A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx

Evald Vasilievich Ilienkov


Capítulo 5. O Método de Ascensão do Abstrato ao Concreto em O Capital de Marx

2. Contradição como Condição do Desenvolvimento da Ciência


A contradição lógica – a existência de definições mutuamente exclusivas na expressão teórica de uma coisa – há muito interessa à filosofia. Não existiu uma única doutrina filosófica ou lógica que não considerasse essa questão de uma forma ou de outra e que a resolveu à sua própria maneira. Ela sempre interessou a filosofia exatamente porque a contradição nas definições é, primeiro de tudo, um fato independente de qualquer filosofia, um fato que é reproduzido continuamente e com fatal necessidade no desenvolvimento científico. Além disso, a contradição mais inequívoca se revela como uma forma na qual o pensamento sobre as coisas se move, sempre e para todo lugar.

Os gregos antigos entenderam muito bem que a verdade só nascia na luta de opiniões. A crítica de qualquer teoria foi sempre direcionada à descoberta de contradições nela. Uma nova teoria sempre se afirmava através da demonstração de um método pelo qual aquelas contradições que não eram resolvidas dentro da estrutura dos princípios da velha teoria, agora eram resolvidas.

Entretanto, se esse fato empírico é simplesmente descrito como um fato, parecerá que uma contradição é algo intolerável, algo que o pensamento sempre procura se livrar de uma forma ou de outra. Ao mesmo tempo, apesar de todas as tentativas de se livrar dela, o pensamento a reproduz repetidamente.

Na medida em que a filosofia e a lógica estudam esse fato, não contentes com simplesmente declarar e afirma-la, a questão surge das causas e fontes de sua origem no pensamento, de sua natureza real. Na filosofia, essa questão surge da seguinte forma: a contradição é admissível ou inadmissível na expressão genuína de uma coisa? Ela é algo puramente subjetivo, criado somente pelo sujeito do conhecimento, ou necessariamente surge como o resultado da natureza das coisas expressas no pensamento?

Essa é a fronteira entre a dialética e a metafísica. Em última análise, a dialética e a metafísica são dois métodos fundamentalmente opostos de resolver contradições, que inevitavelmente surgem no desenvolvimento científico, no desenvolvimento do conhecimento teórico.

A diferença entre eles, expresso em uma forma mais geral, é que a metafísica interpreta a contradição como um mero fantasma subjetivo que lamentavelmente se repete no pensamento devido às imperfeições do último, enquanto a dialética a considera como a forma lógica necessária do desenvolvimento do pensamento, da transição da ignorância para o conhecimento, do reflexo abstrato do objeto no pensamento para um reflexo cada vez mais concreto dele.

A dialética considera a contradição como uma forma necessária de desenvolvimento do conhecimento, como uma forma lógica universal. Essa é a única forma de considerar a contradição a partir do ponto de vista do conhecimento e pensamento como um processo histórico natural controlado por leis independentes dos desejos do homem.(1)

O desenvolvimento do conhecimento e da ciência compele a filosofia a se voltar para o problema da contradição lógica repetidamente. A questão da contradição, de sua importância real, sua fonte e a causa de seu surgimento no pensamento surge naquelas áreas onde a ciência se aproxima do estágio de expressão sistemática de seu assunto em conceitos, onde o raciocínio precisa construir um sistema de definições teóricas. Em casos de recontagem assistemática de fenômenos, não existe questão de contradição. Uma tentativa elementar de sistematizar o conhecimento imediatamente leva ao problema da contradição.

Já observamos os pontos nos quais o desenvolvimento da teoria do valor-trabalho necessariamente se deparou com este problema: em Ricardo, apesar de seus desejos, um sistema de contradições teóricas surge exatamente porque ele tenta desenvolver todas as categorias a partir de um princípio – de determinar o valor pela quantidade de tempo de trabalho. Ele mesmo notou algumas contradições lógicas em seu sistema, outros foram maliciosamente apontados pelos oponentes da teoria do valor-trabalho.

O tipo principal de contradição lógica que era o ponto central da luta por e contra a teoria do valor-trabalho, provou ser a contradição entre a lei universal e as formas universais empíricas de sua própria realização.

