A Dialética do Abstrato e do Concreto em O Capital de Karl Marx

Evald Vasilievich Ilienkov


Capítulo 1. A Concepção Dialética e Metafísica do Concreto

5. O Conceito de Homem e Algumas Conclusões desta Análise


Vamos agora considerar o conceito de homem à luz do que escrevemos acima. O que é homem? À primeira vista, a questão parece ser ridiculamente simples. Cada um de nós associa uma noção bem definida com esta palavra, distinguindo facilmente homem de qualquer outro ser ou objeto com base nesta noção. Da perspectiva da lógica pré-marxiana, isso significa que todo indivíduo do senso comum possui o conceito de homem. Entretanto, nenhum outro conceito, ao que parece, ocasionou um debate mais acrimonioso entre os filósofos do que este.

De acordo com o ponto de vista metafísico (antidialético) não é difícil definir este conceito, assim como qualquer outro. Para este propósito é preciso abstrair o elemento geral que é igualmente inerente em todo indivíduo representativo da raça humana, mas não em quaisquer outros seres.

Uma tentativa de executar esta recomendação, entretanto, imediatamente se vê em um número de dificuldades de importância filosófica fundamental. Acontece que antes de fazer tal abstração, é preciso decidir primeiro de tudo quais seres vivos poderiam ser incluídos na raça humana e quais não. Considerações que não são de forma alguma de natureza formal imediatamente entram em jogo aqui. Por exemplo, Aristóteles não levava os escravos em conta ao realizar sua famosa definição de homem como um “ser político”. Escravos eram incluídos em um “gênero” diferente, chamado de “instrumentos”, embora “falantes”. Para Aristóteles, sendo um ideólogo de sua própria classe, somente a atividade do cidadão livre era “genuinamente humana”.

Análises elementares do conceito de homem revelam de primeira que é ligado por milhares de laços à existência e luta de classes e suas visões de mundo e a uma interpretação definida do humanismo que nunca foi apartidária ou puramente acadêmica.

O sistema burguês, se afirmando na luta contra o direito feudal, provou suas vantagens por insistir que era a única estrutura que se conformava à natureza genuína do homem, enquanto o feudalismo era baseado em preconcepções falsas e distorcidas de sua natureza. Os ideólogos do imperialismo contemporâneo se esforçam em provar que o socialismo é incompatível com “as demandas da natureza humana” somente sendo satisfeita sob o sistema de “livre iniciativa”.

Vamos analisar nessa conexão a situação retratada em um romance de Vercors, um autor progressista francês.(1) Em uma forma espirituosa, perspicaz e generalizada, o romance delineia os pontos de vista típicos do conflito do homem no mundo moderno. O enredo é o que segue. Uma comunidade de criaturas estranhas é descoberta é uma parte remota da floresta tropical. De acordo com alguns critérios atuais da ciência moderna estes são macacos antropoides, de acordo com outros, eles são homens. Uma coisa é clara: é uma forma extraordinariamente prévia desconhecida de transição entre o mundo biológico, animal, e o mundo social, humano. A grande questão é se eles cruzaram, ou não, a tênue fronteira que separa homem de animal.

Esta é, aparentemente, uma questão puramente acadêmica com a qual somente um especialista em biologia ou antropologia pode se preocupar. Nos dias de hoje, entretanto, não existe questões puramente acadêmicas, e realmente não pode haver. Os tropi (como as criaturas inventadas pelo autor são chamadas) muito logo se tornam o centro dos conflitos de diversos interesses assim, de diversos pontos de vista. Uma questão teórica abstrata, “Eles são homens ou animais?”, demanda uma resposta bem concreta e definida. O protagonista principal do romance conscientemente mata um desses seres. Se tropi são homens, então ele é um assassino que terá que ser executado. Se eles são animais, não existe corpus delicti. A mesma questão atormenta o velho clérigo. Se tropi são homens, ele é obrigado a salvar suas almas, a realizar o rito de batismo. Mas e se forem meros animais? Neste caso, ele se arrisca a repetir o sacrilégio de São Maël que, sendo míope, batizou pinguins. Outro interesse poderoso é o de uma companhia industrial que vê os tropi como força de trabalho ideal. Animais treinados que não conhecem nem sindicatos, nem luta de classes, nem necessidades além das psicológicas – o que pode ser melhor que isso do ponto de vista de um capitalista?

