A Crise do Sistema Monetário Internacional

Ernest Mandel


A crise do sistema monetário internacional, que os marxistas tinham previsto numa época em que os apologistas do neo-capitalismo estavam convencidos de que o modo de produção capitalista tinha resolvido o essencial das suas contradições(1), exprime-se actualmente por convulsões que se sucedem a um ritmo cada vez mais acelerado: crise da libra esterlina seguida da sua desvalorização em Novembro de 1967; crise do dólar em Março de 1968, seguida do estabelecimento do duplo preço do ouro; crise do franco francês, acompanhada da sua desvalorização dissimulada, duma revalorização do marco alemão e duma nova crise da libra esterlina em Novembro de 1968. É preciso examinar a natureza e o funcionamento do sistema monetário internacional, baseado no padrão de divisa ouro ou padrão de troca-ouro, e ligar a crise que nota às contradições fundamentais que dilaceram o sistema mundial na nossa época.

Valor do ouro, padrão-ouro e valor do papel-moeda

Os metais preciosos em geral, o ouro em particular, podem servir de meios de troca e de meios de pagamento porque têm um valor, porque são produtos do trabalho humano. A equação "uma tonelada de cobre vale um quilo de ouro" significa que para produzir essas duas cantidades é preciso o mesmo número de horas de trabalho (de produtividade média). Num sistema monetário baseado no padrão-ouro, os preços das mercadorias exprimem equivalências desse mesmo género. Se num tal sistema, 1 dólar = 0,5 grama-ouro, a afirmação de que um automóvel vale em média 5 000 dólares, significa que o número de horas de trabalho que são precisas para produzir um automóvel são as mesmas que para produzir 2,5 kg. de ouro.

O regime capitalista caracteriza-se por uma incessante transformação das técnicas de trabalho, pola revolução múltipla da produtividade de trabalho. Essas transformações efectuam-se por um desenvolvimento desigual, quer das empresas, quer dos sectores industriais. Pola concorrência dos capitais e a perequação da taxa de lucro, as empresas e os ramos industriais em que a produtividade do trabalho se eleva acima da média social apropriam-se duma parte da mais-valia produzida noutras empresas ou ramos industriais, onde a produtividade do trabalho está abaixo da média social.

O mecanismo concreto por meio do qual se opera esta transferência da mais-valia duma empresa ou ramo industrial para outros, é o da formação dos preços de mercado. As empresas e ramos tecnicamente de ponta realizam sobrelucros vendendo ao preço do mercado porque os seus custos de produção são inferiores aos dos concorrentes que determinam esses custos. As empresas e ramos atrasados não chegam a realizar o lucro médio, ou mesmo vendem com prejuízo porque os seus custos de produção são superiores aos dos concorrentes que, trabalhando à produtividade média social, determinam os preços do mercado.

Contudo, não se aplica a mesma regra de maneira idêntica à produção de ouro. O emprego de ouro como equivalente geral, o facto de o valor de uso desta mercadoria a tornar procurada por todos os proprietários de mercadorias, têm por consequência que a procura desta mercadoria é — até certo ponto — independente das flutuações dos seus próprios custos de produção.

Sempre que qualquer ramo industrial está marcado por um atraso técnico em relação à média social, sempre que "esbanja trabalho social" no decurso da sua produção corrente, uma parte desta produção manter-se-á sem comprador a pesar duma forte baixa de preços; até mesmo uma parte da capacidade de produção deverá ser suprimida (foi este o caso de carvão no decurso do último decénio). Mas quando uma economia capitalista geral está em expansão, as necessidades de ouro aumentam em função dessa expansão, independentemente das flutuações da produtividade do trabalho nas minas de ouro em relação às do resto da indústria(2).

Para os proprietários das minas de ouro isso implica que se apropriem dum forte rendimento (um forte sobrelucro) nos períodos de expansão geral da produção capitalista, sempre que haja atraso na produtividade do trabalho nessas minas em relação à do resto da indústria (o que é manifestamente o caso desde o princípio do século). Para un sistema monetário baseado no padrão-ouro, isto significa que a tendência para o abaixamento "secular" do valor das mercadorias se encontra fortemente acentuada. Suponhamos a equação: 1 automóvel = 2,5 kg. de ouro = 5 000 dólares = 500 horas de trabalho. Se a produtividade do trabalho duplicar na indústria do automóvel, mantendo-se invariável a condição na indústria do ouro, esta fórmula torna-se: 1 automóvel = 1,25 kg. de ouro = 2 500 dólares = 250 horas de trabalho.

Assim, chega-se a uma conclusão que parece paradoxal à primeira vista: um regime de padrão-ouro condena os preços a quedas extremamente severas, enquanto durar a fenda — crescente — entre a produtividade do trabalho em relativa estagnação nas minas auríferas e a produtividade do trabalho em rápida expansão no resto da indústria. O que com efeito paralisaria a expansão capitalista não seria, como crêm os senhores Rueff e outros, "o baixo preço do ouro", ou "a ausência de liquidezes internacionais", mas polo contrário o valor anormalmente elevado do ouro e os preços-ouro cada vez mais baixos da maior parte das mercadorias.(3)

O paradoxo é apenas aparente. Porque, desde o momento em que não se esteja em regime de padrão-ouro, mas em regime de papel-moeda, a massa monetária debe ser referida primeiro à massa de ouro, antes que se poda conhecer a evaluação dos preços das mercadorias expressas em relação aos metais preciosos. Ora, a teoria quantitativa da moeda, rejeitada por Marx no que respeita à moeda metálica, é em parte aplicável no que respeita à moeda-papel, que é composta por sinais monetários de substituição. Se uma divisa nacional é coberta por 1 000 toneladas de ouro e a circulação monetária passa de 35 a 50 bilhões (de dólares, de francos, etc.); isto quer dizer que cada unidade monetária já não representa 0,03 gr. de ouro mas somente 0,02 gr, quer dizer, perdeu um terço do seu valor. A expressão "preço do ouro", não quer dizer nada em regime de padrão-ouro, toma assim um sentido indirecto num regime de papel-moeda quando regista as flutuações do montante monetário, e as variações das diversas divisas nacionais em função das flutuações desta massa.(4) Se se eliminar a enorme inflacção em curso há mais de meio século à escala internacional , é claro que, expressos em preço-ouro, os preços da maioria das mercadorias baixaram, efectivamente, de maneira muito considerável.

Isto quer dizer que no regime de papel-moeda relacionado com o padrão-ouro toda a expansão da massa monetária é automaticamente causa da alta dos preços? Isto aconteceria só se a massa da produção e a produtividade do trabalho fossem perfeitamente estáveis. A partir do momento em que a produção e a produtividade aumentem, a massa monetária pode crescer consideravelmente sem que os preços aumentem.

