“A democracia popular não é socialista nem soviética. É a passagem da democracia ao socialismo. A vantagem da democracia popular é que essa passagem se torna possível sem ditadura do proletariado.”
DIMITROV(1)
No que se refere à formação dos regimes de democracia popular, a crítica burguesa corrente não vai além da virtuosa denúncia do seu “totalitarismo”, que seria o preço pago por todos os que se desviam do são caminho da economia de mercado e do regime parlamentar e se sujeitam à “bota soviética”. Não se lhe pode exigir mais.
E verdade que as apreciações do lado da “esquerda” não são melhores. Os revisionistas, como é sina, sua mastigam desculpas atabalhoadas sobre as “violações da legitimidade resultantes do culto da personalidade”, para tentar convencer-nos de que, fora esse “pormenor”, tudo foi popular e revolucionário. Fazem como o cigano que quer vender o burro e guardar o burro... Mas o seu embaraço nada é, comparado com o da chamada corrente marxista-leninista, obrigada, em nome dos seus “princípios”, a pintar com belas cores o avanço para o socialismo nas democracias populares, o qual se teria transformado, como por encanto, em degeneração burguesa após a morte de Staline.
Cabe agora à corrente comunista abordar a questão das democracias populares de um ângulo novo: mostrar a falência a que estava condenado à partida o projecto de uma revolução “intermédia” inventado pelo 7.º congresso da Internacional, precisamente porque tal revolução não existe; mostrar como a substituição da ditadura do proletariado por uma pretensa “democracia popular” só podia produzir, em vez da sonhada via gradual e harmoniosa para o socialismo, regimes despóticos de capitalismo de Estado; provar que a dominação da União Soviética na Europa Oriental se exerce, não através de “cliques fantoches”, mas ao nível da luta de classes interna de cada um desses países.
Nesse sentido, alinharei a seguir algumas ideias.
Primeira etapa — a coexistência
Na maioria dos países da Europa Oriental, devastados por uma ocupação terrorista e por uma guerra feroz, os choques de classe que acompanharam a mudança de regime tiveram em geral uma envergadura limitada. A excepção da Albânia e da Jugoslávia, a luta armada de libertação não chegou a tomar nível insurreccional. Os partidos comunistas, extremamente enfraquecidos pelos massacres nazis, puderam ganhar posição hegemónica apenas graças à presença dos exércitos soviéticos.
Como se compreende, a crise da burguesia, comprometida com o ocupante nazi, e o apoio militar e político da União Soviética criavam condições muito favoráveis para o triunfo da revolução, mas não podiam substituí-la. Cabia aos partidos aproveitar essas condições invulgarmente favoráveis para se refazer rapidamente das perdas sofridas e desencadear autênticos movimentos revolucionários, sob direcção do proletariado, que varressem até aos alicerces o poder da burguesia e dos latifundiários.
Ora, os PC, penetrados pela linha do 7.º congresso, viram no apoio soviético a oportunidade ideal para levarem à prática a via “mais fácil” da “revolução intermédia” mediante uma série de compromissos com a burguesia e a pequena burguesia. Era essa, de resto, a perspectiva do PC(b) da URSS, interessado em evitar abalos que dessem pretexto a uma intervenção das potências ocidentais. A linha de Dimitrov para o governo de frente única e o partido operário único teve finalmente ocasião de ser testada na prática.
Inicialmente, quando estava na ordem do dia a destruição das estruturas capitalistas-feudais, as grandes nacionalizações, a expropriação dos latifundiários, a confiscação das fortunas, a repressão sobre os colaboracionistas, etc., a política de democracia popular ganhou uma aparência de vitalidade. Os partidos comunistas conseguiram, através de uma real influência de massas, dinamizar os primeiros passos do processo revolucionário e roubar a iniciativa aos partidos liberais e reformistas. A economia devastada foi reconstruída a ritmos acelerados, instituíram-se profundas reformas democráticas, elevou-se o nível de vida dos operários e camponeses. Ao Ocidente afluiu em pânico a escumalha reaccionária, amaldiçoando os “horrores da revolução”.
Facto novo, porém, era a estrutura original desses regimes, apoiados em parlamentos, em governos de coligação e em Frentes Nacionais. Os comunistas detinham o controlo da situação mas não ameaçavam a existência da pequena e média burguesia. Não havia conflitos sociais agudos. Parecia ter-se criado um equilíbrio social novo na História, a “democracia popular”.
