A URSS e a Contra-Revolução de Veludo

Ludo Martens


À laia de introdução
A esperança a Leste?
[Setembro 1987]

capa

Em 25 de Outubro de 1987, no mundo inteiro, os homens festejam o 70.° aniversário da revolução soviética. Nenhuma data da história dos cinco continentes é comparável a este 25 de Outubro: ele marca a destruição do poder secular das classes exploradoras, dos latifundiários e dos grandes capitalistas, e o nascimento do poder dos operários e dos camponeses pobres num grande país euro-asiático. Abrindo caminho ao socialismo no velho continente, a revolução soviética lançou simultaneamente uma ponte ao movimento de libertação das colónias: as províncias asiáticas da Rússia eram uma parte do Terceiro Mundo anexada pelos tsares. Em 1 de Outubro de 1949, a revolução soviética achou o seu prolongamento na revolução chinesa, anunciadora da libertação do mundo colonizado.

A seguir à Revolução de Outubro, a produção industrial da URSS era desprezável. Hoje, um terço da população mundial reclama-se da via de Lénine e realiza 40 por cento da produção industrial mundial.

E no entanto, contrariamente às aparências, este septuagésimo aniversário não será ocasião de repisar os clichés-verdades sobre as vitórias conquistadas nas lutas heróicas, sobre as abomináveis traições dos diversos desviacionistas e sobre o curso irreversível da história. Porque nos assalta uma quantidade de impressões bizarras e ambíguas, por uma plêiade de questões e de interrogações que ficam sem resposta.

Abrir um debate perigoso

Há cinco anos, Reagan transmitia-nos as sujas visões de pesadelo dos blindados soviéticos lançando-se sobre o Atlântico, dessa chuva de SS-20 devastando as nossas cidades. Amanhã, o poder satânico de Bréjnev desencadearia o ataque final. Ora, hoje, Gorbatchov tornou-se na vedeta número um na Alemanha Ocidental, o tradicional bastião do anticomunismo integrista. Um estranho vento de simpatia pelo comunista invade as nossas ruas. Aterrorizado pelo medo de uma guerra nuclear na Europa, a juventude congratula-se com as temerárias propostas de paz que Gorbatchov lança incansavelmente. Dizia-se da União Soviética que era fechada, cinzenta, enfadonha e vemos lá desabrochar ramos de opiniões contraditórias, as discussões correm a um ritmo endiabrado. O Afeganistão é a prova mais palpável da natureza expansionista dos tsares vermelhos; Gorbatchov dá a entender que a presença das suas tropas no Afeganistão o incomoda e que lhe porá fim em breve. Afinal, que se passa na União Soviética?

Não se passa nada. A Leste nada de novo. É o que pretendem alguns peritos da NATO, para quem todas estas fitas são apenas uma campanha de intoxicação, um estratagema para fintar a nossa vigilância. Gorbatchov moderniza o império comunista para torná-lo mais enérgico no ataque.

Mas também numerosos revolucionários que desconfiam da ilusão da transparência. Gorbatchov é uma revisionista como os outros, e se o discurso é mais florido e aveludado, persistem a opressão interna e a expansão externa.

Talvez. Mas fica a série de constatações que rimam mal com a análise que o Partido Comunista da China e o Partido do Trabalho albanês apresentaram nos anos 60 sobre a degenerescência da URSS.

Eis em resumo as suas posições que foram partilhadas por parte importante das forças revolucionárias no mundo.

Na União Soviética, o golpe de Estado de Nikita Khruchov assinalou a tomada do poder por uma nova grande burguesia, constituída por altos funcionários do Partido e do Estado, que possuem de facto os meios de produção e se apropriam da mais-valia criada pelos trabalhadores. O Estado soviético é um capitalista colectivo. O capitalismo de Estado é o estado supremo da concentração capitalista. A URSS conhecia um regime de opressão generalizada e de social-fascismo. Os que ousam criticar a nova burguesia e reivindicar os seus direitos democráticos são acusados de actividades anti-soviéticas e de subversão.

O social-imperialismo retomou a velha política tsarista de opressão das minorias nacionais e de expansão. Exerce uma dominação colonial na Europa de Leste, em Cuba, no Vietname e noutros países do terceiro-mundo. Recém-chegada à cena mundial, esta nova potência imperialista tem de apostar nos meios militares para se abrir um lugar ao sol, o que a torna particularmente agressiva e perigosa. O militarismo soviético prepara o povo para guerras de agressão pelo domínio da Europa e do mundo inteiro.

Por termos partilhado esta análise durante 20 anos e termo-la defendido com ardor, confessamos a nossa perturbação diante de certas observações.

Houve um tempo em que Mao criticava as reformas económicas que são hoje retomadas e amplificadas por Deng Xiaoping. Deng tinha o costume de invectivar a «a mais pérfida superpotência», ao que Bréjnev respondia com uma tirada contra «a China, aliada do imperialismo americano e de toda a reacção mundial». Hoje, a União Soviética e a China encaminham-se para a reconciliação. Quem se enganou no passado e sobre que pontos? E quem se engana hoje?

Nessa época compilámos centenas de provas da orientação agressiva imprimida aos exércitos soviéticos.

«Como resultado do emprego das armas nucleares», escreve o coronel Tonkikh, «serão abertas brechas nas defesas anticarro, que deverão ser exploradas pelas unidades e subunidades atacando em movimento rápido para a frente».(1)

E havia melhores. Hoje Gorbatchov desmantela os seus SS-20, prepara-se para sair do Afeganistão, alarga as ligações à Europa de Leste. Como explicar?

Falava-se de implacável repressão social-fascista sob Bréjnev. Uma das principais vítimas, o académico Sákharov torna-se hoje o aliado e o amigo do novo secretário-geral. É como se Hassan II abrisse a Abraham Serfaty as portas da prisão de Kenitra para fazer dele o seu confidente. Quem poderá compreender?

Estas constatações levam à conclusão de que certas afirmações antes citadas se tornaram impossíveis de manter, porque falsas ou unilaterais. Pensávamos que a natureza de classe da União Soviética a condenava a mergulhar, levada por uma cega lógica interna, na via do militarismo e da repressão. Ora, assistimos a mudanças de orientação bruscas, profundas e, para nós, absolutamente inesperadas. O Estado e o Partido soviéticos são fenómenos mais complexos do que havíamos pensado. Quem pretende servir o movimento revolucionário no mundo não pode ficar agarrado a antigas teses que, manifestamente, não são suficientes para atingir a complexidade da realidade. É necessário, portanto, reestudar a questão para enquadrar as mudanças que vemos produzirem-se na União Soviética.

Mas se, aos olhos de alguns, nada de significativo mudou na URSS, outros estimam que assistimos a uma subversão total de grande significado histórico para o futuro do socialismo. Gorbatchov dá ao comunismo a sua verdadeira face humana. No fundo, a União Soviética não cessou nunca de ser socialista e todos os que a denegriram gravemente e insultaram a pátria do socialismo devem recitar a sua mea culpa. Após esta pungente reviravolta, encontrámos um amigo, antigo combatente da causa afegã, chorar de remorso e entrar no Partido Comunista Belga para aí fazer a sua penitência.

