L. A. & Cª no meio da revolução

Texto de Maria Mata
Ilustrações de Susana Oliveira


Uma estranha viagem


capa

Conforme tinham combinado na véspera, encontraram-se às oito horas em ponto, com um lanche reforçado para o que desse e viesse, e trazendo todo o dinheiro das suas economias.

O Filipe apareceu muito pálido. Percebia-se pela sua cara que pouco tinha dormido, mas fizera um esforço de memória, e vestira-se com roupa igual à que o irmão trazia na véspera. Sabia-se lá o que iria ainda acontecer! Pelo sim pelo não ...

— Trouxeram tudo? Não se esqueceram de nada? — perguntou a Ana.

— Vamos fazer alguma expedição ao Polo Norte ou quê?

— É verdade, só vamos a Lisboa e logo, voltamos os quatro, nada mais! E só faltamos um dia à escola, Ana! Escusas de olhar para mim com essa cara de má! — dizia o Filipe, muito sério.

— Parece que és parvo! Vamos ou não vamos libertar o teu irmão? — a voz da Ana tinha um tom de censura.

Mal chegaram à estação só tiveram tempo para comprar, à pressa, os bilhetes e apanhar um combóio que se preparava já para partir.

— Que sorte tivemos!

— Onde nos vamos sentar?

— Parece que temos o comboio por nossa conta!

— Mas que estranho! Tantos lugares vazios numa carruagem de segunda!

Sentaram-se enquanto o comboio arrancava. No banco ao lado, um casal de meia idade cochichava.

— Luís! Não achas que as pessoas estão com uma cara esquisita? — segredou Ana.

Noutro banco, ao fundo da carruagem, meia dúzia de passageiros agrupavam-se à volta de um pequeno transistor.

De repente, a senhora que ia no banco do lado, inclinou-se na direcção deles:

— Os vossos pais não vos deviam ter deixado vir a Lisboa hoje!

— Nós já estamos habituados a vir sozinhos — respondeu o Luís, muito educado.

— Mesmo assim — insistia a senhora — se eu fosse à vossa mãe tinha-vos acompanhado ...

— Os nossos pais têm de trabalhar e nós já somos bastante crescidos! — retorquiu a Ana, repontona.

Quando o comboio abrandou viram, com alívio, que estavam em Santa Apolónia e que o casal se levantava, cheio de pressa.

— Então, boa sorte! Tenham muito cuidado! — despediram-se os dois, com uma insistência intrigante.

— Irra! Estes velhotes parece que são bruxos! — resmungou o Filipe mal os viu desaparecer.

— Se calhar está escrito na nossa cara! — e Ana lançou um olhar inquisidor ao vidro da janela, demasiado sujo e embaciado para a poder tranquilizar.

Saíram cá para fora. Na rua não se via ninguém. E nem sinal de eléctricos!

— Ora bem, Belém fica ao pé do rio, portanto, se seguirmos sempre ao lado do rio acabamos por lá ir ter! — disse o Luís.

— Claro! Mas afinal o que é que se está a passar?

— É estranho, parece uma cidade abandonada ... Mete medo!

Mas depressa tiveram a certeza de que qualquer coisa muito estranha estava a acontecer. Mal chegaram ao Terreiro do Paço sentiram-se rodeados por uma quantidade de soldados que os impediram de ir em frente. Formavam um grosso cordão à entrada da Praça e era imenso o burburinho e a agitação.

— Vamos pelas ruas dos lados! São paralelas ao rio, por isso vamos lá dar na mesma! — gritou o Luís, esforçando-se por aparentar uma calma que não sentia.

Aos outros dois parecia-lhes que estavam a viver um sonho. As ruas estreitinhas por onde passavam agora, que costumavam fervilhar de comércio e de gente, estavam completamente desertas e não se via uma loja aberta.

Chegaram ao Cais do Sodré.

— Olha, afinal ainda há eléctricos nesta terra!

— E gente a passar!

— E o mercado está aberto!

— E não há sinais de soldados! Mas afinal o que é que está a acontecer?

— Adormecemos e tivemos os três o mesmo sonho!

— Que disparate! Eram soldados de carne e osso e nós estamos os três bem acordados!

Tomaram um eléctrico que dizia: "Belém". Parecia-lhes que tinham saído de um sonho para a vida real porque os lisboetas aparentavam o ar apressado de todos os dias, transportavam os sacos de compras de sempre, as poucas lojas que havia na avenida estavam abertas e até o movimento dos carros era quase normal.

Saíram do eléctrico precisamente em frente à casa dos Pastéis de Belém.

— Ai que fome que eu tenho! — e a Ana olhou de soslaio para a loja.

— Todos temos fome! Afinal já pouco falta para o meio dia!

— Eu acho é que não temos tempo a perder — comandou de novo o Luís. — Vamo-nos sentar ali, naquele banco, e comemos as sanduíches que trouxemos de casa, enquanto consultamos de novo o mapa.

— Estamos muito perto do tal Largo, não estamos? E se fôssemos já para lá?

— Não achas que, se comermos primeiro, estamos mais fortes para aguentarmos o que nos espera?!

À pressa, enguliram os pães com queijo e fiambre. Apesar de estarem muito esgotados por tantos acontecimentos, não se sentiam cansados. O nervoso e a excitação suplantavam tudo.

"Estou de certeza a sonhar com um filme de aventuras", pensava Ana. "Vou acordar de repente e rir-me de todas estas loucuras"

— Olha, olha, o Largo do Galvão fica aqui pertíssimo! — o Filipe seguia o percurso, com o dedo, no mapa que tinham aberto em cima do banco. — Chegamos num instante!

— Então vamos! — disse a Ana, sem coragem para confessar aos outros que estava com um certo medo.

Subiram umas ruazinhas a pique e foram dar ao Largo.

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O coração do Filipe parecia um tambor a querer saltar-lhe do peito.

O Largo do Galvão era um largo com uma forma esquisitíssima; não era redondo nem quadrado; parecia mais um triângulo muito irregular, bicudo e em declive na direcção do rio. As casas tinham uma aparência modesta; pareciam antigas casas de pescadores. A maior parte delas estavam muito velhas e maltratadas. Pintado num armazém, podia ainda ler-se em grandes letras: "Vinhos e Tabacos" e noutro "Carvão e Petróleo". Parecia que o tempo tinha ali recuado pelo menos uns cinquenta anos.

— Alto lá! — exclamou o Luís. — Mas aqui não há uma única casa que tenha mais de dois andares!

— Parece que tens razão — respondeu-lhe a meia voz, o Filipe, do outro lado do Largo.

Seguia pelo passeio, atento aos números das portas e, de repente, estacou. Tinha chegado à casa número dezoito. Era como as outras, constituída por rés do chão e primeiro andar. As janelas do andar de cima estavam abertas e tinham cobertores e lençóis a arejar. A uma delas assomou uma rapariguita que se pôs a berrar para outra que subia o Largo ajoujada com uma saca de compras:

— A mãe disse para vires depressa senão hoje não há almoço cá em casa!

"Meu Deus", pensou Ana, não sem sentir um certo alívio. "É evidente que nos enganámos! E agora? Onde estará o Filipe?"


Inclusão: 29/04/2020