A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx

Evald Vasilievich Ilienkov


Capítulo 5. O Método de Ascensão do Abstrato ao Concreto em O Capital de Marx

3. As Contradições da Teoria do Valor-Trabalho e sua Resolução Dialética em Marx


Vamos relembrar que as contradições teóricas lógicas do sistema de Ricardo são o resultado de seu esforço em expressar todos os fenômenos através da categoria do valor, para entende-los a partir de um único princípio.

Onde esse esforço não é realizado, as contradições não surgem. A fórmula da ciência vulgar (capital-juros, terra-renda, trabalho-salários) não contradiz nem si mesma nem os fatos empíricos óbvios. Entretanto, por causa disso ela não contém um único grama de compreensão teórica das coisas. Não existem contradições aqui pela simples razão de que essa fórmula não estabelece qualquer conexão interna entre capital e juros, entre trabalho e salários, entre terra e renda, também porque a ciência vulgar nem tenta deduzir definições de todas as categorias a partir de um único princípio. Eles não são mostrados como sendo distinções necessárias necessariamente surgindo dentro de certa substância comum, eles não são entendidos como modificações dessa substância. Não é surpreendente que não existe contradição interna aqui, mas meramente uma contradição externa entre coisas internamente não-contraditórias diferentes. E essa é uma situação com a qual um metafísica estará facilmente reconciliado. Eles não contradizem um ao outro simplesmente porque eles não estão em qualquer relação internamente necessária. É por isso que a fórmula da ciência vulgar tem aproximadamente o mesmo valor teórico que as máximas favoritas do professor de literatura de um conto de Tchekhov: “Cavalos comem aveia” e “o Volga desemboca no Mar Cáspio”.

Diferente dos economistas vulgares, Ricardo tentou desenvolver todo o sistema de definições teóricas a partir de princípios da teoria do valor-trabalho. É exatamente por isso que toda a realidade, como ele a descreve, aparece como um sistema de conflitos, antagonismos, tendências mutuamente exclusivas antinômicas, forças diametralmente opostas cuja oposição cria o todo que ele considera.

As contradições lógicas que economistas e filósofos do campo burguês consideraram como uma indicação da fraqueza, da falta de desenvolvimento da teoria de Ricardo, na verdade expressa exatamente o contrário – a força e objetividade de seu método de expressão teórica das coisas. O que Ricardo visava, primeiro de tudo, era a correspondência das proposições e conclusões teóricas com o verdadeiro estado das coisas, e somente em segundo lugar, a correspondência delas com o postulado metafísico de que um objeto não pode se contradizer e nem suas definições teóricas separadas podem contradizer uma a outra.

Ele expressou o verdadeiro estado de coisas de maneira ousada (e até mesmo, como Marx colocou, cínica), e o verdadeiro estado contraditório de coisas foi refletido, em seu sistema, como contradições nas definições. Quando seus pupilos e seguidores tornaram isso sua principal preocupação, não tanto a expressão teórica dos fatos como coordenação formal das definições já disponíveis, sujeito ao princípio proibindo as contradições nas definições como o princípio supremo, a partir desse ponto em diante a desintegração da teoria do valor-trabalho começou.

Em sua análise dos pontos de vista de James Mill, Marx afirmou:

O que ele tenta alcançar é a consistência lógica, formal. A desintegração da escola ricardiana, “portanto” [portanto! – E.I.], começa com ele (Marx, 1975a, p. 84)Referência 1.

Em si mesmo, o desejo de justificar a teoria de Ricardo em termos de cânones da sequência formal lógica não brota, naturalmente, de um amor platônico pela lógica formal. Essa preocupação é estimulada por um motivo diferente – um desejo de apresentar o sistema capitalista de produção de mercadoria como uma forma perpétua de produção eternamente igual a si mesma, ao invés de um sistema surgindo historicamente que pode, portanto, se transformar em outro, sistema superior.

Se um certo fenômeno, expresso e concebido em termos da lei universal do valor, repentinamente entra em uma relação de contradição teórica (lógica) com a fórmula da lei universal (determinação do valor pela quantidade de tempo de trabalho), para o teórico burguês isso aparece como evidência de seu desvio das bases eternas e imutáveis do ser econômico. Todo o esforço é direcionado a provar que o fenômeno corresponde diretamente à lei universal, que em si mesma é concebida como existindo sem contradição, como uma forma eterna e imutável de economia.

