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Primeira Edição: Política Operária nº 102, Nov-Dez 2005
Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
No artigo “A arrumação e correlação das forças de classe na sociedade portuguesa”(1), Manuel Brotas discute a questão das classes em Portugal, questão há muito praticamente abandonada pelos que entre nós se reclamam do marxismo, talvez sob a influência da propaganda em voga sobre os “arcaicos mitos classistas”. Só por isso, quanto mais não fosse, o artigo é de grande utilidade pela recolha e análise que faz dos números das estatísticas oficiais.
Na sua simplicidade, os números ajudam-nos a situar a base real em que se trava a luta social e política do país. Através das profundas transformações em curso, a sociedade portuguesa continua dominada por dois pólos antagónicos: proletariado e burguesia — os que vivem da venda da sua força de trabalho e os que vivem do lucro obtido sobre essa força de trabalho.
Polarização que não se atenua mas se acentua. Entre 1991 e 2001, o número de trabalhadores por conta de outrem teve um aumento de 20% pela incorporação no trabalho assalariado de isolados, independentes, domésticas, etc., atingindo no último daqueles anos os 3,8 milhões — sinal da generalização da compra e venda da força de trabalho a todos os sectores de actividade.
Desta massa assalariada emerge o proletariado, ou seja, o conjunto daqueles trabalhadores que, não sendo proprietários de meios de produção ou de capital, são obrigados a vender a sua força de trabalho, criando mais-valia. Com 2,145 milhões no último daqueles anos (42% da população activa), continua a ser a maior classe nacional, embora tenha vindo a crescer mais lentamente nas últimas décadas. É composto por 1,5 milhões de operários industriais e 400 mil proletários de serviços; o proletariado agrícola e das pescas, em redução acelerada, já não vai além dos 100 mil. Um factor novo: cerca de meio milhão destes proletários, quase um quarto do total, são imigrantes.
Os outros assalariados (empregados, funcionalismo, intelectuais, etc.), a que o autor chama “camadas médias assalariadas” — e que Lenine na Rússia de há um século considerava, consoante o nível, ou “semiproletários” ou “semiburgueses” — são o segmento que mais cresce: aumentaram meio milhão nos dez anos considerados, ascendendo a 1,8 milhões.
A pequena burguesia, numericamente importante (800 mil), vê reduzir-se a sua camada inferior (pequenos empresários independentes ou com 1 ou 2 assalariados), que já não vai além dos 330 mil, enquanto cresce a camada superior (pequenos patrões, até 10 assalariados), com 480 mil.
Por fim, a burguesia grande e média (empresários, administradores, quadros) engloba cerca de 100 mil pessoas.
Toda a restante população (5,3 milhões, pouco mais de metade da população total) faz parte dos “inactivos” (reformados, estudantes, domésticas, incapacitados, forças armadas) e distribui-se pelas várias classes.
Desde logo, estes números desmentem duas ideias muito vulgares na esquerda, de há uns anos para cá: a de que haveria uma tendência para o “desaparecimento” da classe operária e para a “liquidação” da pequena burguesia.
Como se compreende que, justamente na esquerda, tenha surgido a ideia de estar em vias de extinção aquela que continua a ser a maior classe nacional? De facto, o que desapareceu foram as grandes concentrações operárias, com maior experiência de intervenção na acção sindical e política, que formavam a base de apoio da esquerda tradicional. Daí a sensação de se estar a assistir ao “fim do proletariado”, quando na realidade se mantêm muitos antigos sectores proletários e surgem outros novos, formados em grande medida por precários e imigrantes, sem experiência de organização de classe — o que coloca responsabilidades acrescidas na sua formação e educação. Em vez de chorar o fim da classe, a esquerda comunista tem pela frente uma pesada tarefa, comparável à que empreenderam no começo do século passado anarco-sindicalistas e comunistas: começar a partir do zero a penetração neste proletariado desconhecedor do marxismo.
A estatística também não se compadece com a ideia de que a pequena burguesia estaria a ser “ceifada” pela concentração capitalista. Tal como o proletariado, ela está sofrer uma recomposição profunda: diminuem as camadas dos pequeníssimos burgueses trabalhadores, de tipo pré-capitalista, mas aumentam as camadas de uma autêntica pequena burguesia moderna, de pequenos patrões, progressivamente mais integrados na actividade do grande capital, por via do franchising, etc., como observa o autor do artigo. Sobre o reforço do núcleo da burguesia, entrelaçada com o grande capital europeu, nem vale a pena falar.
Ou seja: a um proletariado hoje mais disperso e desarmado do que há 30 anos, pela desintegração do seu núcleo avançado, opõe-se agora uma classe burguesa mais compacta, mais integrada e mais experiente. O quadro não é de molde a euforias mas é assim que o devemos encarar.
Vejamos agora que conclusões tira Manuel Brotas dos dados que ele próprio recolheu.
