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c) Nação e Cultura
Fonte: Esquerda Diário - https://www.esquerdadiario.com.br/Nacao-e-Cultura-Parte-1 e https://www.esquerdadiario.com.br/Nacao-e-Cultura-Parte-2
Transcrição: Calvin Borges
A política nacional do bolchevismo, assegurando a vitória da Revolução de Outubro, ajudou a URSS a manter-se em seguida, apesar das forças centrífugas do interior e da hostilidade dos países vizinhos. A degenerescência burocrática do Estado prejudicou grandemente esta política. Precisamente sobre a questão nacional, Lenin se preparava para um primeiro combate contra Stalin no XII Congresso do partido, na Primavera de 1923. Mas teve de abandonar o trabalho antes da reunião do Congresso. Os documentos que então redigiu estão ainda sonegados pela censura.
As necessidades culturais das nações, despertadas pela revolução, reclamam a mais larga autonomia. Mas só é possível desenvolver-se convenientemente a economia se todas as partes da União se submeterem a um plano de conjunto centralizado. Ora, a economia e a cultura não estão separadas por paredes estanques. Acontece portanto que as tendências para a autonomia cultural e para a centralização econômica entram em conflito. No entanto, não há entre elas um antagonismo irredutível. Se, para reduzir estes conflitos, não temos nem podemos ter uma fórmula sempre pronta, a vontade flexível das massas interessadas existe e só a sua participação efetiva nas decisões cotidianas do seu próprio destino pode, em cada etapa, traçar o limite entre as reivindicações legítimas da centralização econômica e as exigências vitais das culturas nacionais. Todo o mal deriva do fato da vontade da população da URSS, encarnada pelos seus diversos elementos nacionais, ser completamente falsificada pela burocracia, que só vê a economia e a cultura sob o ângulo dos interesses específicos da camada dirigente e das facilidades de governo.
É verdade que a burocracia continua a realizar nestes dois domínios um certo trabalho progressista, embora ao preço de enormes encargos. Isto diz respeito, primeiramente, às nacionalidades atrasadas da URSS que devem, necessariamente, passar por um período mais ou menos longo de empréstimos, de imitações e de assimilação. A burocracia constrói-lhes uma ponte que lhes permite alcançar os benefícios mais elementares da cultura burguesa e, parcialmente, pré-burguesa. Quanto às várias regiões e nacionalidades, o regime realiza, numa larga medida, a obra histórica que Pedro I e os seus companheiros realizavam em relação à velha Moscóvia; mas em uma escala mais vasta e num andamento mais acelerado.
O ensino é dado atualmente nas escolas da URSS em oitenta línguas, pelo menos. Foi necessário, para a maior parte destes idiomas, criar alfabetos, ou substituir os alfabetos asiáticos, demasiado aristocráticos, por latinizados, mais ao alcance das massas. Os jornais aparecem em outras tantas línguas e dão a conhecer a pastores nômades e a agricultores primitivos os elementos da cultura. As regiões longínquas do império, outrora desprezadas, veem surgir indústrias, o trator destrói os velhos hábitos que se mantêm ainda no clã. Simultaneamente com a escrita aparecem a medicina e a agronomia. Não é fácil apreciar esta ascensão de novas camadas da humanidade. Marx não se enganava ao dizer que a Revolução é a locomotiva da História.
Mas até mesmo as mais poderosas locomotivas não fazem milagres; elas não alteram as leis do espaço, apenas aceleram o movimento. A necessidade de dar a conhecer o alfabeto, o jornal e as mais rudimentares regras da higiene a dezenas de milhões de homens, mostra bem o caminho que falta percorrer antes que se possa pôr realmente a questão de uma nova cultura socialista. A imprensa pública, por exemplo, que os Oyrates da Sibéria ocidental que até aqui não sabiam se lavar têm atualmente, “em muitas aldeias, estabelecimentos de banhos aos quais recorrem as populações de trinta quilômetros ao redor”. Este exemplo de progresso elementar faz ressaltar fortemente o nível de muitas outras conquistas e não só nas regiões mais afastadas e atrasadas. Quando o chefe do governo, para mostrar o crescimento da cultura, proclama que a procura de “camas de ferro, de relógios, de roupa tricotada, de camisolas e de bicicletas” aumenta nos kolkhozes, isto apenas significa que os camponeses libertados começam a se servir dos produtos da indústria que de há muito fazem parte da vida do Ocidente. A imprensa repete diariamente os seus sermões sobre “o comércio socialista, civilizado”. Na realidade, trata-se de dar um novo aspecto, limpo e atraente aos estabelecimentos do Estado, de aparelhá-los, de abastecê-los convenientemente, de não deixar apodrecer as maçãs, de vender ao mesmo tempo que as meias de seda, fio de apanhar malhas, e vendedores a tratar com atenções e gentileza, o que em resumo significa, atingir um nível que é comum no comércio capitalista. E ainda está longe de atingir este fim, no qual, aliás, não há um único grão de socialismo.