Mais precisamente do que qualquer coisa, os economistas burgueses sentem a contradição entre a lei universal de Ricardo do valor e lucro. Uma tentativa de expressar os fenômenos do lucro em termos da categoria do valor, aplicar a teoria do valor-trabalho ao lucro, revela, já em Ricardo, contradição na definição. Na medida em que o lucro é o sagrado dos sagrados da religião da propriedade privada, os economistas direcionaram seus esforços teóricos na coordenação das definições do lucro com a lei universal do valor.

Existem duas formas de coordenação diretamente as definições teóricas do valor com as definições teóricas do lucro como uma forma específica, como uma modificação específica (tipo) de valor.

A primeira forma é mudar a expressão do lucro de tal forma que possa ser incluída sem contradição na esfera da aplicação da categoria do valor, de suas definições universais. A segunda forma é mudar a expressão do valor, para qualifica-la de tal forma que as definições do lucro possam ser incluídas nela sem contradição.

Ambas as formas levam à desintegração da escola ricardiana. A economia política vulgar preferiu a segunda forma, a de qualificar as definições do valor, pois o lema do empirismo sempre foi, “traga a fórmula universal de uma lei em acordo com o estado empiricamente inquestionável das coisas, com aquilo que é idêntico nos fatos”, neste caso, com a forma empírica da existência do lucro.

Essa posição filosófica parece, à primeira vista, ser a mais óbvia e sensata. Sua realização, entretanto, é impossível, a não ser que as proposições teóricas universais da teoria do valor-trabalho, o próprio conceito de valor, sejam sacrificadas.

Vamos considerar em detalhes porquê e de que forma isso necessariamente acontece.

A relação paradoxal entre as definições teóricas do valor e lucro é um tropeço para o próprio Ricardo. Sua lei do valor diz que trabalho vivo, trabalho do homem, é a única fonte de valor, enquanto o tempo gasto com a produção de um artigo constitui a única medida objetiva do valor.

O que observamos, entretanto, se aplicamos essa lei universal que não pode ser nem violada nem abolida ou alterada (expressando como faz a natureza íntima universal de qualquer fenômeno econômico) ao fato empiricamente inquestionável da existência do lucro?

Ricardo percebeu muito bem que o lucro não poderia ser explicado somente pela lei do valor e que toda a complexidade da estrutura do lucro não foi exaurida por essa lei. Ricardo tomou a lei da taxa média de lucro, a taxa geral de lucro, como o segundo fator decisivo cuja interação com a lei do valor poderia explicar o lucro.

A taxa geral de lucro é um fato puramente empírico e, portanto, inquestionável. Sua essência é essa: a magnitude do lucro depende exclusivamente da magnitude agregada de capital e, de forma alguma, depende da proporção na qual é divido em capital fixo e capital circulante, capital constante e capital variável etc.

Ricardo aplica essa lei empiricamente universal para a explicação do mecanismo da produção de lucro, tratando-o como um fator que modifica e complica a ação da lei do valor. Ricardo não investigou na natureza desse fator, sua origem, sua relação interna com a lei universal. Ele assumiu sua existência absolutamente acriticamente, como um fato empiricamente inquestionável.

Qualquer análise mais ou menos íntima revelará de imediato que a lei da taxa média de lucro contradiz diretamente a lei universal do valor, a determinação do valor em termos de tempo de trabalho, as duas leis sendo mutuamente excludentes.

Ao invés de postular essa taxa geral de lucro, Ricardo deveria ter examinado em que medida sua existência é realmente consistente com a determinação do valor pelo tempo de trabalho, e ele teria encontrado que ao invés de ser consistente com ela, prima facie, uma contradiz a outra [...] (Marx, 1968, p. 174)Referência 2.

A contradição aqui é a seguinte: a lei da taxa média de lucro estabelece a dependência da magnitude do lucro somente sobre a magnitude do capital como um todo; ela estipula que a magnitude do lucro é absolutamente independente da partilha de capital gasto com salários e transformado em trabalho vivo do trabalhador assalariado. Mas, a lei universal do valor afirma diretamente que novo valor pode ser somente o produto do trabalho vivo, não pode, de forma alguma, ser o produto de trabalho morto, pois trabalho morto (isto é, trabalho anteriormente materializado na forma de máquinas, prédio, matéria-prima etc.) não cria qualquer novo valor, meramente transfere passivamente seu próprio valor, pouco a pouco, para o produto.

O próprio Ricardo viu a dificuldade. Entretanto, totalmente no espírito do pensamento metafísico, ele expressou e interpretou isso como uma exceção da regra, ao invés de uma contradição nas definições da lei. Naturalmente, isso não altera a situação, e Malthus aponta bastante corretamente nessa conexão que, enquanto a indústria se desenvolve, a regra se torna uma exceção e, uma exceção, a regra (Marx, 1968)Referência 3.

