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Primeira Edição: ODiario.info - http://www.odiario.info/?p=1963
Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
Voltar a Istambul quase sessenta anos depois de ter ali passado três dias numa visita superficial foi para mim, na transição do ano, uma experiencia inédita.
Em permanente choque de emoções, caminhando por veredas da memória, tentava ajustar a cada momento ideias, sensações, imagens numa justaposição difícil de passado e presente.
Imaginação e reflexão chocavam-se na contemplação de um dos cenários mais belos do mundo, transformado pelo homem ao longo de 25 séculos.
Respondia com dificuldade a perguntas da minha companheira que ainda não nascera quando descobri Istambul. Hesitava no traçado da fronteira entre o que me tocava quase com intimidade e o que mudara ou era novo, desconhecido.
Na velha Istambul, comprimida entre o Corno de Ouro, o Mar de Mármara e o Bósforo, o reencontro com a cidade e o tempo foi estranho, inesperado. A intimidade era afinal, ilusória. O sítio do Hipódromo bizantino era o mesmo. Santa Sofia e a Mesquita de Sultanhamet apareciam recortadas num céu azul, como eu as recordava. O Topkapi Saray exibia, como antes, a fachada incaracterística que oculta os esplendores do palácio onde viviam os sultões otomanos com o seu harém. Sobre as muralhas esburacadas da antiga Constantinopla, levantadas pelo imperador bizantino Teodósio, voavam corvos e aves marinhas.
Correndo o olhar pelos silhares milenares, enegrecidos pelos anos, tudo aquilo me pareceu estático, imóvel no tempo.
Mas, à medida que transcorriam as horas, revisitando a Istambul antiga, compreendi que, embora as pedras, os mármores, os palácios, as mesquitas, as igrejas permanecessem imutáveis, me surgiam como obras humanas desconhecidas. O outro, na mudança, era muito mais eu do que a cidade. O jovem que desembarcara no Verão de 53 em Istambul e sentira deslumbramento ao andar pelas ruas e praças que revia agora não podia compreender aquilo.
Percebi que fora uma decisão acertada não reler os textos que então escrevi sobre Istambul no jornal onde trabalhava. Porque certamente expressaram a visão horizontal de uma realidade que eu não estava preparado para compreender, projectando-a na profundidade do tempo.
Recordo que há mais de meio século, os turcos me apareceram diferentes do que esperava. Com surpresa registei que a maioria não tinha feições orientais, não diferindo muito dos gregos no aspecto. Porquê?
Não me perguntara então donde tinham chegado os antepassados daquela gente, qual a sua mundividência, como se vestiam, o que comiam. Não tinha esquecido que as grandes mesquitas imperiais e os museus me fascinaram, mas não me esclareceram, não abriram portas para atravessar as muralhas dos séculos rumo às origens das pessoas com quem me cruzava, sujeito e objecto da Turquia em marcha para um futuro imprevisível.
Istambul tinha menos de um milhão de habitantes quando a conheci. A população da cidade que reencontrei no final de Dezembro ultrapassa já os 15 milhões. Mas não foi a prodigiosa multiplicação dos moradores que me fez tomar consciência de que estava voltando a uma metrópole desconhecida.
A história factual que eu aprendera, na juventude, aliás mal, os nomes das batalhas, dos sultões, as informações sobre os estilos e as datas dos monumentos, o panorama do Bósforo não continham as respostas sem as quais não me era possível começar a entender Istambul e os que ali vivem.
Huzun é uma palavra turca derivada do árabe, intraduzível em português. Exprime uma atitude que difere da tristeza.
Orhan Pamuk, prémio Nobel de Literatura, no seu livro "Istambul - Memórias de uma Cidade", define o huzun como algo próximo da melancolia, uma suave dor espiritual nascida de um sentimento de perda.
Para facilitar a compreensão do intenso sentimento de huzun que Istambul despertou nele desde a infância afirma que "é necessário conhecer a História e as consequências do desmoronamento do Império Otomano ( ) e a maneira como essa História se reflecte nas belas paisagens e nos habitantes da cidade".
Pamuk não é um saudosista. Intelectual de formação ocidental, ateu, filho de pais abastados, tem os pés bem fincados no século XXI. Isso não o impede de afirmar repetidamente que não seria capaz de viver longe de Istambul, a cidade onde nasceu e que ama com lúcida paixão.