A companhia que possui o território no qual os tropi foram descobertos tenta provar que eles são animais constituindo a propriedade privada da companhia. O debate sobre a natureza dos tropi envolve centenas de homens, dezenas de teorias e doutrinas, seu escopo fica mais amplo e o próprio problema mais e mais emaranhado, a coisa toda crescendo em um debate sobre objetos e valores bastante diferentes. As personagens do romance são compelidas a ponderar o critério para resolver a questão de maneira rigorosa e inequívoca. Isto prova ser uma tarefa mais difícil do que parecia a princípio.

Se for dada preferência a certa “propriedade do homem”, os tropi são incluídos na categoria de homens, e se outra é preferida, eles não são. Resolvendo uma série de tais características também não ajuda, pois neste caso a questão passa ao número de tais características, e a dificuldade permanece a mesma. Ao incrementar o número de propriedades dos homens, incluindo neste número aquelas que os tropi não possuem, automaticamente deixa os tropi fora da raça humana. Ao enxugar o número de características, deixando somente aqueles que previamente ambos os homens e tropi possuem, se obtém uma definição que inclui os tropi na família dos homens. O pensamento entra na rotina de um círculo vicioso: ao definir a natureza dos tropi, é preciso ter uma definição prévia do homem. Mas não se pode definir o homem a não ser que se tenha decidido anteriormente se se incluirão os tropi como uma espécie do Homo sapiens ou não.

Além disso, interpretando cada uma das características imediatamente leva a um debate explosivo. O que é alguém para entender pelo pensamento? Como é alguém para interpretar discurso? Como é alguém para definir trabalho? E assim por diante. Em um sentido desses conceitos, os tropi possuem ambos, pensamento e discurso, enquanto em um sentido diferente eles não possuem. Em outras palavras, em cada característica do homem o mesmo tipo de debate inflama em consideração ao conceito do próprio homem. Não existe um fim visível para o debate, que alcança a esfera dos conceitos filosóficos mais gerais somente para inflamar com maior força e fúria.

O debate se torna particularmente agudo quando se toca no assunto de qual dos modos da atividade da vida deveria ser considerada como “genuinamente humana”, qual organização de vida “se conforma com a natureza do homem”, e em que reside essa “natureza”?

Todas as tentativas de estabelecer aquela “característica essencial e geral” que permitiria distinguir estritamente entre homem e não-homem, repetidamente se encontra em uma dificuldade anciã. Tal característica pode ser definida somente se a fronteira entre homem e seu mais próximo antepassado animal é previamente traçada; mas como traçar essa linha limite se não existe na cabeça de alguém aquela “característica geral” que precisa ser determinada? Não é difícil distinguir água muito gelada e muito quente; mas e água morna? Uma rocha não forma um monte, assim como duas rochas. Quantas rochas são necessárias para formar um monte? Qual é o ponto no qual um homem careca fica careca? Tal fronteira bem definida absolutamente existe? Não é simplesmente uma linha imaginária traçada arbitrariamente por uma questão de conveniência somente de classificação? Neste caso, onde deveria estar? Será traçada onde os poderes constituídos exigirem que seja traçada – está é a convicção a qual o herói do romance chega. Certamente, as doutrinas idealistas subjetivas (pragmatismo, instrumentalismo etc.) entregam a solução dessa questão aos poderes constituídos. A voz deles se tornará critério da verdade; tudo é tornado dependente de sua vontade e capricho. Todos os infortúnios deste mundo resultam do fato de que os homens ainda não compreenderam o que o homem é, e eles não entraram em um acordo sobre o que eles gostariam que ele fosse – esta é a maneira com a qual o protagonista do romance filosofa.

Tendo encontrado na experiência prática que a característica essencial e geral do homem não é tão fácil de descobrir como pode parecer num primeiro momento, os heróis do romance são compelidos a procurar por uma solução nas concepções sociológicas e filosóficas. Mas onde alguém achará o critério da verdade nestas últimas? Aqui tudo começa do começo. Vercors e seus heróis são familiares com a resposta marxista a essa questão. Ainda assim ela aparece “unilateral” para eles. Vercors acredita que uma concepção que procede “das relações reais dos homens na produção material” ignora “outras formas da solidariedade humana”, primeiro de tudo o “ritual filosófico”: “existem muitas tribos no mundo cuja solidariedade humana é construída sobre a caça, guerras ou rituais fetichistas ao invés da produção material”; “o laço mais forte atando agora 300 milhões de hindus é seu ritual filosófico, ao invés de sua agricultura atrasada”. Os heróis do romance vacilam, pela vontade do autor, entre a definição marxista e idealista cristã do critério essencial e geral do ser humano, ousando não aceitar ambas. Eles estão procurando uma terceira, que reconciliaria o materialismo dialético e Cristianismo.

