As Lutas dos Moradores e a Constituição de 1976

Amadeu Lopes Sabino, Saúl Nunes, e Luis Felipe Sabino

1977


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LEI ORDINÁRIA E CONSTITUIÇÃO

Transcrição das alegações da parte apelante nos autos de recurso cível n.º 17.060 da 3.º Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I

É um lugar comum dizer-se que Portugal é atravessado por uma revolução. Talvez não o seja começar a retirar dessa afirmação — que os meios de comunicação social e os governantes espalham aos quatro ventos — ilações ao nível da instância jurídica. Quer o legislador queira quer não, ou melhor, quer o legislador o admita quer não, a prática das massas, num período revolucionário, cria comportamentos cujo reconhecimento se impõe ao Estado. Em primeiro lugar, o próprio acto insurreccional: 40 linha de fractura entre duas épocas, situa-se no momento em que os insurrectos derrubam o regime antigo e instalam um novo. «ir ali abaixo ao Terreiro do Paço tirar um Rei e pôr lá outro», em 1640 mas sobretudo na segunda metade do século vinte (numa formação social em que a instância jurídica-política é dominante), tem consequências jurídicas e não meramente governativas. Se os insurrectos não logram atingir os seus objectivos são incriminados; se derrubam o regime é este quê é incriminado e dissolvido. De qualquer modo, os juizes, os tribunais, são convidados a pronunciar-se, com lei expressa ou sem ela, acerca de actos que, em princípio. um certo farisaismo judiciário pretenderia serem apenas políticos.

O Poder Judicial não paira acima das nuvens como os adeptos duma independência de estufa (dos juizes e dos tribunais) afirmam. O Tribunal não é a-histórico e os juizes não são a-políticos (no sentido aristoteliano do termo) porque não são a-sociais. O acto de julgar é um acto profundamente comprometido com o real, não é neutro. Tem um conteúdo e consequências de classe muito concretas. Admiti-lo não é pôr em causa a independência do Tribunal e do julgador, cuja compreensão não pode ser idealista (no sentido filosófico do termo).

A independência do Poder Judicial (como, paralelamente, a do Legislativo) é, em democracia política, um dado funcional.

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«Os juizes» — escreve Ralph Miliband em O Estado na Sociedade Capitalista (Editorial Zahar, Rio de Janeiro, 19722) — «dentro dos sistemas políticos de tipo ocidental, são independentes. Mas independentes de quê? A resposta geralmente apresentada é a de que eles são independentes do governo do dia, não têm obrigações em relação ao mesmo e não precisam de dar-lhes as boas vindas ou preocupar-se com as suas conveniências, sua satisfação ou iria. Se ele não se aplica a qualquer outra coisa, pelo menos aqui, costuma-se dizer, o conceito de separação de poderes aplica-se. E nesse sentido específico, a noção de independência judiciária tem realmente um mérito indubitável e o facto que ela encerra reveste-se de considerável importância na vida dos sistemas políticos dentro do qual exerce influência».

E Miliband acrescenta:

«No entanto, a noção de independência judiciária deve ser considerada num sentido mais amplo, uma vez que em seu sentido restrito tende a encobrir alguns aspectos fundamentais do papel do judiciário dentro daqueles sistemas».

«Um de tais aspectos é de que os juizes dos tribunais-superiores (e nesse sentido, também, os dos tribunais inferiores) absolutamente não são, nem podem ser independentes em relação a inúmeras influências, principalmente da origem de 42 classe, educação, situação de classe, e tendência profissional, que contribuem tanto para a formação da sua concepção do mundo como no caso de outros indivíduos». (Os sublinhados são meus).

II

A independência dos tribunais face aos governos, que é uma conquista da história da luta dos povos pela Democracia e pela Liberdade, essa independência que o fascismo e as outras formas de Estado capitalista de excepção têm procurado reduzir a uma farsa, essa independência que todos os portugueses democratas e antifascistas desejam para os seus tribunais, não pode pois ocultar o facto de, em qualquer sociedade de homens, o Tribunal se integrar num determinado aparelho de Estado e de o juiz ser produto duma determinada conjuntura, sujeito como todo o homem a «inúmeras influências».

