Mário Soares & Sampaio — as máscaras na pequena política

Miguel Urbano Rodrigues

13 de janeiro de 2005


Fonte: http://resistir.info

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Declarações abstrusas de Mário Soares e do Presidente da Republica aqueceram o frio quadro político português no período final da quadra festiva.

Ambas vão pesar negativamente na campanha eleitoral, pela confusão criada.

O primeiro descobriu subitamente que o Pais não poderá sair da actual crise sem "um governo de salvação nacional!". O segundo enxerga a salvação numa reforma do sistema eleitoral que "permita a estabilidade", através de maiorias absolutas. Por outras palavras, descobriu as virtudes democráticas do bipartidarismo.

Não compartilho o espanto da maioria dos analistas políticos.

Identifico em Mário Soares e Jorge Sampaio dois políticos empenhados, com níveis de consciência diferentes e discursos também diferentes, na defesa de um sistema de exploração que na juventude criticaram, mas ao qual se sentem umbilicalmente ligados: o capitalismo.

Mário Soares, pelas suas piruetas, apresenta uma trajectória mais sinuosa, e embora não se lhe conheça uma só obra séria (os seus livros são, no terreno do pensamento, antologias de lugares comuns) de criatividade ideológica, adquiriu como político notoriedade internacional por ser um comunicador e projectar a imagem do dirigente que pôs fim à Revolução Portuguesa.

Dele têm sido traçados perfis contraditórios que sugerem um percurso desconcertante que resultaria de ao longo da vida o seu corpo haver sido habitado por seres diferentes e ate incompatíveis.

Não o vejo assim. As contradições são aparentes.

A ultima metamorfose, posterior à agressão dos EUA ao povo iraquiano, impressionou muita gente. Mário Soares, que nunca havia condenado a estratégia imperial de Washington e, como primeiro ministro e Presidente da Republica, se comportara sempre como um aliado dócil de sucessivas administrações norte-americanas, apresentou-se inesperadamente como um critico duro de George Bush e da sua política criminosa.

É inegável que os efeitos dessa tomada de posição foram positivos. O mesmo ocorreu com a atitude assumida por Freitas do Amaral, não obstante a reflexão crítica deste sobre as consequências da estratégia irracional dos EUA ser muito mais elaborada e profunda do que a do fundador do Partido Socialista.

Não faltou quem interpretasse como guinada à esquerda a condenação por Mário Soares do genocídio iraquiano e os seus alertas sobre os perigos para a humanidade de um neoliberalismo globalizado que a pode levar ao abismo. Houve quem estranhasse também a sua súbita defesa de alianças à esquerda do PS.

Alguns dos comentadores de serviço na TV e nos jornais não hesitaram em falar de um "regresso às origens". Não cabe entrar no tema das origens de Mário Soares nem comentar as consequências nefastas das alianças que fez quando no poder.

O que se me afigura útil, sim, é lembrar que nas suas oscilações pendulares de superfície, Mário Soares somente preconizou aproximações com forças progressistas consequentes — nomeadamente o PCP — em situações históricas em que estas não dependiam dele.

Em momentos cruciais do processo revolucionário iniciado em Abril, a sua posição foi outra. No governo, mais tarde, fechou sempre a porta a acordos que traduzissem a vontade de mudança do povo, expressa nas urnas, ao levar à Assembleia da Republica uma maioria de deputados do PS e do PCP. Não hesitou então em aliar-se primeiro com o CDS, depois com o PSD.

A perda da memória é sempre negativa na história dos povos.

As criticas a Bush de Mário Soares não devem fazer esquecer que a sua opção ideológica de fundo permanece inalterada.

O general Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal, personagens que deixam marcas na história profunda do nosso pais, caracterizaram com rigor e serenidade em livros importantes o papel negativo que Mário Soares desempenhou na contra-revoluçao portuguesa.

Por si só, a amizade assumida do ex-presidente com Frank Carlucci é bem mais esclarecedora da sua ideologia e atitude perante a história do que as suas críticas de circunstancia à extrema direita bushiana.

Recordo aqui, apenas, o que Mário Soares respondeu à TSF(1) quando, depois de afirmar que Álvaro Cunhal não merecia a Ordem da Liberdade, defendeu a entrega de uma condecoração ao ex-director da CIA.

Nesse dia, o 26 de Abril de 1997, ao jornalista com quem falava disse entre outras enormidades, que "o Carlucci bateu-se pela liberdade (...) e os comunistas que vivem em total liberdade devem um pouco esse facto ao contributo que Carlucci deu para isso".

Sem comentários.

Poderá alguém estranhar que o admirador do "trabalho" realizado por Carlucci em Portugal, venha agora a público (enquanto faz criticas a Bush) lançar um apelo para a formação daquilo a que chama "um governo de salvação nacional", o que na prática seria a renovação da santa aliança que ele, Mário Soares, cimentou com a direita nos anos em que concebeu e comandou a ofensiva contra as conquistas de Abril?

Diferentes são as máscaras que Mário Soares utiliza. Mas, sob elas, o político do sistema não muda.

De algum modo a necessidade de protagonismo do actual Presidente da Republica levou-o, agora, a debitar asneiras que funcionam como complemento da opção de Mário Soares por um governo de "salvação", obviamente reaccionário. Em vésperas de um período eleitoral, a apologia do bipartidarismo confirma a caminhada para o direita de um pequeno político que na juventude julgou ser de "esquerda". Já ouvi qualificar Jorge Sampaio de Carmona do século XXI. Não me parece adequado o paralelo. O actual Presidente faz-me pensar num misto de Acácio e Abranhos.

Não me preocupa, entretanto, pelo tamanho do disparate, a sua fome de reformas que conduzam a "maiorias absolutas".

As ideias salvadoras de Mário Soares encerram maiores perigos, porque esse camaleão experiente continua a confundir gente ingénua.

Como comunista, desejo que o povo português conduza ao Parlamento muitos deputados do meu partido, para que o utilizem como tribuna de combate ao sistema vigente, uma ditadura da grande burguesia (sob a tutela da União Europeia) de fachada democrática. Pelo PCP farei campanha. Mas não tenho ilusões sobre o futuro imediato. Destas eleições sairá mais um governo de direita, porque com a actual direcção do Partido Socialista, que é de direita, o povo é olhado como inimigo e a política a ser executada será incompatível com as suas aspirações mínimas.

Não confundo os eleitores que têm votado no PS com Sócrates & Cia. Ltda. Centenas de milhares, a maioria, são cidadãos honestos, muitos acompanharam com esperança a arrancada da Revolução de Abril, e um grande numero desejaria ver o pais mudar de rumo.

Ajudar esses portugueses a compreender que neste ano de 2005 contribuir para evitar que um PS hegemonizado por políticos de direita mantenha e agrave a política de catástrofe e capitulação que aí está é uma tarefa difícil — mas também um grande desafio a assumir. Porque o voto autenticamente negativo, pior do que inútil, será o voto na continuidade do sistema.

A esperança não está para os comunistas na conquista do governo, impossibilidade absoluta. Ela se concentra num combate lúcido, sem ilusões românticas, um combate na fidelidade aos princípios que reforce nos trabalhadores a consciência de que o povo é o sujeito transformador da história e a certeza de que o capitalismo não é reformável, que está condenado, e a alternativa, sem data no calendário, é o socialismo.


Notas de rodapé:

(1) Citado por Álvaro Cunhal em "A verdade e a mentira na Revolução de Abril — a contra revolução confessa-se", Ed. Avante, pag.242, Lisboa, 1999. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021