O Materialismo Histórico em 14 Lições

L. A. Tckeskiss


Lição XII: Direito e Arte do Ponto de Vista Materialista


Nas lições anteriores esclarecemos os fundamentos do materialismo histórico. Agora, tentaremos apontar como se devem explicar fenômenos sociais complexos, pelo método materialista. Tomaremos por isso dois fenômenos sociais diversos, pertencentes ambos à superestrutura da sociedade, diferindo, porem, quanto ao seu conteúdo. Tomaremos o direito por um lado, e a arte por outro, e tentaremos explicá-los segundo o método materialista. As ligações existentes entre o direito, que é uma relação social, e as relações de produção dominantes na sociedade, são evidentes. Estabelecemos, por isso, somente a dependência entre aquelas e estas, para apontar como agem umas sobre as outras. A arte parece estar completamente desligada das relações de produção. Devemos, portanto, ver como pode a arte ser explicada materialisticamente.

Sendo o Estado uma organização da classe dominante, tendo por fim fortalecer e santificar seu poder está claro que o direito de Estado (direito público) tem suas raízes nas relações de classe, existentes na sociedade. Sua dependência das relações de produção e por sua vez da evolução das forças produtivas é manifesta. Um pouco mais complexa é a ligação entre o direito civil e as relações de produção. Explicaremos, portanto, a questão de um modo concreto.

Tomemos um exemplo concreto do direito: o direito de sucessão, e analisemo-lo. Vejamos primeiramente se as formas de sucessão foram sempre as mesmas e se o conceito de sucessão é inato no homem, se brota espontaneamente de seu ser, isto é, se o direito de sucessão nasce de um conceito interno que o homem possui de que seu filho é a continuação de sua existência, do seu “eu” (o ponto de vista de direito natural). Neste caso, se o direito de sucessão tivesse crescido sobre esta base, seria um fenômeno que sempre existiu e que deve existir sempre. Ou então, se o conceito de sucessão é um conceito histórico, isto é, aparecido em certa época e sem ligação com a idéia de continuação da existência dos pais pelos filhos. Neste caso, se o direito de sucessão é um fenômeno histórico, naturalmente não existiu sempre e nem existira.

Se admitirmos que o conceito de sucessão é inato, isto é, que esta ligado á natureza do homem, como poderíamos explicar a diferença entre o direito do primogênito e o dos demais filhos, entre filhos e filhas, ou, entre herdar bens moveis e imóveis? Explicar as variações do direito de sucessão pelas leis internas do espírito humano (a principio esse espírito julgava que só os filhos ou os primogênitos podiam herdar; mais tarde chegou a admitir que também as filhas podem herdar), seria uma pura fantasia. O espírito humano deveria então ser tão multiforme como as próprias formas do direito de sucessão, entre os vários povos e as varias épocas de sua vida cultural, devendo mudar constantemente sua forma de existência. Deve-se procurar então uma solução, para se compreender o fenômeno do direito de sucessão e suas modificações.

Em primeiro lugar é evidente que o direito de sucessão está intimamente ligado ao direito de propriedade, porque o conteúdo daquele nasce deste ultimo. O instituto da propriedade aparece numa certa época da evolução da técnica. Passo a passo com o desenvolvimento das formas de propriedade se desenvolve também o direito de sucessão, com todas as suas modalidades. Se havia, por exemplo, pouca terra, foi-se obrigado a limitar o direito de sucessão de todos os filhos, para não desperdiçar a terra. As mulheres que desempenhavam papel de submissão, sem independência, dependentes de seu marido, não gozavam por isso do direito de sucessão. Na sociedade feudal, quando o senhor feudal era uma espécie de rei em seus domínios, devia ser destacado o primogênito como sucessor principal, e se formou assim todo um sistema de sucessão e uma escala de sucessores.