Ele assinala que no proletariado não podem ser contados aqueles assalariados que desempenham funções de extorsão da mais-valia, por exemplo, tarefas de controlo administrativo ou disciplinar no enquadramento de trabalhadores. Mas logo a seguir ele amplia o proletariado ao incluir na “classe operária” muitos empregados de escritório, assalariados intelectuais e quadros técnicos, engenheiros, cientistas, etc., sob o argumento de que desempenham um trabalho produtivo e portanto criam valor. Ora, se há entre esses trabalhadores muitos cujo trabalho cria valor, a questão é saber se a sua taxa de exploração, o seu lugar no processo produtivo, as suas ligações de classe, permitem situá-los no proletariado. Parece-nos tal indefensável. Basta perguntarmos se o interesse real de classe dessas camadas aponta para a liquidação do capitalismo ou para a sua preservação para termos a resposta.
Pode dizer-se, e é verdade, que a concepção demasiado ampla de proletariado formulada por M. B. não tem grande significado numérico; mas ela dilui a sua natureza de classe antagónica do capitalismo, e isso atinge toda a perspectiva da luta de classes, como se vai ver.
Ao mesmo tempo que esbate as fronteiras do proletariado, M. B. divide artificialmente a burguesia em duas partes antagónicas; ele pensa que existe uma “fractura” crescente entre a fracção monopolista e o resto da burguesia (“agrava-se o conflito entre a burguesia monopolista e as outras fracções da burguesia”).
Que há conflitos internos na classe burguesa, nem é necessário dizê-lo — essa é a condição imanente de uma classe por natureza predadora, em que se joga diariamente a disputa das oportunidades de lucro, a partilha da mais-valia extorquida ao proletariado. Mas, justamente, esse carácter de sugadores do trabalho assalariado empurra todas as fracções da burguesia para um mesmo campo nas questões centrais da defesa da ordem instituída e do poder do Estado e, mais ainda, de cada vez que o seu domínio sobre a sociedade é posto em causa pela resistência dos explorados. Lutando entre si, as diferentes fracções da burguesia nunca esquecem que estão do mesmo lado da barricada e que a ameaça para o seu futuro vem do proletariado. Este dado elementar, já observado centenas de vezes na experiência da luta de classes, e entre nós muito claramente na crise de 1975, é iludido por M. B.
Assim chega ele à conclusão de que “os dois pólos aglutinadores da vida e das lutas sociais” não são burguesia e proletariado, mas a burguesia monopolista, dum lado, e o vasto campo do proletariado (amplo) reforçado pelos seus aliados burgueses, do outro.
Ele defende-o sem meias palavras. Primeiro, dado o forte aumento das camadas intermédias assalariadas, “se os partidos democráticos [leia-se PCP] se tornarem os representantes ou, pelo menos, os melhores interlocutores políticos destas camadas”, poderá abrir-se uma saída antimonopolista”, pelo que se “reforça a importância da aliança da classe operária com os intelectuais e outras camadas intermédias”. Mas não só: como a burguesia monopolista aprofunda a sua integração com o grande capital internacional, resulta daqui que “a luta contra a burguesia monopolista, conduzida pela classe operária, é simultaneamente uma luta pela independência e soberania nacionais, susceptível de mobilizar uma vasta frente social, incluindo sectores da média burguesia”.
Naturalmente, ninguém nega que se possam neutralizar as tendências reaccionárias de uma parte da pequena burguesia durante uma crise revolucionária. Podem, mas só se o movimento proletário dispuser de uma força esmagadora, capaz de arrastar essas camadas, de as convencer a cair para o lado do mais forte; isto é, se o proletariado não se rebaixar ao papel de servente político da pequena burguesia e traçar o seu próprio rumo independente. A isto se resume, muito prosaicamente, o “progressismo” da pequena burguesia que tão embevecidos deixa os adeptos do PCP.
Quanto às virtualidades democráticas e patrióticas da burguesia em geral, estamos conversados. A ideia é tão absurda que não merece discussão.
Assim naufraga a análise de classes de Manuel Brotas. Exibindo uma fidelidade “irrepreensível” aos conceitos marxistas, a sua argumentação acaba por nos levar para o terreno da pseudo-estratégia do PCP, a “democracia avançada rumo ao socialismo”.
Quando o primeiro passo para criar o campo da revolução é averiguar com exactidão como se comporta cada classe e cada fracção de classe perante a luta proletária pelo socialismo, os “marxistas” da escola cunhaliana convidam o proletariado a unir-se à boa burguesia para, numa “primeira etapa”, “democratizar”… uma sociedade agonizante, dilacerada num antagonismo insolúvel entre proletários e capitalistas, mergulhada numa rota de catástrofe como província periférica do império Europa.
O traço central do revisionismo português sempre foi este esforço para convencer o proletariado a aceitar a pequena (e a média!) burguesia como aliada da revolução. Primeiro com o argumento de que todos os “portugueses honrados” queriam o fim do fascismo (o que não era verdade); agora com o argumento de que todos os democratas querem o fim dos monopolistas sem pátria (o que é igualmente falso). Por isso dizemos que o amor do PCP pelo proletariado tem por meta pô-lo ao serviço da pequena burguesia. Quem ainda não entendeu isto, poderá ser um democrata, um sindicalista, um anti-imperialista, mas não é certamente um marxista.
Notas:
(1) Difundido em resistir.info, como desenvolvimento de um artigo publicado no Militante de Novembro/Dezembro 2004 e Janeiro/Fevereiro 2005. (retornar ao texto)
Inclusão | 26/08/2018 |