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Fonte: Transcrito do sítio da Revista Marxismo Revolucionário Atual.
Transcrição e HTML de: Fernando A. S. Araújo, dezembro 2005.
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À luz dos acontecimentos em curso na Europa do Leste e da crise do estalinismo, são numerosos os que, sob o pretexto de "realismo", querem enterrar o comunismo e abafar toda esperança de mudança revolucionária. É a vontade que transpira das diferentes operações mediatizadas do tipo "o fim do comunismo" e " viva o capitalismo".
Mas essas odes à "modernidade" não podem sufocar a luta de classes. Esta não é o fruto de uma maquinação qualquer, ela resulta do antagonismo que existe entre os interesses dos "do alto" e dos de "baixo" e se levantará sempre sobre o caminho dos opressores.
O comunismo não é o produto da revolução de Outubro ou da revolução cubana. Ele nasceu como corrente no seio do próprio movimento operário contra o regime capitalista. A primeira organização comunista, a Sociedade dos Iguais de Gracchus Babeuf, data de 1796 e não de 1917. O Manifesto Comunista foi publicado em 1848 e não em 1959.
Não se pode tratar do futuro do comunismo se referindo exclusivamente ou principalmente aos acontecimentos em curso na URSS, na Europa do Leste e na China. É preciso se referir igualmente ao que se passa e se passará nos países capitalistas, tanto nas metrópoles imperialistas como no terceiro-mundo.
A luta de classe do proletariado moderno ou do seu antepassado imediato, o "quarto estado", não é o produto de uma "doutrina" qualquer ou de um esforço qualquer de agitadores subversivos e ocultos chefes de orquestra para introduzir a questão social do "exterior do movimento". Essas lutas de classe resultam do antagonismo de interesses inevitáveis e incompatíveis nas condições econômicas e sociais dadas.
É a prática da luta de classes que leva à doutrina da luta de classes, e não o inverso. Hitler espumava de raiva falando da doutrina "marxista judaizada" da luta de classes. Mas ao suprimir os sindicatos e todas as organizações operárias, proclamando os patrões como sendo os únicos mestres a bordo das companhias em nome do "principio do chefe" (Fuhrerprinzip), ele colocou em prática uma luta de classe implacável e terrorista contra os assalariados e em favor dos capitalistas.
A senhora Thatcher detesta sinceramente a doutrina da luta de classe. Mas ela pratica a luta de classes tal como respira, 24/24 horas, pois seus métodos são mais violentos que os de Hitler.
As verdadeiras forças desestabilizadoras não são os agitadores, partidários da revolução, são os fechamentos de empresas, os despedimentos dos trabalhadores, a aceleração da cadência de trabalho, as baixas de salários periódicas, o crescimento da desigualdade social, a miséria do terceiro-mundo, as 16 milhões de crianças que morrem de fome e de doenças curáveis cada ano, a recusa de um mínimo de dignidade e de direitos elementares a centenas de milhões de seres humanos. As forças sociais que agem nesse sentido não o fazem por malvadez ou cegueira inata. Elas fazem-no por que a lógica implacável da sociedade capitalista leva-os a agir dessa maneira, sob pena de perder suas fortunas e possibilidades de as aumentar, quer dizer, de acumular capital.
Eis por que haverá luta de classes proletária enquanto o capitalismo subsistir. Eis por que esta luta de classes libertará sempre uma corrente política que não se contentará em lutar por reivindicações imediatas, mas procurará também combinar tais lutas com o esforço para substituir o capitalismo por uma sociedade mais humana. Eis por que o futuro do comunismo está assegurado enquanto subsistir o capitalismo.
Além disso, sobre o capitalismo paira uma maldição à qual não pode escapar. Não somente suas contradições internas tendem periodicamente a se exacerbar e levar a crises explosivas de toda a espécie, mas sobretudo ele pode crescer e desenvolver sem crescer e a desenvolver também o proletariado, quer dizer, seu próprio coveiro potencial. A força crescente desse proletariado, que resulta do desenvolvimento do próprio capitalismo, funda o futuro do comunismo. Há hoje muito mais salariados por esse mundo a fora que no passado.
O comunismo é uma corrente especifica do movimento operário que visa uma mudança radical da sociedade: o aparecimento de uma sociedade sem classes. Desde então, seu futuro depende antes de tudo da resposta a duas questões: há no seio da sociedade burguesa uma força social capaz de realizar semelhante transformação? Esta força social se compromete, pelo menos periodicamente, nesta via?
