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O nascimento em meio aos militares da carreira do movimento que se encontra na origem do MFA correspondia à preocupação central de preservar a unidade de um exército violentamente abalado pelo choque da guerra colonial, pelos efeitos perniciosos para seu moral do apelo a numerosos oficiais "milicianos" permeáveis à agitação social e pelas deserções e insubmissões maciças na tropa.
É fácil compreender que esse objetivo implicava, na prática, o respeito da hierarquia militar; por isso mesmo os jovens capitães tomaram oficiais do estado-maior para seus lideres. Mas conservar a unidade do exército significa, também, preservar os interesses fundamentais das classes dominantes (em particular, das classes mais tradicionais), de quem a hierarquia militar é sempre filha e servidora, apesar da inevitável efervescência que a situação social provoca em seus escalões mais baixos; e, por outro lado, implica seja mantido o status quo das influências internacionais no país, membro da OTAN e que precisou de uma séria ajuda dos Estados Unidos para travar a guerra colonial.
Na situação de decomposição avançada do salazarismo, situação em que a burguesia deparava-se com dificílimos problemas de reconversão do império colonial e de reorientação da economia em direção da Europa, e diante do risco de desordens que o movimento anticolonialista e a reconversão do capitalismo português poderiam vir a provocar, urgia um poder forte, E quem mais, fora o exército, era capaz de assegurá-lo, principalmente um exército cuja unidade fosse garantida não obstante todas as comoções da "sociedade civil"? É nisso que reside a convergência objetiva, a conivência (antes de tornar-se aliança aberta) entre os capitães e a burguesia portuguesa e internacional, e é por isso que o 25 de abril foi apenas uma simples "transmissão de poder".
As coisas estavam maduras para a eliminação do salazarismo sem modificar o status quo. Os capitães tinham os indícios seguros disso no “caso Spínola", bem como na tentativa de golpe fracassada que precedeu o 25 de abril. O que levou os capitães a tomar a iniciativa foi a atitude das tropas nas colónias (certos regimentos chegavam até a fazer diretamente acordos com os movimentos de libertação); foram as lutas operárias, cuja curva, ascendente a partir de 68-70, se acelerava bruscamente; foi, de modo mais geral, o medo de que o "povo pegue em armas" (declaração do capitão Maia em maio de 1974), de que "o poder vá às ruas" (declaração de Otelo de Carvalho em abril de 74). É esse o segundo princípio, dialeticamente ligado ao primeiro, que vai determinar a atitude do MFA.
É claro que o status quo, subscrito por todas as forças nacionais (inclusive o oportunismo) e internacionais só poderia ser mantido se não fosse subvertido por nenhum fator "externo", tais como o desenvolvimento da luta das classes exploradas, o movimento de independência nas colónias e a relação de forças interimperialista, fatores esses que se condicionam mutuamente.
Deve ser dito que a política do MFA conseguiu impedir, até o presente momento, que o descontentamento operário e a agitação reivindicatória, bem como a oposição a guerra colonial e, inclusive, o derrotismo da tropa, se transformassem numa luta aberta contra o Estado. Graças ao lacaio PCPista, que elevou a princípio o respeito da "unidade povo-forças armadas” e que jogou com a perspectiva do fim da guerra colonial para concitar os operários à austeridade e à disciplina, condenando as greves como “provocações reacionárias", graças a ele as reações da classe operária foram, no essencial, controladas.
Em todas as peripécias e crises da vida política portuguesa de um ano e meio para cá, as forças reais atuam nos bastidores. A habilidade dos encenadores consistiu em manter — graças à imprensa e à propaganda do MFA e à cumplicidade ativa de oportunismo, inclusive do oportunismo "de esquerda” — os refletores fixados no palco em que essas mesmas forças vão declamar os discursos preparados fora dali e em que as massas são chamadas a entoar em coro odes aos heróis do dia, enquanto que, na vida real, elas são chamadas mas é a "ficarem em casa".
Otelo Saraiva de Carvalho ficará sendo, para sempre, o símbolo dessa revolução farsesca. Ele, que, na realidade, não cessou de procurar a coesão do corpo de oficiais e de temperar o ferro do exército longe da influência das massas, mas que, na cena de teatro, lança apelos bombásticos à revolução e à participação dessas mesmas massas.
