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Gostaria agora de abordar o exame de um certo número de problemas reais que a ruptura de Marx com o Humanismo teórico colocou em dia. Esse exame não concernirá apenas Marx, mas, como tão logo se compreenderá, a maioria dos argumentos "teóricos" ressaltados pela maioria dos meus críticos.
O que pode fundamentar essa aproximação? A retomada, por um certo número de modernos "Humanistas", das próprias noções que Marx teve de afastar do campo de sua reflexão como inúmeros obstáculos epistemológicos: O Homem, o Gênero Humano, o indivíduo, o sujeito, etc... Para cortar qualquer equívoco (a experiência prova que, sob tal perspectiva, as precauções tomadas nunca são suficientes), devemos estar perfeitamente esclarecidos sobre as bases desse exame, seus títulos, e seu objeto.
O exame ao qual vou proceder é um exame puramente teórico. Não proponho examinar a natureza e a função social do Humanismo como ideologia, nem, portanto, questionar o "direito" à existência do Humanismo como ideologia. Proponho-me apenas examinar, do ponto-de-vista teórico, os títulos em nome dos quais os ideólogos do Humanismo teórico (o jovem Marx, nossos modernos, etc.) pretendem fazer com que noções ideológicas como o Homem, o Gênero Humano, etc. desempenhem um papel teórico. É, portanto, do ponto de vista teórico, e apenas desse ponto-de-vista, que vou tratar dessas noções como obstáculos epistemológicos diversos.
Devo acrescentar duas precisões importantes.
Quem diz obstáculo avança um conceito que não tem sentido senão em função de uma metáfora teórica que se pode formular aproximadamente de maneira seguinte. A teoria esta engajada em uma via que ela deve percorrer para atingir o conhecimento de seu objeto, ou de seus objetos reais. Ora, em dado momento, essa via está obstruída por um obstáculo, que impede a teoria de avançar na direção de seu objeto, e de atingi-lo. A metáfora do obstáculo epistemológico significa portanto duas coisas: 1. a teoria choca-se com um obstáculo, que o impede de avançar; 2. Esse obstáculo obstrui uma via, e esconde objetos que estão de algum modo atrás dele. Afastar o obstáculo é livrar a via, e perceber os objetos que ele escondia. Há portanto entre o obstáculo e a via (ou os objetos) uma relação dupla: uma relação, de um lado, de contrariedade, mas também, de certo modo, de afinidade, difícil de definir, mas certa. Não é qualquer obstáculo que obstrui qualquer via, ou "esconde" qualquer objeto. A história das teorias o demonstra: Há uma certa relação entre o modo de tratar (de afastar) o obstáculo, portanto a natureza do obstáculo, e a via que ele obstrui, ou os objetos que ele "esconde".
Nesse comentário, apenas avanço uma posição, que desenvolverei mais tarde, e que concerne um dos dois aspectos da função da ideologia: sua função de alusão, investida em sua função de ilusão. É porque ela é sempre, de certo modo, alusiva na própria forma da ilusão que ela impõe, que uma noção ideológica, obstáculo epistemológico do ponto-de-vista teórico, possui alguma afinidade com problemas reais que ela reconhece desconhecendo-os. Não farei nada mais do que aplicar essa teoria da alusão-ilusão, ou do reconhecimento-desconhecimento da ideologia, aos obstáculos epistemológicos dos quais trataremos. Por aí poderemos fazer aparecer, quando é o caso, os problemas teóricos reais que dissimulam os obstáculos epistemológicos, afastando-os de nossa via.
Segunda precisão. O trabalho de deslocamento do obstáculo ao qual vamos nos entregar não é, na maioria dos casos, um verdadeiro trabalho de produção teórica, mas um simples trabalho de repetição crítica. No essencial, e ao menos em princípio, o trabalho já está feito, por Marx. Contentar-nos-emos em retomá-lo. E se, sobre um ponto ou dois, podemos nos encontrar no caso de ter de afastar um obstáculo que o próprio Marx não tinha tido a ocasião de afastar, no essencial não nos encontraremos na situação própria à ciência viva (revelar e afastar um obstáculo epistemológico oculto).
Teremos apenas de repetir a operação de Marx, e, se possível, de comentar algumas de suas conseqüências.
Uma vez bem definidos esses princípios de método, podemos engajar-nos agora nesse exame, que vai nos conduzir a identificar os obstáculos epistemológicos que as noções do Humanismo teórico opõem à posição e à solução científica dos problemas reais; a identificar esses problemas reais, e a pensar as condições teóricas de sua posição e de sua solução.
Tanto diante desses obstáculos epistemológicos quanto diante desses problemas reais, nossas análises vão tratar da maioria das críticas, das objeções ou das questões que me foram endereçadas no debate sobre o Humanismo.
Não tratarei todos os problemas reais em questão na dialética dos obstáculos epistemológicos e dos problemas reais, mas, a grosso modo, aqueles que interessam diretamente o materialismo histórico, deixando para mais tarde o essencial dos problemas que concernem o materialismo dialético.
Sob tal perspectiva, eis o tema geral que vai servir de guia a nossas análises.
Os obstáculos epistemológicos essenciais do sistema de base da ideologia do Humanismo teórico (igual à pretensão teórica) residem nas noções seguintes, que já pudemos encontrar em nossas análises anteriores:
Estas são noções de base, às quais pode-se facilmente relacionar as variantes atuais, cujos traços encontram-se nas objeções que foram opostas à tese do anti-humanismo teórico de Marx: por exemplo, as noções derivadas de "Subjetividade", de "Sujeito" ou de "ato", de "criação", de "projeto", de "transcendência", de "trabalho social", etc.[2].
Lembro que a pretensão científica dessas noções ideológicas consiste em apresentar essas noções como o que elas não podem ser: conceitos científicos, permitindo colocar e resolver problemas científicos no campo teórico aberto de uma pesquisa científica produzindo descobertas. Lembro que a pretensão científica dessas noções ideológicas de base é uma impostura, que esconde sua função real: sua função ideológica anti-científica. Lembro que a função ideológica dessas noções com pretensões teóricas consiste não em colocar problemas reais, portanto em abrir o campo teórico no qual problemas reais podem ser cientificamente colocados, mas em impor de antemão, sob a ficção de problemas sem conteúdo cientifico, soluções já prontas, que não são soluções teóricas, mas o simples enunciado teórico de "soluções" práticas, sociais, existindo no estado de fato consumado, ou a consumar, em uma sociedade de classe, e respondendo aos "problemas" da luta de classe econômica, política e ideológica dessa sociedade.
Esquematicamente, as noções filosóficas em questão não são senão a transcrição, com pretensões teóricas, de um estado de fato existente, dependendo em última instância da relação de força na luta das classes: tomadas de partido ideológicas, em favor de "valores" políticos, morais e religiosos, e através deles, em favor de certas instituições políticas, em favor de certos preconceitos da moral e da religião, em favor do preconceito da moral e da religião.
Longe, portanto, de abrir o campo teórico no qual poderiam ser colocados problemas reais, essas noções ideológicas, que por essência são apenas a transcrição teórica de soluções sociais de fato, têm por função fechar de antemão o campo que elas fingem abrir, portanto proibir toda colocação de um problema real, e, feito isso, toda descoberta pertinente. Diderot havia claramente visto a essência da ideologia quando declarava que acreditaria na teologia quando lhe mostrassem suas "descobertas".
Poderíamos, sem ironia, pedir a todos os que hoje defendem e assumem essas noções ideológicas deformadas, que se dispusessem a nos mostrar quais são as "descobertas" científicas que as filosofias do Homem, do Sujeito (sob todas suas metamorfoses, incluindo a Fenomenologia), do Ato, do Trabalho, da Praxis, da Alienação, etc., trouxeram ou provocaram em qualquer domínio que seja; quais pesquisas suas miraculosas "categorias" fecundaram. Basta estar um pouco a par do que acontece atualmente nas "Ciências Humanas", onde essas categorias encontram seu domínio de eleição, para constatar não somente a esterilidade total, mas também os efeitos retrógrados de sua intervenção. Longe de fazer "avançar" as disciplinas às quais elas se "interessam ", essas ideologias filosóficas procuram apenas "digeri-las" e colocá-las a serviço apologético das grandes Causas das quais elas são as serviçais. É a razão pela qual a atualização dos problemas reais é não somente a última de suas preocupações, mas aquilo que elas têm precisamente por função proibir.
