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Aqui está também o que explica o mal-estar sentido por mim e por tantos outros ao ouvir apresentar uma inovação em princípio de tal modo criadora como se se resumisse ao "abandono" da ditadura do proletariado. Temia percepcionar na escolha deste termo, totalmente negativo, uma pesada confissão involuntária: como se no fundo nos quiséssemos desembaraçar de uma velha referência doutrinária desagradavelmente embaraçosa, mais do que elaborar com o cuidado requerido uma perspectiva estratégica nova que seria, no entanto, a única capaz de a suprimir ao substitui-la; como se até, talvez, se considerasse muito mais importante a preocupação de eliminar a desvantagem de imagem do PCF, na sua áspera competição político-eleitoral com o Partido Socialista, do que produzir as laboriosas justificações conceptuais de uma decisão que tinha mais que fazer do que contentar "puristas do marxismo"... Em suma, o que esta palavra "abandono" me sussurrava era que, ao tempo de Maurice Thorez e de Waldeck Rochet, com a sua maneira antiquada de citar no momento preciso um texto de Marx ou Lenine, sucedia o tempo de um realismo político resolutamente moderno de mais para ainda acreditar na teoria, no sentido forte da palavra... É por isso que, quando Louis Althusser, encetando publicamente a acusação ao XXII Congresso, tomou a defesa da ditadura do proletariado, proclamando que um conceito não se abandona "como um cão", eu tanto estava em completo desacordo de fundo com ele sobre muitos aspectos, como partilhava a sua crítica metodológica, assim como a sua reivindicação de um debate fundamental, pelo que decidi tomar por mim mesmo, nesse sentido, as iniciativas que estivessem ao meu alcance. Em fins de Abril de 1976, aquando da "Venda do livro marxista", programei um debate público com ele por ocasião da saída ,do seu livro Positions, nas Éditions Sociales - debate posto em causa no último instante por membros da Direcção do Partido presentes na venda, e salvo in extremis pela luz verde que obtive de Georges Marchais quando este chegou. Pouco depois, numa conferência feita no CERM, sobre "Lenine e a passagem pacífica para o socialismo" (depois convertida em artigo publicado pelos Cahiers du communisme), num contexto de novo bastante electrizado, procurei demostrar como era infundado, a despeito dos clichés, invocar Lenine contra a busca de uma via revolucionária que poupasse a violência ditatorial. Quis ir ainda mais longe nesse sentido trabalhando numa publicação mais vasta, mas um secretário do Comité Central travou claramente os meus esforços aplicando-lhes o mais redibitório dos qualificativos que o léxico da direcção possui: eu estava a ser "defensivo"... Quem se preocupa em produzir as justificações teóricas de uma postura política; não estará já, com efeito a admitir a possibilidade de dúvida quanto à sua justeza?
Aquele "defensivo" soou-me um pouco como o "ainda acreditas na filosofia", mas em versão agravada: decididamente, esta direcção, ciosa de fazer verdadeira política viva libertando-se, e com razão, do velho doutrinarismo "marxista-leninista", nada enxergava do núcleo racional arqui-precioso que distraidamente lançava fora juntamente com este. Não, a minha preocupação nada tinha de "defensiva", embora a sua realização fosse ainda muito deficiente, uma vez que pela força das coisas era produzida numa grande solidão de pensamento. E iria ter ainda mais consciência desta imaturidade, quando no ano seguinte escrevi, com François Hincker e Jean Fabre, Les Communistes et l'État, um livro que não foi decretado como defensivo, mas que também não foi recebido lá muito ofensivamente. O XXIII Congresso, em 1979, Congresso de real invenção estratégica diferentemente dos que se lhe seguiram, relançava duplamente a reflexão de alguém como eu, através desse mesmo contraste entre riqueza política e indigência teórica: por um lado, retomando à conta do PCF a sugestiva noção de "socialismo autogestionário" que entretanto, por defeito crónico de aprofundamento, rapidamente iria descambar em fórmula inoperante; por outro, purgando os novos estatutos, com alguma razão, da referência tradicional ao marxismo em geral, para apenas pôr em relevo o "socialismo científico", mas abstendo-se impavidamente de explicitar, por pouco que fosse, o conteúdo de pensamento que sob esta denominação se colocava doravante, no entanto, em destaque - sendo membro da comissão de redacção destes novos estatutos, estava bem colocado para apreciar esta façanha. Alargando então o meu campo de reflexão pessoal ao conjunto deste novo objecto, comecei a entrever, pela minha parte, para que rumo se devia orientar sem dúvida um comunismo do nosso país e do nosso tempo, coisa de que há traços num artigo escrito nos finais de 1982 e publicado na Primavera seguinte por La Pensée: "Em que ponto estamos relativamente ao socialismo científico?".