O huzun, admito, é compartilhado pelas elites da Turquia contemporânea. A grande maioria assume-se como europeia e para ela a ruptura com o passado é definitiva. Mas o juízo crítico sobre uma História tormentosa é cada vez mais compatível com o sentimento contraditório de que as palavras são de Pamuk "o presente é incomparavelmente mais baço do que o passado".
O turco culto admira profundamente Ataturk e está consciente que sem a revolução que ocidentalizou o país, a Turquia, esfacelada, talvez tivesse deixado de existir como Estado soberano. Mas, em Istambul, a vida quotidiana, num cenário semeado de monumentos maravilhosos, não permite esquecer que os antepassados criaram uma grande cultura, herança da fusão de civilizações diferentes e hostis.
O laicismo lançou raízes muito profundas sobretudo no exército. Mas no governo está hoje um partido que estimula o renascimento de um sentimento religioso que, longe da Turquia rural, era pouco identificável. Nas grandes mesquitas vi poucas fiéis, e os apelos à oração, lançados pelos muezzin do alto dos minaretes, são ignorados pelas multidões nas ruas da imensa cidade. Mas "o orgulho turco" volta a ser uma realidade na nova geração. É significativo que a popularidade do primeiro-ministro Erdogan tenha aumentado muito após a atitude de firmeza assumida perante os crimes do sionismo neofascista, nomeadamente o ataque pirata à Flotilha da Liberdade.
Ao conceber a construção de Santa Sofia, o imperador Justiniano afirmou que ela seria para sempre a maior igreja do mundo. Na sua nave cabem duas catedrais como Notre Dame de Paris. Mas não é a dimensão de grandeza que nela mais cativa o visitante do século XXI.
Não conheço templo parecido. Ao correr o olhar pela sua deslumbrante cúpula perguntei-me por que capricho o povo lhe deturpou o nome porque a Basílica foi consagrada à Divina Sabedoria e não a Santa Sofia.
Logo ao entrar senti que o tempo se encurtava. As últimas restaurações aproximam o visitante da época da sua construção. Os frescos que haviam sido cobertos de estuque quando foi transformada em mesquita há quase 600 anos resplandecem agora, irradiando mensagens sofridas dos cristãos orientais do século VI.
A modernidade de Santa Sofia perturba. Constantinopla foi criada por Roma, mas a ruptura com a matriz terá sido quase imediata. Os arquitectos, os pintores, os teólogos bizantinos distanciaram-se em tempo brevíssimo da mentalidade e do estilo imperantes em Roma.
A Basílica de Justiniano transpira alegria, tudo nela visa a aproximar o homem da ideia de deus, como o imaginavam os cristãos primitivos. Nas austeras catedrais góticas a dureza ascética esmaga o homem, aponta-lhe o caminho do sofrimento, porque a vida seria um vale de lágrimas e a recompensa, para os bons, somente chegará após a morte.
As mesquitas imperiais de Istambul são aulas de história da arte.
Os árabes, ao irromperem em cavalgada na Síria helenizada, assimilaram na primeira vaga a cultura grega. Quase simultaneamente, atravessado o Eufrates, descobriram os esplendores da Pérsia Sassânida. A arquitectura árabe do século VIII nasceu naturalmente como síntese das culturas dos dois grandes impérios orientais da Idade Média, o Bizantino e o Persa.
Os Seljucidas, islamizados no Irão, construíram ali grandes mesquitas e transmitiram aos Otomanos o gosto pela arquitectura religiosa.
Para Mehmet II, Santa Sofia configurou um desafio. O templo, de prestígio mundial, inspirou os turcos que aspiravam ao domínio do mundo. O conquistador de Constantinopla decidiu erguer mesquitas que ficassem para a posteridade, em grandeza e refinamento, à altura da Basílica de Justiniano.
E atingiu o objectivo.
As mesquitas imperiais, sobretudo a Suleimanieh e a Sultan Ahmet, hoje património da humanidade, são criações do génio humano que transcendem a opção religiosa dos seus construtores. Não transmitem apenas uma ideia da relação do homem com o Deus ideado pelo Profeta do Islão. Na atmosfera, no mármore e na pedra das abóbadas, das colunas, dos capiteis, no grande silêncio das suas naves, sucessivas gerações de muçulmanos, cristãos, budistas, hinduístas, judeus continuam a comover, tocados pela força criadora, a finura, a originalidade, a imaginação dos artistas de vanguarda de uma civilização hoje morta.