Por exemplo, uma produção nacional representada por 1 000 milhões de mercadorias cuja produção custou 1 000 milhões de horas de trabalho e que são trocadas por 35 000 milhões de dólares, representando 1 000 toneladas de ouro. Se a produção aumenta em dez anos para 1 5oo milhões de horas de trabalho, a massa monetária pode passar de 35 000 milhões de dólares para 52 500 milhões de dólares com uma reserva de ouro estável e os preços unitários das mercadorias inalterados.

É verdade que cada dólar já não representa 0,03 gr. de ouro, senão 0,02 gr. de ouro. Mas se, ao mesmo tempo, a produtividade do trabalho aumentar de 50% em todas as outras indústrias sem ter aumentado na indústria do ouro, esta depreciação de 33% do dólar em relação ao ouro, não representa uma depreciação do poder de compra. Exprime simplesmente o facto que o total das mercadorias que se trocam pola mesma quantidade de dólares (e de ouro) são agora produzidas em 50% do tempo de trabalho socialmente necessário que era preciso anteriormente.(5) Valor do papel-moeda em ouro ou em poder de compra não são portanto necessariamente idênticos. Mesmo podem evoluir em sentido oposto.

O padrão de divisa-ouro, balanças de pagamentos e crises económicas

O que caracteriza qualquer sistema baseado no padrão-ouro — quer seja o sistema metálico puro ou um sistema de papel-moeda ouro — é o ajustamento automático da massa monetária à massa metálica, às "reservas de troca". Se a cobertura legal de ouro do dólar é de 25% e as reservas de troca não ultrapassam 25% da massa das notas de banco, qualquer redução destas reservas conduz a uma contracção da massa monetária. Ela implica, com efeito, uma deflação das notas de banco circulantes. A moeda escrita depende, em última análise, da massa de notas de banco. Desde então todo o sistema monetário se numa pirâmide invertida que se reduz automaticamente, desde que a sua base — o ouro depositado nos cofres fortes do Banco Central — diminua.

A experiência mostrou aos capitalistas e aos seus economistas, que existe uma relação precisa entre a massa monetária em circulação e o ritmo de contracção das actividades económicas em geral. A relação não é casual, como pensam erradamente numerosas escolas da conomia política burguesa. Qualquer expansão das actividades económicas é acompanhada forçosamente por uma expansão dos rendimentos monetários (tanto salários como lucros). Qualquer contracção das actividades económicas (recessão ou crise mais grave) leva a uma tendência para a deflação dos rendimentos monetários (o desemprego total ou parcial reduz a massa monetária; os lucros diminuem, etc.). Se, de forma autónoma o Estado põe em circulação meios de pagamento suplementares (aumentando os subsídios de desemprego, os créditos e subsídios à indústria, as encomendas de Estado, etc.), o efeito da recessão ou da crise é atenuado. Mas se, de forma autónoma ao ciclo económico, o Estado acentua a deflação dos meios monetários (reduzindo os vencimentos dos funcionários, os subsídios de desemprego e o crédito aos capitalistas), evidentemente o efeito da recessão ou da crise é ampliado.

No primeiro caso, o poder de compra global diminui menos fortemente do que o emprego e a produção na indústria; no segundo caso, o poder de compra global diminui mais do que este emprego e esta produção. Uma das razões por que a crise de 1929-32 foi tão violenta, foi o facto de em vários países chave (principalmente nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e na Alemanha) ter coincidido uma política de deflação, por parte do governo, com uma baixa de produção e de emprego anteriores.

Num sistema de papel-moeda, relacionado com o padrão-ouro, os bancos centrais e os governos capitalistas são obrigados, contudo, a restringir a massa monetária em circulação, desde que as suas reservas de troca diminuam. Portanto, basta que a eclosão duma recessão coincida com um sério deficit da balança de pagamentos, para que o governo seja obrigado a aplicar uma política de deflação — O que não deixaria de precipitar uma crise económica de extrema gravidade. Se os governos imperialistas tivessem seguido os conselhos de Rueff, e tivessem voltado ao padrão-ouro, a fuga maciça da reserva de troca, na França em Maio-Junho de 1968, teria imposto ao governo francês uma política de deflação a partir de esses meses, independentemente do aumento dos salários e dos custos. Ter-se-ia assistido rapidamente na França a dezenas de miles de falências e a mais dum milhão de desempregados.

Em função, essencialmente, da experiência da crise de 1929-32 e do medo de ver repetir semelhante cataclismo, os representantes dos países capitalistas reunidos em Bretton Woods em 1944 decidiram passar para o sistema chamado Gold Exchange Standard (padrão-ouro ou divisa-ouro). Neste sistema, os ajustamentos automáticos da massa monetária às reservas de ouro — e portanto, a flutuação automática do poder de compra global — é suprimido.

Com efeito, neste novo sistema, a reserva de troca de qualquer banco central já não é constituída unicamente por ouro e por um certo número de divisas privilegiadas (principalmente o dólar e a libra esterlina). Um mecanismo complicado, asegurado polo Fundo Monetário Internacional, faz com que, quando as reservas de ouro dum país diminuam, podam ser compensadas, quer polas "moedas de reserva" (dólar e libra esterlina), quer por créditos internacionais ou ainda por uma combinação de ambas as cousas.

No seio de qualquer economia imperialista nacional, este sistema é completado polo contrôle da massa monetária por parte do banco central por intermédio de diversos instrumentos: manipulação das taxas de desconto e das taxas de juro; contrôle do crédito bancário (uma das fontes principais de criação de dinheiro no regime capitalista); coeficientes de liquidez impostos aos bancos, etc.