Esta materialização do projecto dimitrovista de uma terceira via entre a ditadura da burguesia e a ditadura do proletariado foi bem expressa na época pelo teórico húngaro E. Varga:
“A democracia popular não é a ditadura da burguesia mas também não é a ditadura do proletariado. O velho aparelho de Estado não foi quebrado, como acontecera na União Soviética, mas renova-se pela absorção constante de partidários do novo regime. Não são Estados capitalistas no sentido vulgar do termo mas também não são Estados socialistas.”(2)
Não é de estranhar a onda de entusiasmo que esta nova solução despertava nos dirigentes oportunistas dos partidos ocidentais. Viam nela um trunfo precioso para tranquilizar as suas próprias burguesias e alargar o espaço ao seu reformismo. Thorez, mais uma vez precursor, ao prever, numa entrevista ao Times, em Novembro de 1946, a passagem pacífica ao socialismo, escrevia, encantado, pela mesma altura:
“Não houve uma transição brusca e brutal para um outro sistema. Há aqui um fenómeno que devemos estudar, em que devemos reflectir: o poder da classe operária, o poder exercido em nome da classe operária e do povo por um partido comunista que não está só mas que pode associar-se com outros partidos... Este poder exerce-se mantendo as formas parlamentares.”(3)
Segunda etapa — a repressão
Não tardou muito, contudo, que as democracias populares chegassem a uma encruzilhada. A resistência crescente da burguesia, estimulada pelas potências ocidentais, não permitia que se iludisse por mais tempo o dilema — quem vencerá a quem? A pressão americana para fazer aderir os regimes do Leste ao Plano Marshall serviu de detonador da crise.
Aparentemente, dir-se-ia que todos, à excepção da Jugoslávia, enfrentaram o desafio aprofundando a revolução. Ampliaram-se as nacionalizações e a colectivização agrária, lançou-se a planificação e a indústria pesada, estreitaram-se os laços com a União Soviética, desencadeou-se uma grande campanha contra a social-democracia, a ideologia burguesa e as influências ocidentais.
Mas este “passo em frente” pôs ainda mais em evidência a fraqueza fatal dos regimes de democracia popular. O avanço que só podia ser obtido pela acção e iniciativa das grandes massas proletárias e semiproletárias, pelo ascenso impetuoso de órgãos de poder operário e camponês que envolvessem toda a sociedade numa intensa luta de classes revolucionária, foi imposto de cima pelos aparelhos do partido e do Estado. O receio do desencadeamento da energia revolucionária das massas, que se instalara nos partidos desde o 7.º congresso, levou-os a tentar fazer a revolução “em ordem e segurança”.
Incapazes, pelo seu centrismo, de aprofundar o processo revolucionário, os PC fizeram uma miserável caricatura de revolução. Em vez de destruir o aparelho de Estado, usou-se o domínio do exército e da polícia para o tomar por dentro, “purificando-o” com gente fiel. Em vez de ganhar as massas exploradas para as ideias do comunismo, usou-se a pressão e os baixos expedientes para forçar os partidos pequeno-burgueses a fundirem-se com os PC em “partidos operários unificados”. O proletariado e o campesinato trabalhador foram declarados donos do poder sem nunca chegarem a dispor de autênticos órgãos de poder. Conselhos, milícias, sindicatos, cooperativas não eram mais do que engrenagens obedientes do aparelho.
Na ausência de reais batalhas de classe em que a burguesia fosse batida e desalojada pela acção revolucionária das massas, as democracias populares revelaram a breve trecho toda a fragilidade do novo poder, resultante do seu carácter híbrido. Cresceu o cancro da burocracia e da polícia política como única trincheira de um poder cercado. Transformou-se em farsa as eleições, as Assembleias Nacionais, a liberdade de imprensa e de reunião. Em breve começaram a multiplicar-se os processos judiciais arbitrários, manipulados na sombra dos aparelhos, e por isso atingindo, juntamente com os inimigos de classe e espiões, todos aqueles que criticavam a desfiguração do regime.
A tentativa de conduzir a luta contra a direita sem desencadear as forças de esquerda levou o centrismo a uma degeneração mais acelerada ainda do que a da União Soviética. A agonia que aí se arrastara ao longo de decénios — porque houvera uma grande revolução que dera lugar a uma verdadeira ditadura do proletariado sob a forma do poder soviético — precipitou-se na Europa do Leste apenas em seis anos.
Quando a conjuntura social mudou, após a morte de Staline, revelou-se à luz do dia a podridão burguesa que minara silenciosamente os aparelhos do partido e do Estado, à sombra dos julgamentos, dos slogans sobre a “luta contra o oportunismo”, do dogmatismo asfixiante. Na luta contra a direita forjara-se uma nova direita. Os fuzilamentos e as prisões dos direitistas imprudentes, tipo Slansky, Rajk, Kostov, Gomulka, Nagy, tinham servido apenas para abrir espaço a uma nova vaga de direitistas manhosos, que juravam por Staline e pelo marxismo-leninismo, enquanto esperavam a sua hora.