É preciso dizer que o debate, tornado incontornável, é perigoso. Importa assim pesar bem os termos em que será colocado. Para não nos perdermos numa inconsiderada fuga para a frente, para não nos enganarmos de batalha, para não nos aventurarmos na Sibéria sem bússola, tentemos resumir as lições que tomámos de 70 anos de lutas revolucionárias e de desvios oportunistas na União Soviética.

Massacres imperialistas, quimeras «socialistas»

Em finais do século XIX, o capitalismo europeu soube defender-se da ascensão do movimento operário revolucionário colonizando e explorando a Ásia e a África. Os partidos socialistas apoiaram estas conquistas coloniais, das quais Bernstein, o famoso reformista alemão, se fez apóstolo. Em 1914, estes partidos apoiaram os «seus» capitalistas nacionais que se lançaram numa das mais criminosas guerras mundiais por uma nova partilha das colónias. Na Rússia, os mencheviques, esses irmãos dos nossos reformistas, apoiaram o esforço de guerra empreendido primeiro pelo tsarismo e depois, a seguir à revolução de Fevereiro de 1917, pela grande burguesia.

Quando já contavam mais de dois milhões de mortos nas suas fileiras, em 25 de Outubro de 1917, os operários, os camponeses e os soldados derrubam o governo provisório, com a participação menchevique, para alcançar as duas condições da sua sobrevivência: o fim da guerra criminosa e a entrega da terra aos camponeses. A partir do dia seguinte, 26 de Outubro, os mencheviques e os seus aliados começaram a denunciar a «escravatura» que trariam os bolcheviques, isto é, os comunistas que rodeavam Lénine...(2)

Os reaccionários ingleses, franceses, japoneses e checoslovacos enviaram as suas tropas de intervenção para esmagar a primeira República socialista do mundo. Apoiavam-se nas tropas tsaristas reagrupadas em torno dos generais Koltchak, Deníkine, Alekséiev. Esta fina flor da reacção internacional recebeu o apoio de todas as tendências do pretenso «socialismo democrático»: Plekhánov, os mencheviques, os socialistas-revolucionários, os populistas.(3) A partir de Dezembro de 1917, invectivaram a «ditadura bolchevique» que se apoiava num «regime arbitrário, terrorista».(4) Considerando que a Rússia não estava madura para o socialismo, os mencheviques denunciavam uma política «objectivamente reaccionária», uma política «de anarquismo camponês». Os bolcheviques, segundo as palavras de Vera Zassúlitch, célebre dirigente menchevique, formavam uma «nova autocracia» contra a qual Potréssov, outro grande menchevique, apelava a uma «intervenção internacional».(5)

O socialismo num só país

Após a morte de Lénine, o partido bolchevique, sob a direcção de Stáline, realizou uma tarefa impossível. Desembaraçando o país dos exploradores capitalistas, numa situação de ruína total provocada pela guerra mundial e pelas intervenções estrangeiras, os operários e os camponeses levaram a bom fim a industrialização da União Soviética e a colectivização da sua agricultura.

A partir do século XVI, a acumulação do capital na Europa ocidental foi realizada através da espoliação vergonhosa da América Latina, da África e da Ásia. A União Soviética levou a cabo a sua industrialização contando unicamente com as forças dos seus operários, camponeses e técnicos: na sua grande maioria, o povo soviético aceitou sacrifícios inauditos para edificar as bases de uma economia socialista independente. O povo vivia em condições extremamente duras, mas dava provas de um entusiasmo e de um empenhamento sem precedentes na história: os trabalhadores tinham a consciência de que, pela primeira vez, trabalhavam para a realização dos seus próprios interesses e não para o enriquecimento de uma classe exploradora.

Nos campos, duas vias se apresentavam. Podia-se desenvolver a produção graças à emergência de uma classe de camponeses ricos dispondo de meios de produção privados ou podia-se modernizar a agricultura através da colectivização. Não havia outra escolha: o desenvolvimento capitalista nos campos teria afogado e varrido o poder socialista. Os camponeses ricos organizaram numerosas insurreições contra o poder soviético; receberam um apoio multiforme por parte dos imperialistas e dos reaccionários tsaristas. A resistência encarniçada das classes exploradoras tornou a colectivização muito complexa, penosa e difícil.

Ademais, os bolcheviques foram obrigados a realizar a industrialização e a colectivização a um ritmo forçado: em 1931, face ao ascenso do fascismo, Ióssif Stáline declarava que a União Soviética dispunha de dez anos para apanhar a Europa ocidental...

Certamente que foram cometidos erros no que diz respeito aos ritmos e métodos com os quais certas transformações foram introduzidas. Mas poderia ter sido de outro modo no decurso de uma empresa tão gigantesca levada a cabo pela primeira vez na história?

Os socialistas de direita, na Europa, compraziam-se em escrever artigos odiosos contra os «massacres de camponeses» e contra a «colectivização pelo terror». Tomavam bem o cuidado não mencionar que toda a velha sociedade ocidental se atarefava para suscitar e apoiar as insurreições dos camponeses ricos.

Já em 1917, Plekhánov, o patriarca dos mencheviques, havia previsto a derrocada do regime bolchevique por impossibilidade de introduzir o socialismo num país atrasado de maioria camponesa.(6) Os socialistas de direita na Europa retomavam essas profecias. Trótski juntava a sua voz ao coro. Ora, no final dos anos 30, a façanha estava cumprida: a União Soviética tinha realizado no essencial a sua industrialização socialista e podia desde então fazer face à agressividade imperialista.

Face ao terror colonial e fascista

As realizações do primeiro país socialista no decurso dos anos 20-30 não podem ser avaliadas no seu justo valor senão comparando-as com o desenvolvimento do mundo capitalista «avançado». Durante os anos 20 e 30, a Europa «democrática» alimentou-se em grande medida graças à exploração desenfreada de centenas de milhões de camponeses e de operários nas colónias. Trabalhos forçados, culturas obrigatórias, salários de fome e, para os que se revoltavam, matanças impiedosas. Ryckmans, o governador-geral do Congo belga, dizia em 1946:

«O nível de vida dos nossos indígenas das aldeias é inferior ao mínimo vital. O limite foi atingido».(7)

Os socialistas de direita, tão alerta para descobrir «o terror» contra os camponeses ricos da União Soviética, fingiam ser cegos perante o terror bem mais implacável que sofriam povos inteiros do Terceiro Mundo. Compare-se os duros sacrifícios consentidos pelos trabalhadores soviéticos para construir o seu próprio futuro socialista, aos sacrifícios desumanos impostos pela força bruta aos camponeses e operários africanos e asiáticos para único proveito das potências coloniais estrangeiras. Compare-se a repressão na União Soviética, exercida pela primeira vez na história no interesse das massas populares para domar as classes exploradoras, ao terror imposto aos trabalhadores do Terceiro Mundo para enriquecer desmesuradamente o capital financeiro ocidental.