As perdas de ouro (o deficit da balança de pagamentos) podem resultar sobretudo de dous movimentos, polo menos ao que respeita aos países imperialistas: duma balança comercial deficitária, sempre que este deficit não seja compensado polos rendimentos chamados invisíveis (interesses e dividendos sobre capitais investidos no estrangeiro; rendimentos de navegação marítima e aérea internacional; rendimentos de turismo, etc.). Também podem resultar duma exportação de capitais que ultrapasse o saldo favorável da balança comercial. O primeiro caso é o da Grã-Bretanha, o segundo o dos Estados Unidos. O primeiro caso indica que o país imperialista vive acima dos seus meios, que está liquidando as suas reservas. O segundo indica, polo contrário, que o país imperialista tenta transformar — numa proporção excessiva — os rendimentos correntes e os recursos recentemente produzidos, em investimentos a longo prazo.(6)

Sempre que um país sofre duma balança de pagamentos deficitária, liquida as suas reservas, endivida-se progressivamente e acaba por se estrangular no sarilho da rede. Quando, por sua vez, os países imperialistas, que fornecem as moedas de reserva, se colocam numa situação de deficit crónico da balança de pagamentos e regularizam este deficit por meio da sua própria moeda, são possíveis duas reacções nos outros países. Estes países podem ter necessidade de dólares e de libras esterlinas para fins comerciais ou militares; ou simplesmente encontram-se na impossibilidade de recusar este afluxo de reserva de troca dum género particular;(7) então, o sistema funciona sem dificuldades de mais. Este foi o caso da libra esterlina antes do Suez, do dólar entre a crise do Suez e os anos 1964-65. Neste caso o papel da moeda como meio de troca (incluindo no plano político) tem prioridade sobre o seu papel como meio de pagamento.

Mas, se os países imperialistas consideram que o afluxo de "reserva de troca" exprime na realidade a inflação que reina nos Estados Unidos; que as moedas de troca se degradam e perdem constantemente uma fracção do seu poder de compra; que, desde então, a acumulação de reservas de troca em dólares lhes faz perder a longo prazo uma boa parte do valor das suas reservas,(8) porque esta torna inevitável uma desvalorização do dólar em relação ao ouro, e todo o sistema monetário entra em crise. Neste caso, o papel da moeda de reserva como meio de pagamento e stock de valor (reserva) sobrepõe-se ao seu papel como meio de troca.

Os países que não fornecem moeda de reserva têm que regular os deficits da sua balança de pagamentos em ouro ou em dólares; a massa das "liquidezes internacionais" mantem-se assim inalterada. Mas os Estados Unidos podem regular o deficit da sua balança de pagamentos em dólares. O afluxo desses dólares aos outros países imperialistas alarga imediatamente a base da pirâmide invertida (exactamente igual como o faria o afluxo de ouro em regime de padrão-ouro). Por consequência, a inflação do dólar acrescenta a circulação monetária de todos os países imperialistas, quer dizer, alimenta e planifica a inflação universal.

Mas, a causa desta inflação — não há que o esquezer — é, em última análise, o conjunto das técnicas neo-capitalistas, tendente a evitar uma crise económica catastrófica do tipo da de 1929-32. A causa da inflação do dólar é a política de armamento e de guerra, o aumento dos créditos no sector privado, o endividamento crescente do Estado, das empresas e dos particulares.(9) Mas, uma crise económica catastrófica nos Estados Unidos estender-se-ia automaticamente a todos os países imperialistas. Querer, portanto, a todo o preço, "estancar" (afogar) a inflação norte-americana, é, para os outros países, um remédio pior que a doença. Por isso é que se pode prever, com toda a certeza, que a inflação persistirá. Qualquer debate diz exclusivamente respeito à sua amplitude e à repartição dos seus encargos entre as várias potências imperialistas.

Há, portanto uma contradição inextricável entre o dólar, instrumento da luita anti-crise nos Estados Unidos e no mundo capitalista por um lado e, moeda de reserva do sistema monetário internacional, por outro lado. Esta contradição desdobra-se numa segunda contradição: entre o dólar, meio de troca internacional e o dólar, meio de pagamento internacional. No primeiro papel, o dólar deveria ser tão abundante quanto possível (o que significa na prática que o seu aprovisionamento é "flexível" e o seu valor fortemente instável). No segundo papel, deveria ser tão estável quando possível, o que significa que o seu aproveitamento deveria adaptar-se rigidamente às necessidades (a superabundância desmantela automaticamente o valor dos signos monetários de substituição).

Esta contradição reflecte um conflito de interesses no seio da burguesia mundial. Os que vendem e compram produtos aos Estados Unidos, principal sector do mercado mundial, estão interessados num abastecimento abundante, até mesmo inflacionista em dólares; as flutuações do seu poder de compra (salvo as que são a curto prazo) não os importunam. Mas os que possuem bens em dólares (obrigações públicas e privadas, avultados depósitos bancários, grandes títulos de seguros) estão interessados no máximo de estabilidade do poder de compra do dólar. Os bancos centrais em todo o mundo e a maior parte dos bancos particulares encontram-se na segunda categoria; uma grande parte dos trusts industriais estám incluidos na primeira (sobretudo se estão fortemente endividados em dólares!).

As grandes transferências internacionais de capitais

Sempre que o déficit da balança de pagamentos resulta do deficit da balança comercial, não há discussão possível sobre as causas das perdas de reserva de troca. Notemos simplesmente, de passagem, que um tal deficit da balança comercial não exprime necessariamente a fraqueza fundamental duma economia capitalista. No século XIX, o capitalismo britânico pôde, durante longo tempo, dar-se ao luxo duma balança comercial deficitária; as suas exportações de produtos industriais manufacturados eram cronicamente inferiores às suas importações de víveres e de matérias-primas. Mas este deficit era mais que compensado polas entradas "invisíveis" provenientes sobretudo dos lucros dos capitais britânicos investidos no estrangeiro.

A aparição brusca de deficits da balança de pagamentos em países que não têm um deficit crónico da balança comercial pode ter causas diversas:

a] Pode resultar duma brusca presão inflacionista muito mais forte do que na maior parte dos seus principais comparsas comerciais imperialistas. Neste caso, há um deficit brusco de balança comercial que causa essencialmente o deficit da balança de pagamentos. Foi este o caso da Itália em 1963 e do Japão em 1963-64.

b] Pode resultar de despesas "invisíveis" cronicamente deficitárias. É uma das causas do deficit crónico da balança de pagamentos dos Estados Unidos. De entre as despesas "invisíveis", é necessário mencionar, contudo, em primeiro lugar, quanto a esta potência imperialista, as despesas militares no estrangeiro.

c] Pode resultar dum excesso crónico das exportações de capitais em relação com a balança comercial ainda credora, mas não suficientemente credora para financiar tais exportações. Esta é, em parte, a situação actual dos Estados Unidos.(10)

d] Pode resultar dum brusco movimento de capitais a curto prazo.