Quanto às massas operárias e camponesas, reduzidas à menoridade e apatia política por um regime ditatorial, estavam incapacitadas para fazer sentir o seu peso na luta de classes. A partir de 1953, deixaram-se manipular pelos arautos da “liberalização”, na Alemanha de Leste, na Polónia, na Hungria, mais tarde na Checoslováquia. O centrismo fizera a cama ao revisionismo. A “democracia popular” fora o prelúdio do capitalismo de Estado.
Em conclusão: cingir a crítica das democracias populares a erros parcelares de análise e de aplicação, à traição dos cabecilhas de direita, às conspirações do imperialismo e à “falta de vigilância dos comunistas sinceros”, como ainda hoje teima em fazer o PTA, é tentar desculpar a todo o preço a experiência desastrosa do centrismo no poder.
Dimitrov sobre a democracia popular
A verdadeira fisionomia de classe da política de “democracia popular” ficou traçada com clareza insuperável nas orientações de J. Dimitrov para o regime búlgaro. Desses escritos, que o centrismo actual tenta fazer esquecer, recortemos algumas citações que falam por si:
Maio 1946 — “Estou profundamente convencido de que a união dos comunistas e dos social-democratas num partido único da classe operária — factor determinante da verdadeira democracia — é hoje, depois das amargas lições da II Guerra Mundial, uma necessidade histórica.”(4)
Junho 1946 — “O caminho da insurreição armada não é inevitável nem indispensável; em determinadas condições específicas pode-se chegar ao socialismo sem necessidade de insurreição armada. Essas condições estão actualmente criadas: por um lado, devido à existência de um grande Estado socialista que possuí uma enorme influência política e moral — a União Soviética — e por outro lado, devido às transformações democráticas realizadas em vários países e que abrem caminho para o socialismo.”(5)
Setembro 1946 — “É com sincera satisfação que acolhemos a declaração do camarada Zilliacus (do Partido Trabalhista inglês) de que a classe operária, o povo trabalhador inglês, na pessoa do Partido Trabalhista, avançam rumo ao socialismo e se esforçam por torná-lo uma realidade através da via pacífica.”(6)
Setembro 1946 — “Conseguiremos transformar a Bulgária numa república-modelo de regime verdadeiramente paramentar.”(7)
Outubro 1946 — “Seremos precisamente nós, os comunistas, quem irá propor à Grande Assembleia Nacional que se escreva claramente e sem qualquer equívoco possível, no artigo 8.º do projecto de Constituição, que a propriedade privada do agricultor rural, do artesão, dos trabalhadores manuais e dos intelectuais, bem como o direito à herança dessa mesma propriedade privada, sejam consolidados e garantidos aos proprietários e aos seus herdeiros para sempre.”(8)
Janeiro 1947 — “Haverá ramos do nosso comércio em que confiaremos aos comerciantes de hoje — organizadores competentes, honestos experimentados — as funções de direcção e de chefia de algumas empresas do Estado, municipais, cooperativas ou serviços públicos. Nesses casos, serão muito melhor remunerados.” (Dá como exemplo outros países, mesmo no Ocidente, onde os comerciantes privados melhoraram de situação passando a gestores de empresas estatais.)(9) “Presentemente, adoptamos uma nova linha, a saber, que o pessoal técnico e os engenheiros não sejam tratados como simples empregados da nossa indústria, como até agora sucedia, mas que tenham determinados privilégios, melhores ordenados, boas condições de vida e de trabalho, possibilidades de avançar.”
“Neste sistema, a iniciativa privada deve encontrar o seu lugar, e um lugar que lhe permita, graças às suas capacidades, um pleno desenvolvimento.”(10)
Junho 1947 — “A democracia popular não é socialista nem soviética. É a passagem da democracia ao socialismo. Cria as condições favoráveis ao desenvolvimento do socialismo por um processo de lutas e de trabalho. Cada país passará ao socialismo pela sua própria via. A vantagem da democracia popular é que essa passagem se torna possível sem ditadura do proletariado.”(11)
Fevereiro 1948 — “É um erro perigoso pensar que já chegou, entre nós, o momento de liquidar os vários partidos da Frente da Pátria e que estes últimos já não têm nenhum papel a desempenhar... É esta a via que nos conduzirá um dia à criação de um partido político unitário do nosso povo... que assuma a direcção do Estado e da sociedade.”(12)
Março 1948 — “O pessoal constituído por engenheiros e técnicos, que no passado estava de um modo geral ao serviço dos capitalistas para explorar e manter os operários numa posição subalterna, fundiu-se com a classe operária, da qual actualmente faz parte. Os funcionários do Estado e os outros empregados, que anteriormente eram separados da classe operária como uma coisa muito especial, como uma arma nas mãos da burguesia no poder, fundiram-se actualmente com a classe operária, tendo-se tomado empregados do Estado popular.”(13)
Dezembro 1948 — “O nosso país, bem como os outros países de democracia popular, vêem abrir-se a possibilidade de realizar a transição do capitalismo para o socialismo sem um regime soviético, apenas por meio do regime de democracia popular, na condição de que este se reforce e se desenvolva apoiando-se sobre o auxílio da URSS e dos outros países de democracia popular.”(14)
Passagem pacífica ao socialismo, partido de todo o povo, rejeição do poder soviético, reabilitação do parlamentarismo e da social-democracia, promoção dos quadros ao estatuto de “operários”, suborno da burguesia por meio de cargos e privilégios — todas as teses essenciais da plataforma revisionista do 20.º congresso estavam já elaboradas de forma acabada por Dimitrov em 1946-1948.