A partir de 1933, os esforços do partido e do povo da União Soviética foram levados ao extremo no combate pela industrialização e pela defesa contra a ameaça fascista.

À medida que se aproximavam as nuvens da guerra mundial, a actividade anti-soviética dos reaccionários e dos serviços secretos nazis intensificava-se. Nestas circunstâncias, Stáline e a direcção do partido organizaram uma depuração durante a qual numerosos agentes secretos e elementos anti-soviéticos incorrigíveis foram atingidos. Mas, ao mesmo tempo, milhares de comunistas foram injustamente acusados e executados. Os êxitos da edificação, assim como a confiança inquebrantável das massas mais pobres no partido comunista, criaram um clima no qual era cada vez mais difícil opor-se às infracções ao centralismo democrático e a certas decisões arbitrárias, nas quais Stáline se tornava culpado. Dos 1966 delegados ao XVII Congresso do partido bolchevique, em 1934, vieram a ser condenados 1108 e houve um grande número de execuções. Como centenas de outros, Éikhe, membro suplente do Politburo, declarou antes de ser fuzilado:

«Morrerei acreditando na justeza da política do Partido como acreditei durante toda a minha vida.»(8)

Stáline e os dirigentes do partido estimavam que as suas medidas extremas eram necessárias para manter a pureza e a firmeza do partido na previsão das batalhas impiedosas contra os nazis.

Todos os fanáticos do colonialismo e os fervorosos do fascismo na Europa se serviram imediatamente de certos erros do poder bolchevique para tentar minar a confiança das massas na causa comunista. Mas é preciso não esquecer que na União Soviética foram essencialmente os comunistas as vítimas dos erros de outros comunistas. O general Gorbátov, condenado a quinze anos de prisão, conheceu a deportação na Sibéria. Libertado no princípio da guerra, tornou-se num dos heróis do Exército Vermelho.(9) Sem dezenas de milhares de Gorbátov, vítimas de injustiças mas continuando fiéis ao ideal bolchevique, a União Soviética não poderia ter vencido o monstro nazi.

Os erros, cometidos por Stáline e pela direcção, não alteraram o carácter revolucionário do Partido, que cumpriu de forma admirável os seus deveres históricos e internacionalistas no decurso da guerra antifascista.

Pode-se acrescentar que a União Soviética não conheceu senão um ínfimo número de traidores entre os seus quadros. Na Europa ocidental ocupada, os partidos de tendência católica e liberal viram a maioria dos seus quadros juntar-se às organizações fascistas ou pactuar com Hitler. Numerosos dirigentes dos partidos socialistas alemão, francês, belga, seguiram uma política de pacificação para entrar, de seguida, no início da guerra, na colaboração. O presidente do Partido Socialista Belga, Henri De Man, saudou a chegada do exército hitleriano à Bélgica como um «alívio».(10) Este homem tinha, é claro, denunciado nos mais exaltados termos a repressão stalinista demente.

Stalingrado, o símbolo

De Junho de 1941 ao princípio de 1943, a União Soviética suportou praticamente sozinha o peso da guerra anti-htleriana. O Exército Vermelho travou a maior parte das batalhas estratégicas que levaram à destruição dos exércitos nazis. Ao mesmo tempo, os partidos comunistas estiveram na vanguarda da resistência armada antifascista, tanto na China, passando pela Jugoslávia, a Albânia e a Grécia, como em Itália, na França e na Bélgica.

Os quadros e os membros do partido bolchevique deram provas de um heroísmo e de uma fidelidade que obrigaram à admiração dos democratas do mundo inteiro. O Exército Vermelho teve um papel essencial na liquidação das forças fascistas nos países da Europa de Leste e os seus combates vitoriosos facilitaram as lutas dos povos chinês, vietnamita e coreano pela libertação nacional e pelo socialismo. Assim, a União Soviética, sob a direcção de Stáline, contribuiu largamente, nas condições históricas da guerra antifascista, para a realização da revolução socialista em 11 países da Europa e da Ásia. Trata-se de vitórias bem reais, levadas a cabo no decurso das mais ásperas batalhas de classe, por centenas de milhões de homens, sob a direcção dos partidos comunistas. Vitórias pagas com o sangue de 37 milhões de mortos, só na União Soviética, na China, na Polónia e na Jugoslávia.

No final da guerra, Stáline pôde justamente afirmar:

«A nossa vitória significa antes de mais que foi o nosso regime social soviético que triunfou (...). Como é sabido, a imprensa estrangeira afirmou várias vezes que o regime soviético (...) era um “castelo de cartas”, sem raízes na vida e imposto ao povo pelos órgãos da Tcheka. (...) A guerra mostrou que o regime social soviético é um regime verdadeiramente popular, saído do seio do povo e beneficiando do seu poderoso apoio. (...) Poder-se-á afirmar que antes da entrada na Segunda Guerra Mundial o nosso país já dispunha de um mínimo de recursos materiais indispensáveis para prover no essencial as suas necessidades? Creio que se pode afirmá-lo. Para preparar tal grandiosa obra foi necessário concretizar três planos quinquenais de desenvolvimento da economia nacional. (...) É preciso reconhecer que 13 anos é um prazo incrivelmente curto para concretizar uma obra tão grandiosa. (...) Através de que política pôde o Partido Comunista assegurar estes meios materiais ao país num prazo tão reduzido? Antes de mais, através da política soviética de industrialização do país. (...) Em segundo lugar, através da política da colectivização da agricultura.»(11)

Face às realizações dos bolcheviques dirigidos por Stáline, bem lamentáveis surgem as análises de antes da guerra de um Trótski, denunciando o «papel cinicamente contra-revolucionário» da Internacional Comunista e «a sua passagem definitiva para o lado da ordem burguesa»!(12) Bem repugnantes são os seus apelos de 1938 ao «levantamento» e à «insurreição» contra «a clique bonapartista de Stáline».(13) Como peca por má fé e cegueira a sua «análise» quando escreve em 1938:

«O aparelho político de Stáline em nada se distingue do dos países fascistas senão por um maior frenesim».(14)

Como tomam as suas profecias um tom tresloucado quando prediz a derrota inevitável da URSS em caso de guerra com a Alemanha nazi. Como são risíveis as suas afirmações segundo as quais, no decurso da guerra que estava para vir, «milhões de pessoas» juntar-se-iam à organização trotskista e que as internacionais comunista e socialista iriam afundar-se:

«A sua derrocada será a condição indispensável de um franco movimento revolucionário conduzido pela Quarta Internacional».(15)

Prosseguindo nesta via, um dos principais colaboradores de Trótski, James Burnham, declarará que Stáline e Hitler eram dois «ditadores totalitários», e que as massas soviéticas sofriam a

«exploração em proveito de uma nova classe, baseada na posse da economia por parte do Estado».(16)

Burnham separar-se-á de Trótski em 1940, para tornar-se um ideólogo de nomeada do imperialismo americano. Após a vitória do Exército Vermelho em 1945, todo o ódio dos fascistas e da extrema-direita internacional concentrou-se sobre o nome de Stáline. A nova potência imperialista dominante, os Estados Unidos, não encontravam na sua política de hegemonia mundial senão um inimigo à altura: a União Soviética e o movimento comunista internacional. Freneticamente, a máquina de propaganda americana denunciava o «capitalismo de Estado soviético» e o «totalitarismo stalinista, sucessor do totalitarismo hitleriano». E o principal ideólogo da guerra fria, assim arvorado, era o antigo lugar tenente de Trótski, James Burnham.

