Deter a corrida para o abismo, derrotar o capitalismo exterminista

Miguel Urbano Rodrigues

16 de Novembro de 2004


Primeira Edição: Excertos da comunicação apresentada em Caracas Encuentro de Intelectuales y Artistas en Defensa de la Humanidad - 2-7 de dezembro de 2004 -http://www.rebelion.org/mostrar.php?tipo=1&id=111

Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Tomar consciência da gravidade da crise que a humanidade enfrenta é o primeiro dever dos intelectuais que se reúnem em Encontros Internacionais como este para reflectir sobre o seu futuro.

Admito que somente uma pequena minoria tomou já consciência de que a ameaça de uma tragédia talvez sem precedente passou a ser uma realidade.

Jacques Blamont, um cientista membro da Academia Francesa, afirma no seu último livro, "Introdução ao século das ameaças", que corremos o risco de uma tragédia que dentro de algumas décadas reduzirá a humanidade a um terço, dizimada por catástrofes resultantes do simples esgotamento dos recursos naturais não renováveis. "O mundo foi avisado de que tem de morrer, mas não acredita", adverte.

Blamont, intelectual conservador, não exagera. A menos que a humanidade consiga deter a corrida para o abismo, catástrofes piores do que a da peste negra no século XIV, podem levá-la à beira da extinção.

O que nos empurra para o fim? A estratégia de barbárie de um capitalismo exterminista liderado pelo monstruoso sistema de poder que tem o seu pólo num pais que insiste em apresentar-se como modelo civilizatório. (...)

O DESAFIO VENEZUELANO

Companheiros

Creio que os participantes neste Encontro vindos de dezenas de países compartilham a convicção de que o povo da Venezuela bolivariana aparece hoje à humanidade progressista como uma vanguarda que encarna o próprio espírito do evento que aqui nos reúne "En Defensa de la Humanidad".

é uma convicção justa.

A Venezuela emerge hoje, num planeta trágico e caótico, como um laboratório social efervescente no qual se desenvolve uma luta de classes como o mundo não conhecia, pela duração e intensidade, desde as revoluções russas de 1917. Na pátria de Bolívar foi retomado um desafio dificílimo: transformar radicalmente a sociedade e libertá-la da dominação imperialista, optando pela via dita pacifica, isto é, utilizando exclusivamente para o efeito as instituições criadas pela burguesia para servir os seus objectivos, incompatíveis com os do poder revolucionário.

Os êxitos obtidos por Chavez não devem levar a uma subestimação das dificuldades que se multiplicam e renascem, inseparáveis da própria dialéctica da vitória.

A batalha da primeira reforma das velhas instituições foi ganha com a promulgação de uma nova Constituição. Mas as grandes maiorias iniciais semearam no próprio governo ilusões românticas. O andamento da história confirmou ser muito mais fácil reformar uma constituição anacrónica do que reformar em profundidade homens e mulheres que, na aparência, haviam embarcado para sempre na grande nave da revolução. Muitos não aguentaram as primeiras tempestades. Alguns ficaram pelo caminho; outros mudaram de barco.

A vitória, por ampla margem, de Hugo Chavez no referendo revogatório, após uma campanha em que a oposição, estimulada e financiada pelo imperialismo, desceu pelos métodos e pela palavra a níveis de perversidade quase desconhecidos na Europa, foi um acontecimento de significado não apenas continental, mas mundial. O povo venezuelano, assumindo o papel de sujeito da história, voltou a derrotar as forças unidas da oligarquia e do imperialismo. Sem a sua participação maciça não teria sido possível o triunfo alcançado no confronto com a engrenagem golpista que pretendia – tal como no golpe de 11 de Abril de 2002 e no lock-out petrolífero – derrubar o presidente Hugo Chavez e destruir a Revolução Bolivariana.

Companheiros

Acredito que dos benefícios deste Encontro Internacional o mais importante será o aprofundamento da solidariedade dos povos com a Revolução Bolivariana. Estou certo de que cada uma das delegações aqui presentes tudo fará para dinamizar essa solidariedade nos respectivos países. Mas para que esse esforço atinja plenamente os objectivos será indispensável em primeiro lugar tomar iniciativas que contribuam para ampliar o conhecimento do processo venezuelano.

Sejamos realistas. O interesse que a revolução bolivariana desperta no mundo não é acompanhado de um conhecimento pelas grandes maiorias da história do país, do quadro político social existente quando Chavez conquistou a Presidência e dos factos e situações ligados à cadeia de conspirações posterior. A própria expressão de Revolução Bolivariana gera ainda perplexidade, sendo fonte de confusões. Na Europa, nos EUA, na ásia e na áfrica, Bolívar — apesar de ser um gigante na história — continua a ser quase um desconhecido.