A este propósito é preciso distinguir duas categorias de capitais: A primeira reflecte o fenómeno geral da "super-capitalização nos países imperialistas, isto é, a existência de vários miles de milhões de dólares não investidos a longo prazo, que só procuram lucros rápidos e que são transferidos rapidamente dum país para outro em função de dous critérios: a taxa de lucro obtida e as previsões de fluctuações de poder de compra (do "valor") das diversas moedas nacionais. Os vai-e-vens desta "hot money"(11) em Londres foram incriminados largamente para explicar algumas das numerosas borrascas que atingiram a libra esterlina desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

A segunda categoria de movimentos de capitais está ligada à aparição dos grandes trusts multinacionais, da corporação internacional. Visto que, por definição, a corporação tem ramificações em grande número de países, e que as suas dimensões são gigantescas (a totalidade anual dos negócios pode facilmente ultrapassar o orçamento de qualquer Estado capitalista de importância média), poderia acarretar a transferência, duma só vez, do correspondente a dezenas de milhões de dólares dum país para outro. Tais movimentos de capitais podem provocar importantes flutuações do valor das divisas, as quais oscilam à roda das taxas de câmbio oficiais segundo a lei da oferta e da procura.

Por outro lado, estes trusts mundiais detêm importantes reservas em dinheiro líquido e têm interesse em transferir rapidamente estas reservas dum país para outro, sempre que esteja à vista a mais pequena ameaça de desvalorização monetária. Até mesmo uma flutuação da taxa de câmbio da ordem dos 2% pode representar um ganho ou uma perda de meio milhão de dólares para um firma que possua uma reserva líquida de 25 milhões de dólares, repartida por cinco países importantes. Vê-se, assim, que o primeiro movimento — o movimento chamado "especulativo — e o segundo movimento ligado directamente à concentração internacional de capitais— não são totalmente diferentes um do outro, mas têm tendência para se interpenetrarem.(12)

Estes dous movimentos não podem ser considerados como independentes da situação fundamental de cada uma das potências imperialistas e do sistema capitalista considerado no seu conjunto. O que se passa na esfera da circulação reflecte, em última instância, o que se passa na esfera da produção. A "desconfiança" dos "especuladores" a respeito duma moeda, exprime um juízo — geralmente bem fundamentado — sobre a evolução futura da balança dos pagamentos, quer dizer, sobre a solidez futura da moeda em questão. Prevendo que uma moeda se desvalorizará, os detentores de grandes quantidades dessa moeda desembaraçam-se dela, precipitando assim, senão a sua queda polo menos um agravamento do seu valor no mercado de trocas. A antecipação do movimento acelera este agravamento. Mas, em última análise, não é a antecipação a causa da queda mas o próprio movimento em si.

A recente especulação em volta do franco francês e do marco alemão ilustra melhor do que nada o que acabamos de afirmar. Se bruscos movimentos de capitais (ultrapassando em volume o equivalente a 3 000 milhões de dólares Paris-Zurich e Paris-Frankfurt desde Maio de 1968) ocassionaram a crise monetária de Novembro de 1968, de modo nenhum a causaram, as suas causas são muito mais profundas.

Desde Maio de 1968 a situação competitiva da indústria francesa deteriorou-se fortemente, quer polo acrescentamento dos custos salariais, quer pola inflação acelerada. Era, então, desde essa altura inevitável um deficit acentuado da balança comercial: eis a fonte real da "desconfiança", ligada também a um descontentamento do grande capitalista perante o aumento dos direitos de sucessão e de alguns impostos que tocam a burguesia (medidas que a imprensa burguesa, com o seu sublime sentido de a propósito, caracterizou como golpe "pouco habilidoso").

Por outro lado a economia da Alemanha Ocidental, depois da recessão de 1966-67, encontrou-se numa situação triplamente privilegiada. Os preços permaneceram praticamente estáveis, é dizer, a sua capacidade concorrencial aumentou não só em relação aos seus concorrentes "naturais", tais como Grã-Bretanha, o Japão, a França e Itália, mas ainda em relação aos Estados Unidos (de Junho de 1965 a Junho de 1969, o índice dos preços de consumo aumentou de 7 pontos na Alemanha Ocidental, de 9 pontos na Itália, de 10 pontos nos Estados Unidos, de 12 pontos na França e de 14 pontos na Grã-Bretanha). Na Alemanha Ocidental a taxa de crescimento da massa monetária total, de 1962 a 1967, mantevese só 5% por cima da taxa de crescimento do produto nacional bruto, enquanto em França o mesmo alcançou 15%. Os encargos militares e improdutivos na Alemanha que profundamente agravam o orçamento são bastante mais fracos do que os de qualquer grande potência imperialista, isto é, o mecanismo interno da inflação automática é mais moderado do que nas outras potências. Finalmente, o marco alemão não é nem será moeda de reserva e, por isso, está mais ao abrigo do que outras divisas de futuros movimentos especulativos. É esta a verdadeira razão por que os capitais que se afastaram do franco francês e da libra esterlina se orientaram para a Alemanha.

Por outro lado pode-se afirmar, que em última análise — sem dar a esta fórmula um sentido mecânico — a relação de força entre as divisas dos países imperialistas (as flutuações a médio e a longo prazo das suas taxas de troca) reflectem as relações reais de força económica, isto é, os seus diferentes níveis de produtividade e a sua capacidade competitiva no mercado mundial. Assim, o enfraquecimento do dólar, quaisquer que sejam os seus aspectos contraditórios, reflecte claramente um declínio relativo do poder do imperialismo americano no conjunto do sistema capitalista mundial, principalmente em relação aos seus concorrentes (e aliados) imediatos.

As reformas que se propõem ao sistema monetário internacional

Evidentemente, a burguesia mundial não fica passiva perante a degradação constante do seu sistema monetário internacional. Nos últimos anos sucedem-se os projectos de reforma. Vários projectos foram mesmo discutidos a um nível semi-governamental e governamental, principalmente quando da última reunião anual do Fundo Monetário Internacional em Setembro - Outubro de 1968 em Washington (na véspera da borrasca de Novembro, que diga-se de passagem, não tinha sido prevista de modo nenhum). A análise destes diversos projectos de reforma permite “compreender melhor” as contradições que atingem o conjunto da economia capitalista internacional e as contradições inter-imperialistas.

1. O retorno ao padrão-ouro. — É a tese defendida na França por Jacques Rueff que goza do apoio do regime gaullista. Já indicamos os perigos que implica, bem conhecidos polo Grande Capital e polos seus economistas. Não há nenhuma possibilidade de que seja admitida esta reforma pola burguesia internacional, a começar pola dos países anglo-saxónicos. A mentalidade do pequeno rendeiro conservador reflecte-se na confiança cega manifestada por De Gaulle num “metal de valor inalterável”. Pola sua boca, é o velho camponês que fala, ocupado na sua acumulação primitiva, ocultando moedas de ouro sob o seu saio de lã.