Se nos desviarmos por instantes das leis e das instituições, para, sem nos embalarmos com ilusões, considerarmos a vida cotidiana da grande massa da população, somos forçados a concluir que a herança da Rússia absolutista e capitalista subsiste ainda, e muito, nos hábitos sobre os germes do socialismo. É a própria população que o exprime da mais convincente maneira, na sua avidez em seguir, na mais pequena melhoria, os modelos do Ocidente. Os jovens empregados soviéticos e até frequentemente os jovens operários, esforçam-se por imitar as maneiras e os vestuários dos engenheiros e técnicos americanos que veem na fábrica. As empregadas e as operárias devoram com os olhos a turista estrangeira, para se vestirem como ela e imitarem as suas maneiras. Aquela que o consegue torna-se, por sua vez, um objeto de imitação. Em vez dos “papelotes” de outrora, as que são melhor remuneradas fazem “permanentes”. A juventude aprende de boa vontade as “danças modernas”. De certo modo, são progressos que, neste momento, não exprimem a superioridade do socialismo sobre o capitalismo, mas a predominância da cultura burguesa sobre a cultura patriarcal, da cidade sobre o campo, do centro sobre a província, do Ocidente sobre o Oriente.
Quanto aos meios soviéticos privilegiados, imitam as mais altas esferas capitalistas e são os diplomatas, os diretores de trustes e os engenheiros que, viajando frequentemente para a Europa e para a América, se tornam árbitros na matéria. A sátira soviética nada diz porque é rigorosamente proibido tocar nos “dez mil” dirigentes, mas não podemos deixar de notar, com amargura, que os altos funcionários soviéticos no estrangeiro não tenham sabido mostrar, face à civilização capitalista, um estilo próprio, ou até a sua maneira de ser pessoal. Não souberam criar a firmeza interior que lhes teria permitido desprezar as aparências e manter as distâncias. Geralmente,” a ambição deles é se distinguirem o menos possível dos perfeitos esnobes burgueses. Numa palavra, eles se sentem, na maioria, não representantes de um mundo novo, mas simples arrivistas e como tal se comportam.
Dizer que a URSS procura, atualmente, realizar a obra cultural que os países adiantados fizeram há muito sobre a base capitalista, seria apenas formular uma meia-verdade. As novas formas sociais não são de modo algum indiferentes; elas não se limitam a dar a um país atrasado a possibilidade de alcançar o nível dos países adiantados, mas permitem-lhe também atingir esse nível muito mais rapidamente do que fez o Ocidente. A chave deste enigma encontra-se facilmente; os pioneiros da burguesia tiveram que criar a sua própria técnica e aprender a aplicá-la à economia e à cultura, enquanto que a URSS encontra um conhecimento já pronto e moderno e, graças à socialização dos meios de produção, aplica-o não parcialmente e pouco a pouco, mas de uma só vez a uma escala imensa.
Os chefes militares de outrora elogiaram, numerosas vezes, o papel civilizador dos exércitos, sobretudo no que diz respeito aos camponeses. Sem nos deixarmos seduzir pela civilização específica difundida pelo militarismo burguês, não se pode, no entanto, contestar que inúmeros hábitos úteis ao progresso foram levados às massas populares por intermédio do exército; não é sem motivo que soldados e oficiais subalternos se encontraram à frente de todos os movimentos revolucionários e, principalmente, dos camponeses. O regime soviético tem a possibilidade de agir sobre a vida das massas populares Utilizando, não só o exército, mas todos os órgãos do Estado, do partido, das Juventudes Comunistas e dos sindicatos confundidos com o Estado. A assimilação dos modelos pré-fabricados da técnica, da higiene, das artes e dos desportos, em prazos muito mais breves do que foram necessários à elaboração dos mesmos nos seus países de origem, é assegurada pelas formas estatizadas da propriedade, pela ditadura política e pela direção planificada.