Assim, surge um problema que é completamente insolúvel no pensamento metafísico. A partir do ponto de vista do teórico pensamento metafisicamente, uma lei universal só pode ser justifica como uma regra empiricamente universal para a qual todos os fenômenos, sem exceção, estão sujeitos. No caso dado, verifica-se, entretanto, que algo diretamente oposto à lei universal do valor, uma negação da lei do valor, se torna uma regra empírica universal.

Uma lei universal teoricamente estabelecida e uma regra universal empírica, o elemento empiricamente universal nos fatos, chegam aqui em uma antinomia, uma contradição insolúvel. Se se continua a tentar deixar em acordo a lei universal com as características imediatamente gerais abstraídas dos fatos, surge um problema que é “muito mais difícil [...] de resolver do que aquele de enquadrar o círculo [...]. É simplesmente uma tentativa de apresentar aquilo que não existe como de fato existente” (Marx, 1975a, p. 87)Referência 4.

O problema da correlação do universal e do particular, de uma lei universal e uma forma empiricamente óbvia de sua própria manifestação (do geral nos fatos), da abstração teórica e empírica, se torna um dos tropeços na história da economia política que provou intransponível para a teoria burguesa.

Fatos são uma coisa teimosa. Aqui, também, o fato permanece: uma lei universal (a lei do valor) está na relação da contradição mutuamente exclusiva para com a forma empiricamente universal de sua própria manifestação, com a lei da taxa média de lucro. É impossível deixa-las em acordo exatamente porque tal acordo não existe na própria realidade econômica.

Um teórico pensando metafisicamente se deparando com este fato como uma surpresa ou paradoxo, inevitavelmente interpretará ele como resultado de erros realizados anteriormente no raciocínio, na expressão teórica dos fatos. Para uma solução desse paradoxo, ele naturalmente recorre a análise puramente formal da teoria, a especificamente dos conceitos e correção de expressões. O postulado de que a realidade objetiva não pode ser autocontraditória é, para ele, a lei suprema e incontestável pela qual ele está pronto para sacrificar qualquer coisa.

Marx denunciou a completa falta de espírito científico nessas atitudes, a absoluta incompatibilidade delas com a abordagem teórica, nesses termos:

Aqui, a contradição entre a lei geral e posteriores desenvolvimentos nas circunstâncias concretas é para ser resolvida não pela descoberta de elos de ligação, mas por subordinar diretamente e adaptar imediatamente o concreto ao abstrato. Isso é, além disso, para ser conseguido por uma ficção verbal, por mudar os nomes corretos das coisas. (Estas são, realmente, “disputas verbais”, elas são “verbais”, entretanto, porque as contradições reais que não estão resolvidas de forma real, são resolvidas por frases.) (Marx, 1975a, pp. 87-88)Referência 5.

A lei proibindo contradições em definições triunfa, mas a teoria perece, degenerando em disputas verbais, em um sistema de truques semânticos.

Indicar contradições em definições teóricas do objeto não constitui por si mesmo um privilégio da dialética consciente. A dialética não é meramente um desejo por acumular contradições, antinomias e paradoxos nas definições teóricas das coisas. O pensamento metafísico é muito melhor nessa tarefa (verdade, ao contrário de suas próprias intenções).

Pelo contrário, o pensamento dialético surge somente naquele ponto onde o pensamento metafísico está desesperadamente perdido em um labirinto de contradições com si mesmo, nas contradições de algumas de suas conclusões com outras.

O desejo de se livrar das contradições nas definições através da especificação de termos e expressões é um modo metafísico de resolver as contradições na teoria. Dessa forma, resulta em desintegração da teoria, ao invés de seu desenvolvimento. Desde que a vida copele um desenvolvimento da teoria do mesmo jeito, no final sempre acontece que uma tentativa de construir uma teoria sem contradições leva ao acumulo de novas contradições, que são ainda mais absurdas e insolúveis que aquelas que foram aparentemente descartadas.

Repetindo: a tarefa da teoria não consiste em meramente provar que a realidade objetiva sempre surge diante do pensamento teórico como uma contradição viva demandando uma solução, como um sistema de contradições. No século XX, esse fato não precisa ser provado, e novos exemplos nada acrescentam. Até mesmo o metafísico mais inveterado e confirmado não pode falhar em ver este fato.

