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Bahia, 2 de setembro de 1953.
Velho amigo e querido Leopoldo Machado:
Paz para a humanidade, que, só daí, virá a paz definitiva para todos nós, individualmente.
Começo, assim, por uma proposição, que é contrária à que a maioria dos espíritas, desde a Federação Espírita Brasileira até V., costuma pregar. Em verdade, V.V. ensinam que a perfectibilidade do homem – ou o progresso, enfim, sob todos os seus aspectos – será uma conseqüência do aperfeiçoamento moral do indivíduo. Eis aí o erro, de que não escapou o próprio Allan Kardec, ainda sob a influência da filosofia individualista, ao escrever em “O Livro dos Médiuns” (n. 350), que o Espiritismo, para transformar a Humanidade, precisa melhorar as massas, “o que se verificará geralmente, pouco a pouco, EM CONSEQUÊNCIA DO APERFEIÇOAMENTO DOS INDIVIDUOS”.
A mesma coisa diz o Mestre, como opinião pessoal, no início do comentário ao n9 789 de “O Livro dos Espíritos” – “a Humanidade progride, por meio dos indivíduos, que, pouco a pouco, se melhoram e instruem”.
Temos um trabalho inédito, para ser publicado, quando as finanças no-lo permitirem, sobre esse tema. E chegamos à conclusão do que afirmamos, em virtude de um melhor estudo na natureza social do Espiritismo. Estudamos a doutrina, sem levar em conta opiniões pessoais, e verificamos, à luz dos princípios cardeais da mesma, dentre os quais sobreleva a lei do progresso, que ele, o progresso, não é obra de um homem, mas do movimento coletivo, obediente a leis naturais (Liv. Esp., n9 781); e verificamos que esses erros resultam do falso conceito de ser o Espiritismo “uma religião” ou “a religião”, ou “religião” como queiram.
Qualquer religião é, por origem e fim, uma manifestação do individualismo.
Foi o homem que criou, à sua imagem, a idéia de um Deus pessoal. Para melhor efeito impressionista dos domínios da moral, materializou, a fé divina em objetos, sagrando-os ainda com a liturgia. Foi o egoísmo primitivo a fonte das religiões. A política dos “chefes” e “conquistadores” (V. nº. 584 Liv. Esp.) aproveitou-se da “religião” para a perpetuação das dinastias e exploração do povo ou das massas trabalhadoras.(1)
Allan Kardec, em falta de mais significativo vocábulo, admitiu o nome de “religião” no Espiritismo; mas, com os seus subseqüentes estudos, ele, como em “Obras Póstumas”, ressaltou que o Espiritismo era, substancialmente, uma filosofia e, por conseguinte, de caráter moral e científico.
Ainda temos em mente a resposta de Lipman Oliver, no “Um Inquérito Original”, publicação feita por V., e onde o entrevistado provou, com as próprias expressões de Kardec, que o Espiritismo não é religião.
Agora mesmo, um artigo em “Mundo Espírita”, de Curitiba, do médico Sérgio Vale, demonstrou que o Espiritismo “NÃO É MAIS RELIGIÃO”. Deparam-se-nos, nesse artigo os mesmos argumentos do nosso citado trabalho inédito.
A crença em Deus, na alma, na vida futura e na prece não é razão bastante para se enquadrar a doutrina na categoria religiosa, porque a convicção proveniente daí é o resultado de uma prova real da existência de leis naturais. A prece é um fenômeno explicável cientificamente, ligado às leis do magnetismo (o Espiritismo e o Magnetismo são duas ciências, que, a bem dizer, FORMAM UMA ÚNICA – Comentário n 555 do Livro dos Espíritos).
Por isso, é de admirar que V, insista em declarar que a música favorece a prece, o que é dizer que a prece não é produto da vontade, mas de exterioridades, eis que essas influem, sobremodo, na importância daquela. Ainda, no livro que, obsequiosamente, me ofereceu, “Graças sobre Graças”, V. declara: “Vimos, ali, na prática, destruídas as teorias que condenam, por inútil ou inócua, a música em tais trabalhos, para preparação de ambientes. . .“ (pág. 27).
Nesse particular, a Federação Espírita Brasileira tem razão em recusar apoio ao uso da música nas sessões espíritas, excetuando nas festividades. Aliás, a Federação se contradiz, porque, se reconhece a essência religiosa do Espiritismo, deveria admitir a música, no caso.
Mas, a verdade é que, desde que o Espiritismo deixa de ser “culto”, não pode ser religião, não pode apegar-se a exterioridades, que, não raro, nos levam ao misticismo.
Se há sessões festivas, como aquela de sua referência no citado livro seu, nas quais o comunicante solicita música, – existem, todavia, outras sessões, em que o espírito pede silêncio. Naturalmente, é possível crer que haja médiuns que se predisponham para agir melhor num ambiente mais vibratório, como que para suprir a insuficiência das vibrações mentais dos assistentes. Um auxílio ao médium, porquanto, como se costuma declarar, tudo, no mundo, é vibração. Quanto mais vibração, mais energia; quanto mais energia, mais força mental, De qualquer modo, apela-se para um motivo que, nas sessões espíritas, favoreça o intercâmbio entre os dois mundos, deste e do além, entre os encarnados e desencarnados. Esse mecanismo está sujeito a leis, que ainda não conhecemos de todo, pois, como V. escreveu, no seu aludido livro, “o Espiritismo é uma doutrina complexa, da qual se disse a primeira palavra e nunca se dirá a última”.
Permitir, entretanto, que artificializemos as vibrações mentais ou, digamos, A CONCENTRAÇÃO ESPIRITUAL, com os acordes musicais, nas sessões doutrinárias, será, no fim, abrir caminho ao enfraquecimento da vontade, que deve ser a única fonte da concentração. E, insensïvelmente, cairemos no misticismo, que é elemento próprio das religiões, misticismo que, por sua vez, é inerente ao espírito individualista gerador do personalismo, sob variantes matizes.
Uma vez, porém, que se encare o Espiritismo como filosofia, sem nenhuma ligação com o religiosismo, acontece que porções de problemas podem ser logicamente apreciados e julgados, na vida de relação humana, como não o poderiam ser com o Espiritismo-religião. Assim com a música, assim com outras ordens de fenômenos.
Em verdade, as grandes questões sociais do momento, como a educação, a assistência social, o trabalho, a política, a liberdade, a democracia, os direitos do homem, o socialismo, o comunismo, a paz, toda uma série de idéias, de atos, de fatos, de pensamentos e de relações humanas recebe um conceito diferente, conforme sejam eles coados através do prisma religioso ou do prisma científico.
O caráter da ciência é ser evolutivo, objetivo e social. A religião é estacionária, subjetiva e individual.
Ora, o Espiritismo, pela sua origem e finalidade, caracteriza-se por não ser obra de ninguém, e tem por fim a perfeição das massas populares, isto é, do todo, da coletividade, seja neste, seja no outro plano da vida infinita.
Logo, Espiritismo, fora da Ciência, que é a Verdade, embora relativa, não é Espiritismo. A relatividade dos conceitos científicos, e, pois, o fato da existência dos erros posteriormente relevados não diminui o nosso respeito pela Ciência, que sempre se baseia na experiência e na observação, e nunca em apriorismos, como é próprio da religião. Nesse sentido, não conhecemos definição mais exata e mais bela da história das Ciências do que a que nos legara o filósofo materialista, F. Engels, ao considerá-la
“a história da eliminação progressiva dos erros, isto é, da sua substituição por um erro novo, MAS CADA VEZ MENOS ABSURDO” (Revista ‘Divulgação Marxista, V. 17/18, pág. 72).
Foi por isso que Allan Kardec, genialmente, matou a questão, penetrando, fundo, no âmago da doutrina, quando, tanto em “A Gênesis”, como em “Obras Póstumas”, sustentou que — “o Espiritismo, caminhando de par com o progresso, jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma novidade se revelar, ele a aceitará” (Gen., n. 55, cap. 1). “Repudiar a ciência é repudiar a obra de Deus” (Ob. Post., 9 ed., págs. 209 e 244).
A ciência provou que o sentido anarquista do individualismo, pelo qual o ensino deve partir do indivíduo para a reforma da coletividade, – conforme a predicação da Fed. Esp. Bras. e de suas congêneres – foi, sobejamente, superado pelo princípio socialista, em face do qual a modificação do ambiente, pela prévia educação das massas, é a mais segura causa para a completa e rápida reforma do indivíduo.
A religião não pensa assim. Agora mesmo, secundando decisões de congressos anteriores, o tal “Congresso Eucarístico de Belém” recomendou aos educadores que, sem a prévia paz íntima de cada pessoa, não haverá a paz social.
A mesma teoria do “espiritismo religioso”. Ora, em face da comprovação dos fatos, essa é uma teoria caduca, porque sem a paz social, nunca atingiremos à segurança da paz individual. Enquanto as nações não reconhecerem o princípio da coexistência pacífica através de acordos econômicos e culturais, entre si, com o respeito à independência e à liberdade de cada povo, não haverá paz neste planeta. Essa coexistência, entretanto, que, ontem, era difícil, porque a ciência agro-biológica estava atrasada, é, hoje, praticável, porque os meios de produção, no campo econômico, se desenvolveram de tal modo, que, aplicado o trabalho à cultura do solo, “que é fonte primacial da nossa subsistência” (n. 706 do Liv. Esp.), teremos uma produção suficiente para a regularidade nas relações mercantis internacionais.
O grande e extraordinário fenômeno social, que enterrou a filosofia individualista, e fez ressurgir a filosofia socialista, repousa na revolução soviética de 1917, que se tornou uma aplicação, na economia política, das leis enunciadas pelos filósofos Karl Marx e F. Engels.
Dessa sorte – e esse é um dos capítulos de um nosso livro inédito — o Marxismo simbolizou (espiriticamente falando) “aquela dor, a realizar uma obra que ao amor não foi possível edificar por si mesmo”, para nos servirmos da transcrição, que ao seu mencionado livro V. apôs, de palavras de Emmanuel.