Disse-se acima que quer o legislador — acrescentar-se-á: e o julgador — o admitam quer não, a prática das massas cria, num período revolucionário, comportamentos cujo reconhecimento se impõe ao Estado.

Sejamos claros: impõe-se ao Estado como totalidade, isto é, tanto ao Poder Executivo, como ao Poder Legislativo como ao Poder Judicial.

Citarei de novo Ralph Miliband: «Os juizes, e isso é geralmente aceite, não são «máquinas de 43 vender leis», ou os prisionêéiros indefesos de uma estrutura legal ou os meros expoentes da lei, como eles consideram. Dentro do sistema legal de todos aqueles países [democracias ocidentais] há lugar, inevitavelmente, para o arbítrio judicial e para à criatividade judicial no exercício efectivo da lei» (o sublinhado é meu). E mais adiante: «Ao interpretar e executar a lei os juizes não podem deixar de ser profundamente afectados por uma concepção do mundo, a qual, por sua vez, determina a sua atitude em face dos conflitos que ocorrem dentro dele. Poderão julgar que são guiados exclusivamente por valores e conceitos que pairam muito acima das considerações mundanas, de interesses de classe ou especiais. Mas, em sua aplicação concreta, tais conceitos oferecerão no entanto muitas vezes uma posição e uma tendência preconceituosa ideológica diferentes e identificáveis, na maioria dos casos, de tipo fortemente conservadores».

III

O reconhecimento de novas práticas sociais impõe-se ao julgador.

É tautológico e sobretudo simplista dizer que o julgador só pode proceder ao respectivo reconhecimento após o legislador o ter feito.

Em qualquer sistema jurídico (e judiciário) moderno há lugar para o arbítrio judicial e para a criatividade judicial. Mesmo os juristas mais conservadores 44 aceitam a figura jurídica da interpretação da lei (pelos juristas e nomeadamente pelos julgadores). Até esse «modo dominante do pensamento jurídico, que coloca em primeiro plano a norma como regra de conduta, formulada autoritariamente» (Pasukanis, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, Editora Centelha, Coimbra) não nega a utilidade concreta da interpretação da lei.

Mas o pensamento jurídico conservador (isto é: que pretende a manutenção duma dada estrutura social), não negando essa utilidade, reduz a interpretação a um regresso ao passado: não apenas conserva como retrocede, não é apenas conservador mas reaccionário. As escolas subjectivas (para as quais o conteúdo objectivo da lei é determinado e fixado através de um inquérito à «vontade» do legislador histórico) dominam a nossa jurisprudência.

Escreve Karl Engish: «... a teoria subjectivista foi no passado mais frequentemente defendida que a outra (...) De todo em todo, porém, a chamada teoria objectivista da interpretação começou desde há algumas décadas a vir ao de cima, o que aconteceu em transparente paralelismo com o emergir do princípio constitucional e democrático; sob o Nacional-Socialismo houve, por isso, e neste aspecto, um certo regresso, visto o «princípio do chefe» 45 (Fúhrerprinzip) parecer legitimar um método subjectivista de interpretação» (Em Introdução ao Pensamento Jurídico, Manuais Universitários, Fundação Calouste Gulbenkian).