Com efeito, o proletariado moderno representa tal força. Ele se distingue de todas as outras classes da sociedade burguesa e pré-capitalista pelo fato de ter precisamente essas duas qualidades. Ele as adquire progressivamente pelo fato mesmo devido à sua situação no seio do capitalismo e das reações que esta suscita nas suas fileiras.
Não há nesta constatação nenhuma idealização do proletariado, nem nenhuma interpretação abusiva das suas aspirações ou lutas correntes.
A classe operária moderna [1] não é espontaneamente nem instintivamente comunista. Suas aspirações e suas lutas correntes visam em geral objectivos imediatos, o que não significa que elas sejam sempre exclusivamente ou mesmo principalmente econômicas [2]. Muitas vezes, elas não visam uma mudança radical da sociedade.
Mas elas se distinguem das aspirações e lutas de todas as outras classes sociais pela sua capacidade de organização e ações coletivas crescentes. A experiência ensina sempre aos assalariados que confrontando os burgueses como indivíduos eles serão invariavelmente derrotados, esmagados. É pela ação coletiva que eles têm a possibilidade de sucesso na defesa de seus próprios interesses.
Esta tendência instintiva do proletariado moderno pela ação e organização coletivas inculca-lhe pouco a pouco capacidades espectaculares de cooperação e de solidariedade que se opõem diametralmente aos "valores" burgueses do egoísmo e da "luta de todos contra todos".
O regime de propriedade e de enriquecimento privados funda-se na concorrência feroz: os fracos esmagam os fracos. A luta operária suscita a supressão gradual da concorrência no seio do proletariado: os fortes se batem para melhorar a sorte dos fracos.
Assim se desenvolve uma mentalidade e regras de comportamento diametralmente opostas às da burguesia. Marx sucintamente resumiu esta evolução ao falar da "economia política do proletariado" que se opõe diametralmente à "economia política da burguesia".
Trata-se somente de uma tendência histórica de forma alguma permanente ou retilínea. Ela é frequentemente parada e derrubada pelas tendências opostas. Ela se realiza mais facilmente ao nível de uma empresa que em um ramo de indústria, ao nível de um ramo de indústria que ao nível nacional, entre assalariados masculinos que entre homens e mulheres, em nível nacional que em nível internacional.
Os sucessos obtidos reforçam-na geralmente, mas nem sempre. Graves derrotas o enfraquecem. Mas a tendência "secular" vai no sentido do reforço e não do enfraquecimento da organização, da cooperação e da solidariedade entre assalariados. Comparemos a força numérica dos sindicatos — digamos em 1850, em 1990, em 1950 ou em 1990 — a amplitude de suas ações, incluindo as greves gerais, para nos apercebermos que à escala mundial, com algumas exceções, a tendência ascendente se mantém.
Ora, o socialismo implica precisamente a reconstrução da sociedade na base da cooperação e da solidariedade livremente aceitas, não impostas pela obrigação vinda donde quer que seja, qualidades que o proletariado adquire no seio das suas próprias organizações. Ele se identifica com a regra dos "produtores livremente associados", para retomar outra formula de Marx.
O proletariado junta a essas qualidades, que lhe inculca a sociedade burguesa, a força económica e social potencial de realizar esta reconstrução. Ele é capaz de parar de uma só vez todos os mecanismos da produção e da distribuição. É ele, e somente ele, que produz as riquezas [3].
O potencial não foi reduzido, mas aumentou com a terceira revolução industrial. Com efeito, os salariados do setor da energia, das telecomunicações, da eletricidade, dos bancos, do ensino, da saúde, constituem hoje cada vez mais um dos principais pilares do movimento sindical, ao mesmo tempo em que os assalariados do setor publico no seu conjunto.
Sua reação é muitas vezes mais efetiva que a dos assalariados das minas, da siderurgia, do automóvel ou da construção mecânica para paralisar a economia capitalista. Periodicamente, o que não significa constantemente, nem por todo o lado ao mesmo tempo, todos os dez anos, todos os vinte anos, em tal ou tal país ou grupo de países, o proletariado conduz greves de massas, sejam greves espontâneas, ou greves de massas activas, no decurso das quais os assalariados retomam a produção sob a sua própria direção.