Deve-se, portanto, afastar, após tê-los identificado, esses obstáculos epistemológicos, para liberar a via que eles obstruem, e liberar em seguida o campo teórico onde podem então ser identificados, colocados e examinados problemas reais.
Quais problemas reais podemos descobrir por trás das noções do humanismo teórico, revogadas na sua impostura e na sua pretensão teórica? Cito os problemas essenciais, em correlação com os obstáculos epistemológicos principais que lhes "correspondem".
Cada um desses "problemas reais" é dito problema real em um sentido preciso, que se deve compreender bem.
Esses problemas não são ditos "reais" no sentido empirista do termo: como se bastasse abrir os olhos para identificá-los — como se tivesse, em toda eternidade, bastado abrir os olhos para identificá-los. A maioria de nossos bons "Humanistas" não cessa de invocar magicamente o "real" que é para eles o "concreto", a "vida", "mais rica e mais fervilhante que todos os conceitos", para opô-lo religiosamente à "teoria", que, como cada um sabe, desde uma expressão célebre que, por ter sua verdade, pode também servir para cobrir todas as dimensões, é "sempre cinza". Não é desse "real" aí que tratamos, mas do "real" científico, que — Marx o demonstrou com firmeza — não tem nada a ver com o "concreto" ou o "real" das evidências da vida cotidiana, dadas e impregnadas das evidências da ideologia.
Esses problemas são reais porque colocados como reais no campo teórico conquistado pelo longo trabalho teórico que resultou no estado presente do conhecimento científico. Falamos portanto da realidade teórica de problemas teóricos, que pertencem como tais ao processo de conhecimento, e aparecem como tais apenas no seio do processo de conhecimento, em função do estado histórico dado dos conceitos teóricos que constituem a problemática de uma teoria.
Evidentemente, os problemas (teóricos) reais produzidos pelo processo de conhecimento concernem realidades que existem independentemente do processo de conhecimento, e pertencem ao processo real; e essa compatibilização constitui justamente o efeito de conhecimento produzido pelo processo de conhecimento.
Essa distinção explica o que o empirismo é incapaz de explicar: transformação da posição dos problemas, e a transformção dos objetos de conhecimento no processo de conhecimento, isto é, a aparição de novos objetos até aí não vistos. O empirismo pensa que o conhecimento é uma visão: ele é incapaz de explicar a aparição de novos objetos no campo de "visão", e portanto o fato de que esses novos objetos não eram "vistos" anteriormente. Ele não "vê" que a visão do que se vê na ciência depende do aparelho da visão teórica, portanto da história das transformações da teoria no processo de conhecimento. O que chamamos de problemas reais depende portanto da realidade do processo de conhecimento, de seu aparelho de visão teórica atual, de seus critérios teóricos de realidade A realidade é, no sentido preciso no qual nós a fazemos intervir, uma categoria do próprio processo de conhecimento.
O mesmo ocorre com a categoria de problema, na expressão: problema real. Na acepção corrente, o termo "problemas" designa todo tipo de dificuldade. Todo o mundo tem seus "problemas" - a história também, os partidos comunistas também. A esse título, todos os problemas são "reais", "concretos", como tantos obstáculos sobre os quais chocam-se todos os "projetos" do mundo. Deve-se recusar esse sentido vago, amplo demais, e confuso, para definir a acepção precisa na qual a empregamos.
Nem toda dificuldade é, do ponto-de-vista científico, um problema. É problema científico apenas uma dificuldade identificada no campo teórico da pesquisa científica, e suscetível de ser colocada como problema. A posição de uma dificuldade como problema deve ser compreendida em um sentido preciso, que se pode descrever utilizando a metáfora espacial da posição. Colocar um problema é encontrar, no campo da teoria existente, o lugar preciso que é seu de direito para poder ser pensado e tratado como problema. Atribuir-lhe seu lugar é, ao mesmo tempo, identificá-lo e chamá-lo pelo seu nome. Atribuição de lugar, identificação e enunciação andam juntas. Essas três operações conjuntas não são possíveis senão pelo recurso aos conceitos teóricos constitutivos do campo teórico existente. Colocar um problema é portanto atribuir-lhe seu lugar, dar-lhe seu nome, etc ..., pelo confronto da dificuldade assinalada e dos conceitos constituindo o campo da teoria que permitia essa descoberta.
Esse confronto não resulta sempre na possibilidade de colocar toda dificuldade encontrada sob forma de problema: há dificuldades que permanecem no estado de dificuldades, que não se pode colocar como problemas: elas subsistem no estado de resíduos. Fala-se mais freqüentemente nesse caso de "problemas sem solução": a expressão não é justa. Seria melhor falar de dificuldades que não se pode colocar sob a forma de problemas, quando o arsenal dos conceitos científicos existentes não permite ainda a posição rigorosa das dificuldades sob a forma de problemas. Advém também disso que certos problemas podem ser colocados teoricamente sem que se disponha por isso de todos os instrumentos teóricos requisitados para produzir sua solução. São problemas (provisoriamente) sem solução. Advém disso enfim que certos problemas são "colocados" (e mesmo resolvidos) de modo prático sem serem colocados e resolvidos de modo teórico: é o caso daquilo que podemos chamar de invenções práticas, adiantadas com relação às soluções (descobertas) teóricas correspondentes. A prática política oferece-nos vários exemplos notáveis disso.
Todos esses "problemas" relativos às condições da posição das dificuldades como problemas mereceriam ser, eles mesmos, colocados corretamente : é a tarefa da filosofia.
Disse o suficiente para me fazer compreender. Quando falo dos problemas reais enumerados que podemos descobrir atrás dos obstáculos epistemológicos das noções da ideologia Humanista, faço alusão a problemas científicos no sentido forte, isto é, a dificuldades que podem ser o objeto de uma atribuição de lugar, de uma identificação e de um enunciado em função dos conceitos teóricos da ciência, no seu estado presente: no caso em questão, em função dos conceitos existentes no materialismo histórico. Cada um desses problemas pode portanto constituir, de direito, o objeto de uma teoria.
Veremos que dentre esses problemas reais, dos quais dei a lista, alguns podem ser colocados rigorosamente em condições que permitem enunciar o princípio de sua solução, sob reserva de um sério trabalho de pesquisa teórica. Mas outros, em contrapartida, podem ser somente colocados de maneira justa, na espera de elementos teóricos dos quais ainda não dispomos para poder planejar sua solução.
Para poder enunciar esse problema, para tomar sua exata medida científica, bem como para apreciar em seguida sua importância ideológica e filosófica, deve-se começar por afastar o obstáculo epistemológico que proíbe seu acesso.
Esse obstáculo epistemológico articula-se a uma noção sobrecarregada de determinações ideológicas, em razão mesmo da função que ela continua, após séculos, a assumir nas lutas ideológicas atuais, a favor ou contra a religião e o idealismo, a favor ou contra o materialismo.
Para conceber bem a natureza desse obstáculo epistemológico no estado em que Marx o encontrou, antes de afastá-lo de sua via, é necessário voltar a Feuerbach: à sua concepção do Gênero Humano ou da essência genérica do Homem.
A teoria do Gênero humano serve, em Feuerbach, para fundamentar a intersubjetividade "concreta" (o Eu-Tu) que atua em sua obra, ao mesmo tempo, como Sujeito transcendental e Sujeito Numenal; serve para fundamentar a teoria especular do Horizonte absoluto onde o homem encontra no seus Objetos os reflexos de sua Essência; serve para "pensar" a História, distribuindo o Gênero Humano em todos os indivíduos passados, presentes e futuros — ela é portanto o nome desse Futuro do qual o presente tem perpetuamente necessidade como suplemento para compensar seu vazio teórico; ela serve enfim para representar o "coração", a natureza comunitária (do) Homem, que desenha de antemão a figura utópica do comunismo. Mas, para voltarmos ao nosso tema, a noção de Gênero Humano serve também para fundamentar a velha distinção espiritualista do privilégio do homem sobre todo o reino natural.