Se a Revolução de Outubro apenas tivesse trazido esta aceleração, já estaria justificada sob o ponto de vista histórico, porque o regime burguês decadente não se mostrou capaz, no último quarto de século, de fazer progredir consideravelmente um único país atrasado em nenhuma parte do mundo. O proletariado russo fez a revolução com objetivos muito mais elevados; presentemente, seja qual for o jugo que suporta, os seus melhores elementos não renunciaram ao programa comunista nem às grandes esperanças que este representa. A burocracia é forçada a se adaptar ao proletariado pela orientação da sua política e mais ainda na interpretação desta. Por isso, cada passo a frente na economia ou nos hábitos, independentemente da sua verdadeira explicação histórica, ou da sua significação real para a vida das massas, se torna oficialmente uma enorme conquista, uma aquisição sem precedentes da “cultura socialista”. Sem dúvida que, pôr a escova de dentes e o sabonete à disposição de milhões de homens que, ainda ontem, não conheciam as mais rudimentares exigências da higiene, é uma obra civilizadora das mais importantes. Entretanto, nem o sabonete nem a escova de dentes, nem mesmo os perfumes reclamados pelas “nossas mulheres” fazem a cultura socialista, sobretudo quando estes pobres atributos da civilização apenas são acessíveis a 15% da população.
A “transformação dos homens”, da qual tão frequentemente se fala na imprensa soviética se realiza com efeito, a toda a velocidade, Em que medida se trata de uma transformação socialista? No passado, o povo russo não conheceu uma grande reforma religiosa como os alemães, nem uma grande revolução burguesa como os franceses. Nestes dois cadinhos, se pusermos de parte a revoluçãoreforma dos britânicos do século XVII, formou-se a individualidade burguesa, fase das mais importantes para o desenvolvimento da individualidade humana em geral. As revoluções russas de 1905 e 1917 indicavam, sem dúvida, o despertar do indivíduo no seio das massas e a sua afirmação em um meio primitivo; elas empreenderam aceleradamente, embora em menor escala, a obra educativa das reformas e das revoluções burguesas do Ocidente. Mas ainda, muito antes desta obra estar terminada, pelo menos nas suas grandes linhas, a revolução russa, nascida no crepúsculo do capitalismo, se viu lançada pela luta de classes no caminho do socialismo. As contradições no campo da cultura não fazem senão refletir e desviar as contradições sociais e econômicas que resultam deste salto. O despertar da individualidade adquire, desde logo e necessariamente, um caráter mais ou menos pequeno-burguês na economia, na família e na poesia. A burocracia se tornou a encarnação de um extremo individualismo, por vezes sem freio. Admitindo e encorajando o individualismo econômico (trabalho por produção, parcelas dos cultivadores, prêmios, condecorações), ela reprime duramente por outro lado as manifestações progressistas do individualismo no campo da cultura espiritual (crítica, formação de opiniões pessoais, dignidade individual).
Quanto mais elevado é o nível de um grupo nacional, maior é a sua criação cultural, mais os problemas da sociedade e da personalidade são tomados a peito e mais dolorosas, senão intoleráveis, lhe parecem as tenazes burocráticas. Na verdade, não se pode pôr a questão da originalidade das culturas nacionais quando uma só batuta de maestro — ou mais exatamente uma só matraca policial— tenta dirigir as funções intelectuais de todos os povos da União. Os jornais (e os livros) ucranianos, branco-russos, georgianos, ou turcos, nada fazem além de traduzir nestas línguas os imperativos burocráticos. A imprensa moscovita publica diariamente a tradução russa das odes dedicadas aos chefes por poetas laureados nacionais, na verdade, miseráveis versificações, que só diferem umas das outras pelo grau de servilismo e de insignificância.