Há mais dum século que os capitalistas industriais, ao contrário dos rendeiros e os usurários, sabem que, como Marx dizia, a quantidade de trabalho social que serve para produzir meios de troca e de pagamento não representa mais do que “faux frais(13) da produção social, e portanto reduz as forças produtivas reais; para o sistema seria do maior interesse reduzir ao máximo esta quantidade e não aumentá-la.(14)

2. A revalorização do ouro. — Segundo Rueff, o retorno ao padrão-ouro deveria ser acompanhado dum aumento do preço do ouro; se possível para o dobro (35 a 70 dólares por onça). Isto estimularia, por um lado, a produção de ouro e ao mesmo tempo o seu afluxo para os cofres dos bancos centrais.(15) Por outro lado permitiria a estes bancos suprimir o emprego de moedas de reserva, uma vez que toda a circulação monetária actual das potências imperialistas — e mesmo uma nova expansão destes meios de circulação — poderia assentar na massa de ouro, consideravelmente revalorizada. É claro que esta solução, sem ser acompanhada dum retorno ao padrão-ouro, tenta as potências imperialistas. Sem dúvida que é nesta via que se caminha por etapas. O estabelecimento dum duplo preço do ouro (preço no mercado livre particular e preço pago polos bancos centrais) em Março de 1968, marcou uma primeira etapa para o abandono do preço de 35 dólares por onça estabelecido em 1934.

Como avaliar esta reforma? Procura simplesmente expressar a inflação generalizada, sem suprimir de maneira nenhuma os seus motivos e causas essenciais, e mesmo sem os esconder. De há trinta e cinco anos para cá, todos os preços subiram (em papel-moeda), enquanto o preço do ouro permaneceu estável. Esquece-se, por de pronto, que no mesmo período, se registou um desenvolvimento prodigioso da produtividade do trabalho em quase todos os ramos industriais, sem que se tivesse produzido nada de equivalente na indústria do ouro.(16) Expressas em valor, quer dizer, em quantidades de trabalho socialmente necessárias para produzir um e outras, as relações entre o ouro e as restantes mercadorias, por tanto, evoluíram fortemente no sentido duma baixa de valor das mercadorias expressa em ouro. Revalorizando o "preço do ouro", sem dúvida acabar-se-ia por limitar as posições relativas entre o valor do ouro e as restantes mercadorias. Mas atingir-se-ia, de certo modo, esse mesmo objectivo, "legalizando" alta dos preços ou mesmo estimulando-o (não há dúvida que o aumento do preço do ouro desencadearia um processo geral de crescimento da massa monetária). A baixa no valor das mercadorias — em relação ao valor do ouro — exprimir-se-ia, por conseqüência, numa alta acentuada dos seus preços. Não se poderia dizer melhor que o meio de troca — do papel-moeda — se encontra em estado de inflação pronunciada.

Acrescentemos que, se há manifestamente sub-avaliação do ouro nas condições actuais, ninguém pode afirmar qual seria o preço normal do metal no mercado, na ausência dum valor oficial estabelecido polos bancos centrais. Os preços actuais no mercado livre são influenciados fortemente pola antecipação da recuperação do preço de compra por parte dos bancos. Uma comparação efectiva de valor — o cálculo da quantidade de trabalho na produtividade média mundial — poderia provocar muitas surpresas.(17)

3. A desvalorização do dólar. — O aumento do "preço do ouro" seria na realidade uma desvalorização geral de todas as moedas relacionadas com o mesmo padrão-ouro. Mas, no momento desta desvalorização, as relações reciprocas entre as divisas imperialistas poderiam ser revistas. Por exemplo seria a ocasião de obter, quanto ao imperialismo norte-americano, uma desvalorização do dólar, principalmente em relação a algumas divisas como o marco alemão, o franco suíço, o florím e até mesmo o yen e a lira. A camada industrial da burguesia dos EUA poderia, com esta virada, reduzir a enorme diferença dos seus gastos salariais em relação aos dos seus concorrentes imediatos e, por essa via, fazer parar a alta inquietante das importações para o mercado norte-americano e ao mesmo tempo estimulando as exportações americanas. Por recíprocas razões, os concorrentes do imperialismo americano estão evidentemente reticentes. Esta reticência torna-se em indignação quando se evocam projectos deste género diante dos burgueses, banqueiros ou rendeiros que possuem grandes pacotes de obrigações em dólares.

4. A unificação das moedas do Mercado Comum e o seu emprego como moeda de reserva. — A criação dum "eurofranco" está em estudo há bastante tempo. Para que se torne uma realidade, não basta uma unificação das reservas de troca à escala europeia; ainda seria necessária a criação dum poder estatal europeu. Uma e outra cousa são inconcebíveis sem uma etapa muito mais avançada de interpenetração europeia dos capitais. Para que os capitalistas europeus abandonem a ideia da "soberania nacional" e o emprego do Estado nacional como instrumento de defesa e garantia dos lucros dos grandes monopólios, seria necessário que os seus interesses, isto é, a propriedade destes monopólios se tivesse europeizado previamente.

Por ocasião da desvalorização da libra esterlina levantou-se a possibilidade da sua fusão entre ela e este "eurofranco". A nova moeda retomaria as funções de moeda de reserva que a libra cumpre de forma cada vez menos satisfatória. Evidentemente, isto presupõe a entrada da Grã-Bretanha no Mercado Comum e a participação da burguesia britânica na criação de grandes monopólios europeus, em face dos seus concorrentes norte-americanos. Mas, dando de barato que estas condições fossem satisfeitas e o eurofranco, em virtude do lugar preponderante que uma Europa Ocidental ocuparia então no mercado mundial,(18) pudesse efectivamente cumprir o papel de moeda de reserva nos países imperialistas pequenos (como os países escandinavos, Austrália, Nova Zelândia), e sobretudo os países semi-coloniais, isto não seria mais que um retorno à situação de começos da década de 1950, que levaria ao mesmo resultado após algum tempo. Porque este eurofranco ficaria submetido implacavelmente à inflação, a não ser que os capitalistas europeus preferissem um krack do género de 1929. E a inflação da moeda de reserva desencadearia o mecanismo da crise do sistema monetário internacional.

5. A criação dum papel-moeda mundial, "Moeda dos bancos centrais". — A crise do sistema do padrão de troca ouro provém da inflação inevitável que atinge as moedas de reserva, polo facto da sua função de instrumento de política anti-crise no seio das potências imperialistas que as emitem (quando dizemos "instrumento de política anti-crise, evidentemente incluimos também "instrumento de política de rearmamento permanente", etc.). Para escapar desta tara congénita, os economistas imaginaram uma solução muito simples: Porque não criar uma moeda de reserva que não tivesse preço corrente em nenhuma economia nacional e que fosse simplesmente uma "moeda entre bancos centrais"?

