Começar Pelos Fins - A Nova Questão Comunista

Lucien Sève


0 - Considerações prévias


Uma formula armadilha: "o comunismo"

 Este livro não foi escrito para os que encaram os planos de despedimento ditados pela taxa de lucro como uma evidência terrível mas perfeitamente necessária, nem para os que chamam "anti-americanismo" à recusa da hegemonia universal do dólar, do Pentágono e da CIA, que não compreendem o que se pode censurar aos fundos de pensões, que preferem sempre a segunda esquerda à primeira, a terceira à segunda, e assim por diante, até à direita se necessário for - ou seja, os que vêem no capitalismo o fim da história e se resignam. Este livro foi escrito para quem sente estas coisas, e muitas outras semelhantes, de modo bem diferente e que além do mais, fartos das mezinhas políticas amargas e do desalento das noites eleitorais para a esquerda da esquerda, consideram demasiado longa a operação de reabertura em pensamento e em acto das perspectivas do revolucionar social e a isso não se resignam. Na indispensável reconstrução conceptual de um futuro e de um presente de emancipação, não será tempo de começar a fazer com ousadia esboços mais acabados do conjunto? Este livro assume o risco de propor um.

Mas, já que o que está em jogo não poderia ser mais amplo, porquê focalizar o nosso exame na questão comunista? Como se o século do estalinismo não devesse recomendar-nos abstinência quanto ao uso da palavra comunismo. Como se, aliás, uma visão do século XIX, embora genial, pudesse ser de grande pertinência para o século XXI. Como se, para além disso, o estado presente das questões mundiais permitisse atribuir alguma verosimilhança a semelhante utopia. Três verdadeiras e cruciais interrogações, se se quiser hoje abrir uma via plausível para uma transformação maior da sociedade. Interrogações que devemos enfrentar, sem lhes fugir. Na sua tripla dimensão de drama histórico, de herança teórica e de potencial político, não será o comunismo o inevitável ponto de cruzamento de todas as reflexões críticas e antecipadoras, reflexões a fazer para que uma humanidade que se liberta do capitalismo seja de novo um objectivo prático? Contudo, teremos poucas hipóteses de levar a bom termo um reexame sério da questão se não passarmos por uma questão prévia, tão decisiva quão pouco conhecida: a desmontagem da armadilha que nos montaram com esta expressão global de aparência tão inocente, e na realidade tão mistificadora a vários níveis: "o comunismo".

Para bem apreender este extraordinário imbróglio na sua génese, nada melhor que velhos recortes de jornais. Recomendo uma pilha do Le Monde dos últimos dez anos, ou mais ainda - coisa que vai dar corpo ao nosso vinho político. Ocupando-me há pouco das colheitas de 1988 a 1993 de diversos quotidianos e revistas, encontrei precisamente por todo o lado, sob a poeira, os anúncios necrológicos debruados a negro do comunismo. "Agora a coisa está clara: o comunismo morreu";, decretava Robert Maggiori no Libération (19 de Janeiro de 1990), o que abria a agradável possibilidade, segundo ele, de "tratar Marx como um grande filósofo qualquer". Não que "a esperança comunista no sentido filosófico", vivaz desde Platão, seja de natureza a esgotar-se, mas, acrescentava Stéphane Courtois no Panorama (Janeiro de 1993), "já não há qualquer hipótese de ela passar por estas organizações comunistas que chegarão dentro em pouco ao término da sua agonia". Por seu lado, Jacques Julliard, já em Maio de 1988, anunciava no Le Nouvel Observateur este "prognóstico sem apelo: o PCF entrou na sua fase terminab". Só o previdente François Furet no Le Figaro (8 de Setembro de 1990) matizava certos pontos deste anúncio jubilatório, nomeadamente porque a ideia comunista "morre com efeito diante dos nossos olhos, escrevia ele, mas essencialmente sob a forma em que a União Soviética a encarnou desde 1917". Prudência susceptível de nos levar bem longe, mas que no fim de contas não impedia o próprio François Furet de falar do comunismo no passado, dando-se mesmo o prazer de acrescentar que "toda a gente sentiria um pouco a falta do comunismo".

