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Primeira Edição: Política Operária nº 105, Mai-Jun 2006
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
O “marxista-leninista” Gastaud concebe o socialismo como um regime de tipo napoleónico. Temos que lhe dizer que esse programa não serve ao proletariado.
Já aqui nos referimos ao encontro “Civilização ou barbárie”, que teve lugar em Serpa e Moura, em Setembro de 2004, por iniciativa do site resistir.info e da revista Vértice. Teve aí destaque uma comunicação de Georges Gastaud, antigo dirigente local do PCF, agora animador do Pólo de Renascimento Comunista em França(1). Pela ambição globalizante das suas análises e pela energia com que defende as suas convicções, Gastaud é tido como ideólogo da corrente comunista em que se insere o PCP, pelo que vale a pena comentar os seus conceitos. Sobretudo para ver como aparentes coincidências de pontos de vista na área da esquerda podem esconder divergências de fundo.
O capitalismo, entrado “na sua fase senil e exterminista”, afirma Gastaud, tem que ser enfrentado com “um combate de classe e uma resistência popular”, capazes de “romper a cadeia do imperialismo num ou em vários países para se orientar abertamente para o socialismo”. “É preciso restituir à classe trabalhadora o seu papel político dirigente no movimento social”, porque nos esperam confrontos de classe muito duros, que os chamados “altermundialistas” e altereuropeístas”, com a sua utopia de uma mundialização capitalista “de rosto humano” ou de uma Europa imperialista “socialmente regulada”, mostram não compreender.
Defensor do “não” a esta ou qualquer outra Constituição Europeia, Gastaud critica certeiramente a Confederação Europeia de Sindicatos e o Partido da Esquerda Europeia como “cartéis social-democratas e europeístas”. Fustigando a “fúria de autoliquidação dos partidos comunistas”, a “obsessão antileninista”, o “marxismo universitário bem comportado e castrado” e a “acção de criminalização do comunismo a que se prestam tantos pseudocomunistas”, proclama com toda a razão que “é preciso não menos comunismo, mas mais e melhor comunismo, mais mar xismo-leninismo e mobilização proletária”, mais internacionalismo proletário, mais apoio às insurreições populares do Iraque, Palestina, Colômbia, etc.
Tudo excelente até aqui. A tal ponto que quase nos perguntamos se há de facto razões sérias que nos impeçam de alinhar na corrente a que Gastaud pertence.
Mas quando Gastaud tenta explicar o desaparecimento da União Soviética apercebemo-nos de que a sua concepção de socialismo e o objectivo da sua luta são inteiramente diferentes dos nossos.
Gastaud parte da convicção (ainda hoje muito difundida) de que na URSS dos anos 30 se estava a “construir o socialismo”. Em sua opinião, a “hipertrofia do Estado” e os “graves desvios” burocráticos e policiais do tempo de Staline não impediam a “manutenção e o desenvolvimento do socialismo”, patente na industrialização, planificação, pleno emprego, cultura, conquista do espaço… O erro da direcção do PCUS teria sido não ter promovido depois de Staline um “incremento mais vasto da democracia socialista” e o “reforço dos sovietes” e, em vez disso, ter entrado na via da capitulação perante o imperialismo.
Há aqui uma tremenda mistificação. A tese do “socialismo manchado por desvios e erros” só se sustenta na medida em que se faça tábua rasa das relações de classe que serviam de base ao regime da União Soviética. Entusiasmados com as grandiosas realizações económicas da URSS, com a sua política externa anti-imperialista, com o seu papel na luta contra o nazismo, com o título de comunista do partido no poder, estes admiradores da antiga URSS não se perguntam se alguma vez o socialismo pode ser compatível com o facto de a população trabalhadora “soviética” estar privada do controle do poder, de liberdade de expressão e de organização, e ser explorada por uma camada dirigente arvorada em sua representante e tutora.
Se a URSS foi de facto um tipo de sociedade original, avançada em muitos aspectos devido à sua origem revolucionária, e que durante décadas causou sérios embaraços ao imperialismo, essas originalidades têm que ser explicadas por outra forma, não apelidando-a de socialista.