Esta moeda estaria longe de ser atingida polos ataques inflacionistas nacionais. Estaria regulada por um conselho mundial de governadores dos bancos centrais (ou de ministros das Finanças), que aplicariam uma disciplina estrita: a sua emissão dependeria exclusivamente das necessidades do comércio mundial, e não das necessidades próprias de qualquer potência nacional. Seria "boa como o ouro", pois que, sendo emitida em quantidades estritamente limitadas e medidas, resolveria o problema da penúria da liquidez internacional e evitaria todas as crises do sistema actual. Trata-se, por outros termos, dum projecto de criação duma "moeda mundial". E os famosos "direitos especiais de saque", imaginados em Março de 1968 são um primeiro passo, embora modesto, nesta via.

A primeira proposta importante neste sentido foi feita por Keynes em 1943; ele chegou mesmo a encontrar um nome para esta moeda mundial, o bancor. Em Breton-Woods, os norte-americanos insistiram no projecto, que foi esquecido, até que a crise do sistema monetário internacional a trouxe à luz, vinte anos depois.

Estas propostas vão chocar a duas dificuldades intrasponíveis. A primeira, que não é verdade que tal sistema esteja ao abrigo da inflação das diversas moedas "nacionais". Com efeito, se a balança de pagamentos dum país está deficitária, e se este país recusa a deflação para evitar a crise económica, acabará por desfazer-se de todo o seu ouro se não obtiver uma quantidade suplementar de "moeda de reserva mundial". Assim, a inflação universal virá por expulsar o ouro fora das reservas de troca.
As suas reservas seriam compostas, cada vez mais, exclusivamente por "moeda mundial"; a quantidade emitida, por sua vez, deveria aumentar em proporção maior que as trocas mundiais, sob pena de condenar os países imperialistas à deflação, que a bom seguro recusariam. Por conseqüência, a inflação das moedas nacionais acabaria por se repercutir sobre a "moeda mundial".

Em segundo lugar, tal "moeda mundial", gerida por um "conselho mundial", pressupõe que seja um cenáculo de peritos "independentes" face todos os governos e de quaisquer potências imperialistas, o que é uma ficção; ou bem uma solidariedade total e sem falha entre as potências imperialistas, o que é uma quimera.

Sem dúvida nenhuma que há uma certa dose de solidariedade entre essas potências perante uma "ameaça comum" (que não é somente a dos Estados operários burocratizados, ou a revolução socialista como em Maio de 1968 na França, mas ainda a ameaça dum afundimento de todo o sistema monetário internacional). Mas a realidade é mais complexa: a unidade dialéctica de solidariedade e concorrência entre as potências imperialistas. Enquanto houver divergência de interesses e concorrência, a "neutralidade" do "conselho de gestão" é totalmente ilusória; este conselho reflictirá as relações de força em constante movimento entre as potências. Um "conselho de gestão da moeda mundial acima dos problemas" (entenda-se a dos problemas internacionais, não dos conflitos entre forças sociais antagónicas) pressupõe na realidade, um "governo mundial", quer dizer, um "super-imperialismo", uma fusão dos interesses imperialistas pola co-propriedade dos principais monopólios à escala mundial. Estamos muito longe de tal estado de cousas.

A conclusão é clara: todas as reformas do sistema monetário internacional aplicáveis não representam mais do que um acréscimo da inflação inernacional. Esta só pode ser realmente sufocada à custa dum retorno ao padrão-ouro ortodoxo, isto é, à custa duma nova crise económica extremamente grave. O sentido da reforma é, quando muito, atenuar a crise, não suprimi-la. Esta crise durará tanto tempo quanto o modo de produção conseguir sobreviver.

O significado da crise do sistema monetário internacional

Na escala histórica, o desenvolvimento das forças produtivas irá chocar, cada vez mais, não só contra a propriedade privada dos meios de produção, mas ainda contra os estreitos limites do Estado nacional, nas quais se afogam mais cada dia. Tal como as guerras imperialistas — praticamente impossíveis hoje polas ameaças que pesam sobre o conjunto do sistema—, a tentativa de integração económica da Europa capitalista, a propaganda por "uma comunidade atlântica", o aparecimento de instituições como "o clube dos dez" (que reune as principais potências imperialistas) o "pool do ouro", a agitação em favor duma moeda mundial, tudo isto exprime as tentativas da burguesia imperialista de resolver essas contradições à sua maneira. Ao mesmo tempo reflectem também a impossibilidade de chegar a resultados estáveis por esse caminho.

O mundo está amadurecido para uma planificação económica à escala global; isto implicaria uma única moeda mundial que poderia suprimir ao máximo os faux frais que arrasta a fabricação de ouro para fins monetários. Mas só o socialismo é capaz de realizar estas possibilidades e as promessas que elas encerram. Para o capitalismo continuarám a ser eternamente uma fata morgana.

Não se pode planificar globalmente a moeda à escala mundial, quer dizer, à esfera da circulação, sem planificar simultaneamente a produção. A combinação duma "moeda dirigida" e a anarquia da produção conduziu a uma inflação permanente em todos os países imperialistas. Não há razões polas que poderia desembocar num outro resultado à escala internacional.

Ora, a propriedade privada dos meios de produção, isto é, a descentralização das decisões importantas de investimentos, implica a inevitabilidade das flutuações económicas e a anarquia da produção. A fenda entre o aumento da capacidade de produção e os limites que impõe à capacidade de consumo solvável das massas, dá a estas flutuações e a esta anarquia a tendência para crises periódicas de sobreprodução. O neo-capitalismo não pode evitar estas flutuações e estas crises, como tão-pouco pôde fazer o capitalismo de livre concorrência e o imperialismo clássico. Pode simplesmente amortecer as crises mais graves tansformando-as em recessões mais moderadas, à custa duma inflação permanente.

Se a inflação — enquanto permanece moderada — não é incompatível com o funcionamento, mais ou menos normal do capitalismo dos monopólios nos principais países imperialistas, quando é que tem provocado uma crise grave no sistema monetário internacional, ameaça perturbar, cada vez mais, as trocas mundiais pola inflação das moedas internacionais de reserva. Esta é a etapa que se tem aberto agora na história do neo-capitalismo. As potências imperialistas procurarão e tratarão de aplicar remédios parciais. Cada remédio reflectirá, além do desejo de reformar o sistema no seu conjunto, os interesses concorrenciais particulares existentes em cada etapa desenhada. A inflação jamais se deterá.