O facto de esta linha de direita se cobrir com calorosas declarações de fidelidade ao “nosso grande protector — a União Soviética” e ao “mestre genial” Staline, não lhe retiram nem um átomo do seu oportunismo. A obstinação do PTA em defender Dimitrov como revolucionário marxista-leninista pelo facto de ele se ter sempre declarado fiel a Staline e à União Soviética acaba por levá-lo a pactuar pelo silêncio com todo este lixo e a permitir que ele se introduza de contrabando nas fileiras comunistas.
O titismo
O PTA contribuiu, mais do que qualquer outro partido, para desmascarar o carácter antioperário do sistema da “autogestão” e a natureza pró-imperialista do “não-alinhamento” jugoslavo. Sintomaticamente, porém, essa denúncia torna-se vaga e hesitante quando se trata de expor as origens políticas do titismo e a sua natureza de classe.
“Os pontos de vista revisionistas do grupo dirigente jugoslavo — escreveu Enver Hoxha — tinham-se cristalizado muito antes da libertação, possivelmente desde a época em que o PCJ fazia parte da Comintern.” Mais tarde, durante a luta de libertação, manifestaram-se na direcção jugoslava “tendências suspeitas para se inclinar para o lado dos anglo-americanos.”(15)
Esta forma cautelosa de pôr o problema não resulta, como se poderia supor, da falta de informações seguras. O PTA está em melhor posição do que ninguém para saber como nasceu o titismo. E é decerto por conhecer de sobra o papel que nele desempenhou J. Dimitrov que não está interessado em fazer luz sobre o assunto. Esforço inútil, aliás, dados os factos que se vão tornando do conhecimento público.
Tito, pela sua parte, nunca fez segredo do apoio que recebera de Dimitrov. Discursando numa conferência internacional revisionista, celebrada em 1972 em honra do dirigente búlgaro, elogiou “a coragem de J. Dimitrov quando, nas vésperas da guerra, defendeu com a força do seu prestígio o nosso partido de acusações injustas”.(16)
Estas “acusações injustas” eram nada mais nada menos do que as críticas que suscitava na IC a orientação já então direitista do PCJ, sob a condução de Tito desde 1936. Foi com a confiança expressa de Dimitrov que Tito pôde guindar-se ao posto de secretário-geral do partido em fins de 1938.(16) Acorrendo em auxílio de Tito, como de todos os oportunistas que encontravam dificuldades na viragem para a nova política do 7.º congresso, Dimitrov deu um contributo decisivo para a formação da corrente titista.
Durante a primeira fase da luta contra o invasor nazi, as forças marxistas-leninistas ainda existentes no PCJ imprimiram um decidido cunho revolucionário à guerra de guerrilhas, neutralizando temporariamente o oportunismo de Tito. Foi nesta situação que Dimitrov interveio mais uma vez em apoio deste. Em 1942, como a Frente de Libertação Jugoslava recusasse reconhecer o governo monárquico no exílio em Londres e conduzisse a ofensiva contra as forças de Mihailovitch, afectas à Inglaterra e conluiadas com o ocupante, o secretário-geral da IC (certamente cumprindo instruções de Staline) telegrafou a Tito, aconselhando moderação. “O estudo de todas as informações que nos enviou leva a pensar que os membros do governo inglês e jugoslavo têm razoes para suspeitar que o movimento guerrilheiro esteja a tomar um carácter comunista, tendente à sovietização da Jugoslávia.” “Não considere as questões da vossa luta apenas do vosso ponto de vista nacional, mas também do ponto de vista internacional da coligação anglo-americano-soviética.”(17)
Era um incitamento ao compromisso, que Tito se apressou a levar conscienciosamente à prática. O acordo que logo depois estabeleceu com os emissários de Churchill encaminhou definitivamente a luta de libertação da Jugoslávia na via do abandono da revolução que veio a revelar à luz do dia após o fim da guerra.