Já o iluminado Kardec nos advertira que não fugíssemos dos materialistas, pelo só fato do seu materialismo, porque “entre os seus erros se encontram grandes verdades” (n. 145, Liv. Esp.), e merecem, por isso, a nossa estima (Introdução VII).
Estudando-se o Marxismo, apura-se que ele não prega a violência por amor à violência, mas submete os fenômenos revolucionários aos efeitos da lei do progresso, na qual se inclui a da luta dos contrários, isto é, o que é velho, por não mais convir à época, tem que ser substituído pelo novo, sob pena de explosão violenta. Tratando-se de interesses humanos, de respeito à vida corporal, o Marxismo condiciona o curso da história à primazia da posse do alimento, para, daí concluir que o fenômeno econômico é a causa das lutas de classe. Em virtude de tais lutas, caiu o feudalismo e subiu o capitalismo, com o seu “liberalismo econômico”, com base na propriedade particular e na iniciativa privada.
Esse capitalismo, por sua vez, devido às suas incongruências e contradições, como o caso da produção social (oriunda do trabalho coletivo de homens, a título de empregados, operários ou trabalhadores assalariados) ser distribuída para poucos ou para os donos do capital, gerou diversas crises superprodução, criando a crise da baixa dos preços, e sub-produção, aumentando os preços, com as conseqüências do desemprego e da carestia da vida.
O acúmulo de tais crises periódicas determinou o desequilíbrio do trabalho e da economia geral, e, por via de conseqüência, do trabalho e da economia particular.(2)
As vítimas, – no caso, os desempregados e os explorados pela classe endinheirada, a que se deu o nome de burguesa ou capitalista – gritaram, reclamaram, apelaram para a justiça e para a eqüidade. Os poderosos não costumam entregar o poder pela persuasão do argumento, porque só se rendem ao argumento da força material. Dai, a luta sangrenta entre a classe operária, organizada em partido, e a classe burguesa, na Rússia tzarista, em 1917, da qual resultou a revolução proletária análoga, nos seus efeitos universais, à revolução francesa de 1789.
O partido proletário denominado “Partido Comunista”, porque seus estatutos se regem pelos postulados do Marxismo, tratou, logo no poder, de aplicar, na prática, esses postulados, cujo rigor foi abrandado pelo gênio político do dirigente do Partido, Wladimir Lênin, de onde o Marxismo-Leninismo.
Um dos primeiros atos do novo governo foi a celebração de um tratado de paz com a Alemanha, em Brest-Litowsk. Seguiu-se uma tremenda campanha contra o regime marxista, por parte das potências ocidentais, vencedoras da Alemanha. Afinal, consolidou-se o regime, com a derrota dos contra-revolucionários, auxiliados, ostensivamente pela Inglaterra, França, Estados Unidos e outros. Ainda, na Liga das Nações, o embaixador soviético Litvinov, propôs:
“O governo soviético está pronto a abolir todas as armas, caso os outros Estados tomem a mesma resolução. Queremos uma resposta imediata, sem comitês. Nossa proposta é perfeitamente clara”.
Pergunta-se: por que defendia o Governo soviético a coexistência pacífica das nações e o desarmamento geral? Por causa dos princípios do Socialismo, cujo fundamento principal é a cessação da exploração do homem pelo homem, da qual a guerra é a mais horrenda das manifestações.
E por que é que as demais nações capitalistas recusaram a proposta soviética? Responde muito bem Emil Ludwig, em seu livro “Stálin”, pág. 255:
“Porque todas elas eram CONTROLADAS pelos interesses particulares dos fabricantes de armamentos”.
Assim, enquanto um governo socialista, à Marx, queria, como quer, “acabar com a guerra, porque ela arruína ambas as partes – os vencedores e os vencidos”, os governos capitalistas não sabem como acabar com as guerras, porque eles estão subjugados pela classe dos que se enriquecem à custa delas e do comércio de armas.
Perante o Socialismo, a economia da nação (a produção das fábricas, dos bancos, da indústria, da agricultura, todos os meios de produção geral, enfim, pertencem ao povo) é retirada das mãos particulares, que só dispõem da propriedade privada, oriunda do seu próprio trabalho.
Temos, então, no palco da realidade presente, duas filosofias que se contradizem: uma, a do Socialismo marxista, que parte do geral para o particular, isto é, ponha-se a infra-estrutura da economia na posse das massas populares, e tudo que daí derive terá, primeiro, o caráter social, para maior segurança dos indivíduos contra a exploração de particulares, em grupos ou partidos, que se armam até os dentes, para a exclusividade do seu poder político e econômico. A outra filosofia é a que pretende conservar o conceito individualístico da propriedade, e, portanto, defende, indiretamente, a permanência de uma civilização, dividida em classes entredevorantes, que sustentam uma democracia unilateral, de que só podem gozar as classes privilegiadas ou as que possuem dinheiro.
Como a civilização socialista abrange quase a metade do globo, e a sua luta com a civilização burguesa pode degenerar em conflitos armados, de âmbito universal, entenderam eminentes homens de espírito, inspirados, naturalmente, pela lei do progresso, que é “uma força viva” (Liv. Esp., comentário ao n. 781) e que, no caso em apreço, se traduz pela lei do Socialismo, entenderam, como íamos dizendo, esses homens de espírito, que estava chegado o tempo de uma organização da paz, de acordo com os novos princípios da ciência social, Daí, a criação do Conselho Mundial da Paz, fora do oficialismo sectário dos governos, e sob a nutrição principal das forças populares, que, despertadas em todos os cantos da Terra, determinaram o Congresso dos Povos pela Paz, em Viena, em dezembro de 1952.
Em tempo algum da História, se reuniu um Congresso de tanta significação para a vitória da Paz, como esse, de Viena. O movimento dos “Partidários da Paz” empolga, hoje, o mundo inteiro. Por ele se quer evitar uma nova conflagração, tanto entre nações diversas, como dentro de nações, entre cidadãos. O estado a que chegou a cultura do espírito autoriza a nossa confiança na solução pacífica de todas as divergências sociais e políticas. Não há mais necessidade de novas revoluções sangrentas, como a de 1917, porque, respeitando-se a soberania de cada nação, pode muito bem qualquer delas alcançar a etapa socialista, em ordem e por vontade eleitoral dos cidadãos, – da mesma forma que não foi preciso, para cada país que se quis libertar do feudalismo, uma nova e cruenta Revolução Francesa. Recentemente mesmo, temos, como exemplos, os casos da Polônia, da Tchecoslováquia, da Hungria, da Romênia e da Bulgária, que passaram do capitalismo para o Socialismo, por transições desacompanhadas de guerras civis.
Mas, para o êxito precisamente da sua humanitária campanha, o Movimento da Paz, como o próprio nome indica, não pode ser platônico, metafísico, individualístico, subjetivo, religioso, mas, ao contrário, tem que ser militante, objetivo, organizador das massas populares, com cuja unidade de ação é que poderemos contar, para vencer a organização poderosa dos imperialistas, isto é, dos que exploram, financeiramente, os povos, como ora faz a política dos círculos dirigentes dos Estados Unidos, enfeixados nas mãos dos trustes avassaladores e ladravazes, de assassinos e loucos.
A paz, justamente por sua natureza sociológica, requer vigilância, movimento contínuo, no sentido de despertar a consciência das massas, através de um organismo homogêneo, unitivo, que exprima, realisticamente, um objetivo comum, sobre o qual não haja divergências separativas, como é o do direito de viver, “o primeiro dos direitos do homem” (liv. Esp., n. 880).
Por isso, o Movimento da Paz não admite, em seu seio discussões ideológicas, sobre política, religião e filosofia, eis que o direito de viver, base de sua constituição jurídica, não distingue ideologias, não é um ato de vida interior, não é uma questão de consciência ou de alma, mas uma condição humana, da vida em sociedade, que só progredir pode em paz, mediante a troca de relações econômicas e culturais, inerentes. ao próprio direito de viver.
O religioso, entretanto, em tese, e para ser coerente, não concebe a paz por esse prisma social, porque suas necessidades se formam num círculo introspectivo, por onde ele afere a extensão do bem e do mal, como figuras subjetivas, ligadas, correspondentemente, a uma responsabilidade pessoal. Em termos claros: Se o religioso é católico, basta-lhe obedecer à prática dos sacramentos – ir à missa, confessar-se, etc. – para se dizer em paz, porque “serviu a Deus”. O bem ou o mal é estar com Deus, ou não, e, por conseguinte, o prêmio é a entrada, post mortem, no “céu” e o castigo — a ida para o “inferno”. Desta forma, o conceito da paz é exclusivamente individual, ao critério de uma concepção da justiça de Deus, que, por tal concepção, seria a negação da própria justiça, uma vez que a justiça prima por sua universalidade e indivisibilidade.
Se o espírita é religioso, também, de qualquer modo, toma a paz como um atributo do ser individual. Ele abstrai da vida de relação em geral, para concentrar os objetivos de sua atividade em fazer o bem e não praticar o mal, porém um bem e um mal, julgados pela consciência particular, desligada da relação objetiva da vida social. Uma paz metafísica, que só servirá ao egoísmo, e, portando ainda, contrária ao espírito universal e indivisível da justiça. Ai está por que a paz deve vir do exterior ou da sociedade para o nosso interior. Só assim ela participará também da universalidade e da indivisibilidade.
Eis por que a maioria dos espíritas do Brasil, dominados pelo religiosismo, se furtam a entrar nas fileiras dos “Partidários da Paz”, sob o ridículo fundamento, ou sob o falso pretexto de que esse movimento visa enfraquecer as forças da Democracia, para que o Comunismo encontre menor resistência à sua ação.
Os espíritas, entretanto, que se colocam ao lado do Espiritismo, doutrina filosófica e moral, penetram, facilmente, nos problemas humanos, inclusive no da Paz, nos termos da nossa exposição.
Desenvolvidas, por alto, as considerações supra, podemos agora – para V. melhor nos compreender ou compreender as razões doutrinárias, que nos movem – emitir o nosso parecer, como V. nos solicitou, sobre os livros que, generosamente, nos tem oferecido, sobretudo o último, que já lemos há meses, “Graças sobre Graças”.