Tentativas de deduzir a partir da lei universal definições teóricas dos fenômenos concretos desenvolvidos que regularmente se repetem sobre a superfície da produção e distribuição capitalista de mercadorias, resultou em conclusões paradoxais a cada passo.

Um fenômeno (digamos, lucro) é, por um lado, incluído na esfera da ação da lei do valor, suas definições teóricas necessárias são deduzidas a partir da lei do valor; mas, por outro lado, sua característica distintiva específica prova estar contida em uma definição que contradiz diretamente a fórmula da lei universal.

Essa contradição fatal se manifestou mais claramente, quando mais esforços foram realizados para se livrar dela.

As contradições não são, de forma alguma, um “privilégio” da economia política, que estuda a realidade antagônica das relações econômicas entre as classes.

As contradições são inerentes em qualquer ciência moderna. É suficiente relembrar as circunstâncias do nascimento da teoria da relatividade. Tentativas de explicar certos fenômenos estabelecidos nos experimentos de Michelson em termos de categorias da mecânica clássica, resultaram no aparecimento, dentro do sistema de conceitos da mecânica clássica, de contradições absurdas, paradoxais, em princípio insolúveis nestes termos, e a hipótese brilhante de Einstein foi apresentada como um meio de resolver essas contradições.

A teoria da relatividade, naturalmente, não eliminou as contradições da física. Por exemplo, pode-se apontar para o conhecido paradoxo contido nas definições teóricas do corpo em rotação. A teoria da relatividade, ligando as características espaciais dos corpos com seus movimentos, expressou essa conexão em uma fórmula de acordo com a qual o tamanho de um corpo é reduzido na direção do movimento proporcionalmente com a velocidade do movimento do corpo. Essa expressão da lei universal do movimento de um corpo através do espaço se tornou uma realização teórica estabelecida do arsenal matemático da física moderna.

Entretanto, uma tentativa de aplica-la na elaboração ou assimilação teórica de um fenômeno físico real tal como rotação de um disco rígido ao redor de seu eixo, resultado em um paradoxo: a circunferência de um disco em rotação diminui com um aumento na velocidade de rotação, enquanto o tamanho do raio, de acordo com a mesma fórmula, permanece inalterado.

Observemos que esse paradoxo não é mera curiosidade, mas um teste agudo da realidade física das fórmulas universais de Einstein. Se a fórmula universal expressa uma lei objetiva da realidade objetiva estudada na física, deve-se assumir a existência na própria realidade de uma relação objetivamente paradoxal entre o raio e a circunferência de um corpo em rotação (até mesmo no caso de um pião), pois a infinitamente pequena diminuição na extensão da circunferência não muda qualquer coisa em uma abordagem fundamental do problema.

A convicção de que a própria realidade física não pode conter tal correlação paradoxal, é equivalente à rejeição da realidade física da lei universal expressa na fórmula de Einstein. E essa é uma formula para uma justificativa puramente instrumental da lei universal. Se a lei serve a teoria e a prática, isso é muito bom, e não se deve preocupar com o problema vazio de se ela possui qualquer coisa para corresponder a ela nas “coisas em si mesmas” ou não.

Pode-se citar um número de outros exemplos mostrando que a realidade objetiva sempre se revela para o pensamento teórico como realidade contraditória. A história da ciência desde Zenão de Eleia até Albert Einstein, independentemente de qualquer filosofia, mostra essa circunstância como sendo um fato empiricamente afirmado incontestável.

Vamos voltar à realidade da economia capitalista e sua expressão teórica na economia política. Essa é um ótimo exemplo, porque é extremamente típico: ele mostra graficamente o cul-de-sac no qual o pensamento metafísico inevitavelmente se enterra ao tentar resolver a tarefa primordial da ciência – a de desvelar uma expressão sistemática do objeto em conceitos, em um sistema de definições teóricas do objeto, um sistema desenvolvido a partir de um princípio teórico geral. Essa é a primeira razão. E a segunda, e provavelmente mais importante razão, é que em O Capital de Marx, encontramos uma saída racional das dificuldades e contradições, uma solução materialista dialética das antinomias que destruir a teoria do valor-trabalho em sua forma ricardiana clássica.