A posição privilegiada que o dólar ocupou durante dous decénios no sistema monetário internacional reflectia a situação excepcional da economia norte-americana e a força do seu imperialismo no seio do sistema capitalista internacional. Esta situação modificou-se gradualmente; esta força está em declínio relativo. Qualquer reforma do sistema monetário internacional, por pouco viável que ela seja, reflictirá, por tanto, forçosamente as novas relações de força no seio do sistema, isto é, diminuirá consideravelmente ou mesmo suprimirá o papel da libra, reduzirá o papel do dólar e enfraquecerá igualmente o papel do ouro. As relações de força resolverão em definitivo a questão se são as divisas europeias unificadas ou se são as experiências parciais da "moeda mundial", que se substituirão ao papel declinante do ouro, da libra esterlina ou ainda do dólar como meio de pagamento inernacional.(19)

Qualquer ajustamento do sistema monetário internacional, assim como qualquer modificação das paridades monetárias nacionais, não é só uma arma da concorrência inter-imperialista, mas também um instrumento de luita de classes nacional e internacional. O esforço concentrado do grande capital consiste agora em fazer pagar aos trabalhadores o preço da inflação e da sua "reforma". A crise do sistema monetário internacional tende, portanto, a acentuar os conflitos de classes no seio dos países imperialistas, uma vez que reflecte uma exarcebação da concorrência inter-imperialista; cada classe burguesa é obrigada a sanar a SUA SITUAÇÃO competitiva à custa dos seus próprios obreiros. As manifestações desta tendência multiplicam-se desde há quatro ou cinco anos na Europa; e dentro em breve atravessarão o Atlântico para atingir primeiro os Estados Unidos e Canadá e depois o Japão.

A questão de saber se a longo prazo todos estes artifícios que mantém de pé a colossal pirâmide carregada de créditos, de dívidas e de papel-moeda inflacionista acabarão por se afundar, e se, por conseqüência de "x" número de recessões veremos de novo um krack do género de 1929, na etapa actual não tem nenhum interesse para o movimento revolucionário. O marxismo nunca ligou a perspectiva da revolução socialista à duma crise económica de gravidade excepcional como foi a da 1929 (na realidade, um facto único em toda a história do capitalismo). Simplesmente fez ligar esta perspectiva da perspectiva das contradições económicas e sociais do sistema. Estas contradições, incluida a impossibilidade de evitar as crises e as flutuações económicas, são hoje como ontem mais visíveis e sensíveis, mesmo se as crises são menos graves que as de 1929 ou de 1937 (as recessões são apenas isto, crises menos graves que as de 1929 e 1937, sobretudo polo número de desempregados que provocam).

Ao exasperar os conflitos sociais, a crise monetária internacional revela a doença do sistema em sua totalidade. Cria, ao mesmo tempo, ocasiões cada vez mais propícias a combates de classe que abrem períodos pré-revolucionários como o que conheceu a França em Maio-Junho de 1968.(20) Compete aos revolucionários utilizar estas contradições, estes conflitos e estas recessões, a fim de obter o derrubamento do capitalismo, o que é objectivamente possível. Falar sobre o "grande krack como o de 1929", esconde muitas vezes a recusa em compreender o que já é possível fazer, e a recusa em se comprometer a fazê-lo.

1 de Dezembro de 1968.


Notas:

(1) “O dilema perante o qual se encontra o Estado na era do capitalismo em declínio, é a escolha entre a crise e a inflação. Não pode evitar-se a primeira sem que a segunda se veja acentuada. A capacidade de resistência monetária –que, por definição, está limitada no tempo– parece como o obstáculo inultrapassável com o que, em longo prazo, choca a intervenção moderadora do Estado no ciclo econômico. A contradiçao entre o dólar, instrumento anti-cíclico nos Estados Unidos, e o dólar, moeda-padrão no mercado mundial, tornou-se inultrapassável”. Assim o sinalávamos em 1961 (Tratado de economia marxista, tomo II, pp. 192-193, Editions Julliard, Paris.) (retornar ao texto)

(2) Cf. Karl Marx, O Capital. Ed. Fondo de Cultura Económica, México, 1959, vol. II, parte I, cap. IV, secção 3. (retornar ao texto)

(3) "Os preços das mercadorias só podem baixar com caráter geral quando se mantém igual o valor do dinheiro (de ouro EM), ou baixam os seus valores" (K. Marx, O Capital, ed. cit., t. I, cap. III, p. 60). (retornar ao texto)

(4) No regime de padrão-ouro, o ouro é um instrumento de medida dos preços; estes exprimem-se em relação a uma quantidade fixa de ouro ( por ex. uma libra). Nestas condições, o "preço do ouro" exprime-se de maneira seguinte: 1 gr. de ouro vale 1/500 duma libra de ouro, o que é uma tautologia evidente. Em regime de papel-moeda apoiada em ouro, a tautologia manter-se-á completa. Se, por definição, 1 dólar = 1 gr. de ouro, a expressão " o preço do ouro é de 28 dólares a onça ( de 28 gr.)" não tem sentido; não se trata dum preço, mas do resultado duma cobertura-ouro determinada da moeda-papel. Evidentemente, não acontece o mesmo quando os bilhetes de banco são emitidos em quantidade superior à massa de ouro existente no banco central. Quando se trata de sinais monetários, o seu valor, em relação ao ouro, mede-se pola sua quantidade. O "preço do ouro" é, nestas condições, a recíproca da moeda de papel. No regime actual do " gold standard exchange", o "preço do ouro" representa o valor do dólar fixado pola Federal Reserve System dos Estados Unidos em relação ao ouro. (retornar ao texto)

(5) É evidente que simplificamos. A massa monetária não serve somente como meio de troca de mercadorias, mas também como meio de pagamento. (retornar ao texto)

(6) O deficit corrente da balança de pagamentos sempre exprime um estado de inflacção. A massa de poder de compra em circulação dentro do país é superior ao valor dos bens e dos serviços no mercado. O excesso de poder de compra atrai os produtos estrangeiros para este país. (retornar ao texto)

(7) Não há que esquecer que a seguir à Segunda Guerra Mundial, os países imperialistas lastimavam-se não de inflação de dólares, mas de penúria de dólares no mercado mundial. O deficit da balança de pagamentos nos Estados Unidos — criado sobretudo por um afluxo de dólares à Europa e à Ásia sob a forma de "ajuda ao estrangeiro" — permitiu ultrapassar esta penúria e alimentar as reservas de troca com uma totalidade largamente superior ao que a produção mundial de ouro teria podido fornecer. Quanto aos países semi-coloniais, que são tributários dos países imperialistas e conhecem em geral uma inflação bem mais grave que a do dólar, a sua burguesia considera ainda hoje o dólar como maná abençoado, e não como "moeda-sofisma". (retornar ao texto)