Entretanto, o metafísico de nossa época, partindo dessa premissa, direciona todos os seus esforços em justificar este fato como resultado de defeitos intrínsecos da habilidade cognitiva do homem, a partir do desenvolvimento pobre de conceitos, definições, o caráter vago e relativo dos termos, expressões etc. Agora, o metafísico estará reconciliado com a existência da contradição – assim como com um mal subjetivo inevitável, nada mais. Assim como na época de Kant, ele ainda não está preparado para admitir que esse fato expressa contradições internas das coisas “em si mesmas”, da própria realidade objetiva. É por isso que o agnosticismo e subjetivismo do tipo relativista recorre à metafísica nesses dias.

A dialética procede de um ponto de vista diametralmente oposto. Sua solução do problema é baseada, primeiro de tudo, na suposição de que o próprio mundo objetivo, a realidade objetiva é um sistema vivo desvelando através do surgimento e resolução de suas contradições internas. O método dialético, lógica dialética demanda que, longe de temer as contradições na definição teórica do objeto, deve-se buscar por essas contradições de uma maneira direcionada a um objetivo e gravá-las precisamente – para encontra a resolução racional delas, naturalmente, e não para acumular montanhas de antinomias e paradoxos em definições teóricas de uma coisa.

A única forma de obter uma resolução racional das contradições na definição teórica é através do rastreamento do modo no qual elas são resolvidas no movimento da realidade objetiva, o movimento e desenvolvimento do mundo de coisas “em si mesmas”.

Voltemos para a economia política, para ver como Marx resolve todas essas antinomias que foram gravadas pela escola ricardiana, apesar de sua intenção filosófica consciente.

Em primeiro lugar, Marx abandona qualquer tentativa de deixar diretamente de acordo a lei universal (a lei do valor) com as formas empíricas de sua própria manifestação sobre a superfície dos eventos, isto é, com a expressão geral abstrata dos fatos, com as características imediatamente gerais que podem ser indutivamente estabelecidas nos fatos.

Marx mostra que essa coincidência direta da lei universal e formas empíricas de sua manifestação não existe na realidade do próprio desenvolvimento econômico: as duas estão conectadas pela relação da contradição mutuamente exclusiva. A lei d valor contradiz na verdade, não somente e não tanto na cabeça de Ricardo, a lei da taxa média de lucro.

Em uma tentativa de provar a coincidência delas, “o empirismo grosseiro se transforma em fala metafísica, escolástica, que labuta dolorosamente para deduzir fenômenos empíricos inegáveis por simples abstração formal direcionada a partir da lei geral, ou para mostrar por um argumento astuto de que elas estão de acordo com aquela lei” (Marx, 1965, p. 89)Referência 6.

Finalmente percebendo a impossibilidade de fazê-lo, o empirista elaborará, neste caso, a conclusão de que a formulação da lei universal está incorreta e procederá a “corrigi-la”. Seguindo este caminho, a ciência burguesa castra o significado teórica da lei ricardiana do valor, perdendo, como Marx apontou, o próprio conceito de valor.

Essa perda do conceito de valor ocorreu da seguinte forma: para deixar a lei do valor de acordo com aquela da taxa média de lucro e outros fenômenos irrefutáveis da realidade econômica a contradizendo, MacCulloch mudou o conceito de trabalho como a substância do valor. Aqui está sua definição de trabalho:

Trabalho pode apropriadamente ser definido como sendo qualquer tipo de ação ou operação, seja desempenhada pelo homem, animais inferiores, maquinaria ou agentes naturais, que tende a atender qualquer resultado desejado (Marx, 1975a, p. 179)Referência 7.

Por meio dessa definição, MacCulloch “livra-se” das contradições ricardianas.

Marx diz isso sobre o argumento:

E ainda assim algumas pessoas tiveram a ousadia de dizer que o miserável Mac levou Ricardo ao extremo, ele que [...] abandona o próprio conceito de trabalho! (Marx, 1975a, pp. 181-182)Referência 8.

Esse “abandono do conceito” é inevitável, dado o desejo de construir um sistema de definições teóricas sem contradições entre uma lei universal e a forma empírica de sua própria manifestação.

O modo de ação de Marx é diferente em princípio. Em seu sistema, as definições teóricas não eliminam as contradições que horrorizam os metafísicos, que não conhecem qualquer outra lógica que não a lógica formal.

Se é tomada uma proposição teórica a partir do primeiro volume de O Capital e confrontá-la com uma proposição teórica do terceiro volume, parecerá que as duas estão em contradição lógica uma com a outra.

No primeiro volume é mostrado, por exemplo, que o mais-valor é exclusivamente o produto daquela parte do capital que é gasta em salários, que se torna o trabalho vivo de um trabalhador assalariado, isto é, o produto da parte variável do capital e somente dessa parte.

Mas, a proposição do terceiro volume lê-se como segue:

Seja como for, sobressai o resultado: [o mais-valor – M.S.] brota simultaneamente de todas as partes do capital aplicado (Marx, 2008, p. 51)Referência 9.