Será que passados dez anos vou procurar o efeito polémico fácil exibindo algumas notórias manifestações da vitalidade do morto: o túmulo do PCF que continua vazio, resultados eleitorais estabilizados, e até em ascensão em mais do que um dos partidos que persistem em querer ser, ou mesmo intitular-se comunistas, da Europa meridional à Escandinávia, passando por Berlim e pela Alemanha Oriental, da África do Sul à Índia e ao Japão? Ou ainda, a propósito do 150º aniversário do Manifesto Comunista, exibindo as múltiplas retomas da investigação crítica e prospectiva sobre o que pode ser no nosso tempo uma superação do , capitalismo? Seria legítimo, sem dúvida; bom método é que não seria. Seria, antes, opor um tratamento não menos superficial da conjuntura de hoje aos prematuros prognósticos baseados na conjuntura de ontem. Tudo o que se pode dizer a partir da constatação actual das coisas é que os gatos-pingados do comunismo se precipitaram outrora um pouco nos seus bombásticos anúncios, coisa sobre a qual não parece que tenham reflectido muito até agora. Dito isto, em que pé estará o Partido Comunista Francês daqui a dez anos? Terá fracassado em travar um declínio que o conduzia a não ser mais que um grupúsculo, ou, pelo contrário, ter-se-á metamorfoseado numa força política que relança de uma maneira nova a sua trajectória? Sobre isto, só sei que nada sei - embora tenha, claro está, as minhas conjecturas e as minhas esperanças - e também sei que ninguém sabe. Actuando como se o soubessem de ciência certa, os nossos futurólogos permitiram sobretudo entrever aquilo que amarra o seu saber à ideologia. Mais uma razão para não lhes responder ideologicamente.

Sobretudo, convenhamos que ficando-nos por aqui, escamotearíamos o próprio fundo da questão, já que existe um diagnóstico histórico por debaixo do prognóstico político. Movendo-se rapidamente do primeiro para o segundo, é evidente que, quer Furet quer Courtois, tomaram depressa demais os seus desejos por realidades. Mas será que alguém acredita que este erro retira algo de essencial às impressionantes súmulas histórico-críticas que produziram anos mais tarde, isto é, ontem, como provas do seu veredicto - O Passado de uma Ilusão, O Livro Negro do Comunismo? Tais trabalhos não se refutam com recortes de imprensa. O seu objecto é muito simplesmente a gesta do século XX que mais acusatória é para qualquer quimera: dos entusiasmos nascidos da Revolução de Outubro de 1917, passando pelos horrores do estalinismo, até à glauca bancarrota final daquilo que podia ter sido vivido como a aurora de um mundo melhor. Deste modo, a questão é muito diferente de se saber se é ainda verosímil esta ou aquela formação que conserva a etiqueta comunista; o problema está em questionarmo-nos com profundidade se aquilo a que se chama o comunismo pode ter a audácia de se propor de novo para pensar a história e mudar o mundo. Antes de responder, admitam avaliar plenamente o que o desqualificou: eis aqui, no fim de contas, a interpelação dirigida não só a quem se diz e sempre se quis comunista, mas também à grande multidão daquelas e daqueles que, no despojamento teórico de hoje, se interrogam sobre o nosso futuro como humanidade.