Desde da revolução de Outubro 1917, esta forma de luta de classe proletária se manifestou sucessivamente na Rússia, na Finlândia, no Estado espanhol, ou na Bélgica, na Tchecoslováquia, na Alemanha, na Itália, na França, em vários países da América do Sul, sobretudo na Argentina, Chile, Bolívia, na Hungria, em 1956, de novo na Itália, na França, na Bélgica, em Portugal e na Polônia. Ela surge, mesmo de forma embrionária, das greves que se desenvolvem presentemente na URSS. Amanhã, ela aparecerá sem dúvida em vários países da Europa do Leste.
Levada ao seu ponto final, a greve de massas ativa afronta a autoridade do capital tanto ao nível das empresas quanto ao nível do Estado. Ela põe a questão do poder: quem decide? Quem governa? A burguesia (a Leste: a burocracia) ou o proletariado? Ela exprime assim o avanço instintivo dos assalariados para reconstruir a sociedade sobre novas bases.
O futuro do comunismo está firmemente ancorado nesse avanço. Como ele se manifestou regularmente há mais de setenta anos, como as causas que o suscitam subsistem inteiramente [4], não há nenhuma razão em supor que ele não se manifestará nos anos e décadas futuras.
O comunismo e o socialismo revolucionário não são sobretudo nem um projeto, nem uma teoria, nem uma doutrina. Eles são principalmente o movimento real de emancipação das classes trabalhadoras, que vai objetivamente no sentido da criação de uma sociedade sem classes. Mas eles são também um projeto consciente, portanto uma teoria que torna o movimento elementar de classe mais consciente dele próprio. A criação de uma sociedade sem classes pressupõe, com efeito, um esforço consciente da grande maioria dos assalariados e de seus aliados.
Ela se identifica também com a tentativa de submeter a vida social e económica ao controle consciente do género humano. Tal controle consciente é impossível sem uma teoria sobre o objetivo a atingir e os meios de lá chegar.
É por este motivo que toda essa barulheira sobre o "fim do comunismo" não é simplesmente uma mistificação, mas comporta um problema real. No seguimento da propaganda mentirosa das burocracias estalinistas e comunistas dos países capitalistas e da burguesia internacional com fins próprios, o projeto comunista foi identificado aos olhos do proletariado internacional e de uma boa parte da opinião pública internacional em geral com um pretenso "socialismo realmente existente" na URSS, na Europa do Leste, na China, na Coréia do Norte e noutros lugares.
Como a crise de todas essas sociedades explode hoje à vista de todos — das ideologias burguesas, sociais democratas e neo-sociais democratas nos países pós-capitalistas — podem, a partir desta crise incontestável, proclamar a falência do comunismo, a falência do marxismo.
De um ponto de vista objetivo e científico, podemos facilmente refutar essa trapaça. O que faliu na URSS e noutros lugares foi o stalinismo e não o comunismo, nem o leninismo, nem o marxismo. O stalinismo é um produto da contra-revolução, não da revolução. O estalinismo só conseguiu triunfar exterminando fisicamente o partido de Lênin, esmagando 90% das suas teorias, sem falar das de Marx.
O fato de os déspotas como Stalin e seus sucessores se referirem ainda formalmente a Lênin e Marx [5] não justifica de forma nenhuma sua identificação com os arautos da emancipação. Como o fato do déspota Bonaparte se referir ainda à revolução francesa não justifica a tentativa de tornar os autores da revolução francesa e da Declaração dos Direitos do Homem, ou ainda os jacobinos, em responsáveis pela corrupção termidoriana, pelo Terror branco, pela supressão das liberdades democráticas e por centenas de milhares de vitimas das guerras napoleônicas. Ninguém de boa fé pode pretender, se apoiando em textos e ações, que a prática de Stalin, do estalinismo e do pós-stalinismo, assim como as ideologias que as procuram justificar, resulta da doutrina de Marx.
O que está em crise na URSS, na Europa do Leste, na China e noutros lugares não é a planificação socialista, impossível sem democracia socialista, sem pluralismo político, sem exercício do poder pela massa dos produtores. O que está em crise é a planificação burocrática, pela burocracia e para a burocracia, marcada pelas enormes desproporções acumuladas (e, portanto pela não-planificação), pelo desperdício enorme, por uma hipertrofia das despesas improdutivas, pela redução das despesas sociais da coluna das despesas residuais, pelo abafamento da iniciativa criadora e do sentido de responsabilidade dos produtores.
Mas essa crise se produz no quadro de sociedades profundamente modernizadas, enquanto que elas eram outrora subdesenvolvidas. Ela se combina com um aumento geral do nível de qualificação e de cultura. Isso torna tanto mais intolerável o despotismo burocrático, criando também melhores condições para o ultrapassar.