A contradição estabelecida pela escola ricardiana, dessa forma, não desapareceu aqui, mas é, pelo contrário, mostrada como sendo a contradição necessária da própria essência da produção de mais-valor. Isso é precisamente porque os economistas burgueses, depois da publicação do terceiro volume de O Capital, afirmaram triunfantemente que Marx não foi capa de resolver as antinomias da teoria do valor-trabalho, que ele não cumpriu as promessas feitas no primeiro volume, e que todo O Capital era nada mais que uma trapaça dialética especulativa.

A base lógica-filosófica dessas censuras foi novamente a concepção metafísica de que uma lei universal era provada por fatos somente quando pudesse ser deixada em acordo sem contradições diretamente com a forma empírica geral do fenômeno, com as características gerais nos fatos abertos à contemplação direta.

Isso é exatamente o que não encontramos em O Capital, e o economista vulgar grita que as proposições do terceiro volume refutam aquelas do primeiro, na medida em que elas estão em relações de contradição mutuamente exclusivas com elas. Aos olhos do empirista isso é evidência da falsidade da lei do valor, uma prova de que essa lei é a “mais pura mistificação” contradizendo a realidade e tendo nada em comum com ela.

Neste ponto, o empirismo vulgar dos economistas burgueses foi apoiado por kantianos. Por exemplo, Conrad Schmidt aparentemente concordava com a análise de Marx, com uma ponderação, entretanto: “declara Schmidt ser a lei do valor dentro dos limites da forma de produção capitalista uma ficção apenas, embora teoricamente necessária” (Engels, 2008b, p. 1173,Referência 10 itálicos de Ilienkov).

A razão por que os kantianos consideram essa lei como uma hipótese especulativa ou ficção é que ela não pode ser justificada em termos do imediatamente geral nos fenômenos empiricamente inquestionáveis.

O geral nos fenômenos – a lei da taxa média de lucro – é algo diametralmente oposto à lei do valor, algo que a contradiz e a exclui. No ponto de vista kantiano ela é, portanto, não mais que uma hipótese artificialmente construída, uma ficção teoricamente necessária – não é, de forma alguma, uma expressão teoria da lei objetivamente universal a qual todos os fenômenos pertinentes estão sujeitos.

O concreto, assim, contradiz o abstrato em O Capital de Marx, e essa contradição não desaparece por causa do fato de que toda uma cadeia de elos mediadores é estabelecida entre os dois, mas sim é provado como a contradição necessária da própria realidade econômica, não como a consequência das desvantagens teóricas da concepção ricardiana da lei do valor.

A natureza lógica desse fenômeno pode muito bem ser demonstrada por meio de um exemplo fácil que não requer conhecimento especial no campo da economia política.

Na descrição matemática quantitativa de certos fenômenos, sistema autocontraditórios de equações são muito frequentemente obtidos, nos quais existem mais equações em quantidades desconhecidas, por exemplo:

x + x = 2
50x + 50x = 103

A contradição lógica é óbvia aqui, ainda assim, o sistema de equações é bastante real. Sua realidade se tornará aparente sobre a condição de que o x aqui denota um kopek,(1) e a adição de kopeks ocorre não somente e não tanto na cabeça, mas na poupança, também, que coloca em uma conta três por cento de juros per annum.

Sob essas condições bem concretas, e bastante reais, a adição de kopeks é bastante precisamente expressa pelo sistema “contraditório” de equações acima. A contradição é aqui uma expressão direta do fato de que na realidade não são quantidades pura especulativas que são adicionadas (ou subtraídas, ou divididas, ou elevadas a uma potência etc.), mas magnitudes qualitativamente definidas, e de que a adição puramente quantitativa dessas magnitudes produz, em algum momento, um salto qualitativo desregulando o processo quantitativo ideal e resultando em um paradoxo na expressão teórica.

Quando ciência se depara com esse problema a cada passo. Vamos tomar um exemplo elementar. Foi estabelecido que quando a temperatura de um gás diminui em um grau, seu volume diminui por 1/273; dentro de certos limites, o comportamento dos gases é estritamente consistente com essa lei. Em temperatura muito baixas, entretanto, os números são bastante diferentes. A contradição (“falta de acordo”) entre a lei básica e a expressão matemática de sua ação em temperaturas muito baixas é evidência do fato de que, em algum momento, surge um novo fator, causado pela mesma queda de temperatura, que afeta a proporção; isso não prova, de forma alguma, que as expressões numéricas contraditórias estão erradas. A ciência há muito aprendeu uma forma de tratar essas contradições apropriadamente. Falta de vontade ou incapacidade consciente para aplicar a dialética aqui resulta, entretanto, no ponto de vista da matemática como uma “ficção teoricamente necessária”, um instrumento puramente artificial do intelecto.