(8) Esta desgraça passou-lhe a vários governos de países semi-coloniais, que gravitam na zona de influência do imperialismo britânico, principalmente alguns países árabes, que são grandes exportadores de petróleo. Quando da desvalorização da libra esterlina em Novembro de 1967, o valor das reservas de troca que tinham acumulado foi seriamente amputado dum só golpe. (retornar ao texto)

(9) Não há que confundir fontes de inflação monetária e causas de carestia da vida: as últimas não se reduzem às primeiras. É preciso juntar-lhes a política dos preços dos grandes monopólios (política dos "preços administrados", ou dos "investimentos polos preços") que se aproveitam sobretudo do aumento de salários conseguido polos trabalhadores, para aumentarem a sua margem de lucros. (retornar ao texto)

(10) Dizemos, "em parte", porque uma fracção importante dos investimentos de capitais norte-americanos no estrangeiro, tanto na Europa Ocidental como nos países semi-coloniais, não ocasiona transferências reais de capitais dos Estados Unidos, mas é financiada por capitais de empréstimo, no local. A "Conta Capital" dos Estados Unidos está praticamente em equilíbrio. As exportações efectivas de capitais (isto é, as que ocasionam uma saída de dólares dos Estados Unidos) são compensadas por uma entrada equivalente de dividendos e de lucros produzidos polos capitais anteriormente investidos no estrangeiro. (retornar ao texto)

(11) Literalmente: "dinheiro quente". (retornar ao texto)

(12) Sobre a concentração internacional de capitais, as sociedades multinacionais e as suas relações com a inestabilidade crescente do sistema monetário internacional, ver o meu livro Le Marché Commum et la concurrence Europe-Amérique. La Réponse Socialiste ao Défi Americain [O Mercado Comum e a concorrência Europa-América. A Resposta Socialista ao Desafio Americano], Editons Maspero, próximo a publicar na França. (retornar ao texto)

(13) Falsos gastos. (retornar ao texto)

(14) A totalidade da força de trabalho e dos meios sociais produção investidos como meios de circulação na produção anual de ouro e prata constitui um encargo pesado dos “falsos gastos” do modo capitalista de produção e, em geral, de qualquer modo de produção baseado na produção de mercadorias. Desvia da utilização social uma soma proporcional de potenciais meios de produção e de consumo, isto é, uma parte proporcional de riqueza real.. Enquanto, partindo duma escala determinada e invariável da produção ou dum determinado grau de expansão, reduzem-se os gastos desta máquina dispendiosa de circulação, aumenta, a força produtiva do trabalho social. Por isso é que na medida em que o desenvolvimento dos meios de substituição, através do crédito, atinge este efeito, eles aumentam directamente a riqueza capitalista...” K. Marx, O Capital, ed. Cit., t. II, cap. XVII, p.309. (retornar ao texto)

(15) A espectativa dum aumento no "preço do ouro" (isto é, duma desvalorização do dólar) estimulou fortemente o entesouramento durante alguns anos. Em 1966 e 1967 o equivalente de toda a produção de ouro do mundo capitalista entrou bastante mais nos cofres dos especuladores do que nas reservas dos bancos centrais. É interessante lembrar o pensamento de Marx quando assinala que sem o desenvolvimento do sistema de crédito e dos sinais monetários de substituição (moeda de crédito), o regime capitalista teria encontrado os seus limites no volume de produção dos metais preciosos. (retornar ao texto)

(16) É certo que a alta constante dos custos de produção, enquanto o preços de venda permaneceram estáveis durante mais de trinta anos, incitou os capitalistas que exploram as minas auríferas, a aumentar a racionalização do trabalho e a fechar as minas marginais, o que, ainda assim, aumentou a produtividade média do trabalho neste sector. (retornar ao texto)

(17) Por várias vezes, os dirigentes imperialistas norte-americanos ameaçaram "desmonetizar o ouro". Acreditavam que, se os bancos centrais deixavam de comprar ouro e lançavam todos os seus stocks no mercado, o preço do ouro — que unicamente seria comprado polos que o ussam industrialmente — desmoroar-se-ia. Este suposto teria sido mais realista na época em que os Estados Unidos detinham dous terços do ouro mundial; e não foi por acaso que o não fizeram naquela altura. Hoje não há possibilidade de todos os governos capitalistas (já sem falar dos governos dos Estados obreiros) aceitarem tal proposta. Portanto, qualquer "desmonetização" seria apenas parcial e a inflação das moedas de papel continuaria e o ouro seguiria a ser comprado, tanto polos governos quanto polos particulares, como garantia contra uma desvalorização periódica das divisas. (retornar ao texto)

(18) Os países capitalistas da Europa têm por sua conta mais de 50% das exportações mundiais. Mesmo se se eliminar desta quantidade as trocas intra-Mercado Comum (e não há nenhuma razão para fazer tal substracção), este percentagem é superior a 40%. (retornar ao texto)

(19) É necessário sublinhar que a economia capitalista internacional conhece uma verdadeira "crise de liquidez internacional", que atinge os países semi-coloniais ainda mais fortemente que os países imperialistas. Antes de 1940, a totalidade das reservas de troca de todos os países era mais ou menos igual ao valor das importações anuais mundiais. Em 1964, estas reservas (das quais somente 60% são de ouro) não representavam já mais do que 43% das importações mundiais. (retornar ao texto)

(20) Se na França os estudantes desempenharam o papel dum detonador em Maio-Junho de 1968, foi porque existia a matéria explosiva. Esta matéria explosiva estava constituída de maneira precisa — além das causas gerais produzidas polo neo-capitalismo, mas que não explicam as razões desta explossão se produziu na altura e não em 1961 ou em 1973 — polas conseqüências de reivindicações operárias não satisfeitas, resultantes do "plano de estabilidade" de Giscard d´Estaing, da recessão que este provocara em 1964 e da "relance" polas ordenanças de 1967, assim como polo aumento do desemprego dos jovens desde há um ano. Estes três fenómenos estão intimamente ligados à inflação e às tentativas para a limitar no quadro da concorrência inter-imperialista (Ver a este respeito: Daniel Bensai e Henri Weber: Mai 68: une repetition génerale, Paris, Maspero, 1968, pp. 147-151) (retornar ao texto)

Inclusão 05/11/2008
Última alteração 21/01/2013