“Cada homem é um homem antes de qualquer coisa, e somente então ele é um seguidor de Platão, Cristo ou Marx”, escreveu Vercors no posfácio da edição russa do livro. “No meu ponto de vista é muito mais importante mostrar a maneira na qual os pontos de contato podem ser encontrados entre marxismo e cristianismo procedendo de tal critério, do que enfatizar suas diferenças”. A essência do homem enquanto tal desconsiderando as diferenças ideológicas, não reside na adesão a uma doutrina ou outra. Mas então em que ela reside? No fato de que “o homem é antes de qualquer coisa ... homem”. Essa é a única resposta que Vercors foi capaz de opor ao ponto de vista “unilateral” do materialismo dialético. Mas esse tipo de “resposta” nos leva de volta ao ponto inicial – a um simples nome sem dote com qualquer conteúdo definido. Para se afastar da tautologia, será necessário assumir a linha de raciocínio desde o começo.

A posição tão viva e espirituosa delineada por Vercors expressa muito bem as atitudes daquelas seções de intelectuais ocidentais que lutam agonizando com as questões candentes de nossa época que ainda não foram resolvidas até então por elas mesmas – onde reside o caminho para redimir os nobres ideais do humanismo? Eles veem claramente que o capitalismo é inatamente hostil a estes ideais. Ainda assim eles não ousam assumir o comunismo por medo de perder nele a “independência do pensamento”, os falsos “privilégios da parte pensante da humanidade”. Enquanto esta parte da humanidade agoniza sobre a escolha entre dois polos reais do mundo moderno, qualquer questão teórica descomplicada cresce fora de qualquer proporção em um problema mais intrincado e completamente insolúvel, enquanto tentativas de resolvê-lo com a ajuda dos instrumentos mais sofisticados da lógica formal em última análise levam a uma tautologia: A = A, homem é homem. Nada mais pode resultar de uma busca por uma definição de homem através do estabelecimento a propriedade abstratamente idêntica na qual cada representante individual da humanidade atual possui. Lógica baseada neste tipo de axioma é absolutamente impotente para fazer qualquer coisa aqui. A essência do homem para ser expressa na definição universal não é de forma alguma uma abstração inerente a cada indivíduo, não é a característica idêntica que cada representante individual da raça humana possui tomados separadamente. Uma definição universal do homem não pode ser obtida por este caminho. Aqui é preciso um tipo de lógica diferente, uma lógica baseada na concepção materialista dialética da relação entre o universal e o individual.

Essa essência é impossível de descobrir em uma série de características abstratas inerentes a todos os indivíduos. O universal não pode ser encontrado aqui não importa o quanto se procure por ele. A procura seguindo este caminho é infrutífera também no caso quando é assistida por uma lógica mais sofisticada. Uma excelente ilustração deste ponto é encontrada na Dialética (Dialectic) de Gustav E. Mueller (1953),Referência 1 um filósofo norte-americano. Julgando pelo livro, o autor aprendeu alguma coisa de Hegel. Ele até mesmo assimilou as proposições Hegelianas da interpenetração dos opostos, no papel das contradições no desenvolvimento das teses científicas, na relação da consciência e autoconsciência, e muitas outras coisas. Entretanto, toda esta erudição dialética formal corre ociosa, resultado em vacuidade. “Homem não poderia saber o que homem é, ele não poderia identificar homem com ele mesmo; ainda assim, o mesmo homem não poderia ter experiência de homem, se ele não pudesse diferenciar a si próprio do que ele experimenta dele mesmo” (Mueller, 1953, p. 214)Referência 2.

Séries de “identificações” e “diferenciações” que o homem de Mueller executa dentro de si mesmo, de acordo com as regras de esquemas dialéticos formais, o traz a construções tão ininteligíveis e envolveu que seu criador não podia desembaraça-los ele mesmo. O resultado final dessa lógica pseudodialética é a seguinte: homem é um ser tão complicado e contraditório que quanto mais você o estuda, menos você pode esperar compreendê-lo. A única “característica geral” que Mueller consegue isolar na intrincada complexidade de indivíduos que interagem, em última análise, prova ser o “poder de reflexo” e “amor pelo reflexo”. “Sua verdadeira humanidade reside neste poder do reflexo... e quanto melhor o ser conhece a si mesmo, mais questionável e incerto parece ser. Adotar o absoluto neste indivíduo questionável é o que Platão chama Eros, amor. O verdadeiro homem é o Amor” (Mueller, 1953, p. 230)Referência 3.