A própria existência da União Soviética, construindo o socialismo nos anos 20 e 30, e a guerra antifascista que ela travou, foram factores determinantes para o desenvolvimento da revolução nacional e democrática no Terceiro Mundo.

Tendo em conta as grandes forças sociais em acção à escala mundial durante a primeira metade do século XX, é claro que todas as forças revolucionárias deviam manter-se firmemente ao lado da União Soviética de Lénine e de Stáline contra o mundo imperialista, do lado do movimento comunista internacional contra as diferentes correntes burguesas e oportunistas. Mas importa também que o movimento extraia lições dos erros cometidos. Os comunistas devem ater-se aos princípios e ousar criticar todos os erros, as faltas e mesmo os crimes que podem produzir-se no seio do seu movimento. Estas críticas, por serem revolucionárias, devem reforçar a combatividade do movimento comunista, melhorar a sua ligação às massas e tornar mais sólida a sua unidade na luta. Criticando corajosamente aquilo que entende ser um erro, um comunista não deve afastar-se nunca do seu dever fundamental de solidariedade com os países socialistas, com o movimento comunista internacional e com os movimentos de libertação nacional.

O pseudo-comunismo

Num documento publicado em 1964, «O pseudo-comunismo de Nikita Khruchov», o Partido Comunista da China avançava a tese de que o golpe de Estado de Nikita Khruchov na União Soviética marcou a tomada do poder por uma nova burguesia. É um documento notável que exerceu numa forte influência sobre o movimento revolucionário mundial. Mas hoje podemos a este propósito formular quatro observações.

Na União Soviética, Nikita Khruchov convocou, em 1956, o XX congresso do PCUS. Apresentou aí o seu relatório secreto contra Stáline, um ataque-surpresa que apanhou desprevenidos tanto os dirigentes do partido soviético como os dos outros partidos. Ele misturou críticas justificadas dirigidas a Stáline com ataques odiosos e irresponsáveis contra o conjunto da sua obra. Dulles, que na época dirigia a CIA, não perdeu a ocasião: o relatório de Nikita Khruchov forneceu-lhe a matéria prima da campanha anticomunista mais virulenta e eficaz nunca antes empreendida pelo seu serviço. Fazer anticomunismo durante 40 anos é meritório, mas que sorte imensa teve ao ver todo um ramalhete das suas afirmações retomadas pelo papa do movimento comunista internacional!

Nikita Khruchov acertou o passo com os escribas do Readers Digest, apelidando Stáline de «louco», de «perverso», de «déspota tomado de vertigem», inventando completamente ataques grotescos do género:

«Stáline [durante a guerra] planeava as operações num globo terrestre».(17)

Lembremos também as suas duas ideias fundamentais que exprimiam bem a sua visão oportunista da realidade soviética:

«(...) Quando o socialismo venceu no nosso país total e definitivamente, e entrámos no período da construção do comunismo grande escala, desapareceram as condições que motivavam a necessidade da ditadura do proletariado (...). A classe operária da União Soviética, por iniciativa própria, tendo em conta as tarefas da construção do comunismo, transformou o Estado da sua ditadura em Estado de todo o povo.»(18) «O partido comunista da classe operária tornou-se (...) no partido de todo o povo.»(19)

A falta de um estilo científico em Nikita Khruchov exprime-se na sua previsão de que, em 1980 a União Soviética terá construído

«no essencial, a sociedade comunista» «sociedade sem classes», onde «serão eliminadas as diferenças essenciais entre a cidade e o campo».(20)

No seio do movimento comunista internacional, Nikita Khruchov prega a «passagem pacífica» ao socialismo, oferecendo assim munições seleccionadas aos reformistas que, na Europa ocidental, travam desde 1917 uma verdadeira guerra contra os comunistas.

Nikita Khruchov encorajou vigorosamente as orientações reformistas tomadas por certos partidos.

«A classe operária tem a possibilidade (...) de conquistar uma sólida maioria no parlamento, transformá-lo de instrumento ao serviço dos interesses de classe da burguesa em instrumento ao serviço do povo trabalhador, desenvolver largamente a luta extraparlamentar de massas, quebrar a resistência das forças da reacção e criar as condições necessárias à realização pacífica da revolução socialista».(21)

No mesmo espírito, Nikita Khruchov opôs-se em geral à luta armada nos países do Terceiro Mundo e incitou à cisão das organizações revolucionárias.

Nikita Khruchov exigiu que os outros partidos comunistas aceitassem a sua linha e nomeadamente

«as decisões do XX Congresso».(22) «A verdadeira unidade dos partidos irmãos comunistas e operários não pode ser levada a cabo silenciando em silêncio a linha viciosa da direcção albanesa.»(23)

Nikita Khruchov previu

«uma economia comunista mundial gerida pelos trabalhadores a partir de um plano único»,(24)

mas rasgou todos os acordos com a China e a Albânia quando estas recusaram inclinar-se.

Nuances

Também é preciso dizer que certas posições extravagantes de Nikita Khruchov foram contrabalançadas por outras afirmações que nem sempre reflectem a prática social do PCUS e que algumas correntes do partido contestaram.

A negação dos méritos de Stáline por Nikita Khruchov levantou na União Soviética grandes controvérsias. Nas suas memórias publicadas em 1969, o marechal Júkov, chefe do Estado-Maior General durante a guerra antifascista, faz uma descrição objectiva dos méritos históricos de Stáline à cabeça dos exércitos soviéticos, sem no entanto passar em silêncio alguns erros.(25)

A União Soviética, navegando sob as bandeiras do «partido de todo o povo» e do «Estado de todo o povo», tem no entanto, contra toda a lógica, de travar ásperas batalhas contra as forças hostis internas e externas. De modo confuso, dir-se-á que «o Estado de todo o povo» tem de fazer face a exacerbadas lutas de classes.