Porém, o comportamento e a mentalidade das massas trabalhadoras não dependem dos conhecimentos científicos, mas da experiência de vida e de luta, refletidas pelas influências ideológicas, políticas e lealdades organizacionais. Não há massas virgens de influências desta natureza. É por isso que a imagem que tinham as massas, à escala internacional, de uma URSS em vias de realizar o projeto socialista se volta hoje contra o comunismo.
Essa imagem correspondia, de certa forma, à realidade durante vários anos no período de 1917-1923. Ela manteve uma base real, mas que se restringia a olho nu, durante o período de 1923-1927. Ela correspondia a uma falsa percepção da realidade a partir da consolidação da ditadura stalinista [6]. A parte do proletariado internacional influenciada por esta visão errada acabou por tomar consciência do desastre que representa o stalinismo.
Mas ela fê-lo com atraso, em grande parte a partir das experiências de 1956 (Hungria) e de 1968 (Tchecoslováquia). A tese segundo a qual o desencantamento das massas em relação à realidade soviética seria o produto da propaganda imperialista — seja das revelações de Kruschev ou da dinâmica de democratização desencadeada por Gorbatchev — não tem nenhum fundamento real. A propaganda anticomunista foi muito mais virulenta durante os anos que se seguiram à revolução de Outubro. Ao contrário, nessa época, ela não teve nenhum efeito maior entre os assalariados avançados.
A rejeição atual ao "modelo soviético" por parte destes assalariados é o produto não da propaganda mentirosa, mas da tomada de consciência de uma triste realidade. Esta tomada de consciência é refletida por uma falsa identificação, como foi ontem a atitude acritica em relação à URSS, à China, etc. Ontem, dizia-se "sim" ao estalinismo, porque ele se identificava abusivamente com o comunismo. Hoje, se diz "não" ao comunismo, porque ele se identifica não menos abusivamente com o stalinismo.
Esta falsa identificação não eliminará a marcha real para o socialismo, que o doutrinamento stalinista e o bando burocrático não puderam sufocar ontem. Mas, por agora, ela abranda forçosamente o ritmo.
O cepticismo suscitado pela falência do estalinismo se conjuga com o cepticismo resultante da integração dos reformistas sociais democratas e neo-sociais democratas na sociedade burguesa. Esta integração se tornou manifesta aos olhos da imensa maioria dos assalariados, incluindo aqueles que votam na social democracia. Esses votos são votos de "mal menor", e não a expressão de uma ilusão de que os partidos socialistas procurariam abolir o capitalismo pela via das reformas.
As direções dos partidos sociais democratas proclamaram todas, sem excepção, seu interesse em reformar o capitalismo, e não em o suprimir. A maior parte deles codificou essa resolução em seus programas. A prática dos PS no decurso da depressão atual foi de apoiar completamente a política de austeridade às custas dos assalariados, a favor da recuperação da massa e das taxas de lucro.
Esse duplo desencantamento se revela em um questionamento de todo projeto radical e fundamental da sociedade, como projeto realista. Na medida em que um modelo alternativo de sociedade, rejeitando ao mesmo tempo o despotismo burocrático e o despotismo do mercado capitalista, não existe ainda na vida real, a propaganda sistemática pelos marxistas revolucionários e por outras correntes do movimento operário a favor de um modelo, por mais indispensável que ela seja, e qualquer que sejam os progressos que ela realize no seio da vanguarda, não é suficiente para ultrapassar o ceticismo das largas massas.
Por consequência, hoje se torna cada vez mais difícil do que nas décadas precedentes fundar as lutas na contestação do conjunto da sociedade capitalista.
O movimento real da história suscita tendências que permitirão pouco a pouco ultrapassar esse novo obstáculo na via do socialismo. Primeiro, em uma série de países, já surgiu no decurso dos últimos anos um movimento operário novo, nascido do acordar de uma nova classe operária relativamente jovem, sobre a qual não pesa nem a linguagem do estalinismo, nem a do reformismo tradicional. Esse movimento operário não está marcado pelo sentimento da derrota histórica e o cepticismo que caracterizam tanto os setores do velho movimento operário. Ele se orienta ou se orientará na via da contestação do conjunto da sociedade burguesa.