Talvez seja um fenómeno em parte inevitável e de que, na embriaguez da queda de um regime odiado, o público, com o gosto deformado por quarenta anos de salazarismo e pela sede de democracia, venha a considerar um dramaturgozinho qualquer como um novo Camões. E o fato de que os adeptos do vanguardismo, fazendo pouco caso das regras da boa crítica, aplaudam a Shakespeare representado pelo regimento de Amadora e tomem por obra dramática o direito de subir ao palco concedido à plateia, dá uma demonstração cabal da inconsistência dos mesmos e da profundidade de seu analfabetismo. É, apesar dos pesares, o que acaba de fazer a "extrema esquerda” portuguesa, menina dos olhos da "extrema esquerda" internacional, ao correr em socorro do MFA e do governo Vasco Gonçalves (os maoístas foram os únicos que não embarcaram na canoa da "frente unitária popular", mas fizeram-no só para pular na galera de Mário Soares e Melo Antunes, pretextando perigo social-fascista!).
Com que fim fizeram-no? Para obterem o engana-vista de uma "assembleia popular nacional" apoiada nas "comissões de trabalhadores e de moradores". Mas fingem não ver que, embora tenham podido inicialmente canalizar reações anti-oportunistas locais, essas comissões não conseguiram elevar-se ao plano da luta geral contra o Estado, quando não caíram no participacionismo. Além disso, calam o fato de que tudo o que pudesse vir a resultar dessa assembleia popular, assim como da assembleia constituinte fantasma, não poderia, nas condições presentes, sair dos marcos de programa do MFA. Em poucas palavras, escondem deliberadamente o fato de que, devido ao jogo do MFA e do oportunismo, bem como à incapacidade da "extrema esquerda", tais comissões tornaram-se um mero elemento decorativo do teatro de Lisboa.
Que vergonha, para aqueles partidos que se dizem pela revolução proletária e pelo internacionalismo, que vergonha apoiar um governo e um movimento que não só estão ligados à hierarquia militar – isto é, ao principal baluarte da sociedade que pretendem abater —, como, ainda por cima, demonstraram abertamente, durante mais de um ano, seu caráter conservador através de medidas antioperárias e do prosseguimento da guerra colonial!
Que triste eficácia, em contrapartida, a do circo do MFA e do oportunismo, apoiado pelo ferro que ainda não precisaram usar, a não ser em alguns casos significativos, como em Setúbal, mas que está pronto para ser utilizado contra o proletariado se este vier a deixar o palco teatral para atuar no teatro da vida, em que, por intermédio do partido, seus interesses imediatos e históricos, locais e internacionais, podem ser ligados!
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O meloso Mário de 74 (que se tornou o amargo Soares de hoje em dia) e seu jogo de cena nas colónias conseguiram preservar ao máximo os interesses de todas as forças desejosas da conservação da ordem na Guiné e em Cabo Verde, bem como em Moçambique, Mas as manobras dessa política criaram, em Angola, diante de um poderoso movimento popular, uma situação inextricável em que reina a maior confusão e em que todas as forcas imperialistas são obrigadas a jogar cada uma sua própria cartada.
Foi o desenvolvimento da situação em Angola que levou a eliminação de Spínola. (A palavra "eliminação" é forte demais, pois o MFA pediu-lhe para ficar, mas Spínola preferiu ficar com as mãos livres, ficar de reserva, para o caso em que…). Foi a agravação dessa situação, o fim da perspectiva de uma Angola "multi-racial", que levou setores inteiros da burguesia a fazerem suas reservas em relação ao MFA. Esses acontecimentos brutais pesaram, sem dúvida alguma, muitíssimo na decisão do MFA de proceder finalmente às nacionalizações. Podemos mesmo avançar a hipótese de que era esta uma das únicas maneiras de preservar algo de sério nas colónias, onde os grupos financeiros tinham suas raízes.
Face a situação confusa em Angola e ao desenvolvimento da crise portuguesa, a Europa, começou, então, a partir de março de 1975, sua chantagem económica, enquanto que os Estados Unidos lançaram mão de sua influência no exército, bem como da chantagem nos Açores (a maior parte dos habitantes da ilha vive nos Estados Unidos e no Canadá) e em Angola, ao ficar patente que o MFA era incapaz de impedir, por intermédio do MPLA, que a delimitação das zonas de influência imperialistas na África fosse posta em questão. No entanto, o MFA e o governo não mediram esforços para fazer com que as potências europeias e os Estados Unidos compreendessem "a complexidade do processo português", para convencer da sua boa fé aqueles que sonham com um Portugal não alinhado mas "cumpridor dos acordos firmados" e respeitador da ordem estabelecida.
É claro como água que se o MFA e o oportunismo tiveram que tomar medidas que atingiam os interesses das classes dominantes (ou melhor, de certas camadas dominantes e não, obviamente, os do capital) e das potências “protetoras” de Portugal, fizeram-no sempre muito a contragosto. E enquanto que, paralelamente a isso, tomaram todas as disposições jurídicas e políticas para amordaçar a classe operária, para pô-la a trabalhar e obrigá-la a aceitar os sacrifícios "impostos” pela crise internacional conjugada com a reconversão e modernização do capitalismo português, não tocaram, porém, em nenhuma das forças devotadas a seus inimigos encarniçados; não tocaram nem na Igreja, nem na grande propriedade, apesar da grotesca farsa da "dinamização cultural", nem — que dúvida! — na instituição militar. (A PIDE era odiada demais e um símbolo demasiado significativo do salazarismo para que não fosse reformada).