Tentando responder a estas objecções, Gastaud adianta o seu “contributo teórico” — que é uma confissão preciosa daquilo que a maioria dos “ortodoxos” pensam sem o dizer. O socialismo, escreve ele, é um regime que “funciona ‘com consciência’” e no qual “o papel das direcções e dos partidos é incomparavelmente mais forte do que nos modos de produção anteriores” (p. 214, sublinhado meu). Assim, na URSS havia “ditadura do proletariado”… mas esta era exercida por intermédio do partido e dos seus líderes supremos — que eram a verdadeira “consciência” das massas e que, naturalmente, estavam sujeitos a cometer “desvios e erros”…
A partir daqui, já não há nada de extraordinário no facto de a “segunda revolução” de Staline ter instaurado, pela força, o socialismo numa sociedade de capitalismo atrasado, esmagadoramente camponesa. Gastaud acredita que a “liberdade humana” e a “natureza dialéctica das determinações históricas” permitem tais saltos. Logicamente: basta dotar o proletariado com uma “direcção forte”…
Na concepção autocrática de Gastaud, o socialismo surge pois através da modernização económica promovida por uma direcção todo-poderosa, se necessário à custa de mão dura sobre as massas populares. E não apenas na situação particular da Rússia e da China, onde havia um grande atraso económico, mas como lei geral, visto que, para ele, o socialismo se define pelo “papel incomparavelmente mais forte das direcções e dos partidos”.
Isto diz tudo sobre a ideologia de Gastaud — a qual, observe-se de passagem, já nada tem de comum com a dos stalinistas que ele tanto admira. Porque, se os stalinistas foram arrastados, no entrechocar brutal da luta de classes interna e da agressão imperialista, a abdicar das suas convicções revolucionárias iniciais e a justificar o capitalismo de Estado e o seu regime despótico como o “socialismo” possível, nos dias de hoje, pretender copiar essa lógica para a Europa imperialista, onde as relações capitalistas e a proletarização da massa da população chegam ao auge, indica interesses de classe inteiramente diferentes.
O sonho “socialista” de Gastaud exprime a ânsia da democracia pequeno-burguesa, em busca de uma saída controlada para a catástrofe em que ameaça mergulhar-nos o capitalismo agonizante: um “socialismo” pela mera estatização da economia sob direcção férrea dum corpo de burocratas e tecnocratas; um capitalismo de Estado travestido de “socialismo” e não a superação das relações capitalistas através da intervenção revolucionária da democracia de massas.
Mas não é certo que Gastaud atribui ao proletariado um “papel político dirigente”? Sim, mas esse é um mero exercício de retórica, como sobressai das ideias que ele desenvolve na mesma comunicação, ao referir-se à União Europeia e ao partido comunista.
Gastaud apela a que se combata a integração europeia porque conduz à “desintegração da nação” e “põe em jogo a própria existência da República Francesa”. Ele quer que os comunistas sejam os “campeões do patriotismo popular e republicano”, porque a adopção da Constituição Europeia “anunciaria por muito tempo o fim das independências nacionais e das perspectivas socialistas”.
Ou seja: em vez de entender o actual processo de globalização como um passo gigantesco no sentido da internacionalização do proletariado, da revolução mundial e da queda final do capitalismo, Gastaud vê no fim das independências o “fim das perspectivas socialistas”. O seu “socialismo” é concebido no âmbito da nação, isto é, da burguesia. Sem nação, não haverá socialismo… A tal ponto que nem se apercebe do grotesco de um comunista francês apelar, hoje, à salvação da República Francesa, essa precursora do imperialismo moderno, culpada de mil crimes sangrentos contra o proletariado e os povos.
O mesmo quanto às exortações de Gastaud para a criação do “verdadeiro Partido Comunista”. Ele localiza no ano de 1992 o início de uma “mutação” no PCF, devido ao “trabalho de sapa de uma fracção abertamente reformista instalada na direcção do partido” e informa-nos que prosseguiu até 2003 o “combate interno pela renovação revolucionária do PCF”. Que espécie de perspectiva comunista pode ter quem andou até há três anos a bater-se pela “renovação revolucionária” do PCF, partido corrompido pelo reformismo e pelo nacionalismo quase desde a origem, agente da colaboração de classes, ajudante subalterno de governos reaccionários?
O marxismo-leninismo de Gastaud, com a sua retórica inflamada, assenta num tremendo mal-entendido. Ele exprime, sob o nome comunista, os anseios da pequena burguesia de voltar ao passado, em busca de um utópico capitalismo “popular”, “racional”, não-monopolista. Apreciamos o seu anti-imperialismo sincero e combativo, mas temos que lhe dizer que os comunistas não estão disponíveis para continuar a alistar-se ao serviço de utopias pequeno-burguesas.
Notas de rodapé:
(1) Capitalismo exterminista ou renascimento comunista?”, Georges Gastaud, Vértice,Jan-Abril 2005. (retornar ao texto)
Inclusão | 10/06/2018 |