Seria difícil coloca-la para discernir aqui o “poder do reflexo”. A impotência está muito mais em evidência. A essência do homem certamente não tem qualquer coisa a ver com isso. O que é expresso aqui é meramente a essência de um filósofo e seu amor por contemplação da maneira como ele contempla. Repreender o próprio Mueller por tudo isso é rude e inútil. A impotência de seu pensamento é, primeiro de tudo, para ser responsabilizada pelas condições que criaram tal psicologia unilateral e abstrata – a psicologia de um intelectual completamente divorciado da vida real e luta das massas, a psicologia de um homem que contempla somente a forma na qual ele contempla. Se Mueller entende essa contemplação da contemplação como “verdadeira humanidade”, é fácil apreciar sua posição: afinal, é preciso ter alguma consolação. Entretanto, a verdadeira humanidade, a humanidade trabalhando e lutando, dificilmente concordará com sua essência sendo identificada com a individualidade de um filósofo personalista alimentando na solidão seu amor pela contemplação impotente e contemplação sobre este amor impotente.

A essência da humanidade moderna, e desse modo uma definição universal do homem, é naturalmente um tema digno de uma maior atenção de um filósofo. Um ponto de vista claro do mundo é primeira e necessária premissa para abordar corretamente este problema. Mas também é preciso uma lógica mais desenvolvida do que aquela que sugere que a solução reside na procura pela “propriedade essencial e geral” inerente a todos os representantes individuais da humanidade moderna tomadas separadamente e reduzindo o universal ao meramente idêntico. Tal lógica não pode produzir qualquer coisa que não sejam tautologias vazias. Além disso, o lema abstrato, “Procure pelo geral, e tu acharás o conhecimento da essência”, dá uma mão livre à arbitrariedade e subjetivismo em delimitar o alcance dos fatos dos quais o geral é abstraído.

Tudo isso é evidência do fato de que os elos entre a lógica e visão de mundo são integrais, assim como aqueles entre as operações de generalização e uma posição partidária definida na vida e filosofia. Um sistema mais sofisticado de regras formas de generalização não garantirá verdadeira generalização, a não ser que seja combinada com um princípio progressivo e claro de visão de mundo.

E outra coisa não é menos verdade. Uma visão de mundo progressiva não pode ser combinada mecanicamente com a lógica que postula sua neutralidade em consideração a qualquer visão de mundo como uma virtude, restringindo a si própria em resolver tais regras abstratas como podendo ser empregadas desta ou daquela maneira, dependendo de um viés emocional irracional por alguma ou outra visão de mundo.

A visão de mundo marxista-leninista é baseada numa concepção cientificamente planejada de fatos, ao invés de em postulados éticos. É lógico de ponta a ponta. Entretanto, a lógica com a ajuda do que esta visão de mundo tem realizado, também contém dentro de si mesma, em suas próprias proposições, ao invés de em algum lugar fora, certo princípio de visão de mundo. A ligação emocional mais calorosa para a classe trabalhadora e ideias comunistas não resgatará um teórico se ele empregar a lógica puramente formal anciã com sua reivindicação do “apartidarismo”. Tal teórico nunca chegará a conclusões e generalizações corretas.

Em suas teses sobre Feuerbach, Marx opôs sua concepção materialista dialética da essência do homem a todas as tentativas prévias de definir essa tão falada essência, dizendo que “a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais” (Marx e Engels, 2007, p. 538)Referência 5.

Isso expressa não somente uma verdade sociológica, uma visão de mundo, mas também uma doutrina ou princípio lógico profundo, uma das mais importantes proposições da lógica dialética. É fácil entender que essa proposição assume uma concepção das categorias do abstrato, do concreto, do universal e do individual bem diferente daquele no qual a velha lógica, não-dialética, era baseada. Traduzida na linguagem da lógica, essa proposição significa: é inútil procurar por definições universais da essência de um gênero através de abstrações de propriedades idênticas possuídas por cada representante individual desse gênero.

Uma expressão da essência de um gênero não será encontrada em uma série de “abstrações”, por mais árduo que tente, pois ela não está contida nessa série.

A essência da natureza humana em geral, e, desse modo, a genuína natureza humana de cada homem, só pode ser revelada através de um estudo bastante concreto do “conjunto das relações sociais”, através de uma análise concreta daquelas leis que governam o nascimento e desenvolvimento da sociedade humana como um todo e de cada indivíduo humano.

Sociedade humana é o caso mais típico de comunidade concreta e a relação do indivíduo humano com a sociedade é uma instância caracterizada da relação do individual e do universal. A natureza dialética dessa relação aparece aqui em nítido relevo, enquanto a questão da relação do abstrato e do concreto está entrelaçada muito próxima do problema da relação do universal ao particular e o individual.