«Em relação a tal ou tal mudança na conjuntura interna ou externa, durante certos períodos, a luta de classes pode exacerbar-se.»(26)

Seguidamente, depois de causar grandes revezes durante longos anos, um bom número de posições de Nikita Khruchov foram abandonadas pelo partido soviético: as suas promessas quiméricas de um comunismo integral para 1980, o seu sonho de «consolidação da paz» graças ao «estabelecimento de relações de amizade duráveis» com os Estados Unidos.(27)

E finalmente, é preciso reconhecer que o Partido Comunista da China se enganou manifestamente em grande número das suas críticas económicas contra a linha do PCUS sob Nikita Khruchov. Os métodos de gestão económica do tempo de Stáline foram, é certo, muito eficazes para estabelecer os alicerces de uma indústria nacional independente. Mas será que os mesmos métodos convinham para passar de um desenvolvimento extensivo a um desenvolvimento intensivo, baseada na integração acelerada das conquistas científicas e tecnológicas na produção? O documento chinês passa ao lado dos problemas reais levantados pelo PCUS: o centralismo exagerado, os métodos administrativos para dirigir a produção, o baixo nível de produtividade, da eficácia e da qualidade. O texto do Partido Comunista da China critica despropositadamente os «estímulos materiais», cuja utilização complementar à educação política foi sempre defendida por Lénine e Stáline. Mais adiante, lemos:

«Nikita Khruchov minou a economia socialista planificada, aplicou o princípio do lucro capitalista e destruiu a propriedade socialista de todo o povo.»(28)

O texto do Partido Comunista da China contém ainda esta posição fundamental:

«A linha adoptada por Nikita Khruchov é revisionista a cem por cento.»(29)

Uma tal afirmação pode levar a toda a espécie de exageros esquerdistas, pois dispensa o esforço de distinguir o falso do verdadeiro nas posições do PCUS.

Breve passagem sobre um longo inverno

Depois chegou o longo inverno sob Bréjnev.

Arrogância dominadora em política externa.

Com meios económicos bem mais fracos do que os dos Estados Unidos, a União Soviética atingirá a paridade militar com a superpotência americana. E a produção de artigos de consumo atolou-se na mediocridade...

A Checoslováquia agredida e ocupada sob a bandeira da «soberania limitada». A China, tratada por todos os nomes, tem de fazer face em 1969, a uma ameaça militar, convencional e nuclear. Aventureirismo no Terceiro Mundo. Bréjnev apoia o «socialismo» de Siad Barre na Somália, depois muda de campo e abraça os putchistas que acabam de realizar um golpe de Estado na Etiópia. Mengistu fabricará a partir de então «o socialismo» e Bréjnev arranjar-lhe-á as armas necessárias para intermináveis guerras internas. Encorajado e animado pela União Soviética, o Vietname enviará 200 mil homens para intervir nos assuntos internos do Cambodja: deixará aí o seu prestígio, o seu crédito político, a sua credibilidade e os seus recursos tão necessários para a reconstrução económica. Depois veio a expedição no Afeganistão. Centenas de milhares de mortos nas pacificações.

Parasitismo e esclerose em política interna. Hospitais psiquiátricos para os contestatários. Militarização da juventude. Um marxismo ritual que segrega o tédio.

Depois houve a estrela Gorbatchov

Neste deserto ideológico surgiu o camarada Gorbatchov. Passou como um furacão sobre um país em estado de letargia, sacudindo todas as consciências adormecidas.

Sob Bréjnev, é evidente, a União Soviética voava de vitória em vitória, avançando para um futuro cada vez mais radioso. Gorbatchov, por seu lado, está farto destas vitórias que não fazem senão aproximar a derrocada final. O triunfalismo, diz Gorbatchov, cria «um clima de quietude, de permissividade, de impunidade»(30) que corrompe toda a actividade do partido. É preciso que os comunistas cessem de «repisar lugares comuns», é preciso que avancem com «actos práticos», dêem provas de abertura de espírito e de modéstia e pratiquem a crítica e a autocrítica.(31) Contra a gabarolice de um Nikita Khruchov e a cegueira enfatuada de um Bréjnev, Gorbatchov quer um partido

«libertado do complexo de infalibilidade [que] observe com olho crítico os resultados obtidos».(32)

As litanias pseudomarxistas de Bréjnev zumbem aos ouvidos como uivos lúgubres dos ritos sagrados tibetanos. Gorbi está farto:

«A escolástica, o bizantinismo e o dogmatismo foram sempre entraves a um crescimento verdadeiro do saber. As únicas correntes científicas válidas são as que partem da prática e aí retornam, enriquecidas pelas sínteses profundas e pelas recomendações pertinentes.»(33)

Sob Bréjnev, a ideologia socialista já não era uma arma para os combates da vida, estava atrofiada, reduzida a um ritual esclerosado:

«Concepções simplificadas do comunismo, toda a espécie de predições e de julgamentos abstractos tiveram lugar de cidadania. Isso consumia por seu lado toda a importância histórica do socialismo, enfraquecia o impacto da ideologia socialista.»(34)

Alguns ideólogos soviéticos ocupavam-se de

«pesquisas escolásticas que não afectavam os interesses de quem quer que fosse.»(35) «As graves insuficiências na educação ideológica e política eram marcadas por campanhas aparatosas e pela celebração de numerosos aniversários.»(36)

Eis o que pensa Gorbatchov da ideologia invencível do imortal Leonid Bréjnev.

E como se traduz esta na política concreta?

«As tendências conservadoras, a inércia, o desejo de contornar tudo o que não cabe nos esquemas habituais, a recusa de resolver os problemas económicos e sociais prevaleceram quando se tratava de definir a política concreta e de agir concretamente. Os órgãos dirigentes do partido e do Estado tem a responsabilidade disto.»(37)

Já não há mobilização nem consciencialização das massas, a hora de Bréjnev parou no díptico comandar-obedecer.

«O estilo tecnocrático da “pressão administrativa” causou um grave prejuízo à causa do Partido».(38)

Pior:

«Durante longos anos, dirigentes que não asseguravam o cumprimento das tarefas designadas, estiveram aos comandos dos respectivos sectores [da economia].»(39)

Será de espantar que certos burocratas se tenham comportado como verdadeiros tiranetes?

«Certos camaradas começaram a considerar os órgãos eleitos como um fardo, causa de dificuldades e de servidões.»(40)

E Gorbatchov denuncia

«a intransigência de alguns dirigentes em relação às acções e reflexões independentes dos seus subalternos».(41)

Ora é impossível mobilizar as massas trabalhadoras para o combate consciente por um futuro socialista sem pôr em prática uma real democracia socialista.

«Sem ampla informação não pode haver democracia, criatividade política das massas, participação destas na gestão. É, por assim dizer, a condição para levar dezenas de milhões de operários, de kolkhozianos e de intelectuais a considerar as suas tarefas com atitude de homem de Estado e sentido de responsabilidade, é o ponto de partida de uma reforma psicológica dos nossos quadros.»(42)

As taras que florescem neste estrume do burocratismo e do autoritarismo têm por nomes: «receitas ilícitas», «prémios sem fundamento algum», «parasitismo», «procura de ganho por todos os meios», «desvios de fundos, desfalques falsificações de escritas», «fraudes, delapidações, peculato».(43)

E depois de haver feito o inventário de todas estas enfermidades ideológicas e políticas que menorizam o partido, Gorbatchov suspira:

«As causas dos problemas acumulados na sociedade são mais profundas que imaginamos».(44)

O apodrecimento neste sistema nervoso do socialismo, que constitui o trabalho político e ideológico, provocou a estagnação económica. Gorbatchov denuncia:

«a inércia, o imobilismo das formas e dos métodos de gestão, a redução do dinamismo no trabalho, o crescimento da burocracia, (...) [os] fenómenos de estagnação».(45)

A hora é a da

«reforma radical». «Ela consiste em submeter toda a nossa produção às necessidades sociais e à satisfação das necessidades da população; consiste em orientar a direcção para a elevação da eficácia e da qualidade no sentido da aceleração do progresso científico e técnico; consiste em elevar o interesse dos trabalhadores pelos resultados do seu trabalho, em promover a iniciativa e o espírito de empreendimento socialista em cada escalão da economia nacional.»(46)

A negligência nos domínios e cultural levou ao desinteresse, à indisciplina e ao parasitismo no seio dos trabalhadores. Para mobilizar e motivar de novo os soviéticos será necessário realizar programas sociais «nos mais breves prazos». Tornou-se imperioso resolver os problemas da alimentação, da qualidade das mercadorias e dos serviços; a assistência médica, a habitação e a protecção do ambiente devem ser melhoradas.(47)

Ousado, Gorbatchov proclama que a desordem interna foi acompanhada de estragos nas relações internacionais.