Não valerá a pena, perante V. Exas., Senhores Desembargadores, resumir em detalhe quais os argumentos dos subjectivistas. Não resisto contudo a transcrever uma passagem particularmente sugestiva da citada obra de Engish: «Como acto legislativo, dizem os objectivistas, a lei desprende-se do seu autor e adquire uma existência objectiva. O autor desempenhou o seu papel, agora desaparece e apaga-se por detrás da sua obra. A obra é o texto da lei, a «vontade da lei tornada palavra» o «possível e efectivos conteúdo de pensamento das palavras da lei.» Este conteúdo de pensamento e de vontade imanente à lei é de futuro o único decisivo. Com efeito, só ele se constituiu e legalizou de acordo com a Constituição, ao passo que as representações especulativas do autor da lei, que pairam à sua volta, não obtiveram qualquer espécie de vinculatividade. Ao contrário: como qualquer outro, também aquele que participou no acto legislativo fica, de agora em diante, ele próprio, sujeito à lei. Ele tem que se deixar prender pelas próprias palavras e deixar valer e actuar contra si a vontade expressa na lei. O sentido incorporado na lei pode também ser mais rico do que aquilo que os seus autores pensaram ao realizarem o seu 46 trabalho — quando pensaram sequer logo (...). A própria lei e o seu conteúdo interno não são uma coisa estática como qualquer facto histórico passado (...), mas são algo de vivo e de mutável e são, por isso, capazes de uma adaptação. O sentido da lei logo se modifica pelo facto de ela constituir parte integrante da ordem jurídica global e de, por isso, participar na constante transformação, por força da unidade da ordem jurídica. As novas disposições legais reflectem sobre as antigas o seu sentido e modificam-nas. Mas não é só uma mudança no todo do Direito que arrasta atrás de si, como por simpatia, o Direito preexistente: também o fluir da vida o leva atrás de si. Novos fenómenos técnicos, económicos, sociais, políticos, culturais e morais têm de ser juridicamente apreciados com base nas normas jurídicas preexistentes. Ao ser o Direito obrigado a assumir posição em face de fenómenos e situações que o legislador histórico de maneira nenhuma poderia ter conhecido ou pensado, ele cresce para além de si mesmo».

IV

Que pensarão a nossaá jurisprudência e a nossa doutrina do que acima fica transcrito? Anquilosadas no subjectivismo, prosseguindo a exaustiva pesquisa da inteligência e do legislador — como é comum em situações não-democráticas — a nossa doutrina e a nossa jurisprudência esgotam-se numa 47 espécie de arqueologia do Direito em que os trabalhos preparatórios e as actas da Câmara Corporativa têm papel preponderante. Simultaneamente, a edição do Código Civil de 1967 comentadas por dois subjectivistas proeminentes — e com grandes responsabilidades na respectiva produção — é de certo modo a bíblia dos nossos tribunais.

E o «fluir da vida», Srs. Desembargadores? E as práticas (imprevisíveis) próprias de uma revolução e de um período de rupturas? E o novo corpo de leis (constitucionais e ordinárias) posteriores ao 25 de Abril de 1974? Vamos ignorar a peste porque a medicina não a prevê no catálogo?

Ignorar esse «fluir na vida» — a que o próprio Código Civil de 1966 confere valor jurídico no artigo 3.º —, é o que faz a sentença recorrida. Sejamos porém claros: ao fazê-lo o julgador não praticou um acto neutro e etéreo — recorreu a uma Interpretação conservadora e passadista da lei ordinária, interpretação essa que, como adiante se provará, é inconstitucional.

Aprendamos humildemente — nós todos trabalhadores de Direito — a viver, ao nível de uma praxis que é a nossa, a Democracia e a Revolução. É preciso ousar ler a lei com os olhos com que o povo hoje a lê; não com os olhos com que o legislador histórico a fez.

Regressarei a Karl Engish: «Já por várias vezes» — escreve este autor após ter analisado os argumentos de objectivistas e de subjectivistas — 48 «se tem observado que o juiz que, como servidor de um monarca absoluto aplicava as suas leis, tinha de interpretar segundo métodos subjectivistas, pois que devia indagar da vontade pessoal do senhor do território, já que esta vontade precisamente ... é que era a lei (Reichel). Ideias semelhantes foram defendidas relativamente ao Estado Nacional-Socialista, governado por um chefe (Führerstaat). Num Estado constitucional ou democrático, com divisão de poderes e pluralidade de partidos, as coisas podem apresentar-se sob uma luz diferente. É sem dúvida verdade que a situação constitucional geral tem incidência sobre o entendimento hermenêutico da lei.»

E Karl Engish prossegue com uma observação que para o caso português tem particular sentido e acuidade: «É mesmo possível que, após uma revolução, o método da interpretação seja duplo: um relativamente ao Direito anterior e outro em face do Direito novo. O Direito antigo será, por vezes, adaptado ao novo estado das coisas, criado pela revolução, através duma metódica objectivista; o Direito novo, pelo contrário, será interpretado ponto por ponto segundo a vontade do legislador revolucionário que conquistou o poder.»