A cultura grã-russa, sofrendo tanto como as outras com este regime de opressão, vive sobretudo por conta da velha geração formada antes da revolução. A juventude parece estar esmagada sob uma lage. Não estamos, na verdade, em presença da opressão de uma nacionalidade por outra, no sentido estrito da palavra, mas da opressão de todas as culturas nacionais, começando pela grã-russa, por um aparelho policial centralizado. E, no entanto, não devemos ignorar o fato de 90% dos jornais da URSS aparecerem em russo. Se esta percentagem está em contradição flagrante com a proporção numérica dos russos na população, ela corresponde melhor, na verdade, à influência própria da civilização russa e ao seu papel de intermediário entre os povos atrasados e o Ocidente. Não se poderá ver, no entanto, no exagero atribuído aos russos nas edições (e não só, naturalmente) um privilégio nacional de fato de uma grande potência em detrimento das outras nacionalidades? É bastante provável. Mas, a esta pergunta extremamente séria, não se pode responder em termos tão categóricos como seria de desejar porque, mais do que pela colaboração, a emulação e a recíproca fecundação das culturas é resolvida pela arbitragem sem apelo da burocracia. E como o Kremlin é a sede do poder e a periferia deve imitar o centro a burocracia central toma inevitavelmente um desenvolvimento russificador, deixando às outras nacionalidades um único direito; o de cantar louvores ao árbitro nas suas próprias línguas.
A doutrina oficial da cultura muda com os ziguezagues econômicos e as considerações administrativas; mas, em todas as suas variações, mantém um caráter absolutamente categórico. Simultaneamente com a teoria do socialismo em um só país, a da “cultura proletária”, até então em último plano, recebeu a investidura oficial. Os seus adversários sustentavam que a ditadura do proletariado é meramente transitória; que, diferentemente da burguesia, o proletariado não tenciona dominar durante longas épocas históricas; que a tarefa da nova classe dominante na presente geração é, antes de mais, o de assimilar tudo o que há de precioso na cultura burguesa; que quanto mais um proletariado se mantém nessa condição, mais carrega os vestígios da sua sujeição de outrora e menos capaz é de se elevar acima da herança do passado; que as possibilidades de uma nova obra criadora só surgirão, realmente, à medida que o proletariado se incorpore na sociedade socialista. Tudo isto significa que a cultura socialista — e não uma cultura proletária — é chamada a suceder à burguesa.
Discutindo com os teóricos de uma arte proletária, produto de laboratório, o autor destas linhas escreveu: “A cultura se nutre das energias econômicas e são precisos excedentes materiais para que ela cresça, evolua e se clarifique”. A mais feliz solução dos problemas econômicos elementares “não significaria ainda, de modo algum, a vitória completa do socialismo, novo princípio histórico”. O progresso do pensamento científico em bases populares e o desenvolvimento da nova arte atestariam por si só que o grão germinara e que a planta crescera. Sob este aspecto “o desenvolvimento da arte é a mais alta prova da vitalidade e da importância de uma época”. Este ponto de vista, anteriormente admitido, foi imediatamente declarado, em um texto oficial, “demissionista” e ditado pela “descrença” na capacidade criadora do proletariado. Abriu-se o período Stalin-Bukharin, este de há muito se comportava como o arauto da cultura proletária; Stalin nunca tinha pensado nisso. De qualquer modo, ambos concordavam que a marcha do socialismo se faria “a passo de tartaruga” e que o proletariado disporia de dezenas de anos para formar a sua própria cultura. Quanto ao caráter desta, as ideias dos nossos teóricos eram tão confusas como pouco ambiciosas.
Os anos tormentosos do primeiro plano quinquenal subverteram a perspectiva do passo de tartaruga. Desde 1931, o país, na véspera de uma fome cruel, “entrou no socialismo”. Antes que os escritores e os artistas, oficialmente protegidos, tivessem podido criar uma arte proletária, ou pelo menos, as primeiras obras marcantes desta arte, o governo fez saber que o proletariado fora absorvido na sociedade sem classes; faltava-lhe adaptar-se, pelo fato de ainda não ter tido, para criar a sua cultura, um fator indispensável: o tempo. A concepção de ontem foi instantaneamente votada ao esquecimento e pôs-se na ordem do dia a “cultura socialista”, cujo conteúdo já conhecemos.