A espécie humana, diz Feuerbach, não é uma espécie como as outras, ela deve ser dita Gênero, pois ela é "a espécie de todas as espécies", a espécie universal, no sentido estrito do termo, a espécie que, diferentemente das outras (porco-espinho, libélula, rododendro) não tem por objeto um "mundo" finito, uma minúscula porção do Universo, mas o próprio Universo na sua totalidade. O que é um modo desarmante de dar ao Horizonte absoluto da espécie humana as dimensões do Universo, à subjetividade da espécie humana os atributos da objetividade, enfim, de retomar a velha tese da especificidade da espécie humana como Razão.
Mas quem diz Razão, diz, naturalmente, na boa tradição idealista, consciência. A espécie humana é, para Feuerbach, Gênero, e não simples espécie, porque ela é a única espécie no mundo que pode tomar-se a si mesma por objeto. O porco-espinho bem tem seus méritos, e seu "horizonte" (o de seu Umwelt) é, mesmo quando atravessa estradas[4], bem limitado — mas o pobre animal não possui o privilégio de fazer de sua espécie seu objeto. Ele a vive, mas, como se sabe desde Pascal, dela nada sabe. O Homem sabe quem ele é, pois pertence a um Gênero que tem esse privilégio imediato de fazer de sua espécie seu objeto: a consciência é essa presença imediata do Gênero no indivíduo. Consciência de todo gênero, se ouso dizer, mas naturalmente (pois está aí o ponto quente), antes de tudo, consciência moral (e moral, em Feuerbach, significa religiosa).
A noção de Gênero Humano tem portanto por função não, pensar, evidentemente, mas declarar pura e simplesmente esses Grandes Princípios do Idealismo (podem ser, dependendo de sua modalidade, os do idealismo crítico), que em Feuerbach são os do idealismo espiritualista (religioso): o Homem é esse ser excepcional que tem por atributos o Universal, a Razão, a Consciência (racional, moral e religiosa) e o Amor. Como se vê, quando se trata dos Grandes Princípios, está fora de questão detalhar ou fornecer provas. Sua Declaração basta; o Humanismo teórico não suspeita que haja aí um problema. Para ele, são Soluções Estabelecidas, em toda eternidade.
Não nos surpreenderemos, nessas condições, com a extrema importância ideológica da questão de definição da espécie humana, naquilo que a distingue das espécies animais. Essa questão serviu durante muito tempo sob formas abertas, e serve ainda maciçamente sob formas transpostas, como campo de disputa simbólica onde se decide (na medida em que ele se decide) o destino da ideologia religiosa e moral; antes de tudo o destino da religião, das Instituições (as Igrejas e seus poderes) e dos grandes Interesses políticos que a eles estão ligados (no fim das contas, relações de dominação de classe).
Seria um erro crer que essa questão perdeu algo de sua virulência ideológica no dia em que a Igreja perdeu poderes, diante do desenvolvimento das ciências da natureza, da vida, e do Homem (paleontologia humana, etc.). Simplesmente, a exploração ideológica dessa questão mudou de formas e de ponto de aplicação: na filosofia, de um lado, e na ciência, de outro
1. Na Filosofia, essa questão é diretamente assumida pelo idealismo espiritualista, sob uma forma grosseira e visível, mesmo quando a filosofia espiritualista tenta integrar, "interpretando-os" em seu proveito, os resultados obtidos pelas ciências da vida. Basta pensar no bergsonismo e no teilhardismo e, já que se deve falar disso, nos ecos que essa ideologia espiritualista da matéria, da vida e da sociedade pode encontrar até em certos meios marxistas. Mas essas formas grosseiras, filosoficamente descredenciadas, não devem nos dissimular as formas mais sutís sob as quais a própria filosofia crítica não fez mais do que retomar por sua conta a grande Divisão que interessa tantos Interesses, isto é, já que dividir é reinar, tantos Reinos.
Sem voltar até a Distinção kantiana entre a Natureza e a Liberdade, que domina ainda de longe a Fenomenologia, e finalmente se vê despejada na problemática heideggeriana do Ser e do Sendo, consideremos antes a forma sob a qual essa herança espiritualista é retomada pela filosofia das "Ciências do Homem". Reencontramo-la em pessoa na grande distinção idealista entre as ciências da Natureza e as Ciências do Homem. Ela se manifesta por exemplo na teoria diltheyana[5] da diferença entre a explicação (Ciências da Natureza) e a compreensão (Ciências do Homem). Ela é manifesta também na famosa questão do objeto de direito da dialética, muito precisamente na questão da legitimidade/ilegitimidade de uma Dialética da Natureza.
A tese do privilégio exclusivamente humano (ou histórico) da dialética (cf. Sartre, etc[6]) , bem como a tese da especificidade irredutível da forma de intelegibilidade dos "fatos humanos" (compreensão, descrição fenomenológica, e outras variantes hermenêuticas), manifestam a permanência ideológica da tomada de partido espiritualista em favor do privilégio religioso da Natureza e da Destinação do Homem. É sobre o fundo dessa luta ideológica que tomam todo seu sentido a tese materialista marxiana da Unidade epistemológica de todas as Ciências, sejam elas da Natureza ou do Homem, e a tese da Dialética da Natureza.
A esse nível, devem-se tomar essas teses pelo que elas são: tomadas de partido ideológicas no domínio da filosofia, isto é, ao mesmo tempo, a refutação radical das tomadas de partido idealistas-espiritualistas (refutação das virtudes privilegiadas da "compreensão, da "descrição", da "hermenêutica" etc. - refutação da não-dialeticidade da Natureza), e a afirmação de contra-teses, exigindo uma verdadeira conversão na definição e na posição dos "problemas" em causa no debate.
Pudemos ver isso a respeito da Dialética da Natureza. Não é um acaso se a tese da Dialética da Natureza[7] passou de Hegel para o marxismo, e se essa questão é, ainda hoje, uma das pedras de toque absolutas da tomada de partido materialista em filosofia. A tese de uma Dialética da Natureza era indispensável à teoria hegeliana da História, como teoria da História não antropológica: ela indica no contexto hegeliano (que permanece marcado, na teleologia do processo de alienação, pelo espiritualismo) que a dialética não começa com o Homem, e que a História é, a esse título, um processo sem sujeito. É em virtude do privilégio religioso da Espécie Humana que toda dialética da Natureza desaparece em Feuerbach: pela mesma razão teórica fundamental, tampouco pode haver Dialética da Natureza nos Manuscrits de 1844, nem em L'Ideologie Allemande, onde a história é total ou parcialmente antropológica. Não é um acaso se a tese da Dialética da Natureza aparece à luz do dia no marxismo com a luta de Engels contra o espiritualismo de Dühring[8], que restaurava o privilégio religioso da espécie humana.
Mas essa "retomada", justificada, da Dialética da Natureza, que numerosos marxistas modernos, e não quaisquer uns, condenam com uma incrível leveza, não tem apenas uma função ideológica. Ela está ligada, por razões epistemológicas que se podem certamente perceber, à categoria filosófica fundamental sobre a qual se apoia Le Capital: a categoria de processo sem sujeito. A afirmação da tese da Dialética da Natureza desempenha portanto não apenas um papel ideológico (contra o espiritualismo, a favor do materialismo); ela desempenha também um papel epistemológico positivo: contra a categoria de processo de alienação de um sujeito, a favor da categoria de processo sem sujeito.
A tese de uma Dialética da Natureza concerne menos, na sua forma presente, o que existe de dialético na Natureza (domínio aberto à investigação científica e epistemológica) do que o que se passa na ciência da História, de um lado, e o que se passa no ponto de junção das Ciências da Natureza e das Ciências Humanas de outro. A esse triplo título, ideológico, filosófico e científico, ela é, ainda hoje, e por muito tempo o será, uma tese mestra do marxismo, sobre a qual nenhuma concessão teórica é possível, sem cair no idealismo e no espiritualismo.
Tal é o objeto da disputa ideológica e filosófica do qual a questão da definição diferencial da espécie humana é o campo.
