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Mas a teoria do fascismo de Trotski não é apenas a condenação impiedosa do passado. Também é uma visão do presente e do futuro, uma advertência contra novos erros teóricos e contra novos perigos.
O carácter específico do fascismo não pode ser compreendido senão no quadro do capitalismo imperialista de monopólio. É absurdo caracterizar os movimentos autoritários do mundo semi-colonial como «fascistas» simplesmente por jurarem fidelidade a um chefe ou porem os seus membros em uniforme. Num país onde a parte mais importante do capital está nas mãos de estrangeiros e onde a sorte da nação é determinada pola dominação do imperialismo estrangeiro, é um contra-senso caracterizar como fascista um movimento da burguesia nacional que procura, no seu próprio interesse, libertar-se dessa dominação. Tal movimento pode partilhar alguns traços superficiais com o fascismo: um nacionalismo extremo, o culto do «chefe» mesmo, por vezes, o anti-semitismo. Como o fascismo, pode encontrar a sua base de massas na pequena burguesia desenraizada e pauperizada. Mas a diferença decisiva, em termos de política econômica e social, entre tal movimento e o fascismo, é evidente se se consideram as posições do movimento para com as duas classes fundamentais da sociedade moderna: o grande capital e a classe obreira.
O fascismo consolida a dominação do primeiro e oferece-lhe o maior lucro econômico, atomiza a classe obreira e extermina as suas organizações. Polo contrário, os movimentos nacionalistas da burguesia nacional nos países semi-coloniais, às vezes falsa e abusivamente chamados «fascistas», assestam geralmente baques sérios e duráveis no grande capital, sobretudo no capital estrangeiro, criando ao mesmo tempo novas possibilidades organizacionais para os trabalhadores. O melhor exemplo é o movimento peronista na Argentina que, longe de atomizar a classe operária, permitiu, pola primeira vez, a organização profunda dos trabalhadores nos sindicatos que, até hoje, exercem uma influência importante no país.
É verdade que o pretenso poder desta burguesia nacional de manobrar entre o imperialismo estrangeiro e o movimento de massas indígena é limitado histórica e socialmente, e que oscilará continuamente entre estes dous pólos principais. De seguro, o seu interesse de classe levá-la-á finalmente a contrair uma aliança com o imperialismo ao qual tentará extorquir, graças ao empurrão do movimento de massas, uma grande parte da mais-valia total. Por outro lado, um ascenso demasiado poderoso do movimento de massas ameaçaria a sua própria dominação de classe. De certo, tal ataque contra as massas pode tomar a forma duma repressão sangrenta assemelhada ao fascismo, como o dos generais indonésios após Outubro de 1965. No entanto, a diferença fundamental entre os dous processos — o fascismo nas metrópoles imperialistas, e o que, no pior dos casos, é uma ditadura militar dura nos países coloniais do terceiro mundo — deve ser claramente compreendida, de forma a evitar a confusão nos conceitos.
É igualmente muito importante evitar a confusão entre a tendência contemporânea, que se afirma cada dia mais claramente, para o «Estado forte» e a tendência para a fascização «rasteiro» ou mesmo «aberta». Como foi sublinhado muitas e muitas vezes, o ponto de partida do fascismo encontra-se na pequena burguesia desesperada e empobrecida. Após vinte anos de «ascensão no longo ciclo» (upward swing of the long cycle), praticamente nenhum país imperialista ocidental possui tal pequena burguesia. Quanto muito, algumas camadas marginais do campesinato e das camadas médias urbanas são afectadas por uma tendência ao empobrecimento. Mas estas camadas, das quais nenhuma tem um peso importante na população total, puderam até agora, encontrar trabalho de forma relativamente fácil no comércio, nos serviços ou na indústria. É um processo oposto ao dos anos de 1918 a 1933 o que se desenrola sob os nossos olhos. Nessa altura, as camadas médias encontravam-se empobrecidas sem terem sido, no entanto, proletarizadas.