Este é o ponto de partida da questão que aqui me ocupa. Ela é demasiado grave para que não se procure verificar com cuidado, antes de a discutir, os termos em que a colocam François Furet em Le Passé d' une illusion - Essai sur [' idée communiste au vingtieme siecle (Laffont, 1995) [O Passado de uma Ilusão - Ensaio sobre a ideia comunista no século vinte], ou Stéphane Courtois e seus pares em Le Livre noir du communisme - Crimes, terreur, répression (Laffont, 1997) [O Livro Negro do Comunismo - Crimes, terror, repressão]. Considero aqui estes livros não no seu conteúdo histórico pormenorizado, sobre o que já muito foi escrito, mas no seu processo argumentativo de conjunto. E relevo, a propósito, uma característica comum de que os seus autores parecem não ter consciência, enquanto que para um leitor como eu ela se torna surpreendente e de tais consequências que não deixa dúvidas sobre a totalidade da empreitada. Esta característica consiste na utilização abertamente sincrética e infraconceptual que fazem do próprio termo que pretende dar um sentido a toda a sua argumentação: "o comunismo".

Tomemos como exemplo o livro de Furet. O seu objecto declarado é o que ele chama "a ilusão comunista", isto é, efectivamente, o nascimento, o apogeu e a morte do "mito da União Soviética" (p. 709, ed. fr.). Ora, o autor procede como se o tratamento histórico-crítico deste objecto limitado o autorizasse ipso facto a tirar conclusões sem limites sobre "o comunismo" no sentido mais abrangente da palavra. Através de uma frequente liberdade de linguagem -e, à sucapa, de pensamento - de que em parte alguma é dada uma justificação, o facto, por exemplo, de países do Leste passarem depois da guerra para o campo soviético é descrito do seguinte modo: "A ideia comunista é senhora de toda uma parte da Europa" (p. 645, ed. fr., sublinhado meu); do facto de os serviços secretos estalinistas estarem muito activos nos Estados Unidos nos anos cinquenta, dir-se-á: "A conspiração é uma das faces do comunismo" (p. 692, ed. fr.). De análises muito pontuais arroga-se o pleno direito de apresentar "o comunismo" como uma "crença" (p.198, ed. fr.), um "licor particularmente forte em teor ideológico" (p. 210, ed. fr.), uma "alienação" (p. 200, ed. fr.), e assim sucessivamente. Nesta súmula de oitocentas páginas, só uma fórmula da mesma massa é rejeitada pelo autor como mistificadora: "O comunismo ganhou a guerra" (p. 570, ed. fr.): isso é que não, isso é uma "ilusão"... Em eco longínquo - e, acrescente-se, trivial - a "construção especulativa" hegeliana cujo mistério Marx elucidou, "o comunismo" vê-se aqui promovido ao estatuto de Ideia, aliás por demais conhecida para ser minimamente definida -"Procuro menos analisar conceitos do que fazer reviver uma sensibilidade e opiniões", anuncia, não sem ousadia, Furet (p. 28, ed. fr.), tendo em consideração a amplitude das conclusões conceptuais que pretende estabelecer - Ideia à qual seriam imediatamente imputáveis, como atributos universalmente necessários, os piores avatares da história singular em que se entrincheira.

Postulando por exemplo como evidente que os crimes estalinistas são crimes de um regime "comunista", conclui-se através de uma simples substantificação do adjectivo que "o comunismo" - portanto o que Khrutchev ou Ho Chi Min, Pablo Neruda ou Waldeck Rochet podem também representar - é, em si mesmo, criminoso -"Hitler é o irmão tardio de Lenine", ousa escrever Furet (p. 339, ed. fr.) - o comunismo é ainda "fanático", "totalitário", "apocalíptico"... de modo que uma obra de que o autor faz questão de sublinhar no início que não é de maneira alguma uma "história do comunismo" (p. 13, ed. fr.), nem do "movimento comunista", nem do pensamento comunista (e muito menos ainda, acrescentaria eu, das suas formas actuais), mas a de um objecto passado, muito mais circunscrito, acaba, no entanto, por concluir em tom que não admite qualquer objecção que "o que morreu sob os nossos olhos, com a União Soviética de Gorbatchev, engloba todas as versões do comunismo", que "o comunismo" está "condenado pela história a desaparecer a pique", e de maneira ainda muito mais alargada, que "a ideia de uma outra sociedade se tornou quase impossível de pensar": "A história volta a ser aquele túnel em cuja obscuridade o homem se embrenha, sem saber onde conduzem as suas acções, na incerteza do seu destino, desapossado da ilusória segurança de uma "ciência" da sua acção" (pp. 807, 808, ed. fr.).