2. Mas o debate tomou também, desde a aparição das ciências da vida (em particular desde Darwin), a forma de um debate ideológico-científico no próprio terreno das ciências, muito precisamente na fronteira da ciência da vida e da ciência da historia. Estariam as ciências que têm por objeto essa fronteira, em condições de demonstrar a existência de uma continuidade material, na evolução das espécies, entre as espécies animais e a espécie humana? Pois o espiritualismo encontra, como se pensa, um argumento de peso no que ele considera como o "fato" de uma descontinuidade irredutível, que ele explora então sem tardar para fins religiosos. Evidentemente, é vantajoso tirar dele a possibilidade de usar esse argumento. Donde a importância ideológica, em função da luta ideológica definida pelos termos do espiritualismo existente, das descobertas científicas sobre a natureza da fronteira entre as espécies animais e a espécie humana.
Mas, seria cair em uma estranha ingenuidade crer essa questão resolvida; o espiritualismo estará nesse caso sem recursos. Sabemos que ele é até capaz de tomar a dianteira, e de "digerir" toda descoberta científica que comprometesse radicalmente, no plano científico, as "histórias" da Gênese: veja-se a operação apologética de Teilhard. Na realidade, o espiritualismo, como toda ideologia, não somente se lixa para a ciência, mas ele é feito para isso: ele tem sempre por função "digeri-la", quaisquer que sejam os resultados. Não se põe fim a uma ideologia "confinando-a" no terreno científico, pela boa razão de que não é no terreno científico que "cresce" uma ideologia, mas no terreno das relações de classe, e de seus efeitos. Os dias podem ser radiantes para o espiritualismo, mesmo após Darwin e as recentes descobertas da paleontologia humana[9].
Gostaria de insistir sobre este ponto, pois, quando os marxistas caem nessa ingenuidade a respeito dos fundamentos do espiritualismo, não somente eles se enganam sobre o alcance dos efeitos ideológicos "definitivos" que eles esperam das "descobertas científicas" sobre a questão crucial da definição da espécie humana, mas, o que é muito mais grave, eles nem sempre se protegem da contaminação ideológica que é provocada freqüentemente pelo contato com as "argumentações" ideológicas do adversário. Quando se é obrigado a "seguir o adversário" em seu próprio terreno (a ideologia), é raro que se saia ileso, a menos que se esteja fortemente armado do ponto-de-vista teórico.
Precisamente, não nos faltam exemplos recentes nos quais vemos "marxistas", não satisfeitos de se apoiarem nas Recentes Descobertas científicas da paleontologia humana, usarem-nas para refutar os argumentos do espiritualismo tradicional, sem se dar conta de que, ao pôr precipitadamente as Recentes Descobertas a serviço de uma ideologia Humanista, mesmo que batizada "marxista", caem infalivelmente no espiritualismo moderno.
Faço alusão à seguinte situação precisa. Descobertas recentes questionaram a tese darwiniana clássica ("escândalo" para o qual o espiritualismo alertava) da descendência simiesca do homem. Está, aparentemente, provado que o ancestral do homem não é o rebento mais "evoluído" das raças da linhagem simiesca, que o sinal pertinente da humanidade não é o volume do cérebro (tese materialista mecanista, aliás ainda infestada de traços espiritualistas, pois quem diz "cérebro", diz "razão" ou "consciência", etc.). Parece, ao contrário, que o "ancestral" da linhagem humana seja um ser de desenvolvimento cervical modesto, mas que apresenta essa particularidade distintiva de se manter reto sobre suas pernas, com as mãos livres, e de fabricar ferramentas rudimentares em condições que se pode razoavelmente presumir não "individuais", mas gregárias. Vê-se desde logo o interesse que essa descoberta pode representar para o materialismo histórico. O materialismo histórico tem por objeto a natureza das formas de existência histórica próprias à espécie humana: a saber, a estrutura das formações sociais, como condição da produção e da reprodução das condições de produção dos meios materiais de existência dos homens. As Recentes Descobertas permitiriam "preencher" a lacuna separando as sociedades humanas atuais das origens animais da espécie humana, já que, desde as origens, a espécie humana estaria constituída de seres vivendo "junto" e produzindo rudimentos de ferramentas.
Os marxistas não deixaram de relacionar essas descobertas com um texto famoso de Engels (Dialética da Natureza) sobre a distinção que separa a espécie humana das espécies animais mais evoluídas, ou seja, o trabalho, e sobre o papel do trabalho na"criação" da humanidade da espécie humana[10]. Marx já havia marcado essa diferença específica em Le Capital, retomando a fórmula de Franklin definindo o homem como um "toolmaking animal [11]".
As Recentes Descobertas são de um incontestável interesse ideológico, científico e filosófico, mas deve-se precisar o sentido e os limites desse interesse.
Do ponto-de-vista ideológico, elas tornam mais difícil a tarefa do apologeta espiritualista, que não pode mais usar tão demagogicamente o argumento da derrisão, clamando contra o "escândalo" darwiniano (o símio!) junto ao senso comum, lisongeado em sua religião pela idéia reconfortante de que o homem, em toda decência, não poderia ser o filho de um macaco. Mas pode-se confiar na ideologia espiritualista: ele recairá sempre sobre os seus proprios pés, pois, como toda boa ideologia, ele não os tem.
Do ponto de vista científico, as Recentes Descobertas são de um interesse indiscutível. Mas elas não contribuem em absolutamente nada para o conteúdo conceitual do materialismo histórico, que não esperou nem Darwin, nem os modernos paleontólogos, para constituir-se e desenvolver-se, e que não pode esperar aprender nada, sobre os problemas fundamentais do desenvolvimento de sua teoria, de sua revelação. Que o homem seja um "toolmaking animal", vivendo em grupo, que o trabalho transforma a "natureza humana", já era(a) uma hipótese corrente desde o século XVIII, mas ela permaneceu totalmente estéril: o materialismo histórico dele não se originou. Como sabemos, ele foi produzido a partir de outras "premissas", bem diferentes. Aliás, o que esperar da solução científica de um "problema-fronteira" desse tipo para o conteúdo científico de uma disciplina que tem por objeto verdadeiras formações sociais, e não esses grupos que estão verdadeiramente separados das formações sociais, estudadas pelo materialismo histórico, por uma profunda diferença qualitativa? Problema-fronteira: dever-se-ia ainda demonstrar que a fronteira de que se trata é realmente a fronteira entre as leis biológicas e ecológicas, de um lado, e as leis sociais da história, que propriamente fazem a história humana, de outro; e não uma fronteira ainda interior ao domínio pré-histórico, isto é, ainda submetida às leis bio-ecológicas, e não sociais. Sobre esse ponto, a questão está longe de estar resolvida.
Do Ponto-de-vista filosófico, essas descobertas têm um interesse muito maior. Elas constituem de fato, num ponto preciso, o ato de revogação de uma concepção genética do processo da evolução, portanto de uma ideologia evolucionista da gênese. Elas propõem uma imagem da dialética totalmente diferente da dialética teleológica do evolucionismo, que é apenas o hegelismo do pobre: uma dialética de mutações não genéticas.
No entanto, o que vemos nós? Certos marxistas se jogam sobre essas descobertas para fazer delas um uso ideológico que, mesmo estando dirigido contra certos argumentos do espiritualismo, abrem um longo caminho para um novo espiritualismo: o do Humanismo teórico. A noção sobre a qual se decide a sorte dessa empresa ideológica é, seja a noção de trabalho (a essência do Homem é o trabalho), seja a noção, mais "marxista " na aparência, mas, na verdade equivalente, de "trabalho social". A operação ideológica que gostaria de denunciar é simples. Ela consiste em dar uma nova "largada" no Humanismo teórico, reativando a noção ideológica de "trabalho", sobre o fundo do complexo teórico seguinte: Essência do Homem = trabalho (ou trabalho social) = criação do Homem pelo Homem = Homem Sujeito da História == História como processo tendo o Homem (ou o trabalho humano) como Sujeito. Tudo se passa como se as Recentes Descobertas da paleontologia humana fossem assim o "sinal verde" para uma "retomada" do Humanismo teórico.