É o caso do Brasil, da África do Sul, da Coréia do Sul. É possível que o mesmo fenómeno se reproduza pelo menos no México, na Índia, no Paquistão, na Nigéria, no Egito, ou mesmo nos Estados-Unidos.
Numa série de países onde o movimento operário está ainda sob o domínio dos aparelhos burocráticos tradicionais, uma fração crescente do movimento sindical se liberta progressivamente deste controle. Ela visa objetivos maiores, sob a pressão das condições objectivas. Se a influência das correntes socialistas revolucionárias aumentar nas suas fileiras, o projeto socialista ganhará progressivamente uma credibilidade de massa.
Isso não deixa de provocar uma maior diferenciação no seio dos partidos de massas tradicionais, sobretudo se as forças da vanguarda aplicam corretamente a política da frente única, com o desenvolvimento de um movimento de massas já emancipado parcialmente do controle dos aparelhos tradicionais.
Aliás, é possível que a recomposição do movimento operário e a construção de uma nova vanguarda revolucionária ultrapasse um limiar tradicional, uma ou várias crises revolucionárias nos países capitalistas importantes tendo por saídas situações de dualidade de poder, mesmo após uma vitória revolucionária. Isso tornará o socialismo credível, aceitável, entusiasta para o proletariado internacional.
Finalmente, o desenvolvimento do movimento de massa em RDA e em Tchecoslováquia, e o crescimento real, ainda que lento, do movimento de massa na URSS e nos países da Europa do Leste podem resultar, num futuro próximo, na vitória da revolução política. Realizada sobre uma base material e cultural muito mais elevada que a da Rússia de 1917, ou da Europa do Leste de 1945, sem falar da China de 1949, ela ganharia rapidamente as massas trabalhadoras do mundo com um modelo de sociedade mais livre, mais justa e mais igualitária do que o capitalismo mais desenvolvido.
A crise de credibilidade do projeto socialista seria assim definitivamente ultrapassada. É assim que surge a natureza contraditória desta crise de credibilidade. Ela resulta da falência irremediável do estalinismo e do pós-stalinismo, de toda tentativa de impor às massas os projetos políticos sem seu livre consentimento majoritário. Mas ela resulta não somente na rejeição resoluta de todo "verticalismo". Ela integra também uma dimensão antiburocrática poderosa e durável na consciência de classe elementar de uma grande maioria do proletariado. Essa rejeição da manipulação burocrática liberta e libertará forças colossais, que podem se orientar em uma ação emancipadora contestando a sociedade burguesa no seu conjunto.
Todo esse processo contraditório traduz historicamente a capacidade de autocrítica e auto-retificadora das revoluções proletárias, que Marx já tinha indicado no Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte. Ele assegura, também, o futuro do comunismo. Melhor, ela implica a possibilidade, mesmo a probabilidade, da vitória.
Mas com uma condição: que os comunistas/socialistas revolucionários se libertem definitivamente de qualquer teoria e de qualquer prática substitutiva, paternalista, autoritária em relação ao movimento de emancipação dos assalariados, sem, no entanto cair na espontaneidade.
Precisamente por que o nível de consciência média do proletariado não está orientado numa mudança radical da sociedade, algo possível numa situação revolucionária, a organização separada de todos os que lutam de maneira permanente nesse sentido é indispensável. A construção dos partidos revolucionários de massa e de uma internacional revolucionária de massa é hoje tão necessária como em 1919. A Quarta Internacional é somente um dos núcleos dessa futura internacional de massa. Mas ela é a única que defende os interesses dos trabalhadores nos três setores da realidade mundial, sem subordinar nenhuma dessas frações à outra. A construção da IVa Internacional continua a ser a tarefa mais urgente nesse sentido. A IVa Internacional surge, aliás, da crise do comunismo: ela é a única tendência que se opôs de maneira intransigente ao stalinismo e durante sessenta anos e, portanto, a única que não perdeu toda credibilidade aos olhos das massas ferozmente anti-stalinistas, a única a progredir e não a regredir.
A auto-organização da classe, que tem por resultado o poder dos conselhos livremente e democraticamente eleitos e a organização separada da vanguarda revolucionária, forma assim uma unidade dialética, mediada pela pluralidade dos partidos. O poder de Estado deve ser exercido pelos conselhos, e não pelo partido. O partido ou os partidos procura (m) ganhar a maioria no seio dos conselhos pela persuasão e não pela administração, e ainda menos pela repressão. Seus únicos trunfos devem ser: um grau de atividade mais apoiado continuo, mais a serviço de sua classe, um estilo de vida sem privilégios, uma capacidade de colocar em prática constantemente em conformidade com seus princípios, uma lucidez política maior fundada sobre a compreensão teórica das leis que governam a construção da sociedade sem classes.