Com uma pequena burguesia conservadora e no conjunto próspera, o neo-fascismo não tem qualquer possibilidade objectiva de ganhar uma larga base de massas. Os ricos proprietários não se lançam em combates de rua com os trabalhadores revolucionários ou os estudantes de extrema-esquerda (radical students). Preferem chamar à polícia e fornecer-lhe melhores armas para que esta «se ocupe das desordens». Aqui se encontra a diferença total entre o fascismo que organiza os elementos desesperados da pequena burguesia, utiliza-os para aterrorizar as grandes cidades e as regiões obreiras e o «Estado forte» autoritário que, certamente, utiliza a violência e a repressão, pode administrar duros golpes no movimento obreiro e nos grupos revolucionários, mas revela-se incapaz de aniquilar as organizações operárias e de atomizar a classe obreira. Mesmo uma comparação superficial entre a Alemanha depois de 1933 e a França depois de 1958, após a instalação do «Estado forte», faz realçar melhor ainda esta diferença. Tira-se igualmente a mesma conclusão quando se compara a ditadura fascista em Espanha entre 1939 e 1945 ao «Estado forte» decadente de hoje em dia que, apesar da repressão severa desencadeada ocasionalmente pola polícia e o aparelho militar, se encontra na impossibilidade total de suprimir um movimento de massas em ascenso.
Far-se-ia necessário que a situação económica mudasse duma forma decisiva para que o perigo imediato do fascismo reaparecesse nos Estados capitalistas ocidentais. Que tal mudança sobrevenha no futuro, não está de forma nenhuma excluído; mais, é uma eventualidade muito provável. Mas, antes que isso aconteça mais vale evitar ser fascinado pola ameaça inexistente do fascismo, falar menos do neo-fascismo e trabalhar mais na luita sistemática contra a tendência muito real e muito concreta da burguesia para o «Estado forte», é dizer, para a redução sistemática dos direitos democráticos dos salariados (através de leis de excepção, leis antigreves, multas e penas de prisão polas greves selvagens, restrições ao direito de manifestação, manipulação capitalista e estatal das mass média, reinstauração da prisão preventiva, etc.). O núcleo de verdade na teoria do «fascismo rasteiro», é que ela sublinha o perigo duma aceitação passiva e não política de tais ataques contra os direitos democráticos elementares que só podem aguçar o apetite da classe dominante e incitá-la a novos ataques mais duros. Se o movimento obreiro se deixar conduzir sem resistência e se deixar desapossar a pouco e pouco da sua potência, então, à primeira mudança importante da situação econômica, qualquer aventureiro inteligente bem pode ser inspirado a tentar exterminá-lo completamente. Se a resistência não tiver sido preparada teimosamente nas batalhas quotidianas durante anos, não cairá miraculosamente do céu no último minuto.
E é justamente porque a tarefa principal hoje em dia não é a luita contra o neo-fascismo impotente, mas sim contra a ameaça real dum «Estado forte», que é importante evitar a confusão nas idéias. Anunciar que as primeiras escaramuças são o início duma luita decisiva e dar a impressão que o fascismo («aberto» ou «rastejante») se identifica com os C.R.S. de Paris ou à polícia de Berlim-Oeste (que são ambas bem ineficazes), é embotar a consciência das massas, desviá-la do perigo real, terrível, que representaria um fascismo dotado de armas tecnológicas muito mais avançadas. É cometer o mesmo erro fatal que os dirigentes do K.P.D. entre 1930 e 1933, quando apresentavam Bruening, Papen, Schleicher e Hugenberg como a encarnação do fascismo, o que levou os trabalhadores à conclusão que o monstro não era tão terrível como o apresentavam.