«A alteração não se impõe apenas internamente. É também o caso no que respeita às relações internacionais.»(48)

Foi nas relações com os outros países socialistas que despontou pela primeira vez o hegemonismo soviético, cujo perfil se entreviu na excomunhão da China e da Albânia. Arrogante, Nikita Khruchov anunciava aos quatro ventos que realizaria o comunismo em duas décadas e expulsava por heresia os partidos que não marchavam exactamente nos seus trilhos em direcção a esse futuro de sonho. Face a um país onde amadurecem crises políticas e económicas, Gorbatchov canta mais baixo.

«Hoje importa particularmente analisar, com exemplos de vários países e não apenas de um só, as características do modo de vida socialista, os processos de aperfeiçoamento da democracia, os métodos de trabalho, a política de quadros. A atitude atenciosa e respeitosa em relação à experiência de cada país, a sua aplicação prática, são uma reserva imensa para o mundo socialista.»(49)

É sabido que a ruptura entre os partidos chinês e soviético proveio da vontade exclusiva do Krémlin, para o qual uma China recalcitrante teria constituído um desafio permanente à sua vontade hegemónica. Gorbatchov foi levado a constatar «a imensa diversidade do movimento comunista». Anuncia uma reviravolta dilacerante na atitude para com a China.

«A diversidade do nosso movimento não é sinónimo de divisão. Tal como a unidade nada tem a ver com a uniformidade, a hierarquia, a ingerência de certos partidos nos assuntos de outros, a aspiração de um qualquer partido a monopolizar a verdade. O movimento comunista pode e deve ser forte na sua solidariedade de classe, na cooperação igual em direitos de todos os partidos irmãos em luta pelos seus objectivos comuns.»(50)

No que respeita ao futuro da revolução socialista na Europa ocidental, Gorbatchov mostra-se muito mais prudente que Nikita Khruchov.

«O futuro, a luta dos trabalhadores pelos seus direitos, pelo progresso social, mostrarão como se desenvolverá a contradição fundamental entre o trabalho e o capital, que conclusões serão tiradas da situação estabelecida.»(51)

Ler Gorbatchov e ler a CIA

Colocados diante de toda esta violência verbal contra um sistema julgado imutável há apenas três anos, devemos constatar que certas urdiduras de análise que pareciam perfeitamente operacionais para a era Bréjnev — capitalismo de Estado, social-fascismo, social-imperialismo, superpotência mais agressiva — não são mais apropriadas. Portanto, é preciso ler Gorbatchov. Ler Gorbatchov? Alguns de nós objectarão sem dúvida que o homem é tão-só Bréjnev remodelado e que ajudaremos a semear ilusões sobre um sistema irreversivelmente condenado. Responderemos que a recusa de estudar atentamente as reviravoltas que se produzem nesta potência gigante, que a obstinação em repetir as análises que já não servem, causarão perigos ainda maiores aos revolucionários. A reavaliação da análise da União Soviética tornou-se uma necessidade incontornável. A antiga análise comporta, claramente, lacunas e erros. Mas identificá-los não será nada fácil, impõe-se um esforço sustentado de reflexão, estudo e análise.

Um elemento a ter em conta no decurso da nossa reflexão é a escalada da guerra ideológica que o Ocidente leva a cabo. No seguimento das mudanças positivas que se produzem na União Soviética, os serviços de propaganda americanos ficaram numa situação bastante desconfortável. O famoso «homem da rua» que povoa as nossas cidades e que não mostra qualquer interesse pelo socialismo, tem mesmo assim a impressão de que a União Soviética está a mexer, que as coisas por lá melhoram. Ora, para todos os especialistas encartados do anticomunismo, a URSS continuará a ser o inferno enquanto aí perdurar um partido comunista e a ideologia marxista-leninista. Os profissionais da guerra fria reajustaram o tiro na nossa imprensa «livre». O Vif-Express de 15-22 de Maio de 1987 dá-nos belas amostras deste anticomunismo da última moda. Títulos chamativos, primeiro:

«A ilusão Gorbatchov — a reforma impossível».(52)

Explicação proveitosa das mudanças em curso:

«Gorbatchov tenta modernizar o seu império» cujas estruturas foram «moldadas por 70 anos de pesado conservadorismo».(53)

Entra em cena o terrível neo-stalinista

«Egor Ligatchov, número dois do regime, cuja reputação de guardião da ortodoxia já está feita».(54)

Em resumo, o império do mal continua impenetrável a qualquer mudança efectiva. É tranquilizante. Amanhã, os cavaleiros da guerra fria não vão perder o objecto do seu ódio sagrado. E, de qualquer modo, todos os caminhos do anticomunismo vão dar a Roma-Apocalipso. Se a URSS, contra toda a previsão científica, conhecer mesmo assim uma reforma autêntica, haverá ainda ocasião de celebrar...

«Impossível tocar no que quer que seja neste sistema, sem atingir rapidamente os fundamentos essenciais.»(55)

Sem mudança, continuará o inferno; reforma tímida e todo o sistema vai abaixo. Seja lá como for, o Ocidente esmagará o comunismo. E por aí fora: todo um «dossier especial» de trinta e quatro páginas cheias.

Um tão belo dossier deve ser enquadrado por editorialistas de renome. Vladimir Bukóvski e Alain Besançon empunham a caneta.(56)

«O perigo de guerra provém da natureza deste regime que não admite a nossa existência».

É portanto como pacifistas que estes senhores trabalham para «a decomposição do conjunto político URSS». Pacifistas? É dizer pouco de tão boas pessoas. Descolonizadores! E ei-los lançados:

«Descolonizadores, não vemos nenhuma legitimidade no conjunto imperial soviético».

Agora, as mais loucas esperanças são permitidas. Nenhum preço será demasiado. É para a nossa paz que troam os canhões! Aliás: «Assistimos já ao desaparecimento de um outro regime totalitário, o nazismo».

Muitos comunistas, partidários da teoria da restauração do capitalismo na URSS, andaram longo tempo de braço dado com todos estes energúmenos do anticomunismo.