Para isso, eles devem tirar das fontes não contaminadas: os escritos de Marx e de Engels sobre a Comuna de Paris, os escritos de Rosa Luxemburgo, de Lênin de "O Estado e a Revolução", que teve a audácia de desenvolver um projeto de Estado soviético "sem força armada permanente, sem policia, sem burocracia", e sobretudo nos escritos de Trotsky dos últimos dez anos da sua vida e os documentos programáticos da IVa Internacional.
Mas toda essa riqueza teórica deve ser considerada não como uma verdade revelada definitiva, mas como sujeita ao teste das experiências revolucionárias e contra-revolucionárias novas. A palavra mais sábia pronunciada por um revolucionário sobre revolucionários foi a de Marx, na sua Terceira Tese sobre Feuerbach: os educadores devem ser educados e reeducados. O futuro do comunismo depende em última análise da assimilação desta verdade fundamental pelos comunistas.
O comunismo é a aspiração a uma sociedade mais humana e mais justa para a grande maioria do género humano. É a aspiração a uma sociedade qualitativamente superior à sociedade capitalista. À medida que se mostram as contradições internas que rasgam esta última, e as crises sucessivas nas quais essas contradições se concretizam, a sociedade socialista sem classes surge também como uma sociedade qualitativamente mais racional.
O balanço do capitalismo do século XX não é somente o nível de vida da metade da população americana ou a seguridade social da Suécia ou da RFA (em boa parte, aliás, conquistada pelo movimento operário contra a resistência dos capitalistas). É também a enorme miséria de 80% dos habitantes do terceiro-mundo. São também as duas guerras mundiais que custaram perto de 100 milhões de mortos. São também as 120 guerras "locais" que nos foram impostas desde 1845 (só a guerra "local" desencadeada pelas agências pró-imperialistas de Moçambique custou 90.000 mortos...). São também duas graves depressões económicas. É também o fascismo, numerosas ditaduras militares e semifascistas. É também a tortura institucionalizada em mais de cinquenta países.
Os marxistas, a começar por Rosa Luxemburgo, tinham razão em resumir o futuro da humanidade, desde do inicio do século XX, pela formula: socialismo ou barbárie. Antes de mostrar sua face odiosa nos crimes nazis, a ascensão da barbárie se tinha já manifestado nos crimes do colonialismo (incluindo os do militarismo japonês) e nas doutrinas racistas que as apoiavam.
O capitalismo industrial se desenvolveu desde do inicio como uma combinação de progresso e de regressão, de forças produtivas e de tendências destruidoras [7]. As primeiras prevaleceram sobre as segundas. Mas, com a emergência da era imperialista, as segundas começaram a igualar, depois a ultrapassar as primeiras.
O desenvolvimento das forças produtoras, tanto mecânicas como humanas, não pára definitivamente. Ele pode mesmo conhecer um desenvolvimento excepcional, como foi incontestavelmente o caso durante o período que foi do fim dos anos 40 ao principio dos anos 70 (em alguns países semi-industrializados, os anos 70 e o inicio dos anos 80). Mas o preço pago por esse desenvolvimento se torna cada vez mais exorbitante. A expressão mais clara dessa reviravolta de tendência foi o aparecimento das armas nucleares e biológicas no decurso da Segunda Guerra Mundial. Seu emprego massivo implicaria — e implica desde 1945 — a destruição física do género humano. A multiplicação das centrais nucleares contém esse mesmo risco mesmo em caso de guerra "convencional" à grande escala. Impedir guerras mundiais ou continentais, tanto nucleares como convencionais, se torna desde então o objetivo estratégico numero um do movimento operário, incluindo a sua componente comunista, socialista-revolucionária.
Gorbatchev exprimiu esta nova necessidade com um certo atraso em relação aos marxistas revolucionários, que por sua vez a compreenderam com atraso em relação à realidade objetiva. A partir do aparecimento dessas armas, a guerra deixou de ser a continuação da política por outros meios. Ela se torna a negação absoluta de toda a política. A humanidade reduzida à poeira nuclear não é mais "sujeito" de qualquer prática, incluindo a prática política.