Os germens dum renascimento potencial do fascismo estão contidos na praga, conscientemente espalhada em alguns países imperialistas, constituída pola mentalidade racista e xenófoba (contra os negros, os não-brancos, os trabalhadores imigrados, os árabes, etc.), na indiferença crescente para com os assassinatos políticos num país como os Estados Unidos,(1) no ressentimento irracional para com os «acontecimentos desagradáveis» que são cada vez mais freqüentes na arena mundial, e no ódio, igualmente irracional, polas minorias revolucionárias e não conformistas («a câmara de gás é o que vos faz falta», «o campo de concentração é o vosso lugar!», eis o gênero de imprecações lançadas à cara dos manifestantes do S.D.S. em Berlim Ocidental, na Alemanha Federal e nos Estados Unidos polos defensores da «lei e da ordem»).
Isto torna-se uma trágica cegueira quando um universitário como o professor Habermas, homem liberal e inteligente sob outros aspectos, se deixa levar a ponto de chamar aos estudantes revolucionários «fascistas de esquerda», eles que, justamente, seriam as primeiras vítimas dum terror fascista. Hoje em dia como nos anos vinte ou trinta, não é que se deve ver a fervura dos fascistas nas minorias não conformistas, mas sim nos filisteus que clamam: «Respeito, Honra, Lealdade!»
Não é de todo excluir que, no caso da economia capitalista mundial ser desordenada — não obrigatoriamente sob a forma duma grande crise económica mundial da amplitude da dos anos de 1929 a 1933, que parece bastante improvável tendo em conta o montante dos orçamentos e da inflação hoje em dia — estes germens presentes por toda a Europa Ocidental pudessem florescer e dar livre curso a uma nova epidemia fascista. Mas a probabilidade do aparecimento de tal perigo é muito maior nos Estados Unidos que na Europa. A grande burguesia européia já queimou gravemente os dedos com uma experiência do fascismo. Em certas partes do continente o resultado foi ter perdido tudo o que aí possuía, noutras, só salvou a sua dominação de classe no último minuto. Ela está ainda menos inclinada a repetir esta aventura por esta experiência ter deixado traços profundos nas massas populares e porque o renascimento súbito duma ameaça fascista provocaria sem dúvida violentas reacções.
A este respeito, a evolução dos estudantes na Europa Ocidental é de bom agoiro. No princípio do século, os grupos estudantis constituíam a fervura intelectual do fascismo. Os primeiros quadros dos grupos fascistas foram recrutados entre eles. Foram eles que forneceram os fura-greves organizados nos anos vinte, não só na Alemanha, mas também na Grã-Bretanha, durante a greve geral de 1926. Bem antes de ter Hitler ocupado o posto de chanceler, tinha já conquistado os universitários. E depois da vitória da Frente Popular nas eleições de 1936 na França, os Camelots do Rei, grupo semifascista, continuava a reinar no Bairro Latino.
Hoje a situação mudou completamente. Em todo os países da Europa Ocidental, a tendência geral nos estudantes é para a esquerda e a extrema-esquerda e não para a extrema-direita. São os piquetes de greve, não os fura-greves que são recrutados entre os estudantes, e estes vão para as fábricas não para ajudar os patrões a «restabelecer a lei e a ordem», mas para encorajar os trabalhadores a pôr em causa a «ordem» neo-capitalista duma forma bem mais radical do que a fazem as organizações obreiras tradicionais. É muito improvável que esta tendência seja modificada nos próximos anos. Enquanto que depois da Primeira Guerra Mundial o fascismo era antes de tudo um levantamento da juventude, existem hoje muito poucos elementos que nos permitam afirmar que a juventude, em qualquer parte da Europa, poda ser atraída em grande número pola extrema-direita.
A próxima vaga na Europa será para a esquerda e a extrema-esquerda: isto vê-se nitidamente pola leitura do sismógrafo da juventude que possui sempre vários anos de avanço sobre o movimento de massas. E os acontecimentos de Maio de 68 na França são só um prelúdio. Mas se esta vaga for quebrada por um fracasso, e se a decepção da jovem geração coincidir com um transtorno da economia, então, o fascismo terá as suas oportunidades de sucesso.