O que a gente vê, com franqueza, deixando à parte qualquer motivo pessoal, de simpatia ou amizade, nas suas atividades espíritas, meu boníssimo Leopoldo Machado, é a sua capacidade de agitador da doutrina espírita, ou do Espiritismo, em todo o Brasil, com reflexos além das nossas fronteiras. Auxilia-o, sobremodo, nessa encruzilhada de ideias elevadas, o seu talento oratório, a cuja sombra sabe desferir eloquentes orações, que encantam os ouvintes. Os bons oradores são bandeiras de sucesso em todas as campanhas. Além da fluência e facúndia dos seus discursos, V., Leopoldo Machado, mostra possuir também conhecimentos gerais, com que os ameniza.
Mas, não se limita a sua capacidade de trabalho e de inteligência à arte da palavra. Além de teórico, é prático do mesmo modo, embora com as inconsequências que diremos adiante. Nas suas excursões inúmeras por todo o Brasil, máxime nas cidades do Sul, V. também constrói, ainda que se possam considerar construções ligeiras, mas que predispõem o terreno para novos grandes edifícios, as obras que planeja e executa.
Podemos resumir em três categorias principais os seus serviços à causa espírita, os quais, por sua vez, se unificam, teoricamente, no pensamento da educação.
Assim, são relevantes:
Alguns confrades, inclusive elementos da Federação Espírita Brasileira, criticaram, desfavoravelmente, a inovação do “Espiritismo de Vivos”, por exteriorizar, demais, o Espiritismo, que deveria ficar alheio a mundanismos, desde quando sua função é educar a alma, ligando-a a Deus : “nosso reino não é deste mundo”, como está na Bíblia.
Essa crítica provém da predominância do religiosismo na doutrina espírita ensinada. Responsável por esse desvio doutrinário tem sido a política da “Federação Espírita Brasileira”, que, ainda agora, colocou o ensino espírita sob a égide da “religião”, como se vê da mudança de subtítulo da revista “Reformador” – “órgão religioso de espiritismo cristão”. Quer dizer: para os dirigentes da Federação, o Espiritismo é profundamente, primacialmente, uma “religião”, ou, como dizem outros, piorando a emenda, “a religião” do Cristo.
Não lemos – e, se lemos, não nos lembramos – qual teria sido a natureza básica, exposta pelos seus defensores, do “Espiritismo de Vivos”.
Lendo a digressão de José Petitinga, em “Graças sobre Graças”, sentimos que ele iria tocar no fundamento, quando anunciou que — “no Brasil do cristianismo redivivo, jamais esqueçamos nosso dever perante a vida”. Com a sequência, porém, da leitura do comunicado, verificamos que Petitinga desenvolveu o assunto, literariamente, com a doçura peculiar aquele espírito acrisolado de poeta, mas para revelar que a vida nossa não deve ser dominada por ideias tristes, porque “o Evangelho não é um romance da Dor”. Preconizou, portanto, o uso das festas, para a alegria do espírito, como condição natural do êxito do “nosso dever perante a vida”. “A existência é cântico divino”. “O próprio Senhor nunca ensinou sem alegria e confiança”. Deu, assim, um sentido restrito ao movimento.
Sem nenhuma diminuição de nosso preito pelo inolvidável, bondoso e lúcido José Petitinga, a quem devemos, como V. também, o ingresso no estudo da doutrina espírita, ousamos dizer que o fundamento da iniciativa, bem interessante, do “Espiritismo de Vivos”, não se relaciona diretamente com a “alegria do viver”, senão que a alegria é uma das consequências das leis que presidem à nossa vida planetária.
Uma dessas leis é a encarnação. (Estamos argumentando com os princípios do Espiritismo). Encarnar é viver a vida do corpo, antes de mais nada. Para a vida do corpo, antes de mais nada, se faz mister a ingerência do alimento material, que começa pelo leite.
E por que a encarnação? A resposta encontramo-la no cap. II, onde, na resposta 132, do Liv. dos Espíritos, se diz que “Deus impôs aos espíritos a encarnação, COM O FIM de fazê-los chegar à perfeição”.
São muitos os derivativos dessa lei, que precisa estar associada, para ser devidamente cumprida, ao comando da lei da sociedade (cap. VII, cit. Livro).
Assim:
A verdade dos fatos, coordenados linhas acima, convence de que a campanha do “Espiritismo de Vivos” teve um fundamento filosófico e, pois, científico, e não pessoal ou demagógico, sem embargo da impropriedade da expressão, aliás reconhecida pelo próprio autor. O “Espiritismo de Vivos” implica o dos “mortos”, quando, em verdade, só existe um Espiritismo, ainda mesmo que, de futuro, se convencione outra nomenclatura para ele.
Mas, de qualquer modo, Leopoldo Machado, conscientemente ou não, foi levado pelos impulsos naturais da lei do progresso. Revelou o sentido científico, e não religioso do Espiritismo, porque a religião é indiferente ao progresso, é uma expressão do foro íntimo, emanada da fé, da crença. Religião é crença, e, para a crença, não existem outras leis senão as do arbítrio e das convenções humanas, ao passo que a Ciência representa um corpo de leis superiores à vontade humana.
Também entendemos que, quando se reconhece a natureza científica do Espiritismo, não se quer dizer que ele seja a ciência ou “tudo”, como, em seu entusiasmo incontido, o chamou, de uma feita, o mesmo Leopoldo Machado, inconsequentemente. Não. O Espiritismo “é o conhecimento das leis do princípio espiritual”, escreveu Kardec, em “a Gênesis”, cap. n. 16. Mas, é através das diversas ciências, especificadas, que penetramos nos arcanos da Natureza, como a biologia, as matemáticas, a física, a química, a geologia, a astronomia, a medicina, a zoologia, etc., etc.
Todas essas ciências visam aperfeiçoar o espírito. E as ciências sociais, como a política e a economia, completam o estudo, para mostrar, precisamente, a coexistência integral entre o homem e a sociedade, e, pois, entre o espírito (sentido espirítico) a matéria e a coletividade espiritual, no mundo do Além.
Por conseguinte, voltando ao tema do “Espiritismo de Vivos”, quando o propagandista preferiu, hermeneuticamente falando, os cuidados pela vida humana, ele defendeu a lei do desenvolvimento social. Por isso, não podia concordar com a orientação educativa da Federação Espírita Brasileira, perdendo tanto tempo com a reforma de obsessores do Espaço, e continuando a imprimir à caridade o conceito de “esmola aos pobres do Natal”. A caridade, pela assistência social, está mais de acordo com o progresso e com o fundo filosófico do Espiritismo.
Ainda, nesse particular da preferência dos “vivos” aos mortos, ela conta com o apoio das próprias palavras de Allan Kardec, no final do comentário ao n. 521 de “O Livro dos Espíritos”.
“Fazendo reinar em seu seio a justiça, os homens combatem a influência dos maus Espíritos. Onde quer que as leis consagrem coisas injustas, CONTRARIAS A HUMANIDADE, os bons Espíritos ficam EM MINORIA, e a multidão, que aflui, dos maus, mantém a Nação aferrada às suas ideias, e PARALISA AS BOAS INFLUÊNCIAS PARCIAIS QUE FICAM PERDIDAS NO CONJUNTO, como isoladas entre espinheiros”.
“Estudando-se os costumes dos povos ou de qualquer reunião de homens, facilmente se forma ideia da POPULAÇÃO OCULTA que se lhes imiscui NOS MODOS DE PENSAR E NOS ATOS”.
Da transcrição se colige:
Eis aí como – uma vez que o Espiritismo, como disse Kardec, “é uma questão de fundo” (Obras Póstumas, “Constituição do Espiritismo”, cap. VI in fine) — harmonizamos a resposta do Cap. II, parte 2a, e do cap. VII, parte 3, de “O Livro dos Espíritos”: em face das quais chegamos à conclusão da justiça do movimento pró “Espiritismo de vivos”, que deve ser interpretado como o início de uma nova era de espiritualização do Espiritismo, através da humanização da Humanidade, pelas leis do Socialismo.
No entanto, – ou porque o ambiente espirítico do Brasil não se compenetrou do sentido revolucionário da campanha de Leopoldo Machado, ou porque esse, em razão disso mesmo ou por um relaxamento involuntário de sua visão progressista, restringisse o movimento ao campo da filosofia individualista, sem coragem para transpor as suas divisas ou para entrar no campo da filosofia socialista, – a verdade é que o autor desse movimento tem-se revelado um dos seus contraditores, isto é,o seu pensamento de hoje e os seus atos não traduzem o espírito progressista do referido movimento. Eis aí uma razão por que nunca devemos julgar uma doutrina ou qualquer princípio científico pelas palavras do próprio autor. O que deve prevalecer, em casos tais, é a interpretação progressiva, em harmonia com os novos conhecimentos e descobertas científicas, e não a interpretação pessoal, nem mesmo a chamada histórica, porquanto – citando ou repetindo o conceito de Engels — “a história das ciências é a história da eliminação progressiva dos erros, isto é, da sua substituição por um erro novo, MAS CADA VEZ MENOS ABSURDO”.
Para demonstrar o nosso asserto, procuremos ressaltar três incoerências do valente doutrinador, que é V.: a primeira quando insiste em considerar “religião” o Espiritismo; segunda, quando rematou o “Espiritismo de vivos”, sobre educação e assistência social, numa obra de serviço particular, o que quer dizer não fez dos objetivos do seu movimento social um meio, para maiores movimentos, mas um fim, como se os problemas da educação e da assistência ficassem, definitivamente, resolvidos com a política aconselhada pelos espíritas do Brasil, de criação de escolas e de obras de caridade, sem a prévia modificação do regime econômico e político, entre nós; a terceira, quando supõe que o Espiritismo é o único remédio para a vitória da paz entre os homens, paz, que é o primeiro problema moral do Cristianismo, de vez que, sem ela, que é amor, nada se constrói de sólido e real na vida de relação, entre seres e entre nações.