Alguns, citaram Mikhail Voslenski para apoiar as suas afirmações de que a «nomenklatura» constituía, já no tempo de Stáline, uma «nova grande burguesia». Em bicos de pés, anunciaram com modéstia que pretendiam somente «examinar atentamente os factos apresentados e as críticas formuladas por Voslenski para aí encontrarem a parte da verdade». É através de equívocos deste género que militantes de esquerda escorregaram progressivamente para o regaço da direita. Lénine tinha o hábito de dizer que um partido revolucionário deve depurar-se, a intervalos regulares, dos seus elementos oportunistas incorrigíveis. Isso pode encontrar-se em Que fazer?. E para nos informarmos sobre o personagem Voslenski, olhemos a sua análise dessa obra capital de Lénine.

Este livro, começa Voslenski,

«era a obrigação de transformar o marxismo em dogma e de renunciar à livre crítica do pensamento marxista». Lénine congelou o marxismo «num dogma infalível que não suporta nenhuma crítica».

O seu objectivo era o de

«transformar o movimento operário num apêndice menor do partido».

Segundo Lénine, diz Voslenski, o sindicalismo estreito era uma traição aos interesses de classe dos trabalhadores.

«Onde está a traição? Ela estaria sim do lado destes intelectuais que vão tomar o poder. No interesse de quem? Do seu ou dos trabalhadores?»

A organização é

«uma espécie de máfia revolucionária em que a democracia será considerada como um acessório superficial e onde tudo repousará sobre a conspiração e sobre a confiança recíproca. O mafioso julgado indigno pela organização — quer dizer, pela direcção — é passível de morte.» «Nem o partido leninista nem o seu núcleo foram jamais a vanguarda nem uma simples parte da classe operária.» «Se a revolução que ele preparava fosse vitoriosa, esse pequeno grupo tornar-se-ia automaticamente uma organização de dirigentes profissionais. Foi assim que Lénine criou o embrião de uma nova classe dirigente.»(57)

Esta análise da «nova grande burguesia soviética» não difere em nada das «reflexões» sobre o partido bolchevique feitas, na época, por Hitler, Pétain ou Pio XII.

Na mesma ordem de ideias, a teoria do «aparelho da gestão da produção», que segundo Serguei Andréiev constitui uma nova classe de exploradores é apenas a retoma da teoria original de James Burnham. Alguns meses após a sua ruptura, em 1940, com o patrão, Trótski, Burnham publicou um livro sobre «a teoria da revolução directorial». Eis as explicações:

«Os directores exercerão o seu controlo sobre os instrumentos de produção e obterão um direito preferencial na distribuição dos produtos, não directamente, enquanto indivíduos, mas pelo seu controlo do Estado, que será o proprietário dos instrumentos de produção. O Estado será, pode-se dizer, a “propriedade” dos directores. Não faltará nada para fazer desaparecer a classe dirigente».(58)

Conclusão do futuro ideólogo-em-chefe da CIA:

«O laço histórico entre o comunismo e o fascismo é hoje mais nitidamente perceptível do que há 15 anos. A diversidade das suas origens mascarava a identidade da sua direcção. Eles despojaram-se, um após outro, das suas diferenças e aproximam-se de uma norma comum.»(59)

Toda a nova direita francesa, do tipo «antigos maoístas, novos filósofos», partiu da análise da restauração do capitalismo sob Nikita Khruchov, para em seguida descobrir que as «bases» tinham sido foram já edificadas sob Stáline. Partindo da vontade ostentada de «aprofundar certas críticas a Stáline feitas pelos chineses, para melhor combater o revisionismo», não tardaram em voltar ao anticomunismo de antanho. Temos de reflectir sobre as teses que constituíram a ponte entre um esquerdismo espaventoso e o liberalismo militante.

A possibilidade de uma evolução positiva

A necessidade de reavaliar as nossas análises da União Soviética parte também da situação complexa criada no seio do movimento comunista internacional.

Há organizações comunistas «anti-soviéticas» que, semana após semana, estigmatizaram factos e actos incompatíveis com o marxismo-leninismo, pendurados no pelourinho como outras tantas provas da restauração do capitalismo. Hoje, esses mesmos factos e actos são denunciados pela sua incompatibilidade com a moral comunista pelos que, logicamente, deveriam ocupar as funções de «principais responsáveis irremediavelmente empenhados na via capitalista». Problema. Para mais, o Partido Comunista da China, que vociferou particularmente contra a restauração capitalista na URSS, «reviu» o essencial das suas críticas. É portanto necessário dar um desconto, fazer um balanço das afirmações e contra-informações, das lutas e das reviravoltas.

Por outro lado, há organizações comunistas «pró-soviéticas» que, durante longos anos, pintaram com as mais belas cores fenômenos... que hoje se revelam como chagas fétidas. As críticas mortíferas que Gorbatchov dirige aos seus antecessores semeiam a perturbação em bom número destas organizações comunistas e tornam os seus membros disponíveis para uma revisão do passado. É aconselhável procurar, nas novas orientações de Gorbatchov, um terreno comum para o debate.

Reavaliar a nossa análise da União Soviética, é reabrir um debate sobre questões que nos pareciam há pouco como entendidas. Reavaliar é encarar a hipóteses de que as bases económicas e o coração das estruturas políticas são ainda socialistas apesar do efeito corrosivo do revisionismo dominante na direcção. Reavaliar é pesar a possibilidade de uma evolução positiva, de um renascimento marxista-leninista.

E se as declarações de Gorbatchov que reportámos não fossem senão palavras deitadas ao vento? Qualquer mudança na União Soviética deverá, de qualquer modo, começar por palavras e ideias. E manifestamente, numerosas perturbações concretas se produzem já na URSS, no meio de confrontos, muitas vezes ásperos, com o imobilismo burocrático ambiente.

Mas e se as palavras de Gorbatchov fossem o novo Evangelho? Então poderíamos fechar a loja porque não vendemos dessa água benta. O nosso amigo, o combatente da causa afegã, que já apresentámos ao nosso leitor, apenas teve a revelação do espírito gorbatchoviano, logo correu a abjurar todos os deuses dos seus antepassados. Então é necessário precisar: se lemos Gorbatchov, não é para apagar tudo o que vimos, lemos e compreendemos no passado. Se certas extrapolações teóricas sobre o período Bréjnev — capitalismo de Estado, superpotência mais perigosa — não se mantêm, a maior parte dos fenómenos negativos em política interna e externa que registámos e que serviram de matéria-prima à nossa análise, persistem como factos estabelecidos. A maior parte das nossas críticas dos períodos Nikita Khruchov e Bréjnev continuam de pé. Mas certo número de tendências que vemos hoje surgir à superfície haviam-nos escapado. É preciso integrar as constatações e conclusões do passado que se confirmam, e os factos novos que registamos sob Gorbatchov. Com esta matéria prima devemos reconstruir o quadro da nossa análise. Que teses devemos manter, quais corrigir, que ideias novas encontrarão o seu lugar numa teoria coerente sobre a sociedade soviética? Não poderemos dizê-lo senão após um trabalho de estudo e de reflexão aprofundado. É como marxistas que devemos investigar junto dos partidos comunistas dos países que se reclamam do socialismo. Durante muito tempo, por apriorismo, fechámos um olho para não ver senão as provas da restauração. Mas não pensem ouvir agora o discurso de um apriorismo inverso. Tendo na cabeça a nossa própria compreensão do marxismo-leninismo, devemos fazer investigações, pesquisas e estudos com espírito aberto e sem nos sentirmos presos pela obsessão de termos de proferir, em futuro próximo, verdades definitivas sobre todos os problemas fundamentais levantados na União Soviética. Duas questões estão no centro do debate. Qual é a natureza específica da União Soviética e dos países de Leste? Quais as suas possibilidades de mudança no sentido de uma nova compreensão revolucionária do marxismo-leninismo? Será necessário adoptar um estilo materialista e científico, fazer o esforço de englobar todos os aspectos da história e da realidade actual destes países e utilizar o marxismo-leninismo como bússola. A discussão prosseguirá sem dúvida durante alguns anos. Não iremos antecipar conclusões, e devem ser encaradas hipóteses contraditórias.