Tinha sentido na juventude, sem o entender, o sortilégio da Suleimanieh. Ao revisitá-la na velhice voltei a ser envolvido pela magia da mesquita, obra-prima do arquitecto Sinan. Uma emoção diferente, mas não menos intensa da que me invadiu em Santa Sofia, dessacralizada por Ataturk e transformada em museu.
Escrever sobre ambas inibe-me, pela incapacidade de expressar o que nelas há de invisível.
A mesquita Azul, a Sultan Ahmet, surge-me menos distante das coisas humanas. As cúpulas sobrepõem-se a abóbadas ogivais sustentadas por colunas. As paredes laterais e a cúpula central ofuscam quando as contemplamos. Os 20 mil azulejos azuis que as cobrem, os ornamentos florais e as inscrições corânicas irradiam uma suave tempestade de beleza.
Teophile Gautier, Flaubert, Pierre Loti, Gide e outros europeus escreveram em épocas diferentes sobre as grandes mesquitas imperiais. Mas é preciso entrar nelas para escutar as suas mensagens mudas.
O Palácio dos Imperadores Bizantinos estava abandonado e em ruínas quando Mehmet II conquistou a cidade.
O sultão mandou construir o seu palácio no alto de uma colina donde se domina o Corno de Ouro e o Mar de Mármara.
O Topkapi, como arquitectura, não vale nada. Cinco quilómetros de antigas muralhas cercam um parque de sete hectares. Um conjunto de edifícios incaracterísticos construídos à medida que o harém do sultão crescia encerra pátios que dão acesso a pavilhões concebidos para fins muito diferentes.
O interior da maioria dessas construções contrasta com a fealdade das fachadas. Com raras excepções, é deslumbrante.
O coração do Império pulsou ali até ao século XIX.
O Topkapi era simultaneamente sede do Governo, residência do soberano e dos príncipes imperiais e o inacessível labirinto de edifícios do harém onde viviam as mulheres legítimas do sultão, as suas favoritas e concubinas, centenas de pessoas, incluindo os eunucos que as vigiavam e impediam o acesso ao serralho.
Ali se teceram conspirações e intrigas que desembocaram com frequência em assassínios de sultões, de príncipes, vizires e altos funcionários do Conselho imperial.
Percorrer o Topkapi é passear pela História do mundo otomano, acompanhar a metamorfose das tribos turcas em potência mundial, o apogeu de uma cultura e a sua decadência.
A série de salas do Tesouro fascina os turistas. Quando as visitei comprimia-se ali gente oriunda dos quatro cantos do planeta. Japoneses, chineses, norte-americanos chamavam a atenção pelo assombro que transparecia dos seus rostos. A maioria sentia-se confrontada com uma realidade inimaginável.
Ignorantes, com poucas excepções, do passado dos turcos, reagiam com espanto ao que contemplavam.
Não me surpreenderam. Nas salas do Tesouro do Topkapi acumulam-se peças de um valor incalculável. Certamente milhares de milhões de euros. Somente em Teerão, no museu que exibe os tronos, as jóias, as coroas de muitas dinastias persas vi algo parecido.
O ouro, os diamantes, as esmeraldas, os rubis, as pérolas, as armaduras, os alfanges e elmos cravejados de pedras preciosas, os mantos e túnicas dos sultões, as tapeçarias imperiais ferem o olhar. A procedência desses objectos é esclarecedora do fenómeno Otomano. Uns foram produzidos no país por artistas turcos; outros recordam saques dos exércitos imperiais na Ásia, na Europa, na África; muitos foram oferecidos ao Sultão-Califa por reis do Ocidente e do Oriente, da China à França, da Pérsia à Rússia.
Caminhando pelo Topkapi acompanha-se a cavalgada agressiva dos Otomanos por três continentes.
No labirinto do harém a decoração mural dos aposentos das sultanas e das princesas e o mobiliário impressionam pela finura, riqueza e imaginação.
No recinto amuralhado do Topkapi, um Museu Arqueológico mal conhecido difere dos grandes museus da Europa porque o recheio não é constituído por obras de arte trazidas de países estrangeiros onde foram criadas. No espaço do Império Otomano floresceram desde a Antiguidade civilizações que marcaram a evolução da Humanidade. Na Ásia Menor para citar um exemplo as ruínas das cidades gregas e helenísticas, de Éfeso a Pérgamo, representam, um património cultural tão valioso ou mais do que o da própria Grécia. E esse acervo está presente no museu de Istambul em milhares de obras de arte produzidas ao longo dos séculos pelo génio helénico. Vieram de lugares distantes do Império, da Babilónia, de ruínas de cidades da antiga Assíria, do Egipto, da Pérsia, da Arábia, das planícies do Danúbio e, obviamente, da Ásia Menor. São estátuas de bronze e mármore, bustos de imperadores, trabalhos escultóricos representando divindades de múltiplas religiões, objectos que iluminam a vida quotidiana de povos de regiões remotas.