A primeira incoerência. O autor consigna, a pág. 71 do seu “Graças sobre Graças”, uma sua palestra sobre o tema – a evolução das ideias religiosas. A “Revista Internacional do Espiritismo”, de Matão, São Paulo, publicou-a. No seu número de julho, deste ano, lê-se este tópico do publicista:
“Assim, procurando curar, a um tempo, as chagas do corpo e da alma, o Espiritismo entraria no “Brasil”, como “religião”, “seu melhor clima”, para o Brasil. A verdade é que, só no Brasil e na língua portuguesa, é o Espiritismo pregado e sentido como religião.”
O título “evolução das ideias religiosas” já é, por si só, em tese, uma contradição, porque a religião é, por natureza e por finalidade, um sistema de concepções personalistas, e, portanto, não pode obedecer às leis da evolução, que é uma força da Natureza, superior à vontade dos homens. A religião é, por isso mesmo, desordenada, ou, melhor, é contra a ordem científica, e seu papel é de servir ao conservadorismo, em função estática, que só é dinâmica na profusão requintada de exterioridades, com que imbeciliza a ingenuidade humana.
Se fosse o contrário disso, isto é, se, de fato, só houvesse trazido remédios contra “as chagas do corpo e da alma”, a religião espírita, justamente por ser peculiar ao Brasil, “único país em que o Espiritismo é pregado e sentido como religião”, já teria feito do Brasil a mais civilizada nação do mundo. Mas, os fatos contestam semelhante juízo, só admissível num visionário ou num ignorante. Infelizmente, o Brasil é um dos países mais atrasados do mundo, em todos os sentidos, moral e intelectualmente. E isso, porque herdamos de Portugal um clericalismo ferrenho, que dominou a política dos círculos dirigentes da nossa monarquia, e ainda continua, no fundo, a mandar na república, que de república e de independência só tem o rótulo. A nossa imprensa, como as principais organizações financeiras, reflete os interesses dos trustes estrangeiros, por suas filiais aqui. A nossa agricultura debate-se nos costumes do primitivismo agrário colonial. A miséria estiola os nossos patrícios do interior: os nossos trabalhadores do campo morrem de fome e de analfabetismo ou de ignorância. Os livros de Josué de Castro constituem um valioso documento da nossa indigência e da exploração dos povos fracos pelos imperialistas, sobretudo norte-americanos.
Em matéria de barbarismo, bastam as proezas da Polícia, a começar da Capital Federal, para se verificar o horror dos sofrimentos aplicados, com sangue frio, por nossos autoridades contra os presos desarmados!! E se a prisão é por “crime político” ou “ideológico” (como agora, contra os comunistas), a iniquidade do castigo toca às raias do inconcebível!! Os jornais independentes publicaram, há pouco, uma entrevista do advogado Francisco Chermont (que conheço pessoalmente e por tradição, como homem de bem, humanista, corajoso, inteligente e culto, incapaz de mentir, filho desse grande brasileiro, que se chama Abel Chermont, que abandonou as vantagens pessoais da política brasileira em voga, para se dedicar à causa da Paz, a serviço do povo e da solidariedade humana), entrevista que divulgou os padecimentos a que as autoridades do Rio Grande do Norte sujeitaram um médico distintíssimo e caridoso, competente cirurgião, Dr. Vulpiano Cavalcante, só porque esse impoluto cidadão, por trabalhar pela Paz, como presidente dos “Partidários da Paz”, no Rio Grande do Norte, fora classificado como “comunista”. Dentre as originalidades do martírio, que, para o modo de ver de certos espíritas religiosos, só trouxe benefício ao martirizado, que, por isso mesmo, não precisaria ser socorrido materialmente, mas apenas, por “preces”, de vez que o “nosso reino não é deste mundo” (sempre as mecânicas citações da Bíblia), dentre tais originalidades, como íamos dizendo, apareceu a de introduzir um besouro na garganta da vítima, para que os carrascos gozassem de estranhos risos, diante do esforço instintivo com que ela procurava expelir o inseto!!. E, ainda não contentes com o incrível sadismo, tentaram quebrar os dedos das mãos do cirurgião para incapacitá-lo do exercício profissional ou da sua missão nobre de acudir aos necessitados de serviços cirúrgicos!!! – o preso político Berger, alemão, foi tão maltratado, no cubículo, (que só dava para uma pessoa em pé) e por tanto tempo, em sevícias diárias, que ficou louco, apesar da sua formidável resistência física. Nos primeiros meses da sua prisão, ao sentir a presença do Ministro Macedo Soares (M. do Exterior, no governo Getúlio Vargas), Berger gritou, em altas vozes
“Sr. Ministro! Sr. Ministro!! Estou aqui, há um mês, nesta posição de pé, sofrendo os mais duros castigos físicos, Tenho percorrido várias prisões, e diversos países, inclusive na China, mas, em nenhuma, foi comparável o que sucede comigo. Nunca vi coisa igual à desumanidade, porque passa o preso político no Brasil”.
Diante do patético quadro, capaz de cortar o coração de uma fera, foi que o Ministro fez diminuir a dor daquele homem indefeso, que, afinal, de tão torturado, como dissemos, terminou perdendo a razão, – motivo por que, com a anistia de 1945, os seus companheiros de ideologia trataram de repatriá-lo, via Alemanha Oriental.
Não se diga que se trata de casos isolados. O argumento falso. Todos os presos políticos, máxime os que não contam com algumas amizades no Governo, passam por vexames, que variam da deficiência da alimentação e do desconforto físico e intelectual (negando-lhe a leitura de livros) até os mais selvagens espancamentos, alguns dos quais inutilizam, por toda a vida, os pacientes, quando não os fulminam com a morte por “suicídio”.
Ainda nos recordamos do protesto da nossa Faculdade de Medicina, através da veemência oratória do Anísio Circundes, professor ilustre, contra as barbaridades do nosso Exército, em Canudos. Éramos menino de colégio. Estudávamos no colégio de S. José, fundado pelo barão de Macaúbas, Dr. Abílio de César Borges, então dirigido pelo Dr. João Florêncio Gomes, médico que se dedicou exclusivamente à educação da infância e da mocidade. Lembramo-nos dos comentários gerais sobre o discurso sensacional de Anísio Circundes. Ele protestou, com indignação de patriota, contra o uso das “gravatas vermelhas” por oficiais e soldados. “Gravata vermelha” queria dizer o degolamento, à espada, dos jagunços aprisionados. Cenas horríveis contra os pobres fanáticos, nossos irmãos que precisavam de pão, carinho e instrução, e não da estupidez dos “mantenedores da ordem pública”.
Meninos que eram pegados e atirados ao ar, para serem espetados na ponta das lanças!!
— As calamidades públicas, como sejam as secas e as enchentes, têm sido fonte de enriquecimento de autoridades. Enriquecer à custa do infortúnio e das amarguras dos flagelados!
Enfim, meu caro Leopoldo, as religiões no Brasil, da católica ou protestante à espírita, nenhuma delas diminuiu o panorama do sofrimento do povo brasileiro. Um hospital espírita não deixa de ser uma obra meritória, mas é uma gota no oceano crescente das necessidades coletivas. Dois hospitais que se levantem, no mesmo local, tempos depois, já representam menos que a gota do primeiro, por causa da desproporção demográfica, entre o ontem e o hoje.
Para ajudar o nosso argumento, vamos aos fatos (já Allan Kardec relevava que – “pelos fatos é que chegamos à teoria” — (Livro Médiuns, cap. III, n. 34).
Não se compara, nem de leve, o progresso do Brasil com o da União Soviética. A religião, entretanto, não se intromete, ali, nos assuntos administrativos. Os seus principais dirigentes são ateus, adeptos do materialismo filosófico marxista. No entanto, o progresso moral, intelectual e material ali, já ultrapassou o de todos os países capitalistas, inclusive os Estados Unidos. Moral, porque é o povo mais pacifista do mundo, ao lado da China e das repúblicas populares da Europa Oriental, pois é o que lidera a campanha do desarmamento e da coexistência pacífica entre as nações, pela qual as discórdias ou desentendimentos se resolvam por acordos e não por conflitos armados. Intelectual, porque é onde maior é o número de pessoas instruídas. Desapareceu, na União Soviética, o analfabetismo. A instrução secundária é obrigatória, e, no próximo ou próximos “Planos Quinquenais”, a obrigatoriedade se estenderá à instrução superior. Material, porque a agricultura está toda mecanizada; as indústrias, desde a pesada à mais leve, cresceram, de 1917 até agora, numa proporção de 29%, enquanto os Estados Unidos, na de pouco mais de 2%, e ainda, por outro lado, todos os serviços públicos obedecem a um ritmo acelerado, de melhoria e conforto. Resumindo: de acordo com os termos de Allan Kardec, já mencionados (n. 793 L. Esp. e comentário), a União Soviética é o país mais civilizado deste planeta. Não há desemprego. Todos os estudantes que se formam encontram logo colocação. Não existem mendigos. A assistência social sanitária é gratuita. Os doentes não se preocupam com honorários de médicos. A distinção entre pobres e ricos, para efeitos da educação e do bem-estar individual, foi coisa que desapareceu. Agora mesmo, inaugurou-se uma Universidade, em Moscou, que possui apartamentos para 6 mil alunos internos, e está dotada de tudo quanto há de mais moderno no aparelhamento científico. Mil salas para laboratórios, com suas especializações adequadas. É uma cidade. O conjunto de edifícios, cujo corpo central mede 32 metros de altura, denomina-se “Palácio da Ciência e da Cultura”. — Os meios de transporte, na União Soviética, os mais rápidos e seguros. Na União Soviética, não há desastres de avião, como, todos os dias, se vêm entre nós. Simplesmente por isto: porque, ali, se considera sagrada a vida humana, respeita-se a personalidade humana, e esse respeito e essa segurança derivam da natureza filosófica e científica do regime político.