Esta maneira quase mágica de, sem mais, pôr à conta da entidade geral "comunismo" as conclusões de análises históricas específicas encontra-se de modo idêntico na introdução e conclusão do Livro Negro de Stéphane. Courtois: "crimes", escreveu por exemplo, logo no início, "o comunismo cometeu imensos" (p. 13, ed. fr., sublinhado meu). Esta atitude é hoje tranquilamente dominante na ideologia política em vigor. Do mesmo modo, Claude Lefort, apesar de criticar a atitude de Furet, a ponto de evocar os seus aspectos especulativos, não deixa no entanto de subintitular "Retour sur le comunisme" o seu livro La Complication (Fayard, 1999) - cujo campo é igualmente muito limitado - e tira logo na primeira frase a conclusão que deveria em princípio ser demonstrada: "O comunismo pertence ao passado..." (p. 5, ed. ,fr., sublinhado meu). Depois disto, não veremos nós as coisas a uma outra luz? É certo que o carácter controverso do prognóstico político da morte do comunismo nada retira ao formidável peso do diagnóstico histórico invocado. Embora o presente livro não tenha por objecto um debate sobre esse diagnóstico, direi apenas, se é que é necessário, que não lhe contesto o grau de gravidade, nem, por conseguinte, a obrigação dura e durável que tem de se confrontar com ele quem persevera em situar-se numa perspectiva comunista. Mas agora é claro que o prognóstico avançado pelos nossos autores não é um erro independente do seu diagnóstico: pelo contrário, é o seu corolário directo, dado que este diagnóstico consiste precisamente em pronunciar doravante a irrevogável caducidade de qualquer forma de comunismo. E como é enorme o hiato entre a amplitude desta asserção inicial e os limites dos seus considerandos reais, vê-se bem que a conclusão política precede na realidade a sua suposta demonstração histórica.

Aos autores destes estudos histórico-críticos diremos que podem, sem dúvida alguma, tirar conclusões mais ou menos esmagadoras sobre o que foi o "mundo comunista", isto para aceitar muito provisoriamente esta formulação já em si mesma mistificadora, como se verá; mas daí a crerem-se autorizados a julgar e condenar implicitamente em bloco realidades tão diversas como o papel do PCF na Frente Popular ou o conteúdo de pensamento dos Cadernos da Prisão, de Gramsci, o combate anti-apartheid dos comunistas sul-africanos ou a figura do Che, a Primavera de Praga ou o actual esforço de refundação comunista iniciado em tantos países, e centenas de outras coisas da mesma ordem que também constituem "o comunismo", digo-vos tranquilamente que isso não, não o podem fazer. E mais: esforçarem-se por criminalizar de maneira genérica uma implicação militante na história, que em alguns países capitalistas como o nosso consistiu na sua maior parte ao longo de todo o século - e ainda hoje consiste - em combater com abnegação políticas humanamente escandalosas, e por mais do que uma vez criminosas, eis o que a meus olhos não é motivo de orgulho. Sem negar às vossas obras um certo valor científico, constato que estão profundamente penetradas de ideologia, partindo, sem o dizer, de uma pré-noção, eminentemente contestável, do que quereis chamar "o comunismo", e que esta pré-noção não criticada e muito criticável surge, para quem lê com atenção, como a chave dos vossos trabalhos, desde a divisão do objecto até às vossas liberdades de linguagem, passando pelo vosso modo de tratamento da matéria histórica.