Esculpido em caracteres cuneiformes sobre uma pedra amarelada, vi num escaparate o original do Tratado de Kadesh, de paz perpétua, assinado entre o faraó egípcio Ramsés II e o rei Hattusilii, dos Hititas, uma civilização enigmática que introduziu o ferro nas espadas e se apagou em circunstâncias obscuras.
A colecção de sarcófagos inclui um, belíssimo, de mármore branco. Uma legenda informa ser o de Alexandre. É talvez a peça do museu que atrai mais a atenção. Foi trazido de Sidon, no Líbano, mas o interesse que desperta é enganador. Diz-se que foi construído para um rei fenício. A múmia de Alexandre não se encontra ali. Até hoje persiste o mistério sobre o local onde foi sepultado o grande macedónio.
Não podiam faltar no maravilhoso museu pedras trazidas das escavações de Tróia. Numa sala aparece um enorme cavalo de madeira inspirado naquele que, segundo a lenda, teria permitido a conquista da mítica cidade de Heitor, imortalizada pela Ilíada.
Os arranha-céus de Istambul apareceram tardiamente quando a cidade cresceu de maneira explosiva com a chegada maciça de populações da Anatólia.
Os bairros onde surgiram esses edifícios ficam muito longe do centro. A vida da cidade "moderna" que fez a transição do século XIX para o XX permanece concentrada no planalto de Beyoglu, nas ruas que partem da Praça Taksim. O esforço de europeização acentuou-se em 1843 quando o sultão Abdulmecit I mandou construir o palácio de Dolmabahçe à beira do Bósforo, abandonando o Topkapi.
A grande avenida de Pera assinalou uma ruptura com a tradição oriental. Voltei a desce-la há dias, vagarosamente, demorando o olhar nas fachadas dos grandes edifícios construídos para as embaixadas. Foi a grande artéria da modernidade onde surgiram teatros, liceus, estabelecimentos de luxo, restaurantes, cafés, mesquitas e até uma igreja.
Com a República mudou de nome e passou a chamar-se Istiklal. Surgiram cinemas, centros comerciais, livrarias, bancos, casas de câmbio. A qualquer hora do dia, a multidão que por ela circula é densa, parece sempre apressada. A modernidade não a favorece. A Istiklal difere pouco de avenidas comerciais de grandes cidades da Europa ocidental. O ritmo de vida, a paisagem física e humana estão nas antípodas da velha Istambul, separada de Beyoglu pelas águas do Corno de Ouro. O eléctrico da nostalgia, peça de museu carregada de turistas, apareceu-me como ponte fantasmática entre o passado e o presente.
Da Istiklal segui por ruas íngremes para Gálata, o antigo bairro dos venezianos e genoveses. Percorridas umas centenas de metros, tudo à minha volta, os sons, as cores, o formigueiro humano, a velha torre de estilo italiano, me empurrou para outra Istambul e outra cultura.
O Bósforo é para poetas, novelistas e pintores turcos a alma de Istambul. Mesmo os que não acreditam em Deus, talvez a maioria, usam a palavra para expressar a relação íntima entre a cidade e o sinuoso e turbulento braço de mar que separa a Europa da Ásia.
O Bósforo, mais do que uma massa líquida percorrida por correntes invisíveis aparece-lhes como um ser vivo, quase pensante. A cor da água, do verde ao azul e ao cinza, a luz, a transparência do ar, tudo ali se apresenta em permanente mutação.
Percorri durante duas horas, numa manhã luminosa de Janeiro, vinte dos seus trinta quilómetros rumo ao Mar Negro. Viajava num dos ferries a que os velhos istambulenses chamam ainda vapurs e senti o feitiço do Estreito, cenário de incontáveis batalhas desde que os povos ribeirinhos começaram a construir toscos barcos.