Não é só a União Soviética que se beneficia da revolução de 1917. A China, em 4 anos de governo, moldado nos princípios do Marxismo, deixou muito atrás países que ridicularizavam a explorabilidade do chinês, pelo seu atraso, a ponto de se dizer que “um negócio da China” era um negócio de lucro estupendo, à custa de uma esperteza, logro, exploração ou o que fosse. Pois bem: a China, o ano passado, isto é, o Governo de Pequim edificou, em 2 meses, um prédio de cimento armado, para alojar quinhentos e tantos delegados estrangeiros, para um Congresso de Paz. Um prédio com 12 andares, todo mobiliado. Sessenta mil operários na construção.
A admiração não vem da presteza do tempo nem do número de operários. O que se deduz do fato é a organização técnica do serviço, a ordem na divisão do trabalho, a disciplina, o alto grau do poder de administração que ora revoluciona a China. Pequim era tida como cidade imunda e anti-higiênica. Em meses, o governo decidiu um ataque concentrado contra os ratos e as moscas. Duas pragas que se expurgaram da grande cidade.
Influiu a religião nesse formidável progresso? Não, em absoluto. Pelo contrário: enquanto dominavam os sacerdotes, a se meterem nos meandros da administração, tudo era desordem e personalismo. Tanto na Rússia como na China.
É bem verdade que a maioria dos jornais do Brasil esconde a realidade do progresso, nos aludidos países, e, ainda, inventa as mais sórdidas mentiras, como a existência de “campos de concentração” de presos políticos e de perseguições religiosas.
É que essa “imprensa”, como já mostramos, é uma dependência do capital imperialista. O espírita que se torna eco dessas fantasias revela, com isso, que ignora o fenômeno revolucionário de 1917, uma continuação das revoluções francesa e americana, segundo Emil Ludwig (ob. cit., pág. 198). Já escrevemos um trabalho, com o título “Como se ligam o fenômeno econômico e o fenômeno espírita”, um dos capítulos da nossa obra inédita, cuja designação está por ser ainda decidida.
Agora mesmo, Ismael Gomes Braga, escritor que aprecio por sua capacidade de trabalho e conhecimentos gerais, e que sabe dizer o que sente, com clareza de expressão, é, infelizmente, um dos espíritas que estão concorrendo para a confusão, na espécie em lide. Há tempos, ele, discorrendo sobre a “objetividade da alma”, a propósito do livro de um positivista, condenou o Marxismo, “porque prega, por princípio, a violência”. Contestamo-lo, em artigo pelo “Jornal de Debates”. O Marxismo não é o que ele supõe. Não se confunda a filosofia do materialismo, em geral, de Marx—Engels, com a filosofia das ciências sociais, de que foram eles os mais altos representantes. O Socialismo, que é a ciência da sociedade humana, nas suas relações econômicas e culturais, é uma obra prima do marxismo, que se impõe à verdade, pelos resultados maravilhosos de sua aplicação prática nos governos da União Soviética, da China e outros. Se o Marxismo é a revolta do povo contra a exploração multifária do homem pelo homem, – como pensar que ele se funda na violência, quando o fato é que ele prova que a violência dos exploradores gera a contra-violência – legítima defesa – dos explorados?!
Poucos dias ainda, lemos outro artigo de Ismael Braga contra a perseguição aos esperantistas na Tchecoslováquia. Ele aproveitou o fato, para atacar o absolutismo dos “regimes totalitários”, como o comunista. Equiparar o fascismo ao comunismo é uma prova – ou da ignorância da doutrina comunista ou de hipocrisia.
É preciso sermos conscienciosos, no caso.
O imperialismo norte-americano, em desespero de causa, não recua diante dos processos mais indignos contra um regime, cuja vitória importa na liquidação da classe burguesa, detentora das forças do capitalismo.
Dentre as instituições que os imperialistas procuram, para o manejo oculto de suas maquinações, contam-se as religiosas e as culturais, que, por sua própria natureza, não aparentam qualquer suspeita de política e partidarismo. Mas, desgraçadamente, nem todos os sócios e membros das instituições compreendem os seus deveres. A corrupção e a venalidade são meios empregados pelos homens dos trustes para conspirações, e é à sombra dos sócios traidores que eles exploram o bom conceito das mesmas instituições.
Ninguém pode garantir que, abusando da sua qualidade de esperantistas, alguns desses não se tenham comprometido com a espionagem norte-americana.
Mas, ainda que se concretizasse, mesmo, um abuso das autoridades da Tchecoslováquia, – seria isso o bastante para se condenar um regime político, que tem por base a luta contra todos os abusos?
O professor Ismael Braga noto que é um tanto extremista. Para ele, o esperanto será o fator, por excelência, da confraternização dos povos. Dessa forma, a língua influi, decisivamente, na infraestrutura social e na superestrutura. O originalíssimo trabalho de Stálin sobre “Problemas de linguística” desanuvia a dúvida a respeito. Os fatos estão aí provando que a diferença de línguas é um fator secundário na vitória da solidariedade humana.
A União Soviética é uma organização ou um Estado multinacional, com povos de costumes e línguas diferentes, e, apesar disso, são unidos, num mesmo ideal de trabalho e de paz, os seus habitantes.
Como espírita, Ismael Braga é de opinião que “quem não admitir, como verdade, os “Quatro Evangelhos”, de Roustaing, não é espírita (V. “Elos Doutrinários”, pág. 63). Isso é faciosismo.
Ultimamente, lemos outro artigo de Ismael, no “Reformador”, onde, de novo, anatematiza o Comunismo, “que padece do mesmo vício do capitalismo, porque ambos são materialistas”(vide Nota Complementar nº1). E, então, preconiza como solução para a grande questão social do momento, a prática do cooperativismo.
Ora, no sentido filosófico, nem o capitalismo, nem o Comunismo são materialistas. Tanto assim que, em ambos os regimes, vivem, em paz, os materialistas e os espiritualistas.
Os sistemas políticos são sistemas que adotam uma organização constitucional, para o desenvolvimento, em ordem, dos interesses comuns, como os direitos à vida, à educação e ao alimento, tudo isso, especificamente, distribuído e executado, através de múltiplas instituições. É claro que a liberdade de pensamento e de associação é inerente a todas as constituições, dignas desse nome, liberdade que é assegurada nas dos Estados Unidos, da Inglaterra, na França, do Brasil, países sob regime capitalista, como, de igual modo, nas dos países socialistas (V. art. 125 da Cons. Soviética).
A filosofia marxista, sim, que é materialista e que defende o Comunismo como tipo de organização econômica destinada a assegurar a felicidade relativa nas relações humanas.
Alegar que o cooperativismo é a finalidade ideal, na política dos governos, contra o capitalismo e o Comunismo, é mostrar-se alheio ao problema. Há 150 anos, a mais, que se tem utilizado o cooperativismo, e... as crises continuam no mesmo diapasão, ora baixo, ora agudo. No Brasil, o número de cooperativas ascende a 3mil e pico, o que é menos de uma gota d’água no oceano da crise econômica.
O cooperativismo, que também nada tem com as ideias filosóficas, religiosas ou políticas de cada associado, pouco se desenvolve nos regimes capitalistas, sobretudo agora, que as forças imperialistas tentam absorver todas as iniciativas particulares que contrariem a liberdade do monopolismo.
Nos países socializados, todavia, as cooperativas tomam extraordinário impulso.
Por que essa diferença? É que o cooperativismo, por si só, não erradica a causa das crises e das contradições sócio-econômicas. Entre nós, os capitalistas se unem em cooperativas, que, dessa forma, se revelam uma das modalidades do uso do capital, com os mesmos defeitos daí decorrentes.
O cooperativismo permite a exploração, por particulares, da riqueza nacional e da produção do trabalho coletivo. Basta, pela legislação brasileira, o número de sete associados para a constituição de uma cooperativa. Sete fazendeiros podem fundar uma cooperativa de produção. Temos, aí nesse exemplo característico, a propriedade da terra — um bem nacional – sendo explorada por particulares, em favor dos quais, ainda, se divide o lucro da produção, que foi obra principal dos trabalhadores rurais.
Isso não ocorre na União Soviética, nem nos países que adotam ou empregam, gradualmente, os princípios da economia marxista. Porque, então, os frutos da propriedade pública (terras, águas, minérios, estradas, aviões e navios de transporte coletivo, telefones, energia elétrica, etc.) pertencem ao Estado, e os frutos da produção coletiva se repartem – o líquido, depois de pagas as obrigações do Fisco – entre os mesmos produtores (fábricas, cooperativas, kolkoses). Assim, num kolkose, – tipo de fazenda coletiva e modalidade cooperativista – as terras são arrendadas ao Estado, todos trabalham para todos e, no final, a produção apurada é dividida entre os trabalhadores respectivos, na medida da capacidade do trabalho de cada um. Cada kolkosiano, entretanto, além do rendimento básico dos kolkoses, que fazem parte da propriedade pública socialista, pode usufruir um pedaço de terra anexo à sua casa. Essa propriedade é privada, porque só o dono nela trabalha com sua família e, por conseguinte, a respectiva produção cabe à sua pessoa, isto é, a quem trabalhou diretamente.
As cooperativas, portanto, nos Estados socialistas, cingem-se ao lema marxista de cada um, segundo sua capacidade; a cada um, segundo o seu trabalho. Vedadas estão de explorar, privativamente, a propriedade dos meios gerais de produção, e o trabalho humano.
Portanto, o fundamental, para o desenvolvimento cooperativista, não é a velha doutrina do cooperativismo — dos pioneiros de Rochdale– como apregoam os seus adeptos, mas a solução socialista, com base econômica na “abolição da propriedade privada dos utensílios e meios de produção, e na eliminação da exploração do homem pelo homem”. O fundamental – repisemos – é modificar, radicalmente, a estrutura do Estado, tirar o domínio de uma classe para a nação, isto á, para todos os trabalhadores de todas as condições. Logo, a doutrina cooperativista, ou melhor, as organizações cooperativistas, para prosperar, dependem do tipo de Estado. Logo, a doutrina cooperativista, ou melhor, as organizações cooperativistas, para prosperar, dependem do tipo de Estado. Logo, não são elas causa da solução econômica, mas efeito de uma solução econômica, que, no caso, outra não será, para ser justo, senão a do socialismo, na base dos princípios da política econômica ensinados pelo marxismo-leninismo.
