capacidade de assimilação do centrismo. Não é exagero descrevê-lo como o centrismo em pessoa. O talento com que conseguiu vazar as fórmulas marxistas numa ideologia democrática moderada, nacional-reformista, pequeno-burguesa, é o segredo da sua longevidade política.

Isto nada tem de estranho, se tivermos em conta que Portugal se tornou, desde há século e meio, um local privilegiado para as soluções de transição na luta interna de classes, à esquerda como à direita. Arredondar arestas, desactivar cargas explosivas, escalonar as mudanças inevitáveis por pequenos degraus suaves, é uma arte portuguesa, que reflecte o peso social e ideológico da pequena burguesia na cena de classes. Facilmente se compreende que este ambiente social iria fornecer o clima ideal para o pleno florescimento de um pensamento centrista como o de Cunhal.

Mesmo hoje, quando a trajectória do PCP já se internou profundamente no terreno do revisionismo, aquilo que os comentadores burgueses designam como o “stalinismo” de Cunhal corresponde de facto a uma característica original sua. Ele é talvez, dos antigos dirigentes comunistas europeus, aquele que transportou um maior número de traços centristas para a nova época reformista e revisionista.

Chegará a hora em que a maturação da política pequeno-burguesa no PCP já não se compadecerá mais com o estilo antiquado de Cunhal. Essa hora, ansiosamente desejada pela ala direita do partido e pela social-democracia, poderá vir a revelar-se vantajosa sobretudo para os comunistas: com a saída de Cunhal, romper-se-á o último elo de uma longa tradição centrista. Libertos da retórica radical cunhalista, confrontados mais directamente com o cinismo da pequena burguesia revisionista, os operários do PCP serão empurrados para a necessidade de uma nova opção de classe.

Em todo o caso, de um ponto não restam dúvidas: só a crítica sem compromissos à política centrista que dominou o PCP e o movimento comunista durante os vinte anos posteriores ao 7.º congresso da IC abrirá espaço para a edificação de um partido comunista renovado, para o partido de um tipo novo que o PC(R) não se atreveu a ser.