Logo que acabei de escrever isto, uma dúvida me assaltou: não seria excessiva esta querela de vocabulário sobre "o comunismo"? Qualquer que seja a nossa visão da história, o modelo soviético de regime, o totalitarismo estalinista, não terão estado no próprio cerne do fenómeno comunista? E não terão imprimido a sua marca em todos os seus aspectos, a tal ponto que assiste o direito de dizer: na realidade dos factos, isto é "o comunismo"? Pois bem, não o creio; não exagero se falo aqui de fraude intelectual; e se dúvidas houver, reforcemos a demonstração. Não contesto naturalmente que, directa ou indirectamente, o estalinismo marcou profundamente todos os aspectos do facto comunista que regeu: a revisitação crítica desta marca está mesmo, como se verá, na base deste livro. No entanto esta palavra amalgamante, "o comunismo", para a qual tudo se remete, embora se evite cuidadosamente defini-la, não tem aqui outra função a não ser a de organizar a amálgama entre as muito diferentes ordens de realidade que ela conota e a de permitir passar as graves conclusões que, com justeza, se tiram sobre certas realidades para outras realidades que assim se evita estudar - quer seja a obra tão diversa dos partidos comunistas no poder, ou o contributo tão marcante de forças comunistas na oposição - quando o seu estudo poderia muito bem levar a contradizer radicalmente estas conclusões. Focando o olhar sobre a "tragédia soviética" (cf o livro de Martin Malia, La Tragédie soviétique (Le Seuil, 1995) [A Tragédia Soviética] e atribuindo, em tom de evidência, a autoria desta "ao comunismo", quer Furet quer Courtois reduzem sem dificuldades este último a uma realidade intrinsecamente trágica, através da qual sairia desqualificado quem pretendesse considerá-lo de outro modo. Aí reside a brutal simplificação do problema sobre o qual Claude Lefort nada diz em La Complication. [A Complicação].