Como os que professam essa ideologia espiritualista não estão necessariamente conscientes das implicações de sua argumentação, e como sua argumentação atribui-se o benefício teórico de expressões de ressonância marxista, é indispensável entrar em alguns detalhes.
Suret-Canale[12] me desculpará por citá-lo. Mas sua argumentação vai nos esclarecer, na medida mesmo em que ela põe em relação explícita as descobertas recentes e os Manuscrits de 1844.
"Portanto, o que ainda é errôneo ou insuficiente nos Manuscrits de 1844 é o caráter filosófico (especulativo) do procedimento."
"Creio que é também o pensamento de Althusser. Mas sua interpretação parece rejeitar como 'ideológica', isto é, especulativa e errônea, a própria concepção de uma essência universal do homem, ou, se quiserem, para falar em linguagem comum, de uma definição geral da espécie humana, seja ela qual for".
"Uma tal rejeição seria injustificada, como é toda rejeição à teoria geral no benefício exclusivo de tal ciência particular ou de tais leis científicas tomadas à parte (procedimento corrente do positivismo )."
"Há na definição geral do homem dos Manuscritos de 1844 um fundo perfeitamente válido. Eu diria até que essa definição do homem pelo trabalho social é uma das descobertas fundamentais de Marx, sem a qual tudo o que se seguirá, a teoria dos modos de produção, a análise do capitalismo, não teria sido concebível. Ele não renunciará a ela jamais; pelo contrário, ele a desenvolverá (por exemplo, no primeiro tomo do Capital[13] mostrando o que distingue fundamentalmente o homem do animal): Engels fará o mesmo na Dialectique de la Nature.
"Poderia eu permitir-me um parêntese? Temos tanto menos razões para questionar essa concepção geral quanto mais ela é, hoje mesmo, confirmada de modo incontestável pelas descobertas da ciência, da paleontologia humana. Tudo isso é bem recente. Data dos últimos dez anos ..." (segue um resumo das teses de Leroi-Gourhan) "...está demonstrado que é o trabalho social, cujo índice é fornecido pela fabricação das ferramentas, que foi a causa original da humanização e não o inverso ..."
"Mas voltemos ao nosso tema. A definição, que Marx nos dá nos Manuscrits de 1844, confirmada e enriquecida pela ciência, não pode ser colocada no mesmo plano que as definições especulativas e errôneas (idealistas na raiz) de Feuerbach ou dos filósofos do Século XVIII que, eles, pretendem deduzir a essência do homem da aparência do indivíduo burguês e pequeno-burguês de seu tempo."
"Na medida em que a ruptura de Marx com suas concepções anteriores, em 1845, concerne essencialmente o caráter especulativo de seu procedimento, e não sua concepcão geral do homem, a terminologia 'humanismo teórico — anti-humanismo teórico' me parece injustificada. Ela não está no centro do que é essencial".
Deixo de lado a revisão de temas que não se podem defender seriamente. O essencial, em uma descoberta científica, não é a ruptura com a especulação: é necessário infinitamente mais do que essa simples preliminar; caso contrário, Feuerbach, que dedicou sua vida a isso, teria sido um grande sábio. O essencial em uma descoberta científica é o que ela traz de novo no conteúdo (e não na forma: especulação ou não) da teoria. Estou de acordo, mesmo que com reservas extremamente fortes, que vou expor, em dizer que a novidade que traz a descoberta de Marx não está desvinculada do que pode ter de válido, uma vez que ela já foi criada e desde que se a critique radicalmente, uma expressão como "trabalho social". Mas eu não estou absolutamente de acordo: 1) em dizer que essa descoberta está contida nos Manuscrits de 1844; e 2) em designar essa descoberta pela expressão terrivelmente equívoca (quero dizer não marxista) de "trabalho social ”. É, no entanto, sob condição de tomar essa expressão por marxista que se pode defender a tese da descoberta de Marx nos Manuscrits de 1844.
Os Manuscrits de 1844 definem o Homem pelo trabalho (no rastro de Hegel e Smith, reunidos sob a bênção da teoria de que expus os prolegômenos edificantes.). Esse trabalho, os Manuscritos o definem em seu ato originário, a exteriorização (feuerbachiana) das Forças essenciais do indivíduo produtor. Tudo ocorre entre um Sujeito (o Homem trabalhando, o operário) e seus produtos (seu Objeto). Segundo a definição feuerbachiana, o indivíduo tem "por essência absoluta" a espécie; ele é, portanto, na sua própria essência, Gênero, e é a razão pela qual o seu ato individual é, originariamente, um ato genérico. Daí a dedução ideológica, que os Manuscrits nos expõem com um admirável vigor, dos efeitos sociais desse ato originário de exteriorização — manifestação de si da Essência humana (o indivíduo sendo, enquanto Homem, de essência genérica) na produção material do indivíduo-operário: propriedade, classes, capital, etc. O adjetivo social, na expressão "trabalho social" forjada por Suret-Canale, designa, nos Manuscrits, o efeito, o fenômeno, a manifestação (o em-si-para-si hegeliano) da genericidade do Homem contida no ato originário da exteriorização-alienação da essência do Homem, presente (no) trabalho do operário (o em-si hegeliano). Não há nenhuma dúvida possível, quando se lê de perto os Manuscrits. Tudo o que é "social" designa não a estrutura das condições sociais, e do processo de trabalho, ou do processo da valorização do valor, mas a exteriorização/alienação (através de todas as mediações que se queira) de uma essência originária, a do Homem....
É, aliás, a razão pela qual Marx pode escrever essa fórmula, perfeitamente idealista, sobre "o ato da história universal[14]", que é seu "ato de nascimento", originário no sentido mesmo de toda filosofia da origem, isto é, da essência como Sujeito constituinte, onde a origem não significa as origens, isto é o começo, mas a essência constituinte presente, atual, eterna, que produz, no seio de sua profundidade constituinte, todos os fenômenos da história.
Ampliemos o debate. Se a expressão "trabalho social" é equívoca, é porque nela o social é apenas o adjetivo (nos Manuscrits, o Fenômeno, a exteriorização, o em-si-para-si) de um nome que é a sua essência interior: o trabalho. Ao medir-se as consequências, deve-se declarar nitidamente, mas Deus sabe contra quantas aparências e quantas autoridades, que o conceito de trabalho, no equívoco que tenta constantemente instaurá-lo como um conceito de base na teoria do materialismo histórico, não é um conceito marxista. Muito pelo contrário, o conceito de trabalho é, ele próprio, um obstáculo epistemológico considerável ao desenvolvimento da teoria marxista.
Pode-se facilmente percebê-lo a posteriori, consultando todas as ideologias do trabalho, todas as interpretações idealistas do marxismo como filosofia do trabalho, que elas retomam os temas dos Manuscrits de 1844, ou que elas tentam constituir uma Fenomenologia da "praxis"(b). Mas objetar-se-á que se trata aí de ideologia filosófica, e não do materialismo histórico, que se coloca em um outro terreno, o da ciência.
Pois bem, falemos do materialismo histórico. Temos então de constatar que toda a crítica de Marx contra a Economia Política clássica constitui em fazer implodir o conceito de trabalho recebido dos Economistas, em suprimi-lo, e em substitui-lo por conceitos novos, onde a palavra trabalho figura, mas sempre conjuntamente com outras palavras, que conferem ao novo conceito seu sentido distintivo, que não se pode mais confundir com o sentido equívoco do simples conceito de trabalho.
O conceito de trabalho se "estilhaça" nos seguintes conceitos: processo de trabalho, estrutura das condições sociais do processo de trabalho, força de trabalho (e não trabalho), valor da força de trabalho (e não do trabalho), trabalho concreto, trabalho abstrato, emprego da força de trabalho, quantidade de trabalho, etc., etc. Todos esses "estilhaços" são apenas as formas precisas pelas quais encontra-se afastado da via da ciência da história o enorme obstáculo epistemológico que constituía, para o próprio materialismo histórico, a noção simples, originária, de trabalho. E quando Marx fala, em Le Capital, do caráter "social" do trabalho, a palavra trabalho, nessas expressões, não remete a um conceito de base, teoricamente primeiro, e que seria portanto, por si só, cientifico — o conceito de Trabalho — mas aos conceitos complexos novos dos quais dei uma breve enumeração.