Cada determinada forma de propriedade, tinha sua forma estabelecida de sucessão. Na sociedade burguesa, podendo a propriedade ser representada em dinheiro, em riqueza fluente, sem ligação com a produção, já assume o direito de sucessão outra forma diversa da sociedade feudal. Portanto: o direito de sucessão é, antes de tudo, dependente do direito de propriedade que é como já sabemos, por sua vez, dependente da evolução da técnica e das relações de produção, que se estabelecem na sociedade. É esse método do materialismo histórico ao observar os múltiplos fenômenos da sociedade. Deve-se ver primeiramente se o fenômeno é constante, eterno, e ver então de que é que depende e o que determina sua própria dependência.

O mesmo acontece quando ás outras formas de direito e a todo o direito civil e criminal.

Mais difícil será explicar as relações entre a arte e a evolução das forças produtivas. Deveremos aqui distinguir primeiramente o lado material da arte e seu conteúdo. As relações entre o lado material da arte e a técnica são evidentes: tomando, por exemplo, a musica, notamos que somente pode existir e se desenvolver sua riqueza e múltiplas formas com a existência e evolução da técnica (instrumentos), porque para a musica são necessários instrumentos musicais; isto quer dizer, em outras palavras, que a própria arte exige também certa técnica. Ela se constrói também sobre o trabalho indireto e sobre a divisão social do trabalho; a forma de trabalho que é aplicada na criação da arte, não obstante ter por finalidade a satisfação das necessidades estéticas do homem, não esta em contradição com o trabalho da satisfação das necessidades vitais, porque paralelamente com o desenvolvimento das necessidades vitais também se desenvolvem as necessidades estéticas.

A questão, porem, é: em que consiste o conteúdo da arte e de que depende?

A arte em geral é certa expressão dos sentimentos humanos - manifestações, aspirações, expressão que deve ser corporificada em certa forma harmônica (forma estética)(1). Esta expressão harmônica – pode tomar a forma de sons, palavras, linhas ou cores – é a arte.

Qual a causa que determina essas expressões harmônicas?

É claro que essas estão em primeiro lugar ligadas ás manifestações e aspirações dos próprios homens. A arte está deste modo intima e profundamente liga á vida, se assim não fosse, ela não expressaria as manifestações e as aspirações dos homens.

Numa sociedade mais desenvolvida terão lugar sentimentos e aspirações diferentes dos de uma sociedade atrasada. Os sentimentos e as aspirações duma classe oprimida não são os de uma classe dominante; e desde que a sociedade deve ser observada como um todo formado de grupos e classes, com psicologias diversas e, consequentemente, com aspirações e sentimentos diversos, o artista somente transmite os sentimentos e aspirações dos que lhe estão mais próximos, com os quais está ligado e convive, ou, em outros termos: dos de seu grupo ou sua classe, É pois, claro que, em diferentes épocas, o conteúdo da arte se modifica de acordo com as mudanças e as alterações das sensações e do papel de vários grupos sociais.

Há, porém, outro fenômeno importante que também deve ser acentuado. A arte só pode ser criada numa sociedade que se acha em certo grau de evolução do trabalho indireto e da divisão social do trabalho. Os próprios artistas a principio não poderão sair do meio daqueles que trabalham sempre para satisfazer suas necessidades vitais; os artistas por isso são recrutados nas camadas sociais que dispõe de mais tempo sendo mais livres e mais despreocupados. Assim, expressarão antes das manifestações, sentimentos e aspirações daqueles entre os quais eles se encontram e com os quais eles convivem e sentem, isto é, da sua camada social. A arte, por esta razão, será naturalmente por seu conteúdo uma arte de classe. Alem disso, a arte servirá não só como expressão harmônica de sentimentos dados na evolução da humanidade, como também poderá fortalecer certas formas da vida social ou para sua modificação, ou ainda, para sua substituição. O conteúdo e caráter da arte ainda mais se ligará aos interesses e exigências da classe que mais se destaca, servindo como meio de fortalecer as posições e as condições sociais em que se encontra. Duma arte inconsciente de classe, ou em outros termos, de arte de certa classe, se transforma ela pela evolução posterior, em consciente arte de classe, isto é, numa arte que serve aos interesses de determinada classe.

