A Igreja e o Socialismo

Neno Vasco

25 de outubro de 1913


Primeira Edição: A Lanterna de S. Paulo, N.º 214, 25/10/1913. Também publicado no A Aurora do Porto (21/12/1913) com a assinatura do outro pseudónimo Zeno Vaz.

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/neno-vasco/obras-de-neno-vasco/a-igreja-e-o-socialismo/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Recentemente, o cardeal James Gibbons, de Baltimore, falando em Milwaukee, teve nova ocasião de exprimir as suas velhas simpatias pelo movimento operário…

Foi com efeito Gibbons quem, à frente do episcopado dos Estados Unidos, pediu a intervenção do papa em favor do reconhecimento das organizações operárias, explicando ao Vaticano a necessidade destas, quando, há uns trinta anos, os bispos do Canadá condenaram a sociedade dos «Cavaleiros do Trabalho» (Knights of Labor).

E agora respondendo a uma pergunta, o mesmo cardeal declarou:

«Desde 1887 que defendo as uniões operárias. Os trabalhadores têm o direito absoluto de se organizar. Têm, do mesmo modo que os capitalistas, o direito de cooperar com seus camaradas para essa mútua vantagem.»

Se fixarmos a nossa atenção sobre aquela data — 1887, mais corajosa e rara nos parecerá a atitude deste príncipe da Igreja. 1886 foi, nos Estados-Unidos, o ano dos grandes e enérgicos movimentos proletários em favor das oito horas de trabalho, conquistadas por meio da ação direta dos Knights of Labor e das massas; e em 1887, após um processo iníquo e falseado — como o reconheceu depois o governador do Estado — foram condenados em Chicago, inocentes do crime alegado, oito militantes anarquistas: cinco à morte e três a longos anos de presídio.

Mas a voz do cardeal Gibbons não faz lei nem regra no seio da Igreja Católica, sobretudo no pontificado de Pio X: a Igreja cuida primeiramente, como é natural, dos seus interesses e privilégios próprios, e ainda em seguida dos privilégios e interesses dos mais fortes, dos senhores da hora, dos donos e gerentes da riqueza social, dos seus irmãos e aliados em poderio — em troca de igual ajuda e garantia, indispensáveis à sua existência como organismo privilegiado e parasitário. Como faz notar o jornal que nos informa: «Deus está sempre com os batalhões mais fortes», dito atribuído a Napoleão; e com os servos de Deus sucede ordinariamente o mesmo.

Demais, o próprio Gibbons não faz mais do que desejar para a sua Igreja, por mera habilidade política, um comportamento de aparente e útil condescendência para com o movimento operário, semelhante à que é usada por muitos industriais e políticos «modernistas», — com o fim de regular e captar esse movimento, de o desviar do seu fim revolucionário. O astuto cardeal norte-americano não quer o sindicalismo revolucionário nem o socialismo: agrada-lhe um simples e inofensivo corporatismo, que não aspire a sair do quadro da sociedade capitalista e aceite com submissão o regimen do salariato.

«Há certos aspetos do socialismo recomendáveis, diz ele; há outros repreensíveis. Se fossem eliminados os aspetos repreensíveis e encorajados os aspetos recomendáveis, o socialismo seria uma boa coisa.»

— E que considerais como o aspeto mais condenável do socialismo? perguntaram-lhe.

— A propriedade comum dos bens, pois distruiria todo e qualquer estímulo ao esforço.

Ora a propriedade comum, social, dos bens é precisamente a essência, o princípio fundamental e característico do socialismo! Sem isso, não haveria socialismo, como não haveria monarquia sem rei, nem república sem sufrágio, nem a Igreja Católica sem o papa e sem os dogmas do céu e do inferno. As escolas socialistas variam quanto aos métodos de ação, quanto à organização política da sociedade futura, quanto aos modos de agrupamento e até de produção e distribuição das riquezas; mas deixariam de ser «socialistas» se repelissem a «socialização dos meios de produção e de transporte», a passagem da terra e dos instrumentos de trabalho do domínio privado para o domínio coletivo. Sem esse caráter essencial, seria inútil a própria palavra «socialismo», que não teria definição específica, que não exprimiria novidade alguma.

Um modo de combater consciente ou inconscientemente o socialismo consiste em lhe deturpar a significação e o alcance. Não temos visto chamar «socialista» a quem apenas faz parte duma sociedade qualquer de beneficência ou de socorros mútuos ou se diz «amigo dos pobres»?… Numa velha revista de «educação popular», que temos presente, vem esta inesperada definição do socialismo considerado como um simples sistema de filosofia abstrata: «Esta doutrina, considerando o homem como nascido exclusivamente para a sociedade, quer que ele refira todos os seus atos ao bem geral: é a supressão completa do indivíduo em proveito do corpo social.» Outrem poderia definir assim o altruísmo, o cristianismo, ou qualquer outra filosofia social parecida.

Falseado ou amputado o socialismo, pode qualquer patrão, governante, imperador, cardeal ou papa dizer-se socialista, «mais socialista que ninguém», continuando embora a pensar e a agir como dantes.

Quanto ao famoso «estímulo ao esforço» que o cardeal Gibbons receia ver suprimido com a abolição da propriedade privada, — como hão de sorrir disso os capitalistas, os acionistas ociosos, os ricos herdeiros, que o monopólio da riqueza dispensa do trabalho desde o berço, e do outro lado a imensa maioria dos homens, daqueles que de intermináveis gerações de trabalhadores escravizados e expoliados só herdaram um lugar sem esperança no inferno do salariato!…

Os velhos doutores e padres da Igreja disseram o contrário de Gibbons: para eles era santa a comunidade de bens e roubo maldito a riqueza monopolizada…

Quantos anátemas então contra a propriedade individual!… Mas era tudo platónico, sentimental, idealista… Entretanto, a Igreja ia ganhando e retribuindo o apoio dos ricos e dos imperadores, ia conquistando ela própria o poder político e económico. E os senhores e reis que a sustentavam afrontavam alegremente aquela decantada dificuldade de entrar no céu, superior à que teria um camelo (ou um calabre?) de passar pelo fundo duma agulha — que, em sua intenção, a Igreja fabricara, porém, de colossais dimensões…


Inclusão: 24/06/2021