E assim o veredicto político adquire miraculosamente a consistência de uma constatação histórica. Basta proceder como se "o comunismo" tivesse por conteúdo exclusivo, na sua essência, o que não só deixou nele de viver mas ainda mereceu, de certo modo, morrer. E aqui está a definição escamoteada que, quer Furet quer Courtois, tacitamente pressupõem: "o comunismo" é essa utopia de um futuro que pertence irrevogavelmente ao passado. Por isso, não tem futuro... "Quod erat demonstrandum"! Como escreve Furet no seu prefácio, "o comunismo (...) acaba numa espécie de nada" (p. 9, ed. fr.) - e não admira: eliminaram-lhe, por construção, o ser vivaz. Mas com isso eliminaram-lhe também os problemas mais verdadeiros: por debaixo do exagero polémico irrompe a indigência crítica. É que, fazendo depender toda a análise desta entidade indefinida que é "o comunismo", fica-se cego para as questões nascidas precisamente da sua definição real. Assim, a União Soviética nunca se apresentou a si própria, aliás como nenhum outro país do "campo comunista", como uma formação social comunista, mas tão-só socialista, distinção terminológica que abrange enormes diferenças sociopolíticas. E como compreender, precisamente, que após mais de meio século "de edificação do socialismo, a URSS de Krutchev e depois de Brejnev não tenha por fim passado ao comunismo? Uma simples questão como esta, totalmente oculta pelo recurso sem rigor a esta "noção onde tudo cabe" que é "o comunismo", pode conduzir a uma interrogação infinitamente mais fecunda do que toda a conversa anticomunista convencional. Não será também algo de muito enigmático que se tenha podido tirar do Manifesto Comunista a doutrina classicamente denominada "socialismo científico"? Pura questão de palavras? Expliquem-me então, se me é permitido aqui invocar uma experiência pessoal, por que é que, quando nos finais dos anos oitenta lutei no Comité Central do PCF para contestar nos seus fundamentos o objectivo oficial do "socialismo à francesa", valorizando vigorosamente aquilo a que chamei o "desígnio comunista", fui objecto de tantas recusas veementemente acompanhadas das mais ofensivas acusações? Quando vejo um homem como François Furet, outrora membro efémero do PCF e agora historiador de talento com uma enorme erudição na sua área, passar, sem sequer os notar, por cima dos problemas cruciais implicados neste tandem semântico socialismo/comunismo, como poderia eu deixar de concluir que ele terá, apesar de tudo, permanecido terrivelmente exterior aos problemas vivos do comunismo sem aspas? Em suma, toda a função desta indefensável maneira de tratar o estalinismo, chamando-lhe "o comunismo" sem pestanejar, consiste em esconder onde se situa aquilo a que chamarei a nova questão comunista, exactamente aquela a que é consagrada a obra que se irá ler. Isto porque a unidade nominal da questão comunista cobre na verdade dois temas de reflexão intimamente conexos, mas muito diferentes: a questão retrospectiva do que foi, nas suas múltiplas dimensões, aquilo a que confusamente se costumou chamar no século XX "o comunismo" - conjunto de onde são muito selectivamente retirados os objectos de que O Passado de uma ilusão ou O Livro Negro do Comunismo se ocupam -, e a questão prospectiva do que pode ser nas suas diferenças profundas um comunismo do século XXI - exactamente aquela de que nos vamos ocupar. Questões intimamente conexas, e nos dois sentidos, uma vez que uma muito bem informada e meditada avaliação crítica do "comunismo" de ontem é propedêutica indispensável para qualquer esboço plausível de um comunismo de hoje - é com este espírito que insiro no Anexo I deste volume observações críticas sobre o Lénine de Hélene Carrere d'Encausse (Fayard, 1998), e que se estendem de seguida a certas teses de Nicolas Werth sobre o mesmo Lenine - esboço de um novo desígnio comunista de que as dificuldades encontradas apontam por sua vez o que deve ser de novo questionado com mais acuidade na experiência anterior. Todavia, são simultaneamente questões muito diferentes, até pelo estado em que se encontram, dado que a primeira nos remete para uma matéria histórica imensa de que trata uma literatura não menos imensa, embora também muito insuficiente sob vários aspectos; na segunda é pelo contrário impressionante o contraste entre tantos problemas da mais alta importância e a ainda raridade das elaborações prospectivas de grande alcance nas quais se possa confiar para enfrentar esses problemas.

Porque há que ter consciência da tarefa que corresponde àquilo a que chamo a nova questão comunista: quase tudo o que nasceu de 1917 desapareceu; dissolveu-se um grande número de forças comunistas; a própria confiança dos comunistas no comunismo está corroída pelas dúvidas; O estalinismo será para sempre um selo de infâmia; o leni- nismo está para julgamento; o próprio Marx foi, em parte, encerrado para inventário; aliás, já nem estamos literalmente no mesmo mundo: as classes já não são as mesmas, os homens não são os mesmos, os conceitos já nada têm a ver com os nossos conceitos...

Sendo assim, vá-se lá pensar com amplitude e firmeza de vistas o conteúdo global de um Manifesto Comunista para o próximo século!

Limitem a ambição, deixem de lado o pormenor. Expliquem-nos só em que pé estamos com a história, em que é que o comunismo é um processo mais do que nunca na ordem do dia, de que modo ele será radicalmente diferente do que vimos no século XX, de que maneira se pode avançar desde já nesta direcção, e o que é preciso fazer urgentemente para arrancar em grande com a coisa... Será que estou mesmo metido na escrita de uma obra que se propõe um tal programa? Custa-me a acreditar. Para ser franco, mais do que me pôr a escrever, leria com enorme interesse um livro que fosse escrito por alguém muito mais versado do que eu em história, sociologia, economia, ciência política, e ainda vários outros domínios... Mas, estando todos, aparentemente, neste tipo de atitude, que possibilidades haveria de serem escritos os esboços do livro com que sonho e de que estou seguro que temos uma gritante necessidade, até mais do que aquela que sentimos?

