A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx

Evald Vasilievich Ilienkov


Capítulo 4. Desenvolvimento Lógico e Historicismo Concreto

1. Sobre a Diferença entre os Métodos de Investigação Lógico e Histórico


Já comentamos sobre a circunstância mais significante que a análise teórica dos fatos empíricos sempre coincide naturalmente com a análise crítica dos conceitos, com o desenvolvimento criativo das categorias disponíveis, historicamente estabelecidas, e aquela concepção teórica original de fatos (um novo sistema de categorias) nunca surge de lugar algum, nunca “direto dos fatos”, como os positivistas e os cientistas vulgares acreditam, mas através de uma crítica científica muito rigorosa do sistema de categorias disponível

O problema da continuidade criativa no desenvolvimento da teoria (o problema do desenvolvimento histórico da ciência) é sempre empurrado para o primeiro plano quando a questão da relação do desenvolvimento científico (lógico) com o histórico surge.

Em seus comentários de Contribuição à Crítica da Economia Política de Marx, Engels mostrou claramente que o problema da relação do lógico com o histórico surge diretamente diante do teórico como a questão do modo de criticar a literatura teórica disponível: “Mesmo após o descobrimento do método, e de acordo com ele, podia se fazer a crítica da Economia Política de duas maneiras: a histórica e a lógica” (Engels, 2008a, p. 282)Referência 1.

Entretanto, na medida em que a concepção teórica original dos fatos só pode ser elaborada através da crítica da literatura teórica disponível, o modo da crítica da literatura teórica coincide essencialmente com a atitude para com os fatos. Categorias teóricas são criticadas por compará-las com os verdadeiros fatos empíricos. A este respeito, não existe diferença entre os modos lógico e histórico de análise de conceitos e fatos, e nem poderia existir.

A diferença reside em outro lugar. No tão-falado modo histórico de crítica das teorias anteriores, elas são cotejadas com os mesmos fatos históricos sobre a base a qual elas foram criadas. Por exemplo, se Marx tivesse escolhido o modo histórico de crítica da teoria de Ricardo, ele teria que ter comprado esta teoria com fatos da época de Ricardo – isto é, os fatos do desenvolvimento capitalista do final do século XVIII e começo do século XIX.

A teoria de Ricardo, suas categorias e leis teriam sido comparadas criticamente com fatos de um passado mais ou menos remoto, com fatos de um estágio não desenvolvido da realidade capitalista. Ainda este modo de crítica assume que os próprios fatos tenham sido estudados bem ou devem ser estudados bem, ao passo que neste caso os fatos não foram estudados ou compreendidos cientificamente, além disso, eles nem mesmo foram coletados e resumidos. Sob essas condições, o método histórico de crítica foi aparentemente inadequado. Teria meramente atrasado o trabalho.

Portanto, Marx preferiu o chamado modo lógico de crítica e respectivamente o modo lógico de consideração da realidade.

Neste modo, uma teoria historicamente precedente não é criticamente comparada com aqueles mesmos fatos sobre a base a qual surgiram, mas com fatos existindo em um estágio histórico diferente no desenvolvimento do objeto – com os fatos diretamente observados pelo próprio Marx.

Este modo tem duas vantagens decisivas: primeiro, os fatos da época de Marx eram melhores conhecidos por ele e, se fosse necessário, poderiam ser cuidadosamente checados, e segundo, eles revelaram as tendências do desenvolvimento capitalista muito mais distintamente e precisamente do que os fatos da época de Ricardo.

Tudo que surgiu bastante vagamente no começo do século XIX, assumiu uma forma muito mais madura de expressão em meados do século XIX – suficiente mencionar aqui as crises econômicas.

O modo lógico, portanto, permite considerar cada fenômeno econômico (na medida em que se está lidando com economia política) precisamente naquele ponto onde ela alcança uma expressão e desenvolvimento máximos.

Claramente, a comparação lógica com os fatos verdadeiros do capitalismo desenvolvido revelou com maior facilidade a falsidade de algumas das proposições teóricas de Ricardo e seu núcleo racional. Ao mesmo tempo, a realidade da época de Marx foi expressa diretamente. Estas são as duas vantagens decisivas do modo lógico de análise de conceitos e fatos quando comparado com o modo histórico.