Os positivistas modernos falam da matemática, que colide com esses paradoxos a cada passo, exatamente da mesma maneira na qual Conrad Schmidt discutiu valor. Eles também justificam a matemática pura de forma totalmente pragmática, instrumentalista – somente como um modo artificialmente inventado da atividade espiritual do sujeito que por alguma razão (desconhecida) produz o resultado desejado. As bases para essa atitude para com a matemática são as circunstâncias reais que direcionam a aplicação das fórmulas matemáticas ao desenvolvimento quantitativo-qualitativo real dos fenômenos, à concreticidade real, invariavelmente e inevitavelmente leva a um paradoxo, a uma contradição lógica na expressão matemática.

Neste caso, entretanto, (assim como na economia política), a contradição não é, de forma alguma, um resultado de erros feitos pelo pensamento na expressão teórica do fenômeno. É uma expressão direcionada à dialética dos próprios fenômenos. Uma resolução real dessa contradição pode somente consistir em posterior análise de todas as condições e circunstâncias concretas nas quais o fenômeno é realizado, e ao revelar os parâmetros qualitativos que rompem a série puramente quantitativa em algum momento. A contradição não demonstra, neste caso, uma falsidade da expressão matemática ou sua incorreção, mas algo bastante diferente: a falsidade do ponto de vista de que a dada expressão define o fenômeno de forma exaustiva.

As equações x + x = 2, 50x + 50x = 103, expressam bastante precisamente o aspecto quantitativo do fato subjacente, e parecem absurdas somente até que o significado objetivo concreto das quantidades desconhecidas estabelecidas e as condições concretas são especificadas nas quais a adição dessas quantidades desconhecidas ocorrem.

Pode-se certamente prever um caso onde a contradição nas equações do tipo ilustrado será uma indicação e uma forma de manifestação da imprecisão ou erros feitos pelo sujeito. Assumir que o valor real de x, por exemplo, é igual a 1.0286 – objetivamente, independentemente do sujeito desempenhando a medição, da escala de medida e da resolução do aparelho de medida; assumir também que nenhuma mudança qualitativa ocorre como resultado da adição dos x’s. Neste caso, a contradição lógica na expressão matemática será bastante diferente da acima em origem e significado objetivo: será meramente evidência do erro ou imprecisão da medição, de poder de resolução insuficiente do aparelho de medida, escala grosseira etc. A contradição está aqui para ser responsabilidade sobre o sujeito e somente sobre o sujeito que, ao medir a soma de dois x’s, foi incapaz de observar e expressar a diferente entre 2 e 2.056, e na medição da soma de centenas de tais x’s, obteve um resultado no qual a diferente se manifestou bastante claramente. Essa contradição lógica é naturalmente resolvida de maneira bastante diferente do primeiro caso.

Entretanto, é bastante impossível concluir somente a partir da estrutura matemática formal das equações com qual caso particular estamos lidando e de que forma a contradição deve ser resolvida. Ambos os casos requerem análise concreta adicional da realidade na expressão que a contradição foi manifestada.

A diferença entre a dialética e a metafísica a esse respeito não reside, de forma alguma, no fato de que a metafísica declara imediatamente qualquer contradição nas definições do objeto um mal intolerável, enquanto a dialética a considera uma virtude e verdade. Isso é verdade somente para a lógica metafísica, mas a dialética não consiste em afirmar o oposto. Isso não seria dialética, mas meramente a metafísica invertida, isto é, sofisma.

A dialética não nega, de forma alguma, o fato de que as contradições puramente subjetivas podem e muito frequentemente figuram na cognição, contradições que não foram descartadas tão logo quanto possível. Entretanto, é bastante impossível concluir a partir da forma externa (matemática formal ou sintática verbal) de uma equação ou proposição com qual contradição estamos lidando em cada caso particular. Desde que a lógica metafísica, em qualquer caso, considera a contradição nas definições como um mal puramente subjetivo, como resultado de erros e imprecisões feitos antes pelo pensamento, a contradição na forma de movimento do pensamento, se tornam dificuldades intransponíveis para ela. Se uma contradição surge nesta estrutura, a lógica metafísica proíbe posterior desenvolvimento do pensamento, recomendando voltar atrás e encontrar a qualquer custo o erro no raciocínio prévio que resultou na contradição. Até a contradição ser mostrada como erro do sujeito, existe uma proibição no avanço do pensamento.