Naturalmente, isto só pôde ser feito à custa do aniquilamento da corrente comunista no PCJ. O PTA, que nunca deixa de lembrar os milhares de comunistas jugoslavos fuzilados ou metidos em campos de concentração por Tito, por se oporem ao desmantelamento do partido e à perda da revolução, deveria acrescentar que esse massacre resultou da orientação oportunista emanada da Internacional em 1942.
As soluções “inovadoras” do titismo, com a subordinação do partido à Frente e o seu rebaixamento à categoria de “Liga” com funções puramente ideológicas, com o sistema de “autogestão”, a protecção à burguesia camponesa e comerciante, etc., etc., que viriam a ser denunciadas na carta de Staline e Molotov em 1948, surgiram todas na linha das concepções do 7.º congresso. Tito não fez mais do que aplicar até às últimas consequências os conceitos dimitrovistas da democracia popular como um regime intermédio, a meio caminho entre a ditadura da burguesia e a ditadura do proletariado.
Foi sobre essa base pequeno-burguesa que nasceu o nacionalismo exacerbado do regime jugoslavo. O projecto de Federação Balcânica (que teve, aliás, o patrocínio de Dimitrov e só não foi levado à prática devido à oposição de Staline) exprimia a ambição da pequena burguesia no poder de se colocar em posição vantajosa para regatear com a União Soviética e o Ocidente.
A campanha virulenta contra o titismo, desencadeada no PCUS, nas Democracias Populares e no MCI a partir de 1949, ao focar quase exclusivamente o seu nacionalismo anti-soviético e ao apresentá-lo como obra de “um grupo de espiões e provocadores”, deixou na sombra aquilo que o centrismo era incapaz de reconhecer — que a traição de Tito exprimia a chegada ao poder da pequena burguesia, que a natureza social do regime jugoslavo repousava sobre a mesma base de compromisso de classe das restantes democracias populares e que portanto a única defesa contra o perigo de contaminação titista estava no avanço resoluto do processo revolucionário que fora bloqueado a meio caminho. Como isso não foi feito, Tito pôde frustrar as tentativas de isolamento a que foi submetido, consolidar-se no poder com o apoio do imperialismo e tornar-se o fermento da “liberalização” contra-revolucionária que veio a alastrar pela Polónia, Hungria, etc. E isto não apenas pela subversão e a espionagem, mas sobretudo pelos laços de classe que aparentavam a Jugoslávia às Democracias Populares.
O PTA, que entre 1944 e 1948 se encontrou sob a direcção do grupo titista de Koçi Xoxe e sob a ameaça de ver a Albânia integrada na Jugoslávia, conhece melhor que qualquer outro partido a inspiração dimitrovista da traição de Tito. Mais escandalosa se torna por isso a sua pretensão actual de propagar a linha de Dimitrov na corrente ML internacional. Isso equivale, objectivamente, a espalhar as sementes de novas variantes do titismo.
As origens do maoísmo
Pela mesma época, triunfava na China, depois de uma gigantesca guerra camponesa conduzida pelo PC, a revolução antifeudal e anti-imperialista. Essa revolução, que o PTA hoje trata de forma tão depreciativa, arrancou na altura o país mais populoso do mundo ao campo do imperialismo e acumulou uma riqueza de experiências só comparável à da grande revolução russa. Estudá-la minuciosamente, nas suas lições positivas e negativas, é tarefa a que a corrente ML não poderá furtar-se se quiser aprender alguma coisa do último meio século.
O que pretendo apontar aqui é que o compromisso maoísta da “democracia nova”, que ditou a posterior desagregação e degenerescência da revolução chinesa, foi inspirado na linha do 7.º congresso. Apresentar o maoísmo como uma invenção revisionista oposta à IC — como vem fazendo o PTA — é deturpar os factos para, mais uma vez, pôr o centrismo ao abrigo da crítica.
A viragem que levou Mao Tsetung a assumir a direcção do PCC (conferência de Tsunyi, janeiro de 1935) tornara-se imperiosa para salvar o partido e o Exército Vermelho do desastre com que estavam ameaçados pelas políticas aventureiras e “esquerdistas” de Li Li San e Wang Ming-Po Ku. Com a Longa Marcha e a criação de novas bases revolucionárias, Mao frustrou as campanhas de cerco e aniquilamento e preparou as futuras vitórias da revolução.
Mas a viragem na condução da guerra foi apenas um aspecto de uma viragem política de fundo que viera amadurecendo aos poucos e que ocorreu no preciso momento em que na IC a linha de “classe contra classe” era trocada pela política de frente única. E aqui aparecem claros os laços que unem a concepção maoísta de “democracia nova” às inovações unitárias lançadas pelo CEIC.
Com efeito, o traço novo da política de Mao a partir de 1935 foi o abandono do objectivo da ditadura democrático-revolucionária dos operários e camponeses (era essa a palavra de ordem da IC para os partidos dos países dependentes), para passar a ter como alvo da luta a instauração de uma república democrática baseada na aliança das quatro classes — proletariado, campesinato, pequena burguesia e média burguesia nacional.