Ainda assim, essas vantagens não seriam aparentes e o próprio método de análise lógica não se justificaria a partir da perspectiva filosófica se não tivéssemos mostrado porquê e de que forma a análise de um estágio superior de desenvolvimento pode dar uma concepção histórica de realidade sem recorrer a um estudo detalhado do passado (pois em alguns casos é extremamente difícil e, em outros, totalmente impossível, como por exemplo, no estudo da cosmogonia).

Em outras palavras, temos que saber por que e de forma a análise teórica (lógica sistemática) do presente pode simultaneamente revelar o mistério do passado – da história que levou ao presente.

Vamos primeiro analisar duas relações, que devem existir em princípio entre o desenvolvimento da ciência e a história de seu tema.

No primeiro caso, a teoria se desenvolve dentro de um período de tempo que é muito curto para o próprio objeto passar por mudanças significativas. Essa relação é mais característica das ciências naturais – astronomia (cosmogonia), física, química etc.

Neste caso, a aplicação do modo lógico de análise dos conceitos e fatos não é somente justificável, mas até mesmo a única forma possível. Os diferentes estágios no desenvolvimento da ciência lidam com o mesmo estágio histórico no desenvolvimento do objeto, com o mesmo objeto no mesmo estágio de desenvolvimento. Assim, Newton, Laplace, Kant e Otto Schmidt descreveram o mesmo estágio no desenvolvimento do sistema solar.

Aplicação da forma lógica de criticar categorias (assim como, respectivamente, o modo de expressão teórica dos fatos) é, neste caso, naturalmente justificada. A velha teoria e suas categorias são concebidas como uma expressão incompleta, unilateral e abstrata da verdade. A nova teoria aparece como uma expressão teórica mais compreensiva e concreta da essência dos mesmos fatos, do mesmo objeto. O núcleo racional da teoria anterior está incluído na nova teoria como seu componente abstrato. O que é descartado é a concepção de que a velha teoria compreendia em si mesma uma exaustiva expressão da essência dos fatos. A velha teoria (naturalmente, não toda ela, mas somente seu núcleo racional) se torna no processo um dos tons da nova teoria, um caso particular do princípio universal da nova teoria.

O direito dos teóricos de aplicar o modo lógico de crítica das teorias anteriores é aqui baseado no fato de que as teorias e categorias analisadas com referência aos verdadeiros fatos dados refletiu o mesmo objeto que ele agora tem diante de seus olhos. O teórico, portanto, providencia um confronto entre teorias construídas centenas de anos atrás e os fatos observados no presente, usualmente sem qualquer dúvida quanto a seus direitos de o fazê-lo.

A questão é mais complicada no segundo caso, onde estágios diferentes no desenvolvimento da ciência lidam com estágios históricos diferentes no desenvolvimento do objeto. Aqui a própria história da ciência serve como um tipo de espelho para a história do objeto. Mudanças na ciência refletem grandes mudanças históricas na estrutura do próprio objeto. O objeto se desenvolve rapidamente, e os períodos históricos em seu desenvolvimento coincidem com aqueles do desenvolvimento da ciência e suas categorias.

Não é preciso dizer que este caso é mais característico das ciências sociais. Um exemplo típico aqui é a economia política. Estética, ética, epistemologia, a ciência do direito, estão todos na mesma situação.

A dúvida pode, naturalmente, surgir se o modo lógico de desenvolvimento da teoria é em geral aplicável aqui.

Como se pode comparar a teoria e categorias desenvolvidas centenas (ou até mesmo dezenas) de anos atrás com fatos observados no presente? Neste caso, o objeto mudou consideravelmente durante esses anos; o modo lógico de crítica das categorias será efetivo neste caso? Ou ele levará meramente a desentendimentos, a expressão de coisas diferentes nas mesmas categorias, ao debate teoricamente infrutífero?

A concepção materialista dialética do desenvolvimento dispersa essas dúvidas. Deveria ser levado em conta que neste caso, também, a ciência durante seu desenvolvimento lida com fatos que se referem ao mesmo objeto, embora este objeto apareça em estágios e fases diferentes de sua maturidade. Isso significa que aquelas leis realmente universais e necessárias que foram a “essência elementar” do objeto sob estudo, os esboços abstratos de sua estrutura interna, permanecem o mesmo ao longo de seu desenvolvimento histórico. Por outro lado, esses fenômenos e categorias que aparecem nos estágios iniciais do desenvolvimento desaparecem sem deixar traço nos estágios superiores, provado objetivamente, pelo próprio fato de seu desaparecimento, que eles não são concernentes, formas internamente necessárias do ser do objeto.