Desde que a arte é uma forma de expressões harmônicas, ela terá sempre essa feição, porque sem o elemento de harmonia nunca haverá arte, mas o conteúdo da arte corresponderá, de um lado, ao estado geral da sociedade dada, e, de outro, será ditado pelas condições e aspirações da classe que a destaca.

***

Na primeira fase da evolução humana, na sociedade em que já se destacam chefes, mas onde ainda não há grupos bem diferenciados nem luta, teremos aí uma arte que apresenta ainda, em certo sentido, caráter popular (a Ilíada de Homero e as lendas em geral). Essa arte, cantará os atos heróicos dos chefes amados (dirigentes) e também da massa, entre os quais ainda não existia o abismo entre ricos e pobres (na Rússia foram as “biliné”, lendas que descrevem os atos heróicos das massas). Numa fase posterior da divisão do trabalho, já teremos uma arte de classes dirigentes, que cantará sua vida, lutas e aspirações e que idealizará em certo sentido a ordem existente em dada sociedade. Mas ao mesmo tempo já se pode encontrar em estado embrionário um começo de arte nas classes oprimidas. Essa arte não pode comparar á arte dominante pelo seu conteúdo harmônico, mas já é um reflexo da vida e luta das classes oprimidas (sátiras sobre as classes dominantes, etc.).

Na evolução posterior da sociedade começa a classe dirigente a degenerar, a esfacelar-se; torna-se um elemento parasitário e a arte dos oprimidos começa a se evidenciar e fortalecer-se com elementos novos. Nessa nova arte encontramos sátiras ásperas sobre as formas já velhas e manifestação de certa simpatia para com a nova ordem (operamos aqui no campo literário da arte, por ser mais fácil ilustrar com ela certos momentos).

Devemos notar que lentamente se dá certa evolução no conteúdo dos próprios sentimentos harmônicos. Os sentimentos harmônicos não são constantes, eternos. Nem sempre e em toda parte são sentimentos harmônicos os mesmos (gostos estéticos). Os sentimentos dependem do estado geral da cultura da sociedade dada, com suas imaginações. Mas a principio, é difícil encontrar o conteúdo social da própria estética. Deve-se analisar, aqui, a arte por épocas. Em época de decadência, degeneração e crepúsculo, são os sentimentos harmônicos o reflexo de abatimento moral, pessimismos, melancolias, ascetismo, etc. Em época de renascimento, são contrários aos da época de decadência: exprimem a aspiração de combates e lutas, de gritos de conquista e entusiasmo, etc. Em época de declínio, encontramos a decadência e o romantismo. No que concerne ao conteúdo da arte, a própria descrição e não a sua forma harmônica (estética), está mais intimamente ligada á época dada da evolução social e á classe ou grupo que representa(2).

Podemos, portanto, estabelecer que a arte, refletindo a vida, as aspirações e as idéias de certa classe, tem sua existência completamente lidada á técnica e em sua forma e conteúdo depende do desenvolvimento das relações sociais e deste modo também da evolução das forças produtivas. Entre a arte e as forças produtivas é necessário passar por uma gradação completa de varias fases: forças produtivas, relações de produção, relações sociais, manifestações psicológicas e sua expressão harmônica então, chegaremos à arte.


Notas:

(1) Aqui não nos deteremos na gênese da arte em sua relação com o trabalho. Também não iremos falar do papel dos jogos na origem e desenvolvimento da arte. Isso nos tomaria muito tempo. Queremos somente estabelecer aqui a ligação entre a arte e as relações sociais e deste modo sua dependência da evolução das forças produtivas e das relações de produção. (retornar ao texto)

(2) Tchernichefski tentou explicar a estética em geral do ponto de vista materialista, em certo sentido. Ele escreveu uma dissertação sobre estética na qual demonstrou que o conceito do "belo" depende das condições de vida (o conceito de uma moça bonita não é o mesmo na aldeia ou na cidade, na Rússia ou em Paris). O conteúdo de beleza depende da sociedade em geral e da classe em particular. O mesmo se dá em relação à música e à escultura. (retornar ao texto)

 

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Inclusão 08/04/2010
Última alteração 22/11/2011