Estendemo-nos um pouco no comentário sobre as ideias de Ismael Braga, para esta conclusão se um escritor espírita, da responsabilidade de Ismael Braga, propaga falsos conceitos sobre o Marxismo e sobre o Comunismo (e, pois sobre o Socialismo, que é um antecedente do Comunismo), não é de admirar que, a respeito, reine a mais deplorável confusão nas fileiras espíritas do Brasil. E atribuímos o fato, precisamente, ao religiosismo que se empresta ao Espiritismo.
Diz-se que negar ao Espiritismo o caráter religioso é abolir a prece.
O Espiritismo é uma doutrina moral, sistematizada à luz de uma fenomenologia. Dessa fenomenologia resultou a convicção da existência do Espírito, como potência da Natureza e destarte, sujeito às leis naturais, objeto das ciências.
Logo, a prece não deve ser encarada como fenômeno religioso, mas científico, isto é, como uma necessidade do espírito, que é uma unidade de Todo Universal.
O sentimento evocativo é função da lei de afinidade e da coesão, O homem, diante de qualquer desgraça, apela para uma força qualquer que o socorra. Se é um espiritualista, à Kardec, invoca a assistência do mais forte poder da Natureza, que é a ação dos Espíritos protetores, que, por sua vez, só agir podem, em face das condições ambientais.
Nas reuniões espíritas, costuma-se usar da prece inicial, porque tem um fim lógico: homogeneizar o ambiente, para mais facilidade da unidade do pensamento coletivo, que é mais capaz de facilitar, por sua vez, a intervenção acolhedora dos guias espirituais. É uma lei de física, ou de metapsíquica, como queiram, mas sempre uma lei da Natureza. Até os materialistas praticam, sob forma diversa, a prece. Que é o silêncio, requerido, nas sessões do parlamento ou em lugares outros, para a memória, homenageada, dos mortos, senão uma prece?
O silêncio faz concentrar o pensamento de todos sobre a personalidade do morto, sua vida e suas obras de gratidão.
Alguns espíritas pedem, além do silêncio, uma exortação oral, a cargo de um dos assistentes. Mas, a prece não é o fato material da oração suplicante. Materializa-se ela, para um efeito formal, isto é, para unificar, melhor, os pensamentos. Quer dizer, que é possível o uso da prece, nas sessões espíritas, pelo simples silêncio, sobretudo quando a assistência é composta de elementos esclarecidos, senhores da significação do fenômeno.
O Espiritismo, como religião, incentiva a vida contemplativa, a pieguice, a covardia, a subserviência, a falta de confiança nas energias criadoras do próprio espírito, que se esmagas vencido, diante das desditas, para atribuí-las a castigos divinos, e, por isso, resigna-se a pedir a misericórdia de Deus.
V. mesmo, meu caro Leopoldo Machado, no seu “Teatro da Mocidade” em que pese à sua fulgurante inteligência, cometeu desvios desse quilate. A pág. 13, V. pôs na boca do “homem” a confissão do dever de se resignar à miséria, “como um convite direto que Deus faz aos que desejam chegar a Deus”, – quando a verdade é que os costumes sociais, a supremacia dos poderosos e a injusta organização da economia social são da responsabilidade exclusiva dos homens (V. Liv. Esp. ns. 862, 863, 930, 932, etc.). Se “Deus não exerce ação direta sobre a matéria” (n. 536, L. Esp.), como haveria de dividir os homens entre ricos e pobres, fortes e fracos, felizes e sofredores?
Coisas de religião, que se sobrepõe à leis da Natureza, e faz dos homens os agentes de um Deus pessoal, arbitrário e anarquista.
Ainda, à página 32, do mesmo Teatro, V. convida a mocidade a preferir o ignorante, com Deus, ao sábio, sem Deus. Absurdo, porque a ciência é que nos há de guiar para a perfeição, independentemente de crenças religiosas. O seu desacerto, no convite, ainda é consequência do individualismo das religiões, que imputam aos homens, de per si, o destino da História.
A segunda incoerência vem de que os espíritas, segundo a programação Leopoldo Machado, devem sair da estagnação em que viviam, para dar ao Espiritismo um sentido mais social. Está certo, Daí a campanha do “Espiritismo de Vivos”, a que já nos referimos. Campanha progressista, como asseveramos. Mas, acontece é que ela parou nos simples serviços de assistência educativa, como abertura de escolas, e de assistência à saúde, como hospitais, alimentação, abrigos etc.
Não condenamos tais iniciativas, como seria um contrassenso que o fizéssemos com relação ao cooperativismo, entre nós, O que achamos contraditório é pregar, na presente Fase da História, a solução da assistência social, dentro do Estado capitalista. É carregar água no cesto. A vantagem, no caso, só aparece, como uma prova do espírito humanista – de solidariedade e fraternidade – da doutrina espírita.
O lógico é, concomitantemente, fazer as obras e lhes reconhecer a precariedade, para, daí, se deduzir que elas só deixarão de ser precárias, com a substituição da estrutura estatal,
Em verdade, na União Soviética, os particulares não perdem tempo em organizar instituições de caridade, uma vez que a caridade é uma concepção da burguesia que necessita da divisão de classes, – origem, em última análise, da divisão em pobres e ricos. As religiões tiram um grande proveito disso, porque os “ricos” são os privilegiados da graça de Deus, que lhes manda os “pobres”, para, pela caridade para com os últimos, ganharem o prêmio do céu.
A caridade foi substituída, nos países socializados, pelo dever de assistência, pelo Estado, a todos os necessitados, de qualquer espécie de assistência (V. arts. 118 - 123, da Const, Soviética, de 1936). Logo, ao lado da caridade, resquício de uma socialização atrasada, os espíritas, de acordo com o espírito progressista da doutrina de Kardec (que não é de Kardec bem se vê o sentido da frase), precisam levantar a bandeira da socialização estatal da assistência. Convém notar: Estado popular é uma coisa, e o Estado burguês, outra.
No entanto, os Centros Espíritas não falam nesses temas, que estão na ordem do dia, O pretexto é que o assunto é da alçada da Política e não do Espiritismo. Mas, assim só se manifestam os espíritas religiosos, os profitentes da “religião espírita”. Aliás, uma tremenda contradição, nesse retraimento cívico. Se o progresso é uma formação da vontade de homens, como querê-lo, sem chamar a atenção desses homens?
A verdade, porém, é que a política é imanente à sociedade. A sociedade, para manter-se em ordem, carece de ORGANIZAÇÃO, que é um trabalho político. O apoliticismo dos espíritas é o resultado do ensino religioso. Pelo contrário em face da doutrina espírita, desaçaimada da religião, o homem precisa ser político para lutar contra o faciosismo partidário e todas as ideias obscurantistas que atravancam o progresso.
A terceira incoerência é o conceito que V. confere à Paz, encafuando-a na passividade, que reflete, por si só, a eiva do religiosismo. Uma paz abstrusa e platônica.
É o que exprime um comunicado de Emmanuel que V. inseriu em “Graças sobre Graças”, e que nos indica um “remédio” para as dores humanas e para a paz. E V. grifa as passagens que parecem proféticas, mas que assim – pensamos nós – não se devem considerar. Toda profecia precisa ser objetiva e certa, e não indefinida.
Diz ele que a “angústia coletiva de todos os povos” advém de “desvios de antagonismos irreconciliáveis, tão somente criados pela mentalidade humana, dentro do seu abuso de liberdade”.
Eis aí uma metafísica incompreensível. De que ordem são esses “antagonismos irreconciliáveis”?
Por que originados de condições subjetivas (“mentalidade humana”), e não objetivas?
Porque tanta “angústia” e tantas “dores amargas”, apesar da “superprodução”?
Onde já se viu “abundância e superprodução”, num mundo, onde a fome é crônica? O que há é subprodução. A superprodução é aparente, porque os monopolistas retêm uma grande quantidade de mercadorias, para especulação de preço.
Portanto, nenhum raio de luz nos deu o dito comunicado sobre as causas materiais da “aluvião de escombros que se prenuncia terrível para os próximos anos”.
Sob o ponto de vista moral, a decepção é angustiante. Enquanto a moral comunista conforta a Humanidade, anunciando que a Paz vencerá a guerra, e, portanto, se os povos não se apassivarem e, pelo contrário, se organizarem em lutas de defesa da paz contra os vivedores de guerra, o mundo não passará por tamanha desgraça almejada pelos belicistas, – a moral espírita, da safra dos comunicados de espíritos, desconsola os terrícolas com a certeza de uma conflagração! “Dores amargas se anunciam nesse paiol de abundância e de super-produção, que a inteligência da Humanidade criou para a sua vida” — são dizeres de “Emmanuel”.
E, em seguida, depois de reduzir “os antagonismos irreconciliáveis” a um “antagonismo entre o homem físico e homem moral”, como a “causa da subversão de todos os valores morais” da atualidade, o comunicante profeta apavora os nossos corações com iminentes “cataclismos no ar, sem que os poderes humanos consigam deter-lhes a marcha”. E acrescenta que “nem os economistas, nem os sociólogos podem dirimir as profecias singulares e dolorosas, impossibilitados de recursos, desconhecendo o remédio necessário à paz coletiva e à prosperidade mundial”.
E, por fim, confirma que – “a dor há de vir realizar a obra que não foi possível ao amor edificar por si mesmo”.
O interessante é que “Emmanuel” apresenta um “remédio”, que só poderá ser aplicado depois da guerra, cuja marcha “os pobres humanos não podem deter”. E mais claro ainda se apresenta no passo subsequente, quando nos adverte: “os servos de última hora” (os espíritas) estão incapazes de “afastar do espírito coletivo das multidões delinquentes o quadro nefasto da guerra e do extermínio”.
Ninguém, de ânimo sereno, decifra o emaranhado do palavrório de Emmanuel. Quais as “multidões delinquentes”? Só poderá ser o povo. Mas, precisamente o povo é que é o primeiro inimigo da guerra e do extermínio.