A criação espiritual necessita de liberdade. A ideia comunista de submeter a natureza à técnica e a esta ao plano para obrigar a matéria a dar ao homem, sem recusas, tudo o que ele necessita e mais até, visa um fim mais elevado: libertaras faculdades criadoras do homem, como jamais fora feito, de todos os entraves e sujeições humilhantes a duros constrangimentos. As relações pessoais, a ciência e a arte não suportarão nenhum plano imposto, nenhuma sombra de obrigação. Em que medida será coletiva ou individual a criação espiritual? Isso dependerá inteiramente dos criadores.
Há ainda outra coisa: o regime transitório. A ditadura exprime a barbárie passada e não a cultura futura; impõe, necessariamente, rudes restrições a todas as atividades, inclusive a espiritual. Desde o princípio que o programa da revolução via na ditadura um mal temporário e se comprometia a eliminar, pouco a pouco, todas as restrições à liberdade, à medida que se consolidasse o novo regime. De qualquer modo, durante os anos mais acesos da guerra civil, os chefes da revolução sentiam que o governo, se podia, inspirando-se em considerações políticas, limitar a liberdade criadora, não podia de modo algum pretender o comando no domínio científico, literário e artístico. Com os seus gostos bastante “conservadores”, Lenin, fazendo prova da maior circunspecção em matéria de arte, invocava, de boa vontade, a sua incompetência. A proteção dada pelo Comissário do Povo para a Instrução Pública, Lunatcharsky, a diversas formas de modernismo, perturbava frequentemente Lenin, mas se limitava a comentários irônicos nas suas conversas particulares e se mantinha longe da ideia de fazer lei baseada nos seus gostos literários. Em 1924, no limiar de uma nova fase, o autor deste livro formulava nestes termos a atitude do Estado face às tendências da arte: “Pondo acima de tudo o critério: pró ou contra a revolução, deixar-lhes no seu próprio terreno uma completa liberdade”.
Enquanto a ditadura teve o apoio das massas e diante de si a perspectiva da revolução mundial, não temia as experiências, as pesquisas, a luta de escolas, porque compreendia que uma nova fase da cultura não se podia preparar fora desta via. Todas as fibras do gigante popular tremiam ainda; ele pensava em alta voz, pela primeira vez, desde há milênios. As melhores e mais jovens forças da arte se enchiam de vida. Foi nestes primeiros anos, ricos de esperança e de audácia, que foram criados os mais preciosos modelos da legislação socialista e também as melhores obras da literatura revolucionária. À mesma época estão ligados também os melhores filmes soviéticos que, apesar da pobreza dos meios técnicos, espantaram o mundo pela frescura e intensidade do realismo.
Na luta contra a oposição no seio do partido, as escolas literárias, uma após outra, foram abafadas. E não se tratava só da própria literatura. A devastação se estendeu a todos os domínios da ideologia, tanto mais energicamente quanto era semi-inconsciente. Os dirigentes atuais consideravam-se, por sua vez, como sendo chamados a controlar politicamente a vida espiritual e a dirigir o seu desenvolvimento. A sua autoridade sem apelo se exerce igualmente nos campos de concentração, na agricultura e na música. O órgão central do partido publica artigos anônimos, bastante semelhantes às ordens de chefes militares, regendo a arquitetura, a literatura, a dramaturgia, o balé, sem falar, naturalmente, das ciências naturais e da História.
A burocracia tem um medo supersticioso de tudo o que não a serve e de tudo o que não compreende. Quando exige uma ligação entre as ciências naturais e a produção, tem razão a certo nível; mas quando ordena aos investigadores pára só se ocuparem de fins imediatos, ameaça secar as fontes mais preciosas da criação, inclusive as descobertas práticas que frequentemente se fazem por vias imprevistas. Instruídos por uma experiência dolorosa, os naturalistas, os matemáticos, os filósofos, os teóricos da arte militar, evitam as grandes generalizações, com receio que um “professor vermelho”, que frequentemente não passa de um arrivista ignorante, lhes oponha brutalmente alguma citação de Lenin ou de Stalin. Em tal caso, – defender o pensamento e a dignidade científicos, é atrair, seguramente, os rigores da repressão.