A dialética não nega certa utilidade de checagem e dupla contagem do caminho prévio do raciocínio, também não nega que em alguns casos as checagens podem revelar a contradição como sendo resultado de errado e imprecisão.

O que a dialética rejeita é algo diferente, nomeadamente a suposição de que uma fórmula pode ser elaborar que permitiria reconhecer contradições lógicas (isto é, subjetivas) resultado da imprecisão e descuido sem recurso para análise do conhecimento em seu conteúdo objetivo real. Essa é a reivindicação subjacente das fórmulas clássicas de “exclusão das contradições” – a aristotélica e a leibniz-kantiana. De acordo com a primeira, qualquer proposição está proibida que expressa uma contradição do objeto para si mesmo “ao mesmo tempo e na mesma relação”. De acordo com a segunda, qualquer proposição ou elocução está proibida que atribua a um conceito um predicado (ou atributo) contradizendo-o.

A proibição em sua formulação aristotélica se aplica, como há muito estabelecido, à proposição expressando o famoso paradoxo de Zenão a respeito da flecha voadora.(2) É por isso que todos os lógicos se esforçando em elevar a proibição aristotélica a um absoluto, têm por dois mil anos tentado, tão persistentes quanto foram infrutíferos, apresentar esse paradoxo como resultado de erros na expressão dos fatos. Eles correm o risco de gastar outros dois mil anos de esforço em vão, pois Zeno expressou na única forma possível (e, portanto, a única correta) um caso extremamente típico de contradição dialética contida em qualquer fato de transição, movimento, mudança ou transformação.

Por outro lado, a fórmula leibniz-kantiana irá absolutamente proibir uma proposição como essa: o ideal é o material transplantado na cabeça humana e transformado nela. Essa proposição também expressa uma transição dos opostos um no outro. Ela, portanto, naturalmente define o sujeito através de um predicado que não pode ser imediatamente conectado com ela. O ideal enquanto tal não é material, é não-material, e vice-versa.

Qualquer elocução expressando o exato momento, o exato atoo de transição (e não somente o resultado dessa transição) inevitavelmente contém uma contradição explícita e implícita, e uma contradição “ao mesmo tempo” (isto é, durante a transição, no momento da transição) e “na mesma relação” (precisamente na consideração da transição dos opostos um no outro).

É exatamente por isso que qualquer tentativa de formular a proibição sobre a contradição como uma regra formula absolutamente inquestionável (isto é, uma regra formulada independente do conteúdo concreto da elocução) está fadado ao fracasso. Essa regra proibirá, junto com as proposições “contraditórias lógicas”, todas as proposições expressando as contradições da mudança real, da transição real dos opostos, ou permitirá o primeiro junto com o último. Isso é bastante inevitável, pois os dois não podem ser, em geral, distinguidos na forma da expressão da linguagem, na elocução. Muitas vezes, a realidade objetiva contém uma contradição interna “ao mesmo tempo e na mesma relação”, e a elocução expressando essa situação é considerada na lógica dialética como bastante correta, apesar dos altos protestos dos metafísicos.

Assim, se uma contradição nas definições de uma coisa que surgiu necessariamente como resultado do movimento do pensamento pela lógica dos fatos caracterizando o movimento, mudança do desenvolvimento da coisa, a transição de seus diferentes elementos uns nos outros, isso não é uma contradição lógica, embora possa ter todas as indicações formais de tal contradição, mas uma expressão muito correta de uma contradição dialética objetiva.

A contradição não é, neste caso, uma barreira intransponível no caminho do movimento do pensamento investigativo, mas, pelo contrário, um trampolim para um salto decisivo em direção a uma investigação concreta, em posterior processamento de dados empíricos em conceitos.

Mas, esse salto, característico do desenvolvimento dialético de conceitos, somente se torna possível porque a contradição aparece no raciocínio sempre como um problema real, cuja solução é obtida através de posterior análise concreta dos fatos concretos, através da procura daqueles elos de mediação reais através dos quais a contradição é resolvida na realidade. Os problemas realmente sérios na ciência sempre foram resolvidos dessa forma.