Passando a apoiar-se nos “três princípios” de Sun Yatsen (nacionalismo, democracia, socialismo) para alargar a base de apoio do PC, Mao abandonou a classificação que o 6.º congresso da IC já fizera do “sunyatsenismo” como ideologia do nacionalismo pequeno-burguês populista, que encobria a luta de classes sob a noção do “povo” e que se transformara numa “força conservadora, a entravar o desenvolvimento da revolução”.(18)
A média burguesia, que desde os acontecimentos de 1927 revelara sobejamente a sua passagem de uma atitude vacilante para a aliança com a contra-revolução e o imperialismo, passou a ser considerada por Mao parte integrante do povo e das forças revolucionárias. “O erro — escreveu Mao em 1939, respondendo às críticas que se levantavam no partido — está em confundir-se a burguesia chinesa com a burguesia dos países capitalistas. E daí que resulta o desprezo pela política de formação de uma frente única com a burguesia e a manutenção dessa frente tanto quanto possível”.(19)
Esta mudança de fundo, justificada a princípio pela entrada na etapa da guerra de resistência antijaponesa, manteve-se para além da derrota do Japão e inclusive acentuou-se cada vez mais. Mesmo as reservas iniciais acerca do carácter duplo da burguesia nacional foram progressivamente abandonadas.
Ora, isto correspondia exactamente às novas posições adoptadas pela direcção da IC, que se empenhava em alargar a frente única a todo o campo intermédio, deixando de fora apenas os aliados directos do fascismo alemão e japonês. Como essa concepção levantava sérias questões de princípio e punha em causa as teses de Lenine sobre a questão nacional e colonial, o 7.º congresso optou pela omissão pura e simples dos problemas da revolução de libertação nacional. Mas, à margem do congresso, foi essa orientação que se transmitiu aos partidos.
Em começos de 1935, a revista oficial A Internacional Comunista publicava um extenso artigo sobre a luta pela frente única anti-imperialista nas colónias e países dependentes, no qual se criticavam os “erros sectários” anteriores e se aconselhava a “incluir o grosso da burguesia nacional na luta contra o imperialismo, para melhor inserir os comunistas no movimento popular”.(20)
Depois do congresso, a insistência na necessidade de frente única com a burguesia nacional manteve-se uma constante na orientação do CEIC. Wang Ming, membro do CEIC, defendia na Internacional Comunista a necessidade de maior colaboração do partido com o Kuomintang, “sem subordinação nem supremacia”, “para um futuro livre, feliz e independente”.(21)
Foi nesta linha de pensamento que Mao elaborou as concepções da “democracia nova”. O desejo de esvaziar o campo inimigo abrindo cada vez mais o leque da frente única levou-o a dar aos representantes da burguesia nacional um terço dos lugares nas assembleias populares e órgãos do poder nas regiões libertadas,(22) a substituir a expropriação das terras pela redução das rendas e juros (“vivem os camponeses e vivem os senhores”),(23) a moderar as reivindicações dos operários para não afectar os lucros dos industriais e comerciantes, etc.
Assim, o PC da China chegou à plataforma do seu 7.º congresso, de Abril de 1945, sobre o governo de coligação com o Kuomintang e outros partidos, em que Mao defendeu de forma elaborada a “harmonização” e o “ajustamento” entre o trabalho e o capital,(24) “o crescimento do capital privado e a protecção da propriedade privada”,(25) “o desenvolvimento do capitalismo por um período bastante longo” depois da vitória da revolução.(26)
É impossível criticar hoje estas concepções se não se puser em foco que elas constituíram uma aplicação da política do 7.º congresso nas condições particulares da China. Mao não só não se desviou da linha de frente única traçada para o conjunto do MCI, como teve inclusive o mérito, apesar dos seus erros de direita, de nunca ter cedido face à contra-revolução da burguesia compradora e dos feudais, agrupados no Kuomintang, e de ter conduzido vitoriosamente até ao fim a guerra pelo seu derrubamento. São hoje largamente conhecidas as pressões que em diversas circunstâncias partiram da direcção da IC e posteriormente da União Soviética e de Staline para que o PC da China chegasse a um compromisso com o Kuomintang e pusesse fim à guerra, a fim de obter a legalidade numa república burguesa presidida por Chiang Kai-chek. Os compromissos duvidosos que Mao consentiu com o Kuomintang, como no incidente de Sian e nas negociações de 1945, ficaram muito aquém daqueles a que o aconselhavam. Só pode pois classificar-se como pura hipocrisia a acusação (que fazem tanto os revisionistas russos como os centristas albaneses) de que Mao teria seguido uma linha oportunista à revelia da IC e da opinião do PCUS.