Nos Estados Unidos, também a evolução poderia adoptar o mesmo ritmo dialéctico que se encontra por todo o lado depois de 1918. Quando a sociedade neo-capitalista é profundamente abalada, a balança oscila sempre primeiro para a esquerda e é só depois do movimento operário ter sido malogrado que a direita tem a sua oportunidade. Mas a grande burguesia americana tem menos experiência e age, portanto, mais cruamente que a da Europa Ocidental, porque praticamente nunca teve de sofrer as conseqüências dos riscos em que incorreu. Por conseqüência, possui um instinto muito menos desenvolvido quanto aos limites naturais da política do «tudo ou nada»; além disso, dispõe, a par da tradição não política de sectores importantes da população americana, dum reservatório de conservantismo de extrema-direita que, na eventualidade duma modificação na situação económica e em ocasiões não aproveitadas pola ala revolucionária (radical side) para transformar o país em bases socialistas, poderia oferecer muito mais oportunidades de sucesso a um aventureiro fascista do que na Europa. A violência que medra muito, o carácter explosivo da questão racial e a audácia de certos círculos imperialistas torna muito mais provável o desenvolvimento duma tendência fascizante do lado americano do Atlântico.(2)
É inútil insistir no terrível perigo que tal fascismo representaria não só para a existência da cultura humana, mas também para a própria existência física da raça humana. Imagina-se facilmente o que se teria passado em 1944 se Hitler tivesse tido em seu poder um arsenal de armas nucleares como o que a América possui hoje. Os extremistas de direita da John Birch Society e os Minutemen dizem já «antes morto que vermelho» (better dead than red). Depois da destruição da sociedade capitalista no resto do mundo, quando dos últimos sobressaltos do combate de morte para preservar a «sua» sociedade capitalista de monopólio, se o grande capital americano decide entregar o poder político a homens completamente irracionais, isso seria um golpe fatal para a humanidade. No fim dos anos vinte e no princípio dos anos trinta, os marxistas revolucionários diziam que o combate contra o fascismo e por uma solução socialista da crise européia era uma batalha contra a barbárie que progredia nesta parte do mundo. Nos decênios próximos, a luita por uma América socialista pode tornar-se um combate à morte para toda a humanidade.
Por esta razão, as análises afinadas e os clamores proféticos de Cassandra de Trotski são duma pertinência imediata. Porque, enquanto existir o capitalismo de monopólio, o mesmo perigo, talvez sob uma forma ainda mais terrível e com uma barbárie ainda mais inumana, pode ressurgir.
Dixemos no princípio deste texto que a superioridade das análises de Trotski forçaria a admiração do leitor. Mas o estudo dos seus escritos provoca muito mais a cólera e o desprezo do que a admiração. Como teria sido doado tomar em conta as advertências de Trotski e evitar assim o desastre. Esta tem de ser a moral da história: reconhecer o mal de forma a combatê-lo a tempo e com sucesso. A catástrofe alemã não se deve repetir. Ela não se repetirá!
30 de Janeiro de 1969.
Notas:
(1) A lista dos líderes políticos assassinados estes últimos anos nos Estados Unidos parece-se sinistramente com a do período de Weimar: Malcom X, Martin Luther King, John F. Kennedy e numerosos líderes do Black Panthers Party. (retornar ao texto)
(2) É necessário lembrar que neste processo de polarização — que já começou nos últimos anos — o activismo da direita declinou. Também nos Estados Unidos a parte politicamente activa da juventude tende irresistivelmente para a esquerda. Como na Europa Ocidental, as confrontações tem lugar não entre activistas de direita e de esquerda, mas sim entre os activistas de esquerda e a política. A prosperidade relativa das camadas médias da população americana e o seu conservatismo correspondente não são certamente estranhos a este estado de cousas. (retornar ao texto)
Inclusão | 06/05/2007 |
Última atualização | 14/04/2014 |