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Hoje, os apelos à "restauração da disciplina e da autoridade" fazem-se cada vez mais insistentes no exército. A grande, média e pequena burguesia, presas da crise, não se contentam mais com a esterilização do movimento operários a agitação permanente deve cessar! Aos camponeses desiludidos com as promessas dos militares, descontentes com a falta de uma reforma agrária capaz de compensar a perda do império colonial; às classes médias atingidas pela crise; em suma, às "forças do amor" reunidas em torno da Igreja, a burguesia começa a apontar como culpado de tudo o "projeto revolucionário" de "uma parte do proletariado da região de Lisboa e do Alentejo". Enquanto isso, o "grupo dos nove", que contesta as estruturas e a representatividade dos órgãos do MFA, vai organizando suas forças nacionais, ao mesmo tempo que lança um apelo à Europa, com a cobertura da hierarquia militar.
Se os oficiais do COPCON, por um lado, e a Assembleia do MFA, por outro, não conseguiram até agora porem-se de acordo com Melo Antunes, não foi porque não tivessem tentado, mas principalmente porque esse último insiste em manter suas condições. E ainda hoje (agosto de 75), enquanto o PC considera "a unidade das forças armadas" como condição para a obtenção da harmonia, todo o mundo discute com todo o mundo; o "comunista’* Cunhal discuta com o "so~ cial-democrata" Soaras; o "revolucionário" Vasco Gonçalves discute com o “reacionário" Costa Gomes; o "radical" Otelo de Carvalho, com o "moderado" Melo Antunes. Nesse contexto, a aproximação entre o COPCON e o PC, bem como a "frente unitária popular” do PC e dos grupos "de extrema esquerda", parecem ser muito mais um novo efeito de teatro parlamentar destinado a pressionar o MFA e conseguir um compromisso mais favorável com Melo Antunes e seu aliado Mário Soares (este último tem sempre a necessidade de ser o lacaio de alguém, como a social-democracia exige e a Alemanha recomenda!) do que uma força realmente capaz de opor-se à hierarquia militar, caso continuasse a tendência a reagrupar forças em torno dessa última, através da etapa transitória do "grupo dos nove".
Que valor teria, então, diante de princípio da "unidade das forças armadas", o sonho de um "imperialismo popular", comum a Cunhal, Vasco e Otelo? (Desse sonho, aliás, a "extrema esquerda" nunca se demarcou verdadeiramente, não obstante a diferença das suas apreciações a respeito do papel das forcas armadas. E é essa ausência de demarcação que constitui a base objetiva de todas as armadilhas, como a última — a da frente —, em que caiu maciçamente). Que seria desse sonho diante das intimações de Kissinger para restaurar a ordem, intimações essas que Moscou, conforme quer o "espírito de Helsinqui", não pode deixar de aceitar?
Em todo caso, quer o MFA acabe por desembaraçar-se do lacaio stalinista, sacrificando-o às “forcas do amor” e por aceitar o restabelecimento da ordem no seio das forcas armadas — o que preludiaria o seu envio para fora da cena, para o deposito dos acessórios teatrais quer uma parte de suas forças, em aliança com o oportunismo, se oponha a esse “endurecimento", os golpes que virão serão dirigidos contra a classe operária de Portugal e as massas populares de Angola.
Por culpa do oportunismo, a classe operária foi posta nas condições mais desfavoráveis para aparar esses golpes. Seria ilusório acreditar que o embarque da “extrema esquerda" no trem do "socialismo fardado" poderia desviá-los. Paradoxalmente, o máximo que isso poderia acarretar seria uma passagem mais suave à direita, pois esse embarque paralisaria completamente toda iniciativa operária.
Se, por infelicidade, a farsa portuguesa viesse a se tornar uma nova tragédia proletária, seria inútil vir a inculpar por isso a reação ou o MFA, que não teria sabido respeitar seus compromissos. O oportunismo teria uma responsabilidade esmagadora, tanto o oportunismo stalinista, como o oportunismo de esquerda.
Dos acontecimentos dramáticos que se desenrolam em Lisboa se eleva a exigência de um partido da classe que se coloque resolutamente num terreno anti-oportunista e anti-chauvinista.
(Le Prolétaire, n.º 202, 6-19/9/75)
Inclusão | 25/04/2019 |