Mas o obstáculo a qualquer avanço parecia-me cada vez mais residir numa concepção, num funcionamento, num modo de vida do Partido, manifestamente retardatários. Sendo em 1981 o redactor do pequeno colectivo que tinha a seu cargo a redacção do projecto de resolução do XXIV Congresso, senti com vivacidade uma exigência de inovar com ousadia na questão do partido e ao mesmo tempo uma impreparação profunda para o fazer. A maneira como a Direcção ao mais alto nível se acomodava com este estado de coisas surgiu-me pouco a pouco como uma confissão. E o seu tácito "não" a qualquer verdadeiro questionamento neste domínio teve para mim, sem barulho, um efeito decisivo. Não fechava só o círculo de uma indiferença teórica que abrangia, constatava eu, todo o campo das questões fundamentais do famoso, socialismo científico, incluindo a concepção do partido, coisa que já me parecia extravagante. Fazia-me, sobretudo, tomar consciência de que o meu litígio com a direcção ia bem mais longe do que eu supunha. Já que aquela recusa não visava só a minha preocupação teórica em clarificar a situação em que nos encontrávamos do ponto de vista de princípios relativamente ao leninismo em matéria de organização; nessa recusa jogava-se a mais prática e política de todas as paradas: o próprio Partido. Aquele "não" queria dizer que se não queria mudar nele nada de importante. Encontrava-me, deste modo, em relação a uma questão tão nevrálgica, em oposição política à Direcção do Partido. Para mim, era um marco. Até ali, estava tão certo da minha razão no meu contencioso teórico com ela, como continuava interiormente aberto à sua contracrítica. Sendo cada qual contra si próprio o mais bem informado e o mais penetrante dos acusadores, encontrava dez motivos para me dizer: eles é que têm razão, estás a ser picuinhas com os conceitos, não fazes suficientemente "poolítica". Porque, na linguagem oral das altas esferas do Partido há duas palavras "política": só com um "o" para dizer política no sentido corrente, e com dois "oo" para puxar as orelhas a quem se mostrar ingenuamente político a mais -"é preciso fazer poolítica, camarada!". Demasiada teoria filosofante, pouca poolítica a sério: não seria esse exactamente o meu retrato? Durante muito tempo batalhei no partido, albergando no meu íntimo aquela parte de crítico que me impedia de ajuizar negativamente, de modo global, a direcção. Mas com aquela recusa, em minha opinião indefensável, de mexer na questão crucial do Partido - como se se pudesse implementar uma estratégia verdadeiramente nova com um partido à moda antiga -, chegava a minha vez de dar um puxão de orelhas: já não simplesmente por carência nas ideias, mas por imobilismo poolítico... precisamente, e devastador de que maneira! Assim sendo, aquele "não" precipitou em mim uma verdadeira reconversão do meu olhar sobre a direcção: esta fazia pior do que pensar pouquinho, dirigia mal. Portanto, como considerá-la inocente no processo do começo de afundamento histórico do comunismo francês?
Foi este abrir de olhos que, com alguma pugnacidade, a minha intervenção mostrou no Comité Central em Junho de 1984 (cf Anexo III) - e foi a vez da direcção ficar siderada. A minha passagem a uma atitude contestatária de um tipo inédito em que a dissidência de pensamento de modo algum caminhava para uma conspiração oportunista - a única lógica em que a direcção entretanto quis acreditar para a diabolizar - mas, bem pelo contrário, dirigindo-se para a ambição afirmada de tornar inevitável, a prazo, uma grande mudança do partido para melhor, libertava de uma só vez todo o espaço necessário para as necessárias reconsiderações. Era toda a perspectiva do combate comunista que se tornava necessário repensar ousadamente. Neste sentido dei início à preparação e depois à redacção de um livro que tive de abandonar em 1986, não só por falta de tempo, mas também por excesso de dificuldades. A abundância de temas não perdoa, e a incompetência era de molde a desmoralizar o mais resoluto. O crescimento da contestação comunista em sentidos à partida diferentes multiplicava as opções decisivas de orientação. O desenvolvimento espectacular do gorbatchevismo avivava a vontade refundadora, mas agudizava todos os problemas ao mais alto nível. Não seria necessária uma completa inconsciência para se auto-instituir, mesmo que a título exploratório, como determinador de rumos? Contudo, como andava a pensar nisto há mais de uma década, chegava a uma concepção de conjunto que me parecia valer a pena ser submetida à crítica pública. Aliás, vendo acentuar-se o declínio do PCF em todos os domínios, era-se mesmo tomado por um sentimento de urgência. Quando nos inícios de 1990, levei enfim ao que restava das Éditions Sociales, o manuscrito de Communisme, quel second souffle? [Comunismo, que Segundo Fôlego?], pareceu-me ter chegado, não ao fim de um processo de reflexão por essência infindável, mas agora como uma hipótese global de real plausibilidade e fecundidade para dar corpo, para além do processo de desmoronamento do "socialismo real", a um comunismo potencial de nova geração.
[pgs 032_037. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]
Inclusão | 02/08/2002 |