Uma vez que aos homens é vedado apagar o quadro negro dos tempos presentes, inclusive aos espíritas, que são também homens, só concluiremos que a Deus, unicamente, estaria reservado esse poder.
Mas, a profecia reconhece a fatalidade da guerra próxima. Logo, a guerra é uma predestinação, derivada da vontade de Deus, o que discorda dos ensinamentos de Kardec (n. 872, Liv. Esp.), que condena o fatalismo, pois “é possível ao homem modificar o curso dos acontecimentos”.
Curioso: enquanto materialistas, à Marx, lutam pela Paz, espiritualistas, à Kardec, não lutam pela Paz, por causa da fatalidade da guerra. Ora, Kardec condenou o muçulmanismo, e ordenou a necessidade do trabalho contra as imperfeições sociais, de que a guerra é a mais nefanda.
Mas, afinal de contas, que remédio milagroso para o estabelecimento da paz nos oferece Emmanuel? De logo, foram excluídos do serviço redentor os que se pavoneiam com “o cientificismo do século”. Fora “o tóxico do intelectualismo”. Como que vemos, nessa tirada vazia, de Emmanuel, uma reprodução subconsciente de ideias de outrem. Parece-nos que ele estava a repetir o mesmo pensamento de Leopoldo Machado (presente à sessão em que foi recebido esse comunicado), no livro que este publicara sob título “Cientismo e Espiritismo”. Nesse livro, o autor escarnece das vanglórias dos cientistas, e, de certo modo, das descobertas científicas, como das vitaminas, da endocrinologia, vivissecção, etc. Não deixando de reconhecer a inteligência, servida por generalizados conhecimentos, com que – polemista valente que é – discutiu os variados assuntos de ciência, (e as suas restrições ao freudismo provam o que dissemos) não achamos, contudo, que suas considerações fossem rigorosamente exatas, para concluir pela existência da única ciência, que é o Espiritismo. E, por isso, proclama que “O Espiritismo é tudo”...
Exatamente é o que se infere da comunicação de Emmanuel, pela qual nem os poderes humanos, nem os intelectuais, sábios ou professores, resolverão o problema da paz coletiva. Esse papel sublime – diz ele – cabe “aos trabalhadores humildes do Espiritismo”, os quais começam o trabalho “pela educação, único meio eficaz e seguro da realização almejada”. Isso faz-nos lembrar um tópico de Ismael Braga, em “Elos Doutrinários”, onde ele escreve que os “Quatro Evangelhos de Roustaing são o curso superior do Espiritismo, que explica tudo que nos ocorre à interrogação do Espírito” (pág. 33).
Todas essas explanações pecam pelo seu religiosismo. Um verbalismo sem fim. Não há lógica. Exagera-se a preocupação pela vida do Além, a ponto de, como está em “Cientismo e Espiritismo”, pág. 133, recomendar-se a prioridade dos cuidados d’alma, ou de aceitar, como verdadeiro, este conceito – “o corpo será são, se o espírito for são”. A realidade, entretanto, é que o princípio da encarnação (origem e fim) nos obriga a cuidar, primeiro, do corpo. A criança solicita o alimento, antes de tudo, como a sociedade, sem a ordem econômica (matéria), não pode nutrir-se, e, portanto, não se realizariam os objetivos da encarnação e da reencarnação, já esflorados linhas atrás.
Intoxique-se o organismo de um homem puramente: cristão, um santo que seja, e ver-se-á se ele pode praticar as virtudes de seu espírito.
Como será essa educação preconizada por Emmanuel? Uma educação platônica, metafísica, religiosa, individualista, que faz com que os homens abstraiam das “coisas positivas e sérias”, onde, só nessas, encontraremos a felicidade, e não “nas utopias” (palavras de Kardec, em comentário ao n. 707). A coisa mais positiva e séria é a cultura do “solo, fonte primacial donde dimanam todos os outros recursos” (Liv. Esp.,. n. 706).
Portanto, sem o alimento do corpo, sem a organização da economia social, não se poderá organizar a educação, que é, assim, uma dependência, para a sua estabilidade, da solução econômica.
E a sistematização de todos os serviços sociais não é obra do Espiritismo, mas de todas as ciências, cujos erros não devem servir de motivo ao desprezo das mesmas. Queríamos saber se, nos livros de Roustaing ou de Kardec, nós aprendemos os meios de construir um túnel, de fabricar aviões, de descobrir os remédios contra as moléstias em geral, de fazer uma infinidade de coisas, que, sem o conhecimento das ciências especializadas, seriam impossíveis de fazer.
O Espiritismo se preocupa com a prova do Espírito e de suas correlações do Universo.
É uma revolução na concepção filosófica da Vida. “O Espiritismo está todo na existência da alma e no seu estado depois da morte” — escreveu Kardec, em “Introdução”, pág. 27, do “Livro dos Espíritos”. Logo, as ciências continuam no seu campo material e prestam, com isso, grandes serviços ao Espiritismo experimental. O Espiritismo surgiu, à margem da crença; surgiu, sob a realidade dos fatos, isto é, apresentou-se com a mesma indumentária da Ciência, que é um efeito da objetividade e não da subjetividade dos fenômenos(vide nota complementar 2). E a religião é um fenômeno subjetivo. O Espiritismo, como se vê, não pode ser a ciência, mas a revelação de um mundo, sobre o qual têm surgido dúvidas seculares, – revelação que não exclui, em absoluto, o concurso das ciências, nem a responsabilidade dos homens por tudo quanto resulte do estudo dessas ciências. (Ve. Gênesis, cap 1, ns. 16-18, de A. Kardec).
Portanto, a educação e os sistemas de constituição política e econômica dependem dos poderes humanos. A inteligência do homem é capaz de vencer a Natureza, ao contrário do pessimismo e das inexpressivas considerações, de fundo religioso e metafísico, de “Emmanuel”.
Essas, como tantas ideias outras do fértil moralista, brigam, por suas extravagâncias e desconexidades, com a doutrina progressista de Kardec.
Em “Gênesis” cap. XVIII, n. 25, observou Allan Kardec: “O Espiritismo NÃO CRIA A RENOVAÇÃO SOCIAL; a madureza da Humanidade é que fará dessa renovação uma NECESSIDADE”.
Ele “secunda o movimento de regeneração”. Ainda em “Obras Póstumas” cit., pág. 209, “Não será ele que fará as instituições do mundo regenerado; os HOMENS é que as farão, sob o império das ideias de justiça, de caridade, de fraternidade e de solidariedade, mais bem compreendidas, graças ao Espiritismo”. Logo, ao contrário do que pretende, utopicamente, Emmanuel, há de ser, através da sociologia e da ciência, que haveremos de encontrar o “remédio necessário à paz coletiva e à prosperidade mundial”. E melhor compreenderemos essas verdades, lendo a doutrina espírita, em espírito e verdade, como ela foi prevista por Kardec, naquele passo, já mencionado, do n. 55, cap. 1, de “Gênesis”. Foi, por isso, que, diante da desorientação, sobretudo de espiritualistas, sobre o problema da Paz, escrevemos uma pequena conferência, a respeito, sob o título “Natureza sociológica da Paz”, que oferecemos, por cópia, ao prezado Leopoldo Machado, para ser tomada como complemento final desta já longa carta.
Não lhe pedimos desculpas pela extensão, ou xaropada desta correspondência, porque foi V. mesmo quem, por duas vezes, ou três, em carta, nos solicitou dizer algo sobre o livro que ultimamente nos ofereceu.
“Ao Eusínio, Exma. família e filhos: meu último rebento, para ser, de fato, lido e comentado».
Aproveitamos, para responder-lhe, as férias da nossa convalescença, oriunda da operação que, com estupendo êxito (sem dor nem hemorragia), fizemos das amídalas. Num velho de 70 anos, hipotireoidiano, emotivo, o fato apenas confirma o progresso da ciência e a proficiência do cirurgião, o nosso patrício, filho de Alagoinhas, Dr. José Elesbão Cirne Dantas, que nos mereceu sólida confiança, não obstante o desassossego de que nos cercaram, a mim e à família, vários amigos, receosos, com os casos que citavam, dos riscos e do insucesso da operação. Um amigo, médico da família, foi mesmo contra, Recolhi-me ao “Sanatório Manoel Vitorino”, no dia 20 de agosto; de manhã, no dia seguinte, 21, operei-me; a 23 saí para a casa, e já estou restabelecido, alimentando-me normalmente, apenas não querendo abusar de muito falar, para não irritar a garganta, que só com um mês se reconstituirá definitivamente.
Claro que, escrevendo-lhe tão longamente, só tivemos em vista emitir um voto sincero, por amor à Verdade e ao progresso, e, concomitantemente, render homenagem a um trabalhador sincero. A sinceridade de ambos foi a causa moral desta extensa missiva, porque, de outro modo, um homem, de poucas luzes, como eu, não iria incomodar um luminoso espírito, como o seu, hoje adoentado por excesso de trabalho, em bem da propaganda da causa espírita.
Não falei dogmaticamente, nem procurei argumentos, com raízes em minha cabeça, o que seria um despautério, mas no espírito da doutrina espírita, que está acima de todos nós.
Com os votos de Odília, que sempre fala em seu nome, e dos filhos e meus, pela sua saúde e sua paz, sou o mesmo irmão pelo coração,
EUSÍNIO LAVIGNE
Notas de rodapé:
(1) Como, ainda hoje, os novos conquistadores dos povos (os imperialistas norte-americanos, ingleses e franceses) prestigiam, material e moralmente, perante a opinião pública os chefes das Igrejas, principalmente o PAPA diariamente invocado, como “Sua Santidade”, pelas agências internacionais desses Imperialistas, que são, de fato, os maiores ateus e hipócritas do mundo, porque não acreditam em “santo” algum, senão no da força bruta, pelo dinheiro, pela espada e pelo canhão. (retornar ao texto)
(2) As atuais ditaduras e golpes militares têm sua origem na ignorância, pelas classes dirigentes, das leis da Economia. Ante a incapacidade de solucionar a desordem econômico-financeira, fazem como os brutamontes, vencidos pela lógica do adversário: lançam mão da brutalidade da força, a fim de se não deixarem humilhar, e de não perderem a sua autoridade dominadora.