É a razão pela qual a expressão de Suret-Canale, "trabalho social", é equívoca, sobretudo pela referência explícita do autor aos Manuscrits de 1844, quando ele a comenta. Essa expressão tem, de fato, a vantagem, sobre outras expressões (como "a essência do homem é o trabalho"), de introduzir o adjetivo social, como ingrediente "suplementar" e "corretivo" indispensável para designar a descoberta do trabalho. Mas a descoberta de Marx diz justamente respeito à natureza do objeto que é designado pelo adjetivo social: a saber, a sociedade. Não se trata de um "suplemento", mas do essencial. Essa descoberta tem então por efeitos inverter a ordem substantivo-adjetivo que exprime uma relação de essência-fenômeno perfeitamente adaptada às teses dos Manuscrits; e revelar que, para pensar a natureza do "trabalho", deve-se começar por pensar a estrutura das condições sociais (relações sociais) de seu emprego. O trabalho torna-se então força de trabalho, emprego em um processo de trabalho submetido à estrutura de relações sociais, e por ela definido. A diferença específica, que distingue então as formas de existência da espécie humana das formas de existência das espécies animais, não é o "trabalho social", mas a estrutura social da produção e da reprodução da existência das formações sociais; isto é, as relações sociais que comandam o emprego da força de trabalho no processo de trabalho, e todos os seus efeitos.
Vê-se então sobre qual equívoco ideológico baseia-se todo "relançamento" do Humanismo, toda tentativa que pretenda fundar o caráter "humanista" da teoria marxista no fato de que Marx fala das sociedades humanas, e não das sociedades animais. Ou então trata-se de uma banalidade, que dispensa comentário. A esse título, somos tão humanistas quando fazemos a teoria da Historia humana quanto seríamos... mecanistas quando escrevêssemos um tratado de mecânica geral, ou... religiosos quando elaborássemos uma teoria da religião. Isso não é sério. Em contrapartida, o que é serio, mas é então a seriedade de uma impostura, é produzir, como conceito diferencial que distingue as formas de existência das sociedades humanas das formas de existência das sociedades animais, um conceito sobre o equívoco, bem como as associações com que se joga a seguir (trabalho, trabalho social) para assentar sobre suas ressonâncias morais uma interpretação teórico-Humanista da ciência ou da filosofia marxista.
Mais uma vez, eu não quero com isso dizer que o problema das origens da espécie humana não seja um problema científico, e que ele não interesse, de certa forma, o materialismo histórico. Certo é que uma teoria científica materialista da paleontologia humana importa ao materialismo histórico, porque ela suprime toda uma série de álibis para as ideologias espiritualistas da história, que não cessamos de opor ao materialismo histórico. Mas o materialismo histórico se constituiu sem contar com a base cientifica dos resultados da paleontologia humana moderna ( faz apenas dez anos que...) e Le Capital foi concebido um certo número de anos antes da Dialectique de la Nature, portanto antes do famoso texto de Engels sobre a diferença que separa o homem do macaco[15]. Se ele dispensar isso, é porque o seu objeto é autônomo à vista dos resultados da paleontologia humana e pode ser tratado como tal numa forma perfeitamente independente.
Mas deve-se ir ainda mais longe. Se, como nos será reconhecido , o "relançamento" do Humanismo teórico é tão pouco fundado nas Recentes Descobertas da paleontologia quanto podem ser fundadas sobre ela as elucubrações do primeiro Teilhard que se apresente (e que não terá dificuldades em "digerir", em uma empresa apologética da mesma inspiração, as famosas Descobertas); se essa "retomada" do Humanismo teórico se explica em ultima instância por razões que têm tudo a ver com a conjuntura política, e muito pouco com o rigor científico, resta que deve-se ir ao fundo das coisas, e perguntar-se por quais razões, não somente políticas, mas também teóricas, marxistas sérios (não estou falando de truões) podem ceder tão facilmente a essa tentação. Pois estou convencido de que, no seu caso, não se trata apenas de uma questão de conjuntura política, mas também e sobretudo de convicção teórica.
Vamos portanto à raiz dessa convicção, que se unifica com a sua representação das exigências do materialismo.
Volto, apenas brevemente, às vantagens ideológicas das Recentes Descobertas. Elas têm por função "preencher" um vazio na "concepção do mundo" materialista. Preenchendo esse vazio, elas fornecem a "prova" de que o mundo é "contínuo", e que entre a materialidade da vida e a existência humana não existe essa descontinuidade da "transcendência" onde vêm se encaixar as palavras mestras da religião, mas a unidade da própria materialidade. Isto é importante. Mas deve-se ver que , sob a preocupação de "preencher um vazio" (onde se precipita a ideologia) pode, ainda agora, se introduzir uma outra preocupação, que não deixa de estar relacionada com algumas das palavras mestras da ideologia religiosa.
É, de fato, bastante notável que "os vazios" pelos quais interessa-se bem particularmente a ideologia religiosa são os vazios das Origens, que não são senão a miudezas do grande Vazio da Origem. A Origem do Homem, a Origem da Vida, etc., são para a ideologia religiosa apenas exemplares, dentre cem outros, da Origem do Mundo, isto é, da Criação. Não nos surpreenderemos, seja dito de passagem, se alguns, justamente a propósito das origens do Homem, falarem espontaneamente a linguagem da criação[16]. Recusaremos seu exemplo como não pertinente, concordo de bom grado. Mas há uma certa maneira de recusar a problemática da Criação e da Origem que, mesmo declarando rejeitá-la, permanece a ela submetida.
Que esse problema das Origens (da vida, do homem, etc.) assombra particularmente numerosos marxistas convencidos de fazer obra filosófica (e não puramente ideológica), é um fato que já pode ser um indício. Ora, esse indício é tão logo confirmado pela natureza do princípio teórico que eles fazem intervir para "resolver" esses problemas de Origem que eles particularmente afeiçoam.
Gostaria de aqui denunciar publicamente a persistência "espontânea" (no sentido leninista da "espontaneidade") de uma concepção que não pode se impedir de associar materialismo e gênese. Nos amplos círculos do materialismo marxista, não apenas entre os filósofos, mas também (e é, de longe, o caso mais freqüente) entre cientistas marxistas, o materialismo é espontaneamente pensado sob e na categoria da gênese. É por isso que os problemas de Origem têm uma tal importância, no próprio seio da concepção atualmente dominante de materialismo dialético. Pois as Origens são o local por excelência onde pode atuar, em toda sua liberdade, o esquema ideológico da gênese.
Quem diz gênese, diz, do fundo mesmo de uma tradição ideológica secular, filiação; diz: possibilidade de seguir passo a passo os efeitos de uma filiação; diz: segurança de que se está lidando com o mesmo indivíduo, com a mesma linhagem da qual não se pode seguir passo a passo as transformações. No fundo de toda gênese, reside essa necessidade de segurança, de garantia ideológica fundamental (toda ideologia tem, entre outras, a função de assegurar um efeito de garantia): jamais perder de vista, através mesmo de todas as suas transformações, o Sujeito inicial; possuir a garantia de que se está sempre lidando com o mesmo sujeito. Na Gênese religiosa: que se está efetivamente sempre lidando, em tudo o que advém, com um só e mesmo sujeito, Deus. Na gênese materialista: que se está efetivamente sempre lidando, quaisquer sejam as transformações, com um só e mesmo Sujeito: a matéria. A associação do materialismo e do genético reside assim, no seu fundo, em um esquema ideológico de garantia.
Esse esquema ideológico toma "espontaneamente" a forma do empirismo. Para seguir passo a passo as transformações do Sujeito originário, nada como fazer passo a passo a dedução exaustiva do que dele advém, nas suas próprias transformações. E quando ele se transforma, deve-se poder recompor todos os detalhes do processo que , mesmo transformando-o, conserva do Sujeito originário a sua Identidade (em todos os sentidos do termo). Para não perder de vista o indivíduo que assim foi identificado, nada como jamais perdê-lo de vista. O empirismo adota e "vive" espontaneamente essa singular lógica da filiação na sua prática da investigação.