Como era inevitável, a política de concessões à média burguesia (e aos “nobres esclarecidos”) teve de ser acompanhada pela condenação como “esquerdista” de toda a política do partido entre 1928 e 1935 e por um combate ao “esquerdismo” como perigo principal no partido. “Actualmente, o mais grave é o desvio de ‘esquerda’, na medida em que despreza a conquista da média burguesia e dos nobres esclarecidos” (Março de 1940).(27) “As nefastas tendências esquerdistas constituem ainda hoje o perigo principal no seio do partido.” “Os pontos de vista de direita, que no passado eram algo grave, estão no essencial eliminados” (Dezembro de 1940).(28) Erram os camaradas que julgam que precisamos “unicamente do chamado poder dos operários, camponeses e pequena burguesia urbana” (Maio de 1941).(29)
Num partido composto em percentagem esmagadora por camponeses, esta campanha sistemática contra o “esquerdismo” eliminou os últimos focos de resistência da ideologia proletária e semeou o terreno para a ideologia pequeno-burguesa de “todo o povo”. De vanguarda revolucionária do proletariado, os comunistas passaram a “servidores do povo”, numa perspectiva democrática tipicamente pequeno-burguesa, expressa de forma lapidar nos escritos de Mao. A crítica aos erros perdeu a referência de classe e foi transferida para o plano meramente filosófico e moral (combater o subjectivismo, o empirismo, a arrogância...). A luta surda de classes que se travava no campo da “democracia nova” para decidir quem iria recolher os frutos da revolução ficou obscurecida sob um populismo pedagógico, que apostava na reeducação geral de todas as classes pelo exercício da democracia.
Uma vez instaurado o poder da “democracia nova”, ia-se revelar de forma dramática a incapacidade do partido, varrido pela ideologia pequeno-burguesa e burguesa, para conduzir a revolução à etapa seguinte.
O Cominform
A lua-de-mel democrática do fim da guerra deu lugar, em pouco tempo, a uma vaga de reacção desenfreada. Os EUA ocuparam com brio o lugar deixado vago pelo defunto “Eixo”. Iniciou-se um novo ciclo de guerras e massacres coloniais (Indonésia, Indochina, Palestina, Malásia...), o Kuomintang lançou-se contra a China vermelha, a guerrilha grega foi esmagada. Ao impulso do Plano Marshall, os partidos comunistas foram corridos dos governos, os PSD foram mobilizados para a campanha anticomunista, acirrou-se a cisão sindical. Usou-se o regime de Tito como cavalo de Tróia nas democracias populares, activaram-se os preparativos de guerra atómica contra a União Soviética, criou-se a NATO, iniciou-se o massacre na Coreia, entrou-se na “guerra fria”.
À medida que se definia em toda a sua brutal nitidez o quadro real da luta de classes, que se evaporavam as tolas ilusões no “novo mundo democrático” e que a pequena burguesia, em desagregação ideológica, se deslocava para a direita, mais clara se tornava a incapacidade dos partidos para fazer face à nova situação. O lastro oportunista neles acumulado por dez anos de colaboração “democrática” de classes empurrava-os invencivelmente no caminho da capitulação. O único meio que viam para barrar a ameaça do fascismo e da guerra era um novo passo para a fusão com a democracia pequeno-burguesa.
O Cominform, criado em Setembro de 1947, foi a última tentativa da ala centrista, chefiada por Staline, para erguer uma barreira à maré oportunista que ameaçava submergir o movimento comunista e desmembrar o campo das democracias populares. O Bureau de Informação abriu fogo contra a política de concessões à burguesia que campeava na Jugoslávia e na Polónia, isolou e desmascarou Tito e Gomulka, travou a progressão dos seus partidários nos países vizinhos. Criticado publicamente na Pravda pela sua proposta de uma Federação Balcânica, aberta inclusive à Grécia (!), Dimitrov foi forçado a autocriticar-se.(30) Acabaram-se as teorizações sobre a democracia popular como uma “excepção” à ditadura do proletariado.
O Cominform criticou igualmente o comportamento reformista do PCF e do PCI durante a luta de libertação e o seu eleitoralismo desenfreado no após-guerra, atacou o oportunismo que corroía o PC do Japão, combateu o ambiente de pânico perante a chantagem atómica do imperialismo, desmascarou o sujo papel dos chefes social-democratas como agentes do grande capital, mobilizou os comunistas para a resistência à onda reaccionária que, a partir dos EUA, se espraiava pelo mundo.