Compete exactamente ao julgador, na fase actual do processo histórico em Portugal, interpretar criadora e inteligentemente a lei; corrigindo-lhe os defeitos e integrando-lhes as lacunas — para o que tem aliás o suporte técnico objectivista e actualista 49 dos art.ºs 9.º e 10.º do Código Civil, reforçado pela nova Constituição Política.

V

Em regime democrático, é em torno da Constituição que se articula a questão da interpretação da lei nova e da lei velha; após uma revolução, é em torno da Constituição — entendida esta sobretudo no sentido material — que se conjuga a questão da interpretação da lei herdada do regime anterior e da lei nova.

Os grandes princípios político-sociais progressivamente institucionalizados após o 25 de Abril estão em absoluta contradição com os fundamentos do regime fascista deposto, durante o qual foi produzida a maior parte da legislação ordinária vigente.

As leis constitucionais em vigor entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Abril de 1976 — nomeadamente e sobretudo a Lei 3/74 de 14 de Maio — e a Constituição de 1976 consagram um conjunto de liberdades e direitos e deveres políticos, econômicos, sociais e culturais que estão nos antípodas dos princípios antipopulares da legislação fascista.

No caso vertente — inquilinato e habitação — o facto de se colocar a (nova) «política económica» «ao serviço do Povo Português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas» e o facto de se definir à (nova) «política social» o objectivo de «defesa dos interesses 50 das classes trabalhadoras» (Programa do MFA, Lei 3/74), condicionam a manutenção do direito ordinário anterior. Mais tarde, o artigo 6.º n.º 2 da Lei 5/75, de 14 de Março, atribuiu poderes constituintes ao Conselho Superior da Revolução que no uso de tais poderes e no Plano de Acção Política (PAP) de 21 de Junho de 1975, fixou, como objectivo essencial da Revolução, a Independência Nacional, que passa pela descolonização interna, a conseguir pela construção de uma sociedade socialista, definida como sociedade sem classes. À Constituição de 1976 vem consagrar entre os direitos fundamentais no terreno de que nos ocupamos (artigo 65.º) o direito a «uma habitação de dimensão adequada em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade e a privacidade familiar»; em conformidade, incumbe ao Estado «incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais» e adoptar «uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar.»

Estamos já longe, Senhores Desembargadores, da Constituição de 1933 e do Estatuto do Trabalho Nacional do fascismo que concediam à propriedade um papel sacrossanto, relegando para um plano secundário — ou para a sua pura e simples ausência no espaço das leis fundamentais — os chamados direitos económicos e sociais. A enumeração que o artigo 8.º da Constituição de 1933 fazia dos 51 direitos dos cidadãos não incluía qualquer referência à habitação ...mas consagrava o direito de propriedade.

Sobre a legislação fundamental salazarista foi-se erguendo o instituto do arrendamento urbano, entendido este como um mero corolário do direito de propriedade do locador. A legislação republicana, nomeadamente o Decreto-Lei 5411 de 17/4/1919, que restringia a liberdade contratual nos arrendamentos, fazendo prevalecer as «garantias aos arrendatários, senhorios e sublocatários» sobre a vontade das partes, foi paulatinamente desmantelada, num processo que culminou com a Lei 2030.º e com o Código Civil. E tal aconteceu porque o ordenamento constitucional o permitia e o fomentava.

Neste momento, srs. Desembargadores, a Constituição e a lei ordinária revolucionária revogaram muitas das disposições legais sobre arrendamento e condicionam a interpretação das que estão em vigor, de tal modo que urge proceder à essa interpretação de acordo com os fundamentos da nova ordem constitucional, política e social e de acordo com o «fluir da vida» de que Engish fala.

VI

É preciso interpretar e aplicar a lei (a antiga e a nova) de acordo com os fundamentos da nova ordem constitucional, política e social, disse-se acima. 52 Esses fundamentos, é necessário que se sublinhe, são os fundamentos da própria ordem jurídica e não podem ser indiferentes ao jurista — nem no plano teórico nem no plano prático.