As ciências sociais são as mais maltratadas. Os economistas, os historiadores, os técnicos de estatística, sem falar dos jornalistas, se preocupam sobretudo em não se colocarem, de modo algum, nem mesmo indiretamente, em contradição com as posições atuais da política oficial. Não se pode tratar da economia soviética, da política interna, ou externa, sem se estar protegido por todos os lados com as banalidades rebuscadas nos discursos do chefe e tendo por objetivo demonstrar que tudo se passa como foi previsto, ou melhor ainda. O conformismo a cem por cento livra de aborrecimentos, mas comporta a sua própria punição: a esterilidade.
Ainda que na URSS o marxismo seja, formalmente, a doutrina oficial, no decorrer dos últimos doze anos não foi publicada uma única obra marxista — tratando de economia, de sociologia, de história ou de filosofia — cuja tradução merecesse atenção. A produção marxista não sai dos limites da compilação escolástica, que nada faz além de repisar as velhas ideias aprovadas e utilizar as mesmas citações segundo as necessidades do momento.
As expensas do Estado são publicados milhões de exemplares e livros e brochuras que não fazem falta a ninguém, fabricados à custa de goma, lisonjas e outros ingredientes pastosos. Os marxistas que poderiam dizer qualquer coisa de útil e de pessoal estão aferrolhados, ou forçados a calar-se. Isto, apesar da evolução das formas sociais pôr a todo o momento problemas grandiosos!
A vida da arte soviética é um catálogo de vítimas. Depois de um artigo do Pravda contra o formalismo, vê nascer entre os pintores, os escritores, os encenadores e até entre os cantores de ópera, uma epidemia de arrependimento. Todos, à porfia, retratam-se dos pecados de ontem, abstendo-se, no entanto, por prudência, de precisar o que é o formalismo. Por fim, as próprias autoridades tiveram de pôr cobro, por meio de uma nova diretriz, a esta torrente de abjurações. As apreciações literárias são revistas e os manuais remodelados em algumas semanas; as ruas mudam de nomes e erguem-se monumentos porque Stalin fez sobre Maiakovski reparo elogioso. A impressão que uma ópera produz nos altos dignatários torna-se uma diretriz para os compositores. Em uma conferência de escritores, o secretário das Juventudes Comunistas declara que “as indicações do camarada Stalin fazem a lei para todos” e é aplaudido, embora alguns tenham o rosto corado de vergonha. E como se quisesse infligir à literatura um supremo ultraje, Stalin, incapaz de redigir corretamente uma frase em russo, é consagrado um clássico do estilo. Este bizantinismo e este reinado policial tem qualquer coisa de profundamente trágico, apesar dos seus aspectos históricos.
A fórmula oficial diz que a cultura deve ser socialista no seu conteúdo e nacional na sua forma. O conteúdo da cultura socialista, porém, só pode ser objeto de hipóteses mais ou menos felizes. A ninguém é dado erigir esta cultura numa base econômica insuficiente. A arte é muito menos suscetível de prever o futuro do que a ciência. Quaisquer que sejam, receitas como “representar a edificação futura”, “mostrar a via do socialismo”, “transformar o homem”, pouco mais sugerem à imaginação do que o preço corrente dos serrotes ou o horário dos trens.
Forma popular da arte e colocação das obras ao alcance de todos são identificadas. “O que não é útil ao povo”, declarava o Pravda “não pode ter valor estético”. Esta velha ideia de narodniki, que põe de lado a educação artística das massas, adquire um caráter tanto mais reacionário quanto mais a burocracia se reserva o direito de decidir de que arte o povo tem ou não tem necessidade; a burocracia publica livros à sua vontade e estabelece a venda obrigatória sem deixar a mínima escolha ao leitor. Finalmente, tudo se reduz, para ela, a que a arte se inspire nos seus interesses e encontre, ao seu serviço, o que a torne atraente para as massas populares. Em vão! Nenhuma literatura resolverá o problema. Os próprios dirigentes são forçados a reconhecer que “nem o primeiro nem o segundo plano quinquenais originaram ainda uma vaga de criação literária mais poderosa do que a nascida da Revolução de Outubro”. O eufemismo está terrivelmente adoçado. Na verdade, apesar de algumas exceções, a época termidoriana entrará na história como a época dos medíocres, dos premiados e dos oportunistas.