Pretendo que o conceito de gênese, constantemente "praticado" na espontaneidade da ideologia científica, é um dos maiores obstáculos epistemológicos atuais, não somente ao desenvolvimento do materialismo dialético, mas também do materialismo histórico, e da maior parte das ciências que dele dependem, como, sem dúvida, também das ciências da vida e de muitas outras ciências da natureza. Ele provoca estragos na psicologia, na história, etc. Esse conceito é constantemente praticado, mais jamais foi posto à prova quanto aos seus títulos teóricos, tanto é esmagador e leve o peso de sua "evidência", isto é, seu peso ideológico.
Vejam a força prodigiosa desse preconceito da gênese. No momento mesmo onde as Recentes Descobertas impõem nos fatos o reconhecimento de que as coisas podem se passar, entre o reino animal e o reino humano, em um esquema totalmente diverso daquele da dialética da gênese homem-a-partir-do-macaco (garantia de que, sob condição de bem "investigar" o macaco, pode-se vê-lo, sem perdê-lo de vista, tornar-se homem); no momento mesmo em que se torna evidente que se deve, ao contrário, para compreender o homem, partir de um resultado sem gênese (isto é, sem filiação onde se conserve a identidade de um mesmo sujeito), partir desse ser-que-não-é-o filho-de-um-macaco, que se mantém de pé, e cujo cérebro (pequeno demais) não é tampouco o cérebro filho-dos-cérebros-de-macacos (demasiadamente grande para que os preconceitos de gênese possam funcionar comodamente nesse encolhimento indecente), nesse mesmo momento, precipitamo-nos dentro da gênese, no interior do reino humano. É que enfim encontrou-se o culpado, o Indivíduo originário; ele foi identificado, ele fabrica "ferramentas" vagas, ele vive em grupo: é bem ele. Nós o temos. Basta "segui-lo", passo a passo, não perdê-lo de vista, tendo a certeza de encontrar, na ponta dessa perseguição, os Manuscrits de 1844 e Le Capital. Não menos. E então, saber-se-á afinal do que é feita essa coisa, evidentemente ainda totalmente indefinida até as Recentes Descobertas, que é uma sociedade e a história; saber-se-á afinal, além disso, de que é feito, no fundo do fundo, Le Capital, bem como o marxismo, e saber-se-á, afinal, pela mesma ocasião (não será de pequeno proveito) o que pensar do Humanismo e do Antihumanismo teórico.
Perdoem-me por ter imprimido aí alguma vivacidade. Seria e será necessário uma tempestade para sacudir esse preconceito inextirpável da gênese. Naturalmente, eu sei o que me espera. Bons espíritos apressaram-se em dizê-lo[17], não somente filósofos, cuja profissão é tratar da gênese (transcendental), mas infelizmente também historiadores, que no entanto, lidam, eles, com coisa diversa das "abstrações", e que não cessam de trabalhar sobre resultados, que são o produto de um processo sem sujeito (isto é, todo o contrário de uma gênese, cujo conceito é esmagado pelos preconceitos ideológicos do Sujeito). Está claro: eu sacrifico a "gênese" às "estruturas". Eu sou bom para esse sempiterno processo.
Não responderei, pois, deve-se deixar aos acusadores a sua oportunidade; afinal, o Homem também pode refletir. Mas, já que se trata justamente de macaco e de homem, e para ficar no campo das ondas de ressonância teórica dessa pedra no charco ideológico que é a relação macaco-homem, tomarei a liberdade de usar, na minha vez (uma vez não é costume), uma das Célebres Citações: essa pequena frase tão clara de Marx que nos diz que não é o macaco a chave para a inteligência do homem, mas que é o homem a chave para a inteligência do macaco[18].
Naturalmente, nossos bons materialistas fizeram dela, durante décadas, todo o uso geneticista que quiseram. Marx queria dizer, não é mesmo, assim como Hegel, que se vê no homem o desenvolvimento do que está em germe no macaco; o que, desde o macaco, era o Homem do macaco. Simples questão de comodidade de leitura: como em Platão, há textos em pequenas letras, difíceis, e textos em grandes letras: para os míopes. É bem conhecido: quando se confia uma perseguição a um míope, mais vale lhe mandar seguir um grande ou um gordo. A frase de Marx é, em sumo, a prova ao contrário da filiação-investigação: já que no homem, não se compreende jamais senão o futuro do próprio homem no seu pai-macaco.
Em um outro texto[19], apresentei a idéia de que essa pequena frase tão clara era difícil de situar no contexto da Contribution e do Capital, a menos que se a entenda em um sentido totalmente diverso, não hístoricista, portanto não geneticista. Mas deve-se sempre dizer as coisas várias vezes, segundo a necessidade, variando o discurso. Falei então, antes de tudo, no texto em questão, do significado epistemológico da pequena frase. A saber, que o conhecimento começa sempre por um resultado, e que o conhecimento do resultado (o conhecimento dos mecanismos da sociedade capitalista), na medida em que ele deve começar por ser o conhecimento de resultado, bastante complexo, dava com isso as chaves necessárias ao conhecimento de outros resultados, anteriores, mais "simples" (as sociedades pré-capitalistas). Para mudar de tom, falemos portanto agora dessa pequena frase sob a ótica do resultado real, enquanto tal, isto é, falemos da dialética.
Penso que o texto de Marx significa que o capitalismo é um resultado, e, como todo resultado, é o resultado de um processo histórico. Em tudo que podemos escrever, jamais tratou-se de outra coisa do que a Historia, que "Eles" chamam, na sua linguagem, gênese. Ora, o capitalismo é o resultado de um processo que não tem a forma de uma gênese. Resultado de que? Marx o diz repetidamente: de um processo de encontro de vários elementos definidos, indispensáveis, e distintos, envolvidos no processo histórico anterior por diferentes genealogias independentes umas das outras, e podendo, aliás, remeter a várias "origens" possíveis: acumulação de capital-moeda, força de trabalho "livre", invenções técnicas, etc. Para dizer as coisas claramente, o capitalismo não é o resultado de uma gênese que remeteria ao modo de produção feudal como à sua origem, ao seu "em-si", ao seu "germe", etc. mas de um processo complexo produzindo, a um dado momento, o encontro de um certo número de elementos próprios a constituí-lo no seu próprio encontro. Contrariamente à ilusão evolucionista, hegeliana, ou geneticista, um modo de produção não contém nele próprio, "em potência", "em germe", "em-si", o modo de produção que vai "sucedê-lo". Sem o que não se compreenderia porque tantos exemplos de formações sociais reguladas pelo modo de produção feudal não conseguiram "dar a luz" ao modo de produção capitalista.
Evidentemente, como sempre "acontecem" coisas, e sobretudo, como elas sempre já aconteceram, o semi-historiador pode facilmente se oferecer o prazer "teórico" de segui-las passo a passo, e de tomar, em uma boa religião da gênese, essa sucessão por uma filiação. Como já dizia Voltaire, se todos os filhos têm um pai, nem todos os pais têm filhos. Mas Voltaire permanecia, na sua crítica, tributário de uma dialética da filiação que, certamente, não deixa de estar relacionada com a ideologia da família, muito precisamente [...] a ideologia jurídica familiar da "sucessão" (entendam: do direito de sucessão). Deve-se ir muito mais longe, e dizer que os Filhos que contam no processo da história não têm pai, pois eles precisam de muitos pais, os quais não são, eles próprios, filhos de um só pai (sem o que já estaríamos dando buscas) mas de vários, etc.
Não penso que a história se perca nesse processo. Perde-se aí certamente a gênese, mas é uma boa perda. Perde-se também as evidências do empirismo histórico, mas é uma excelente perda. Ganha-se simplesmente a possibilidade de fazer a inteligência da História, o que apresenta, de qualquer forma, algumas vantagens. E ganha-se também algumas considerações importantes sobre a dialética, das quais exporemos os rudimentos algum dia.