A aplicação da lei assim entendida conduz-nos, em termos abstractos mas sobretudo nos termos concretos do Direito português posteriores à Revolução de 25 de Abril e à entrada em vigor da Constituição de 1976, à questão das lacunas.

O Direito post-revolucionário é necessariamente um imenso mar com poucas ilhas. O legislador português revolucionário não optou (o poder político revolucionário não optou porque as suas características de classe não lho consentiram) pela solução (extrema mas doutrinariamente — e não só — aliciante) do Decreto sobre os Tribunais, aprovado pelo Governo Soviético em 27 de Novembro de 1917: «Os tribunais locais (ou seja, populares) decidem as causas em nome da República Russa e nas suas decisões e sentenças seguem as leis dos governos derrubados apenas na medida em que estas não tenham sido revogadas pela revolução e não se contraponham à consciência revolucionária e à consciência jurídica revolucionária. Nota: consideram-se revogadas todas as leis que se contraponham aos decretos do Comité executivo central do Soviete de deputados operários, soldados e camponeses e do governo operário e camponês, bem como aos programas mínimos do Partido Operário Social Democrata Russo e do Partido Socialista 53 Revolucionário» (citado em Direito e Luta de Classes, de P. Stücka, Editora Centelha, Coimbra).

Se o tivesse feito, o Direito Português seria hoje o Oceano Pacífico e a sua componente legislada meia dúzia de arquipélagos minúsculos e dispersos.

Não foi essa via post-fascista mas nem por isso o problema das lacunas deixa de ter hoje uma premente acuidade.

Interpretando e aplicando a lei antiga de acordo com a nova Constituição ou preenchendo as muitas lacunas que a inconstitucionalidade de um sem número de normas pré-revolucionárias originou, o julgador terá que ter «sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico» (art.º 9.º, n.º 1 do Código Civil).

A indagação em torno da «unidade do sistema jurídico», dos «princípios gerais do Direito», do «espírito da ordem jurídica», etc., é questão que o trabalhador do direito deverá pois de jure constituendo e de jure constituto colocar na sua prática quotidiana. O julgador não pode prender-se à estrita letra da lei, não indagando acerca da hierarquia do Direito legislado, da constitucionalidade das normas a aplicar, da unidade do sistema em que se inserem. Não estará a contribuir para «assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos» (art.º 206.º da Constituição 54 de 1976) o julgador que assim proceder.

Num período post-revolucionário, o sistema jurídico é necessariamente atravessado por contradições em número maior do que em períodos de estabilização política e legislativa — contradições técnicas, contradições normativas, contradições valorativas, contradições teleológicas mas sobretudo contradições de princípios.

Referindo-se a cada um destes tipos de contradições, Engish (ob. cit.) escreve acerca das últimas:

«Por contradições entre princípios, entendo aquelas desarmonias que surgem numa ordem jurídica pelo facto de, na constituição desta, tomarem parte diferentes ideias fundamentais entre as quais se pode estabelecer um conflito (...) Isto vale designadamente para as contradições de princípios entre o Direito antigo e o Direito novo, surgidas após as revoluções. Nos primeiros anos depois do assalto ao poder pelo Nacional-Socialismo, foi vivamente discutido o problema de saber em que medida estava ainda em vigor o Direito da República de Weimar, basicamente contraditório com os novos princípios. Fizeram-se então especiosas exigências metodógicas com vista a arredar o Direito até então vigente. Após a derrocada de 1945, não pôde deixar de surgir uma questão análoga — com o sinal invertido, claro —, qual a de saber se muitas regras jurídicas do «Terceiro Reich» contrárias ao renovado pensamento jurídico humanitáro e 55 próprio do Estado de Direito, teriam deixado de vigorar mesmo sem um acto especial de revogação. Esta questão foi estudada em profundidade, por exemplo no trabalho de Wengler já acima citado, sob a perspectiva metodológica do Direito comparado. Mostrou este autor como duma maneira inteiramente geral, as ordens jurídicas se vêem a cada passo obrigadas a assimilar, a transformar e em parte a eliminar mesmo, sem uma autorização especial, materiais jurídicos estranhos ou tornados estranhos» (os sublinhados são meus).