Em sua análise das teorias e categorias econômicas desenvolvidas por seus antecessores (não somente por Adam Smith e David Ricardo, mas até mesmo por Aristóteles), Marx confidentemente aplica o modo lógico de crítica, usando o modo histórico somente ocasionalmente, como um modo auxiliar.

Esse modo de análise das teorias do passo não é somente admissível, mas também o mais conveniente no desenvolvimento da teoria geral de algum assunto, pois ele deixa de lado todos aqueles momentos que são somente de importância histórica, caracterizando, como eles fazem, circunstância mais ou menos acidentais dentro dos quais procede o desenvolvimento do objeto de interesse para a teoria geral. O modo lógico de crítica e desenvolvimento da teoria dá a Marx um critério objetivo para distinguir entre categorias pertencentes à estrutura interna do organismo capitalista e todos aqueles momentos que estão conectados com formas de produção depostas ou destruídas ao longo de seu desenvolvimento, com os traços puramente locais do desenvolvimento capitalista naquele país em particular onde a teoria analisada surgiu etc.

As vantagens do modo lógico de crítica das teorias anteriores decorrem do fato de que o estágio mais maduro no desenvolvimento do objeto, no qual as teorias do passado são diretamente comparadas, revela as formas concernentes de sua estrutura com maios clareza e distinção, mostrando-as em sua forma bastante pura. A vantagem do modo lógico é apontada por Engels em seus comentários de Contribuição à Crítica da Economia Política de Marx: “[...] cada fator pode ser estudado no ponto de desenvolvimento de sua plena maturidade, em sua forma clássica” (Engels, 2008a, p. 283)Referência 2.

Por essa razão, podemos analisar criticamente a Lógica de Hegel levando em conta os fatos do desenvolvimento da ciência moderna, ao invés daqueles da época de Hegel, e essa crítica resultará em uma elucidação dialética daqueles fatos assim como em uma concepção materialista das categorias da dialética hegeliana, de seu núcleo racional.

Levando isso em conta, Marx acredita ser não somente justificável, mas também mais concernente escolher o modo lógico de crítica das teorias anteriores e do desenvolvimento do núcleo racional delas, nos campos sócio-históricos do conhecimento, assim como nas ciências naturais onde o objeto permanece imutável ao longo do desenvolvimento da ciência. Não existe lacuna, em princípio, entre as ciências sociais e naturais a este respeito. Além disso, a situação nas ciências naturais não é tão simples como pode parecer à primeira vista: embora Einstein lidou com “o mesmo” objeto de Newton, os fatos imediatos dos quais ele procedeu em sua crítica da mecânica newtoniana eram diferentes. A atividade experimental prática-sensorial do homem social mostrou a ele o mesmo objeto muito mais plenamente e compreensivelmente. Assim, por esse lado, também, o direito de aplicar o modo lógico da crítica e desenvolvimento da teoria nas ciências sociais é substanciado tanto quanto nas ciências naturais.

Em ambos os tipos de ciências, a atividade prática-sensorial do homem social prova ser o elo de mediação entre o objeto “em si mesmo” e o pensamento do teórico. Por essa razão, a prática aparece como o argumento decisivo na análise da relação entre as ciências naturais e sociais, que refuta a ideia neokantiana do abismo que, em princípio, existe entre os métodos das ciências naturais e sócio-históricas.

Naturalmente, Marx não exclui o método histórico da crítica de seus antecessores. Marx continuamente recorre a ele, revelando as circunstâncias históricas dentro das quais a teoria que ele critica surgiram. Ainda assim, o método histórico de crítica desempenha um papel subordinado, um papel auxiliar com ele. O método principal da crítica e desenvolvimento da teoria permanece o método lógico.

“Por essa razão, para desenvolver as leis da economia burguesa não é necessário escrever a história efetiva das relações de produção. Mas a sua correta observação e dedução, como relações elas próprias que devieram históricas, levam sempre a primeiras equações – como os números empíricos, p. ex., nas ciências naturais – que apontam para um passado situado detrás desse sistema. Tais indicações, juntamente com a correta apreensão do presente, fornecem igualmente a chave para a compreensão do passado” (Marx, 2011, p. 378)Referência 3, escreveu Marx em 1858.