Mas esta visão transforma o interesse que têm atualmente os dirigentes do imperialismo em moderar o crescimento das despesas militares (que é o fundamento dos acordos parciais de desarmamento, que é necessário apoiar e estender) em uma tendência permanente de desarmamento universal. Ela é totalmente irrealista.
Ela subestima os efeitos bárbaros das agressões e guerras "locais" desencadeadas pelo imperialismo. Ela subestima o risco implícito devido ao peso do complexo militar-industrial no seio da burguesia. Ela subestima as tendências para o desenvolvimento das despesas militares em suas fases de depressão económica. Ela subestima o risco de ver aparecer no seio da sociedade burguesa, em caso de crises agudas que levem ao esmagamento do movimento operário, de dirigentes políticos niilistas prontos a jogar tudo por tudo — incluindo as implicações para eles próprios — como Hitler.
Mesmo que esses riscos sejam limitados, elimina-los da estratégia do movimento operário e do movimento antiguerra é profundamente irresponsável. Isso equivale a jogar roleta russa com a sobrevivência do género humano.
A conclusão estratégica que devemos deduzir do perigo de extermínio implícito nos riscos de guerra em presença de centrais nucleares é que a única garantia real e definitiva da sobrevivência física da humanidade é a retomada de todas as usinas e de todos os laboratórios capazes de produzir armas pesadas pelos próprios produtores.
É o acordo desses produtores para acabar com toda produção dessas armas, e para destruir imediatamente todos os estoques de armas existentes. Ontem, o dilema era: "Socialismo ou barbárie". Hoje, o dilema se tornou: "Socialismo ou morte". É a motivação mais profunda para o comunismo que se possa imaginar.
A mesma conclusão decorre das outras ameaças mortais que pesam sobre a humanidade, antes de tudo a ameaça da destruição do ambiente e a ameaça de uma extensão desastrosa da fome e das epidemias no Terceiro Mundo (e para além dele).
Essas ameaças só podem ser definitivamente eliminadas se o controle da produção e da distribuição das riquezas não ficar mais nas mãos das forças sociais e de governos que perseguem os objetivos de enriquecimento e de poder privados e separados e são assim encurralados a processos de crescimento descontrolados e descontroláveis. Eles devem passar para as mãos dos assalariados e de seus aliados, o campesinato trabalhador, que têm vontade e capacidade de subordinar todo interesse parcial e todo crescimento descontrolado à cooperação solidária no interesse da humanidade trabalhadora no seu conjunto.
É um projeto utópico? Só o futuro dirá. Mas é de qualquer maneira menos utópico que o projeto de assegurar a paz no mundo, a preservação do ambiente, a eliminação da fome e das epidemias curáveis no quadro de uma sociedade congenitamente incapaz de subordinar os interesses dos ricos e o poder dos Estados-Nações; a solidariedade coletiva, na medida em que é fundada na lógica do enriquecimento (da acumulação do capital) de uma pequena minoria, e da concorrência oposta à solidariedade.
Já existem indicadores precisos de que o projeto socialista tal como o resumimos na sua forma mais aguda não é de jeito nenhum utópico. O que caracteriza o levantamento das massas que acabamos de viver na RDA ou na Tchecoslováquia é a rejeição da tutela sob todas as formas.
Essa rejeição se estenderá a outros países do Leste e à URSS, se estenderá do domínio das liberdades políticas a todos os domínios políticos, económicos e sociais e se estenderá pouco a pouco a um numero crescente de países capitalistas.
Os 36% de votos pela supressão imediata das Forças armadas na Suíça, os um milhão de manifestantes nas ruas dos Estados-Unidos pela defesa do direito ao aborto, em novembro 1989, são os primeiros sinais. Ela se arrependerá de ter lançado sua campanha pelo respeito aos direitos do homem, pela grande publicidade dada aos levantamentos de massa na RDA, na Tchecoslováquia e na Romênia. Essas grandes campanhas se voltarão contra ela como boomerangs batendo em pleno rosto, ainda e sempre, em anos e década vindouros.
A televisão internacional, antes de tudo a televisão alemã e certas cadeias americanas e francesas, mostraram hora a hora o levantamento das massas na RDA, Tchecoslováquia, e Romênia. É a primeira vez que o mundo inteiro pôde assistir diretamente, instantaneamente, ao desenvolvimento de explosões revolucionárias.
Mas uma questão se põe: por quê a greve geral no Brasil, a greve geral no Estado espanhol, as duas principais lutas operárias de 1989 (que reuniram respectivamente mais de 30 milhões de assalariados), quer dizer, muito mais que os implicados nas ações na RDA, Tchecoslováquia ou Romênia, tomadas no seu conjunto, só receberam 5% da atenção dada a esta?