O governante, porém, sinceramente cristão, ciente dos princípios científicos da doutrina socialista, domina os seus instintos egoísticos, sobretudo se é um adepto da moral espírita-cristã, que nos manda respeitar as leis da Ciência (Kardec, citado).
Assim, pois, o espírita tem que ser socialista, por amor à Humanidade. Mas para conhecer o verdadeiro Socialismo, é necessário que conheça o Marxismo, da mesma forma que o melhor caminho, para o conhecimento do Cristianismo, é o estudo do Espiritismo filosófico. (retornar ao texto)
Notas complementares:
(Nota Complementar nº 1
- Nótula N 3):
O Espiritismo, em sua face religiosa, condena o suicídio porque “só Deus tem o direito de dispor da nossa vida” (Resp 944, Liv. Esp.).
A infração da Lei divina redunda em sofrimento do suicida, “expiando a falta imediatamente, ou em nova existência, que será pior do que aquela cujo curso interrompera” (id., 957).
O remédio preventivo ministra-se pela autoeducação.
Quer dizer, então, que o suicídio tem por causa um desvio moral, de desobediência a Deus, motivo por que as suas consequências são também pessoais.
Eis aí uma interpretação individualista e metafísica, ou mística, que está em desacordo com os fatos verificados pela sociologia.
Ora, já vimos que a “revelação espírita, apoiando-se em fatos, tem que ser essencialmente progressista, como todas as ciências de observação” (Gênesis, cit., n. 55).
Pois bem, numa das respostas a Kardec, os Espíritos entremostraram o filão da verdade, na seguinte passagem: “Demais, eliminai da vossa sociedade os abusos e preconceitos, e deixará de haver desses suicídios” (resp. 949).
Exatamente. É a lei do Socialismo, demonstrada pelo materialista Karl Marx. Modifique-se a vida social, e o indivíduo andará, pensando e praticando, conforme o sistema corrente das relações na vida econômica e social.
Assim, o fenômeno do suicídio tem que ser estudado de acordo com as novas leis da sociologia marxista (que não é de Marx, que foi simplesmente o organizador genial, da mesma forma que Kardec codificou os princípios gerais do neo-espiritualismo).
A justiça de Deus é a prática da CONFRATERNIZAÇÃO. “Quando os homens compreenderem a justiça, e praticarem a Lei de Deus, TODOS OS POVOS SERÃO IRMÃOS” (Liv. Esp., resp. 743).
Ora, hoje, com os exemplos dos povos, com línguas, raças e costumes diferentes, que transformaram os seus países da antiga “Rússia tzarista”, em UNIÃO Soviética, ficou provado que a aplicação dos princípios do Socialismo científico, consolida a confraternização, motivo por que a resposta n. 744, do “Livro dos Espíritos” condicionando a liberdade e o progresso à necessidade da guerra, exprime uma situação de fato, concernente ao estado de barbaria(resp. 742), mas, hoje, incompatível com as novas leis da civilização(Vide resp. 776).
Logo, o suicídio, como as guerras, tem seu fundamento no desequilíbrio econômico da sociedade; e o modo de combatê-lo não há de ser por sentimentos subjetivos, mas, consequentemente pela luta coletivamente organizada, única que nos abre as possibilidades de uma destruição definitiva dos obstáculos ao direito de viver.
Aqui está. A interpretação religiosa do “Livro dos Espíritos” é negativa e reacionária, ao passo que a científica, pelo Socialismo, nos salva do “suicídio”, como explicitamente declara Kardec: “Entendendo com todos os ramos da economia social, o Espiritismo assimilará, sempre, todas as doutrinas progressivas, de QUALQUER ORDEM QUE SEJAM desde que hajam assumido o estado de VERDADES PRÁTICAS, e abandonado o domínio da utopia, SEM O QUE ÊLE SE SUICIDARA” (Gênesis cit., n. 55, cap. 1).
“O Livro dos Espíritos”, explicado ao pé da letra, é um aleijão de contradições, porque, por ela, pela letra, Deus é o senhor da nossa vontade e o responsável pelos males humanos (leiam-se as respostas suprarreferidas), o que atentaria contra a própria teoria espírita do “livre arbítrio” (resp. 532).
O sentido filosófico do Livro deve ser este: “estamos sujeitos às leis da Natureza, obra de Deus, e não à vontade de Deus. E são, pois, essas leis, conhecidas, que modificam, quando aplicadas, o panorama do mundo social e mental, ou objetivo e subjetivo”.
O religiosismo dos espíritas cria-lhes uma visão estreita da vida terrena. O materialismo de Marx, pelo contrário, incentiva o homem à luta contra os desesperos da vida e à colaboração fraternal, e, pois, neste particular, se ajusta ao ensino do Cristianismo.
Essa a realidade, que muitos dos nossos doutrinadores espíritas não querem reconhecer.
Eis por que, a propósito de um suicídio, achamos belo, digno de ser subscrito por qualquer espiritualista, este suelto, de um materialista, partidário do Comunismo:
A TECELÃ E A ESPERANÇA — Trabalhando, trabalhando ao pé de um tear, urdindo fios, no correr dos anos, sentindo esvair-se a mocidade e a saúde, Rute Rodrigues Campos, tecelã, casada, quis matar-se. Amava o seu trabalho, gostava de fiar, mas o que produzia era para enriquecer apenas o patrão. Restava-lhe a fadiga crescente, a vida mais difícil, e um salário-mínimo, que não lhe podia mitigar a fome. E foi por isso que, no seu desespero, a tecelã resolveu tomar grande quantidade de soporíferos. Socorrida a tempo, posta fora de perigo, afirmou: “Se me salvarem desta, em outra, hei de me matar. Noutra será inútil chamar médico. Será bom providenciar logo a vinda do rabecão da polícia”.
Foi esse o meio que ela escolheu para exprimir a sua revolta. Diante da exploração brutal, em que os seres humanos são transformados em peças da engrenagem da fábrica, postas fora, quando se gastam, como sucata, a tecelã se viu desesperada.
Não viu que a salvação está em se ligar às suas irmãs tecelãs, aos seus irmãos operários, e resistir à exploração, lutando contra ela. Sem luta, sucederá sempre o desespero, mas, com a luta, logo surge a esperança, porque classe social nenhuma, no mundo, é tão poderosa, QUANDO UNIDA, e tão rica de possibilidades para vencer a luta, como a classe operária.
Volte à vida, tecelã; transforme o seu desespero em revolta, e a revolta em parte da luta, que é sua e dos seus companheiros de trabalho. Se o patrão a transformava em uma peça da fábrica, saiba que a luta reconhece em você uma criatura humana, cuja vida é tão preciosa quão digna de ser feliz. (Da “Imprensa Popular”, Rio, 8/12/54). (retornar ao texto)
(Nota Complementar nº 2 - Nótula N 4): A inobservância e o esquecimento da origem e da natureza OBJETIVA dos fenômenos, à luz dos quais Kardec formulou a doutrina conhecida pelo nome de Espiritismo, têm concorrido para o estacionamento e adulteração da mesma. A filosofia espiritualista não sobreviverá à morte do Espiritismo, que lhe é a base mais racional e lógica, precisamente por causa da realidade dessa fenomenologia.
Com efeito. Em face da doutrina espírita, nenhuma comunicação de espírito representa valor intrínseco, sem ser confirmada por FATOS, sobre os quais repousa o edifício da Ciência. Eis por que Kardec sentenciou que — “O Espiritismo e a Ciência se completam, reciprocamente” (Gênesis, Cap. 1, n. 16).
E, logo depois, em abono da tese: “O Livro dos Espíritos foi a primeira obra que levou o Espiritismo a ser considerado de um ponto de vista filosófico, pela dedução das consequências morais dos FATOS”. “Ê notório que, da publicação desse livro, DATA A ERA DO ESPIRITISMO FILOSÓFICO, até então conservado no domínio das experiências curiosas” (Idem, nota ao n. 52).
Por isso, “apoiando-se em fatos, a revelação espírita tem que ser ESSENCIALMENTE PROGRESSIVA, COMO TÕDAS AS CIÊNCIAS DE OBSERVAÇÃO” (Idem, n. 55).
Logo, não podemos aceitar, como verdades, as revelações de Emmanuel ou de qualquer espírito, quando não consagradas pela experiência, pois a ÚNICA AUTORIDADE, no caso, é a universalidade, verificada, do ensino(Idem, n. 54).
No entanto, está se constituindo praxe, no “Espiritismo Brasileiro”, aceitar, como princípio doutrinário, tudo quanto vem de Espíritos, por intermédio do honrado médium Francisco Cândido Xavier. Daí a importância dogmática, que, sem mais exame, se tem, erradamente, conferido às revelações de Emmanuel e de outros espíritos, muitas delas, sem sentido prático na vida de relação.
Isso é a continuação, afinal, do “domínio das experiências curiosas”, contra as quais se erguera “o ponto de vista filosófico” da doutrina espírita.
Subscrever conceitos de Espíritos, simplesmente por oriundos de Espíritos, e por vindos através de médiuns honestos, é subordinar a Ciência à religião, porque a “Religião” é que atribui a uma origem espiritual, sem prévias indagações, os ditados medianímicos, à guisa das “verdades” da Igreja Romana, ditadas pelo papa.
Só esse argumento anti-subjetivista basta para provar que o Espiritismo não é religião.
Mesmo que algum dia triunfasse a hipótese materialista, pela qual os fenômenos espíritas não se ligam com a existência autônoma do espírito imortal, ainda assim, Allan Kardec teria ampliado o campo da Ciência materialista, a exemplo dos dedicados alquimistas, precursores da moderna química.
O Espiritismo mudaria de nome, mas teria sido o germe de uma nova psicologia científica, ou de uma teoria química do pensamento, do espírito, da alma, ou do que se convenciona chamar “energia mental do corpo físico”. (retornar ao texto)
Inclusão | 15/08/2018 |