Ao dizer isto não perco de vista o contributo, para quem quer reflectir sobre a nova questão comunista, de livros tão diversos como Une certaine idée du communisme, de Denis Berger e Henri Maler (Éditions du Félin, 1999) [Uma Certa ideia do Comunismo], cujo primeiro objecto consistia em dar uma réplica de fundo (e de maneira aperitiva) a François Furet, ou ainda Communisme, un nouveau project, de Robert Hue (Stock, 1999) [Comunismo, um Novo Projecto], que diz com calor o que são, a seu ver, as áreas de trabalho essenciais para uma superação do capitalismo, ou ainda Le Communisme, autrement, de Roger Martelli (Syllepse, 1998) [Comu- nismo, de Outro Modo], cujo conteúdo crítico e prospectivo está tão próximo do que eu próprio penso sobre o tema anunciado pelo título. A que acrescento tudo o que as nossas reflexões devem às elaborações colectivas que começam a multiplicar-se em diversos locais: dos congressos e seminários da Actuel Marx, até aos dossiers da "Fondation Copernic", passando pelas análises plurais de Futurs, pelas mesas-redondas de Regards, os contributos da Attac ou as iniciativas de Espaces Marx. Todavia, parece-me que há qualquer coisa de absolutamente essencial que fica em grande parte por pensar, se trabalhamos, como é desde longa data o meu caso, para re-constituir teoricamente ,um desígnio comunista do nosso tempo. A meu ver, essa qualquer coisa é, para além de qualquer conteúdo programático algo pormenorizado, o conjunto coerente de tal desígnio, dos conceitos estruturantes que mobiliza e, ainda mais a montante, dos considerandos primordiais que ele pressupõe. Investigação de certo modo erudita, mas de que o essencial deve ser dito em linguagem de todos, para fazer frente a esta pergunta que todos se põem: que pode significar hoje a palavra comunismo, na sua dupla acepção de combate político presente e de forma social futura? Convenhamos que está ainda por fazer um difícil trabalho que possa propor uma resposta simples para esta simples e premente questão.

Assim, lancei-me à água para nadar à minha maneira de filósofo. Isto significa que a única coisa de que me vou ocupar aqui de uma ponta à outra é do sentido claramente pronunciado de que deverá preencher-se no século XXI a palavra comunismo, que muitos desejariam tornar completamente impronunciável. É claro que, não sendo o universal outra coisa senão o singular coniderado na sua essência, tocaremos forçosamente, durante o nosso percurso, em temas específicos tão desmesurados quanto o mercado e a propriedade, o trabalho e o indivíduo, o Estado e a política...

Mas previno o leitor: estas realidades não ficarão com contornos muito mais precisos - serão até talvez mais discutivelmente tratadas - do que as pessoas e as árvores dos desenhos de arquitecto. É que não é esse o objecto do livro - sem o que nem sequer teria certamente começado a redigi-lo. O seu único propósito, insistamos, é a hipotética consistência geral de um projecto comunista renovado, tal como a ele nos conduzem ao mesmo tempo as experiências terríveis do século XX e as exigências fabulosas do século XXI, vistas na óptica revolucionária de Marx em todo o seu vigor e o seu rigor. Por isso, não se trata de fazer avançar dossiers, mas de fazer com que os que não desistem da transformação social profunda reencontrem pontos de referência: é esta a sua finalidade. E como a essencial liberdade crítica que se oferece ao leitor, face aos pontos de referência que se lhe propõem, depende também dos pontos de que dispõe para situar a demarche própria do autor, não receio aqui e ali referir algumas experiências políticas pessoais, por vezes ásperas, mas que pouco contam na concepção renovada de comunismo para a qual me orientei. É por isso que ao ler este livro se sentirá certamente, não o nego, mais o calor de uma exortação do que a frieza de uma tese.

Abril-Setembro de 1999

[pgs 009_022. "Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. campo.letras@mail.telepac.pt]


Inclusão 02/08/2002