Mas esta viragem mantinha-se, como a de 1939, no quadro centrista instituído pelo 7.º congresso. Foram desautorizadas e temporariamente silenciadas as posições oportunistas extremas, mas não se tocou na linha de colaboração democrática de classes que lhes servia de alimento. Nas democracias populares tentou-se travar o crescimento da agitação pequeno-burguesa recorrendo à fusão dos PSD com os PC (1948), o que preparou um agravamento ainda maior da crise. Nos países capitalistas, orientaram-se os partidos para a activação das lutas de massas mas apenas em torno de palavras de ordem de defesa da paz, da democracia e do nível de vida dos trabalhadores.
A verdade é que a linha do Cominform, para ser coerente, teria de colocar na ordem do dia a necessidade de uma ruptura de princípio com o 7.º congresso. Bater decisivamente a linha pequeno-burguesa de Tito e Gomulka implicava, não a execução dos seus partidários, após tenebrosos processos judiciais, mas uma crítica de fundo à teoria da democracia popular elaborada por Dimitrov. Mobilizar a classe operária contra a acção cisionista e reaccionária da social-democracia exigia que se condenasse a política das frentes únicas pela cúpula, praticada desde 1935. Derrotar o reformismo que proliferava nos partidos impunha uma crítica corajosa à campanha “anti-sectária” lançada pelo 7.º congresso, à sombra da qual tinham prosperado os oportunistas e tinham sido excluídos os revolucionários. Afirmar uma real política de hegemonia do proletariado passava pela rejeição da perspectiva do bloco democrático operário-pequeno burguês, condenado pela vida. Tomar a cabeça da luta da libertação nacional exigia que se deitasse abaixo a tese das burguesias nacionais “revolucionárias”. Bolchevizar os partidos só era possível se se rejeitasse a podre teoria do “partido operário único”, etc., etc.
Mas o Cominform já não dispunha de clarividência nem de firmeza para este corte com o passado. Ficou-se assim numa meia viragem, em que os partidos endureceram a linguagem, mas continuaram a deixar-se ir à deriva das pequenas estratégias das “conquistas democráticas”, sem norte revolucionário. Toda a sua política repousava na esperança de que futuros avanços da União Soviética fizessem recuar o imperialismo e lhes permitissem chegar ao poder um belo dia, sem luta revolucionária. A coberto da exaltação da União Soviética, dada como garante da fidelidade ao marxismo-leninismo, foi-se instilando a perspectiva reformista da lenta “desagregação” do poder da burguesia pela penetração nas instituições e pelo respeito pelas regras do jogo constitucional e parlamentar. Com a alegação de que se “ganhava tempo” e se “acumulavam forças”, os partidos apodreciam.
Isto permitiu aos dirigentes oportunistas, do tipo Thorez, Togliatti, Cunhal, etc., manterem-se à tona da onda stalinista e permanecerem à cabeça dos partidos sem renunciarem às suas concepções de colaboração de classes. Multiplicando ao absurdo os louvores ao “grande Staline” e as declarações inflamadas de fidelidade à União Soviética, asseguravam espaço para prosseguir a corrupção dos partidos em direcção ao revisionismo.
Em 1952, por exemplo, o PC da Grã-Bretanha pôde publicar, sem qualquer crítica, um programa para a passagem pacífica da Inglaterra ao socialismo, levando a reboque o Commonwealth, numa mistura grosseira de reformismo e chauvinismo imperial. A campanha internacional contra as armas atómicas e a ameaça de nova guerra, que devia mobilizar a classe operária e os povos contra o imperialismo americano e as burguesias reaccionárias, foi virada do avesso pelo oportunismo e transformada numa avalanche de petições pacifistas, que ainda mais espalhou nos partidos e na classe operária o espírito pequeno-burguês de capitulação e de harmonização das classes. Até a defesa de A. Cunhal em tribunal, triste manifesto do oportunismo português, mereceu rasgado elogio da revista soviética Bolchevik...
Entrou-se assim na etapa final do centrismo, que caracteriza os últimos anos da direcção de Staline. Com as tendências de direita a crescer imparavelmente por todos os poros do centrismo agonizante, os últimos resistentes, os que ainda conservavam reflexos de classe, ficaram reduzidos a uma vã batalha de retardamento. Desarmados ideologicamente pela plataforma do 7.º congresso, incapazes de demarcar fronteiras com o oportunismo e de se desenlear da pequena burguesia, os “stalinistas” entrincheiraram-se na ditadura dos aparelhos, na rigidez dogmática e sectária, como último recurso de uma resistência desesperada. E, ainda desta vez, apenas conseguiram, com a sua inconsequência centrista, dar argumentos à tese direitista de que se tornava imperioso “actualizar” o marxismo-leninismo.
A morte de Staline veio derrubar o derradeiro obstáculo que impedia a livre expansão da corrente de direita. O revisionismo já completamente formado no ventre do centrismo pôde espraiar-se numa vaga impetuosa que submergiu todo o movimento comunista. Estava completada a missão do 7.º congresso.