Por que a repressão imperialista do Panamá, os massacres em Salvador (mais de 70.000 mortos em dez anos de guerra), na Guatemala, Sri Lanka, Sudão, Moçambique, que causaram muito mais vitimas que a Securitate de Ceausescu, só receberam 5% da publicidade dedicada aos massacres na Romênia? Teria relação com o fato de que as tiranias responsáveis por esses massacres são capitalistas ou pró-capitalistas e não pretensamente "socialistas"?
A luta contra a tutela é a luta pela auto-administração das massas em todos os domínios, o da ecologia [8], como o do antimilitarismo e dos direitos democráticos. As massas populares, os comitês (conselhos) locais claramente apoiados pela maioria de seus concidadãos devem conquistar nomeadamente um poder de veto sobre todos os projetos que impliquem riscos graves para o ambiente.
Pela primeira vez desde o aparecimento do stalinismo, a liberdade, a democracia mais ampla, representativa e direta, o antimilitarismo, o imperativo categórico, começam a passar no nosso campo, o campo do socialismo revolucionário. A liberdade, igualdade política e econômica, solidariedade e justiça social, também à escala mundial, o antiimperialismo radical, defesa radical do meio ambiente, respeito aos direitos do homem: isso cria uma combinação imbatível.
Estes são os grandes temas de propaganda que devemos martelar sem parar, combinados com as reivindicações imediatas e transitórias, e com projetos políticos que se traduzam na vida cotidiana. Isto assegura definitivamente o futuro do comunismo.
Notas:
[1] Nós a definimos como todos os que se encontram sob a obrigação econômica de vender sua força de trabalho.
[2] As lutas dos assalariados pelo sufrágio universal, pela libertação nacional dos países coloniais, as lutas antifascistas, a greve geral da Tchecoslováquia em 1989 pelas liberdades democráticas, etc.
[3] Uma "sociedade pós-industrial", no sentido de uma "sociedade pós-proletária", implicaria que a alimentação, o vestuário, a habitação, o equipamento eletrodoméstico, os produtos farmacêuticos, os aparelhos de telecomunicações, as escolas, os hospitais, os meios de transporte, sem os quais nenhum sábio ou expert em informática poderá sobreviver, fossem produzidos inteiramente ou mesmo em grande parte por robôs e não por seres humanos.
É uma visão do espírito para um futuro previsível. As tentativas de "desproletarizar" o socialismo, quer dizer, destacá-lo das lutas e dos interesses do proletariado moderno, caracterizam quatro obras importantes consagradas ao socialismo no decurso dos últimos anos: The Economics os Feaseable Socialism de Alec Nove; Socialism, Past and Future, de Michael Harrington; A Future for Socialism de Bryan Gould (um dos principais ideólogos de Neil Kinnock) e La Metamorphose du Travail de André Gorz. Na prática, isso leva a apresentar o socialismo como um capitalismo reformado. Na ausência de um sujeito revolucionário potencialmente capaz de derrubar o capitalismo, só resta logicamente o projeto de reformar. "L`adieu au proletariat" desemboca sempre no "Bonjour au capitalisme".
[4] Em última análise, essas causas são a alienação dos assalariados como produtores.
[5] Nosso velho camarada Zimine, um dos raros sobreviventes da oposição de esquerda soviética, redigiu antes de morrer uma excelente refutação dessas pretensas referências teóricas em seu livro "Le Stalinisme et son pretendu socialisme réel", publicado nas edições La Bréche em 1988.
[6] Assim, os membros e os simpatizantes dos partidos comunistas, e uma fração importante de operários situados fora dessa influência, acreditavam sinceramente, no decurso dos anos 30, que a URSS stalinista tinha satisfeito todas as necessidades das massas populares. Na realidade, o nível de vida tinha caído de maneira dramática em relação aos dos anos 1923-1928.
[7] Ver as passagens do Tomo I d`O Capital de Marx sobre a dupla natureza do maquinismo.
[8] Edgar Morin, no jornal Le Monde, adota uma fórmula ideológica para justificar esta estratégia ilusionista e suicida, falando do impasse no qual "o homem" se encontraria pelo desenvolvimento de uma técnica desenfreada.
Fonte |
Inclusão | 14/12/2005 |
Última alteração | 30/04/2014 |