A questão limite a que este problema das contradições de princípios nos conduz é a da lei injusta — que não é de menosprezar no caso sub-judice.

Continuarei a citar Engish:

«Os actos de legislação dos Estados Totalitários, profundamente perturbantes para todo o jurista por estarem em contradição com as tradicionais concepções do Direito, da justiça e da moral, vieram então tornar particularmente premente a questão da vinculação do juiz às leis injustas. Naturalmente que o próprio legislador nacional-socialista não consentia que o juiz lhe lançasse em rosto a censura de que as suas leis eram injustas e imorais (...) Mas se um sistema totalitário cai por terra, como aconteceu ao Nacional-Socialismo em 1945, nem por isso desaparece a questão de saber se as leis por ele editadas não seriam parcialmente inválidas por ofensivas da ideia do Direito ou da lei moral (...) A questão da invalidade das leis 56 injustas invocada com tanta energia depois de 1945, nunca mais até hoje deixou de ser posta» (Os sublinhados são meus).

A mesma questão é enunciada por Castanheira Neves (in Questão de Facto e Questão de Direito, Livraria Almedina, Coimbra, 1967) do seguinte modo:

«... Para que surja o problema da «lei injusta» é pois evidentemente necessário que sejamos postos perante a exigência de uma opção normativa insusceptível de resolver-se com fundamento apenas no sistema positivo, que o acesso à justiça da decisão esteja impedido pelo sistema positivo, ou que esse acesso só possa pensar-se através de uma fractura que transcendentalmente se imponha ao sistema». E anteriormente escrevera: «O problema da vinculação de uma lei radical e irrecuperavelmente «injusta», ou do dever de obediência a uma norma legalmente positiva que se possa dizer violadora do sentido fundamental do Direito, só virá a pôr-se depois que tenham sido esgotadas todas as possibilidades interpretativas, correctivas e integrativas da hermenêutica jurídica. É o problema da decisão não apenas praeter legem, mas verdadeira e inequivocamente contra legem.»

Será que, no caso sub-judice e similares, esgotadas todas as possibilidades interpretativas e 57 correlativas, fica de pé, face aos princípios constitucionais políticos e sociais vigentes, o carácter «injusto» da legislação sobre arrendamento urbano para habitação herdada do Estado Novo? Sem descermos ao fundo do abismo convém assinalar que lendo o art.º 110.º do Estatuto Judiciário à face do art.º 4.º da anterior Constituição (da 1933) Castanheira Neves entendia já que essa norma constitucional que vinculava o Estado à moral e ao Direito, «terá sempre precedência jurídica e metódica relativamente ao art.º 110.º do Estatuto Judiciário, não podendo ser nunca anulada por este na sua autêntica eficácia normativa, embora sob a capa de um respeito formal, mas prática e normativamente vazio e inexistente».

Essa opinião reforçam-na os artigos 1.º, 2.º, 3.º e 207º da Constituição: o artigo 110.º do Estatuto Judiciário não impõe ao juiz a aplicação de normas inconstitucionais e/ou contrárias aos fundamentos do sistema jurídico — nem lhe impõe a aplicação de normas que face a esses fundamentos (que não apenas à opinião pessoal, às «parecenças» do julgador) sejam «injustas».

VI

Assim, interpretando a lei antiga à face da Constituição nova, preenchendo as lacunas (no caso de entender que a Constituição e a nova ordem política-social revogaram normas do passado) 58 ou recusando-se a aplicar leis herdadas do antigo regime porque injustas (isto é, contrárias à ideia da Justiça e do Direito concordantes com a Democracia, com a Revolução e com à letra e o espírito da Constituição de 1976), o julgador está a reconduzir o texto normativo à «unidade do sistema jurídico». Só assim estará de facto.