Os incêndios destruíram nas últimas décadas dezenas de residências de Verão construídas no século XIX nas duas margens, os yoles das grandes famílias, luxuosos palacetes. Mas os que sobreviveram ao fogo e à ofensiva das empresas imobiliárias abrem janelas para a vida de luxo e ociosidade da classe dominante da época em que o império agonizava.
O Bósforo, serpenteando entre cabos rochosos, golfos e baías que emolduram pequenas praias, muda de rosto ao afastar-se de Istambul. Alguns yoles, transformados em restaurantes e clubes, surgem incrustados em matas tão densas que a luz não penetra no arvoredo.
Não havia pontes no Bósforo quando conheci Istambul. Sob as actuais, a corrente do tráfego é permanente. Somente em Uskudar, na margem asiática, antes burgo suburbano, vivem agora mais de 500 mil turcos.
Quando o meu ferry passou sob uma delas, elevei os olhos para o tabuleiro donde chegava o ruidoso concerto dos motores e tive a sensação que tinha transcorrido mais de um século desde o dia longínquo em que descobri o encanto do Bósforo dos terraços do Palácio Topkapi.
Mais de 120 imperadores, de Roma, Bizâncio e do mundo Otomano exerceram poder absoluto sobre a cidade que se chama hoje Istambul.
Não há precedente para algo comparável na História.
É compreensível que a herança visível do que em 25 séculos foi na grande capital construído, reformado, saqueado, esquecido por povos de culturas muito diferentes seja talvez única pela riqueza e heterogeneidade. Na malha urbana da cidade e nos seus moradores a turquização empreendida por Ataturk agiu como um terramoto sobre Istambul, mudando-lhe a fisionomia. Mas a criação de novos bairros, a ruptura com arquitectura tradicional, a ocidentalização dos costumes, do vestuário e do alfabeto não podiam magicamente eliminar em duas ou três gerações atitudes hábitos, o quefazer diário da totalidade da população. Istambul não é a Anatólia rural, mas os istambulenses pertenciam e pertencem a diferentes classes sociais.
Nas ruas da cidade o antigo véu quase desapareceu. Mas, para se tomar consciência da ténue fronteira entre o Oriente e o Ocidente em amplos sectores da população, é suficiente visitar o Bazar das Especiarias, restaurantes populares ou passear pelo Grande Bazar. Este, com 60 ruas e mais de 4.000 lojas, num único edifício de tectos abobadados, é o maior, mais fascinante mercado do mundo, uma cidade oriental que sobrevive, resistindo, à Istambul ocidentalizada.
A modernização coexiste ali com o passado, a pacotilha com peças de um artesanato requintado, o vendedor do século XXI com o comerciante poliglota e culto que gosta de discutir o preço de uma jóia ou um tapete entre duas chávenas de chá.
Em Istambul, cidade em que a densidade de monumentos surpreende visitantes de toda a Europa, antigos palácios em ruínas, os konak otomanos, e muros esboroados erguidos há muitos séculos surgem inesperadamente ao lado de edifícios recentes.
Mas são as Muralhas bizantinas que, para mim, mais do que Santa Sofia ou as Mesquitas Imperiais, transmitem, silentes, a mensagem do tempo imóvel.
Para acompanhar a lenta viagem da cidade pelo tempo em movimento não basta escutar num autocarro de turismo o discurso do guia que informa terem aquelas Muralhas sido construídas pelo Imperador Teodósio no século V da Nossa Era.
É preciso percorrer a pé os sete quilómetros do anel interior da fortaleza que protegia a cidade de ataques vindos do Continente.
Das dezenas de torres iniciais algumas foram restauradas, o que permite imaginar a antiga imponência do alto paredão de pedra e tijolo.
Mas o panorama que as Muralhas oferecem hoje ao viajeiro é o de uma grandiosa ruína que estimula a imaginação.
Durante um milénio resistiram a todos os povos que tentaram conquistar a cidade. Ganharam fama de inexpugnáveis.
Fracassaram ali os assaltos de tribos dos chamados bárbaros de muitas procedências, de árabes seljucidas e búlgaros; cederam, finalmente, perante a investida Otomana.
Para mim, aquelas Muralhas são um símbolo de múltiplos significados.
Latinos e gregos viram em Constantinopla a Nova Roma. Mas o nome, artificial, não podia definir uma urbe ponte entre dois Continentes. Istambul cresceu, rompendo as fronteiras do tempo como cidade filha de muitos povos e culturas, anunciando a humanidade mestiça de amanhã.
Serpa, Janeiro/2011