Por exemplo, a filosofia do materialismo dialético, pela primeira vez na história, foi capaz de formular e resolver o problema da consciência, exatamente porque abordou esse problema com uma concepção dialética da contradição. O velho materialismo metafísico chegou neste ponto em uma contradição óbvia. Por um lado, a proposição defendida por qualquer tipo de materialismo afirma que a matéria (realidade objetiva) é primária, enquanto que a consciência é um reflexo dessa realidade, isto é, é secundária. Mas, se se toma abstratamente um único fato isolado da atividade direcionada a um objetivo do homem, a relação entre consciência e objetividade é a reversa. O arquiteto primeiro constrói uma coisa em sua consciência e então deixa a realidade objetiva (com as mãos dos trabalhadores) de acordo com o plano ideal que ele elaborou. Se for para expressar essa situação em categorias filosóficas, aparentemente iria contradizer a proposição geral do materialismo, estar em “contradição lógica” com ele. O que é primário aqui é a consciência, o plano ideal da atividade, enquanto a implementação objetiva sensorial desse plano é algo secundário ou derivado.

Materialistas da época pré-marxiana na filosofia não poderia, como sabemos, lidar com essa contradição. Na medida em que se estava preocupado com a consciência, eles defenderam o ponto de vista do reflexo, a proposição de que ser é primário e consciência secundário. Mas, tão logo o debate mudou para a atividade direcionada a um objetivo do homem, o materialismo metafísico foi incapaz de perceber qualquer coisa da situação. Não é acidental que todos os materialistas antes de Marx eram idealistas puros na concepção de história da sociedade. Aqui eles aceitaram o princípio diametralmente oposto de explicação, de forma alguma conectado com o princípio do reflexo. Nas teorias dos iluministas franceses, dois princípios antinômicos irreconciliáveis de explicação do conhecimento e atividade humano coexistiam pacificamente.

Marx e Engels mostraram que o materialismo metafísico continuamente caiu nessa contradição, porque falhou em ver o elo de mediação real entre a realidade objetiva e a consciência – falhou em agarrar o papel da prática. Ao descobrir esse elo de mediação entre a coisa e a consciência, o materialismo dialético resolve o problema concretamente, explicando a própria atividade do sujeito a partir de um único princípio universal e, dessa forma, implementando completamente o princípio do materialismo na concepção de história. A contradição foi, dessa maneira, removida, resolvida concretamente e explicação como aparecendo necessariamente.

Essa contradição é eliminada no materialismo metafísico através da redução abstrata de definições da consciência a definições da matéria. Essa “solução”, entretanto, deixa o problema real intocado. Os fatos que não foram incluídos diretamente e abstratamente na esfera de aplicação da proposição da primazia da matéria (fatos da atividade consciente do homem) não foram, naturalmente, dessa forma eliminados da realidade. Eles foram eliminados meramente da consciência do materialista. Como resultado, o materialismo não podia colocar um fim ao idealismo, mesmo dentro de sua própria teoria.

Por essa razão, o materialismo metafísico não liquidou a base real sobre a qual, repetidamente, as concepções idealistas da relação entre matéria e espírito surgiram.

Somente o materialismo dialético de Marx, Engels e Lenin provou ser capaz de resolver essa contradição, retendo a premissa básica de qualquer materialismo, mas implementando essa premissa concretamente no entendimento do nascimento da consciência a partir da atividade sensorial prática transformando coisas.

Dessa forma, a contradição foi mostrando como sendo uma expressão necessária de um fato real em sua origem, ao invés de ser eliminado ou declarado falso e inventado. O idealismo foi, assim, desalojado de seu abrigo mais sólido – especulação sobre os fatos relacionados à atividade do sujeito na prática e cognição.

Tal é, em geral, a forma de resolver contradições teóricas na dialética. Elas não são rejeitadas ou eliminadas, mas resolvidas concretamente em uma nova e mais profunda concepção desses fatos, no delineamento de toda a cadeia de elos de mediação que conectam as proposições mutuamente exclusivas.

O metafísico sempre tenta escolher uma de duas teses abstratas, deixando-a tão abstrata quanto era antes da escolha: esse é o significado da fórmula “senão... ou”.

A dialética impõe o requisito do raciocínio de acordo com a fórmula “ambas... e”, ainda assim não orienta o pensamento a uma reconciliação eclética de duas proposições mutuamente exclusivas, como os metafísicos frequentemente atribuem no calor do debate. Ela orienta o pensamento a um estudo mais concreto dos fatos na expressão cujas contradições surgem. É aí que a dialética busca uma solução da contradição – em um estudo concreto dos fatos, no delineamento de toda a cadeia de elos de mediação entre os aspectos realmente contraditórios da realidade.

No processo, cada uma das proposições previamente abstratas é transformada em um momento em um entendimento concreto de fatos e é explicada como uma expressão unilateral da concreticidade contraditória real do objeto e, além disso, uma concreticidade em seu desenvolvimento. Em desenvolvimento, sempre existe um ponto onde a nova realidade aparece que, embora evoluindo com base em formas prévias, contudo rejeita essas formas e possui características contradizendo as características da realidade menos desenvolvida.