Volto ao nosso macaco e ao nosso homem. Se o homem pode ser a chave do macaco, é, acima de tudo, porque o que, partindo do homem, nós podemos compreender do macaco é o modo pelo qual um macaco pode ter sido produzido, quando se compreende que o homem não é o filho do macaco. É assim que eu interpretarei a pequena frase de Marx. A inteligência do homem dá essa chave para a inteligência do macaco, nem o macaco nem o homem sendo mais o resultado de uma gênese, isto é, de uma filiação a partir de um Sujeito identificado na origem e garantido pela origem. Podemos apostar mesmo que aqueles que se precipitam na ideologia da gênese das sociedades humanas das quais fala Le Capital, a partir da maravilha identificada pelas Recentes Descobertas, expõem-se a alguns infortúnios, por quererem colocar em investigação essa jovem maravilha. A dialética dos processos (que não são gêneses) reservar-lhes-á, sem dúvida, algumas surpresas, do tipo daquelas que já dilacelaram, teoricamente falando, todos aqueles que começaram a colocar em investigação um modo de produção para seguir passo a passo sua transformação em um outro modo de produção, em um parto sem dor (ou com).
Eis onde se deve, penso, chegar, para cercar em seu último refúgio o argumento ideológico que sustenta, para os próprios marxistas sérios, um tipo de raciocínio que outros, também marxistas, mas não sérios, apressam-se em transformar em Defesa espiritualista do Humanismo marxista. Desculpo-me por ter entrado nesse detalhe. Mas a experiência política (na falta de outra: mas ela é um excelente mestre sob essa perspectiva) ensina que não é possível, por um só instante, participar da ideologia. Marx bem o lembrava na Critique du Programme de Gotha: pode-se participar, o que chamamos de compromisso, da política, pode-se fazer a unidade no terreno da política — mas jamais se pode participar da ideologia, ou fazer a unidade com a ideologia. Ele acrescentava que é particularmente recomendado respeitar, sem nenhuma concessão, essa regra absoluta, sobretudo nos tempos onde a Unidade política está na ordem do dia. Que se consigne em ata.
Esse texto de Marx, a social-democracia alemã, "para não atrapalhar a unidade" com os Lassalianos, "para não magoá-los", enterrou-o durante quinze anos. Em nome da Unidade[20].
Notas:
(***) Este texto foi publicado na França após a morte de Louis Althusser e aparece, agora, pela primeira vez em português. Crítica Marxista completa, com esta publicação, um trabalho de edição iniciado há dois anos. De fato, embora este texto seja um trabalho que se sustenta sozinho, ele pode ser visto como a segunda parte do texto A querela do humanismo que publicamos em Crítica Marxistan. 9 - de resto, foi assim que que a edição francesa das obras póstumas de Altusser situou o texto que agora publicamos. Ver Louis Althusser Écrits Philosophiques et Politiques, Paris, Edições Stock/Imec, 1995. Convém recordar que Althusser examinou, no texto que publicamos no n. 9 de nossa revista, a trajetória da problemática humanista nas obras de juventude e de maturidade de Marx. Como já fizemos na parte anterior, conservamos as notas de rodapé da edição francesa. A tradução é de Laurent de Saes. (retornar ao texto)
(a) Contrariamente ao que diz Suret-Canale. (retornar ao texto)
(b) Cf., na Itália, a obra de Enzo Paci. (retornar ao texto)
(1) Contrariamente à primeira parte, essa segunda parte não possui nenhum título. A versão datilografada mais recente não contém aliás aqui a indicação de uma segunda parte, mas um simples traço horizontal após os desenvolvimentos precedentes. Introduzimos esta subdivisão baseando-nos em uma versão mais antiga do texto, a única a ter sido datilografada pelo próprio Althusser. (retornar ao texto)
(2) Uma nota, jamais redigida, estava aqui inicialmente prevista por Althusser, ela visava provavelmente citar alguns extratos dos textos incriminados. Nós nos contentaremos com um exemplo: "A transcendência, se tomamos no sentido estritamente etimológico — elevar-se além de alguma coisa — a palavra aplicada ao homem que ultrapassa a natureza, e, ao mesmo tempo, ultrapassa constantemente a si mesmo, ultrapassa a sua própria natureza, tem um significado perfeitamente aceitável. Estou persuadido de que, efetivamente, a concepção da transcendência, para os cristãos, é a tomada de consciência sob uma forma mistificada da vocação do homem de ultrapassar a natureza... À questão dos cristãos (fosse ela mistificada na própria maneira de se colocá-la), podemos trazer uma resposta válida. Essa teoria da transcendência, ela já está feita: toda a herança do marxismo já é isso, mesmo que falte algo a acrescentar". (Jean Suret-Canale, "O marxismo é, ao mesmo tempo, ciência e humanismo", intervenção no Comitê central de Argenteuil do PCF, Cahiers du communisme, No 516, junho de 1966, pp. 245 - 261). (retornar ao texto)
(3) Dos seis "problemas" anunciados, apenas o primeiro problema será tratado. Althusser julgará, entretanto, o seu texto suficientemente avançado para novamente faze-lo datilografar por uma secretária. (retornar ao texto)
(4) Uma nota, jamais redigida, estava aqui inicialmente prevista por Althusser. (retornar ao texto)
(5) Cf. em particular Wilhelm Dilthey, Introduction à l'étude des sciences humaines (tradução francesa, Paris, PUF, 1942) cujo Primeiro Livro foi extensamente anotado por Althusser. (retornar ao texto)
(6) Relembremos que Althusser foi atacado, sobre esse ponto por Merleau-Ponty (Humanisme et Terreur, Gallimard, 1955), p. 87, nota: "De Engels e de Plekhanov, passa-se facilmente à perspectiva da ortodoxia contemporânea: a dialética não é um gênero de conhecimento, é um conjunto de constatações, ela não é válida senão no seu 'conteúdo geral' (interação, desenvolvimento, saltos qualitativos, contradições) "(L. Althusser: 'Nota sobre o Materialismo dialético", Revue de l’Enseignement philosophique, outubro-novembro de 1953, p. 12) Essa mistura de dialética e de espírito positivo transporta para a natureza o jeito de ser do homem: é exatamente a magia". (retornar ao texto)
(7) Uma "nota sobre Kojève", jamais redigida, estava aqui prevista. (retornar ao texto)
(8) Engels, Anti-Dühring, 1877. (retornar ao texto)
(9) Uma nota estava aqui prevista. Althusser parece referir-se, particularmente, aos trabalhos de André Leroi-Gourhan (Le Geste et la Parole, Paris, Albin Michel, 1965). (retornar ao texto)
(10) Cf. por exemplo: "O trabalho, dizem os economistas, é a fonte de toda riqueza. Ele o é efetivamente... conjuntamente com a natureza que lhe fornece a matéria que ele transforma em riqueza. Mas ele é infinitamente mais ainda. Ele é a condição fundamental primeira de toda vida humana, e ele o é a tal ponto que, em um certo sentido, devemos dizer: o trabalho criou o próprio homem" (Engels, Dialectique de la nature, tradução francesa, Éditions sociales, 1952, p. 171). (retornar ao texto)
(11) Le Capital, Editions Sociales, 1950, livro I, tomo I, p. 182. (retornar ao texto)
(12) Intervenção citada no Comitê central de Argenteuil do PCF. (retornar ao texto)
(13) Uma nota, jamais redigida, estava aqui prevista. (retornar ao texto)
(14) Manuscrits de 1844, op cit., pp. 128 e 138. Essa fórmula é citada elogiosamente no artigo de Jean Suret-Canale, analisado por Althusser. (retornar ao texto)
(15) Engels, "O papel do trabalho na transformação do macaco em homem", Dialectique de la nature, Editions sociales, 1952, pp. 171-183. (retornar ao texto)
(16) Uma nota, jamais redigida, estava aqui prevista. (retornar ao texto)
(17) Uma nota, jamais redigida, estava aqui prevista. (retornar ao texto)
(18) Marx, Introduction à la critique de l’Economie politique, in Contribution à la critique de l’économie politique Editions sociales, 1957, p. 169. (retornar ao texto)
(19) Uma nota estava aqui inicialmente prevista. Tratava-se, muito provavelmente, de uma nota a Lire le Capital, tomo II, p. 81 sqq. (retornar ao texto)
(20) O texto termina aqui, provavelmente inacabado. (retornar ao texto)
Fonte |
Inclusão | 16/12/2008 |
Última alteração | 19/01/2013 |