No caso sub-judice:

O regime de liberdade contratual no arrendamento, o princípio da prevalência e da prepotência do direito de propriedade (entendido como jus utendi et abutendi) e a concepção do arrendamento para habitação como um contrato intuítu personae não são hoje legítimas, atendendo à unidade do sistema jurídico português. Todo o instituto do arrendamento urbano (Secção VIII, Título II do Livro II do Código Civil de 1966) não pode manter-se em vigência, pelo que, nos termos do artigo 293.º da Constituição de 1976, deverá ser revisto.

Enquanto o legislador ordinário não proceder à revisão do instituto do arrendamento urbano, o julgador (que não pode denegar justiça no direito positivo português como em todos os direitos modernos) só pode tomar uma de três decisões:

O juiz a quo não fez nada disto: julgou com a lei antiga, de acordo com o espirito da constituição antiga.

Urge assim, Senhores Desembargadores, revogar a sentença recorrida, porquanto:

  1. Não é certo que as cláusulas do arrendamento só possam modificar-se por mútuo consentimento. A da transição para o socialismo, para que a Constituição aponta caracteriza-se pela descontratualização das relações sociais (e das jurídicas que as recobrem).

    As já citadas disposições constitucionais (as em vigor até 25 de Abril de 1976 e as a vigorar após essa data) e a ratio legis das novas leis ordinárias na matéria (sobretudo o Decreto-Lei 198-A/75 e o Decreto-Lei 445/74) apontam claramente nesse sentido.

  2. O processo seguido de alteração da renda contratual, através de plenário de moradores e da Comissão de Moradores, deve entender-se, face à omissão da lei, legítima: as Comissões de Moradores representam um ponto alto das aquisições da Revolução; o n.º 2, alínea b) do art.º 65.º da Constituição de 1976 (retomando o disposto no Programa 60 do MFA — Lei 3/75) consagra as «iniciativas das comunidades locais e das populações tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais». O art.º 118.º da Constituição (retomando os princípios constantes do Documento-Guia da Aliança Povo-MFA) confere às «organizações populares de base» o «direito de participar» no «exercício do poder local». Os artigos 264.º e seguintes do texto constitucional concretizam estes princípios.

  3. Os depósitos feitos são liberatórios nos termos do artigo 841.º do Código Civil.

  4. O direito à habitação constitucionalmente consagrado sobrepõe-se a qualquer relação jurídica contratual — quer os Profs. Pires de Lima e Varela citados na sentença recorrida o admitam, no fundo do seu túmulo histórico, quer não.

  5. Se a figura da impossibilidade temporária no cumprimento das obrigações existe no nosso direito positivo (e até esses autores o admitem) por maioria de razão ela tem, (face às actuais disposições constitucionais) aplicação no caso vertente. Essa impossibilidade é um dado objectivo (decorrente, neste caso, da crise do mercado de trabalho — facto público e notório), dado objectivo 61 esse que é referido ao sujeito do direito à habitação — o inquilino pobre, limitando-se a vender a sua força de trabalho. É pois inadequada e pouco curial a opinião constante da sentença recorrida: «só se acabasse no país, o dinheiro, é que surgiria, para ele (inquilino-réu-recorrente) uma impossibilidade de cumprimento» !!!!

  6. Por tudo o que fica dito, não se vislumbra a má-fé do recorrente, nem se vê que o advogado subscritor tenha assumido uma posição contra legem. Pelo contrário, é a decisão recorrida que decidiu contra legem.

VIII

EM CONCLUSÃO:

  1. A sentença recorrida violou o art.º 1093.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil, interpretando esta disposição à luz da ordem constitucional vigente (única interpretação que é legal e legítimo fazer-se).
  2. A sentença recorrida violou o Programa do MFA (disposição B, 6 — alíneas a) e b)), Lei Constitucional 3/74 e art.º 65.º da Constituição de 1976 e de um modo geral todos os princípios constitucionais e a ordem 62 político-social resultante da Revolução de 25 de Abril de 1974.
  3. Nestes termos e nos demais de direito, atentos e ponderados os motivos expostos, deverá revogar-se a sentença recorrida e em consequência ser a acção julgada improcedente e não provada, como é de inteira

    JUSTIÇA !!!

  4. Maio de 1976
    O advogado
    Amadeu Lopes Sabino


Inclusão: 24/04/2020