Notas de rodapé:

(1) Tonkikh A.V., coronel, «Overcoming antitank Défense ministry of défense USSR», traduzido em Stratégie Review, Inverno de 1980, p. 83. (retornar ao texto)

(2) Kerenski Alexandre, La Russie au tournant de lhistoire, Ed. Plon, p. 592. (retornar ao texto)

(3) Idem, ibidem, p. 629-653. (retornar ao texto)

(4) Burbank Jane, Intelligentsia andRévolution 1917-1922, Oxford Univ. Press, 1986, p. 13. (retornar ao texto)

(5) Idem, ibidem, p. 42 e 44. (retornar ao texto)

(6) Idem, ibidem, p. 36 (retornar ao texto)

(7) Ryckmans P., Etapes et Jalons, discurso de 5 de Julho 1946, p. 205-206. (retornar ao texto)

(8) Elleinstein Jean, Histoire de l'URSS, tomo 2, p. 218 e 221. (retornar ao texto)

(9) Idem, ibidem, p. 226. (retornar ao texto)

(10) De Man, Henri, Après coup, Ed. de la Toison d'Or, p. 319. (retornar ao texto)

(11) «Discurso na assembleia de eleitores do círculo eleitoral de Stáline da cidade de Moscovo», 9 de Fevereiro de 1946, I.V. Stáline, Obras, Izdátelstvo Pissátel, Moscovo 1997, tomo 16, pp. 6-13. (N. Ed.) (retornar ao texto)

(12) Trotski L., Programme de Transition (1938), brochura publicada em França, Agosto de 1946, p. 6. (retornar ao texto)

(13) Idem, ibidem, p. 33. (retornar ao texto)

(14) Idem, ibidem, p. 32. (retornar ao texto)

(15) Deutscher I., Trotsky, le prophète hors-la-loi, Ed. 10-18, tomo VI, p. 568. (retornar ao texto)

(16) Burnham James, L’Ere des organisateurs, Ed. Calmann-Lévy, p. 248 e 258 (retornar ao texto)

(17) Khrouchtchev, Le rapport secret, Ed. Sociales, p. 200. (retornar ao texto)

(18) Vers le communisme, Recueil des documents du XXIIe congrès du PCUS, Moscovo, 1961, p. 85. (retornar ao texto)

(19) Idem, ibidem, p. 459. (retornar ao texto)

(20) Idem, ibidem, p. 546 e 221. (retornar ao texto)

(21) Idem, ibidem, p. 546. (retornar ao texto)

(22) Idem, ibidem, p. 546. (retornar ao texto)

(23) Idem, Kozlov, relatório sobre as alterações aos Estatutos do PCUS. (retornar ao texto)

(24) Ibidem, p. 623. (retornar ao texto)

(25) Joukov G., Mémoires, Ed. Fayard, 1970. (retornar ao texto)

(26) Vers le communisme, Recueil des documents du XXIIe congrès du PCUS, Moscovo, 1961, p. 499. (retornar ao texto)

(27) Rapport au XXe congrès, 14 fév. 1956, éd. en langues étrangères, Moscou, 1956, p. 35. (retornar ao texto)

(28) Débat sur la ligne générale, Ed. en langues étrangères, Pequim, 1965, p. 451. (retornar ao texto)

(29) Vers le communisme, Recueil des documents du XXIIe congrès du PCUS, Moscovo, 1961, p. 452. (retornar ao texto)

(30) Gorbatchev, Rapportpolitique au XXVIIe Congrès du Parti, Ed. Novosti, 1986, p. 103. (retornar ao texto)

(31) Idem, ibidem, p. 101. (retornar ao texto)

(32) Idem, ibidem, p. 100. (retornar ao texto)

(33) Idem, ibidem, p. 109. (retornar ao texto)

(34) Idem, ibidem, p. 4. (retornar ao texto)

(35) Gorbatchev, La réorganisation et la politique des cadres du PCUS, discurso de 27 de Janeiro de 1987, Supplément Etudes Soviétiques, Fevereiro de 1987, n.° 467, p. 6. (retornar ao texto)

(36) Idem, ibidem, p. 8. (retornar ao texto)

(37) Idem, ibidem, p. 5. (retornar ao texto)

(38) Idem, ibidem, p. 30 (retornar ao texto)

(39) Idem, ibidem, p. 32 (retornar ao texto)

(40) Idem, ibidem, p. 33 (retornar ao texto)

(41) Idem, ibidem, p. 32 (retornar ao texto)

(42) Gorbatchev, Rapport politique au XXVIIe Congrès du Parti, ed. cit., p. 70 e 77. (retornar ao texto)

(43) Idem, ibidem, pp. 57, 58, 59 e 104. (retornar ao texto)

(44) Gorbatchev, La réorganisation et la politique des cadres du PCUS, ed. cit., p. 4. (retornar ao texto)

(45) Gorbatchev, Rapport politique au XXVIIe Congrès du Parti, ed. cit., p.4. (retornar ao texto)

(46) Idem, ibidem, p. 42. (retornar ao texto)

(47) Idem, ibidem, p. 30. (retornar ao texto)

(48) Idem, ibidem, p. 5. (retornar ao texto)

(49) Idem, ibidem, p. 93. (retornar ao texto)

(50) Idem, ibidem, p. 95. (retornar ao texto)

(51) Idem, ibidem, p. 17. (retornar ao texto)

(52) Le Vif-L'Express, 15-21 mai 1987, p. 72 et 95. (retornar ao texto)

(53) Idem, ibidem, p. 73. (retornar ao texto)

(54) Idem, ibidem, p. 80. (retornar ao texto)

(55) Idem, ibidem, p. 76. (retornar ao texto)

(56) Idem, ibidem, p. 103. (retornar ao texto)

(57) Voslenski Michail, La nomenklatura, Livre de Poche, pp. 51-63. (retornar ao texto)

(58) Burnham James, L'ère des organisateurs, éd. Calmann-Lévy, 1947, p. 79. (retornar ao texto)

(59) Idem, Ibidem, p. 191. (retornar ao texto)

Inclusão 29/01/2013
Última atualização 14/04/2014