Creio que algumas iniciativas comuns, consensuais entre nós e de concretização relativamente fácil, poderiam ser imediatamente empreendidas em escala mundial precisamente com o objectivo de divulgar o desafio venezuelano.

Refiro-me a livros e filmes já disponíveis e que, ao serem levados a públicos de muitas nacionalidades, funcionariam como imagem da revolução bolivariana e instrumento eficaz para a sua defesa.

Citarei para o efeito o que estamos a fazer em Portugal.

O Festival da Culturgest em Lisboa — o mais importante festival do Documentário do pais — foi inaugurado com o filme The revolution will not be televised, de Kim Bartley e Donacha O' Brien. Mais de 700 pessoas aplaudiram de pé esse magnífico trabalho que ilumina com clareza o processo revolucionário, o golpe de Abril e a sua derrota pelo povo e pela vanguarda revolucionaria das Forças Armadas.

Estamos preparando a exibição desse filme em cidades do interior de Portugal governadas por alcaides progressistas.

No campo editorial serão em breve lançadas as traduções portuguesas de um livro de Marta Harnecker sobre a Venezuela e de La campaña admirable, do historiador colombiano Juvenal Torres. Nessa obra, editada em espanhol pelo Ministério da Educação da Venezuela, o autor traça um magnífico perfil do jovem Bolívar, quando arrancando do baixo Magdalena com 70 homens, o futuro vencedor de Carabobo inicia uma campanha que termina com a derrota do exército de Monteverde (16 000 soldados) e a segunda libertação de Caracas em 1813. Neste livro, desconhecido na Europa, cada uma das sucessivas proclamações e mensagens de Bolívar anuncia já o estadista, o pensador e o revolucionário para o qual o exército deve ser o povo em armas.

Outro livro cuja edição esta a ser preparada em Portugal é Dialéctica de una Victoria, de Rodolfo Sanz, uma obra simultaneamente de informação e reflexão, que representa a meu ver uma contribuição utilíssima para a compreensão da revolução bolivariana .

Iniciativas como as citadas somente poderão, entretanto, atingir plenamente os seus objectivos se, em cada país onde existam condições para tal, personalidades e forças políticas e sociais solidárias com o processo bolivariano criarem movimentos de solidariedade com o grande desafio revolucionário que tem a Venezuela por cenário.

Hugo Chavez afirma que a Revolução Bolivariana não é, contrariamente ao que aconteceu com a chilena, uma revolução desarmada. Essa evidencia não deve levar a esquecer que mais de uma centena de oficiais superiores das Forças Armadas estiveram envolvidos no golpe de Abril.

O muito que se fez na Venezuela é, entretanto, insuficiente para que a revolução possa atingir as suas metas. Rodolfo Sanz lembra no seu livro que uma segunda assembleia constituinte será necessária para «transformar a estrutura do estado, para derrubar o que continua em pé do antigo aparelho da Quarta Republica». O governo não controla a totalidade do Estado, onde, na Educação, na Saúde, no Poder Judicial, estruturas contra-revolucionarias conservam importantes posições.

é muito positivo que a esmagadora maioria do Exército esteja hoje identificada com o projecto revolucionário, situação inédita na América do Sul.

A vitória no referendo foi uma grande derrota do imperialismo. A oposição perdeu a iniciativa e encontra-se no momento desorganizada, dividida e sem perspectivas. Seria, porem, um erro admitir que o imperialismo vai acompanhar passivamente o avanço da revolução bolivariana.

O futuro está na Venezuela carregado de interrogações ainda sem resposta. A solidariedade internacional pode contribuir decisivamente para que essas respostas sejam positivas, correspondendo às aspirações da grande maioria do povo de Bolívar.

O agravamento da crise estrutural do capitalismo favorece a intensificação das lutas de significado anti-imperialista. Quanto mais os EUA se atolarem no Iraque maiores serão as dificuldades dos governos da União Europeia em camuflarem as suas divergências sobre a estratégia neo-fascista de Washington para o Médio Oriente e a ásia Central. A Espanha já se retirou da fogueira iraquiana, Blair enfrenta critica crescentes, e na Itália o povo condena com veemência a política de vassalagem de Berlusconi. Quanto à França e à Alemanha, a aparente melhora no diálogo com a Administração Bush não oculta as divergências de fundo inseparáveis da sua oposição à presença norte-americana no Iraque.

A ofensiva para a retomada de Faluja não produziu os resultados esperados em Washington. A operação militar configurou um genocídio, as perdas dos marines foram elevadas e o efeito propaganda não funcionou porque coincidiu com o levantamento armado de Mossul. Enquanto reocupavam uma cidade, os EUA perdiam o controle de outra muito mais importante. Neste momento, a poucas semanas da data marcada para as eleições, parece transparente que elas serão uma farsa.

A guerra do Iraque — repito — é uma guerra perdida e os EUA não sabem como sair dela.

Como era inevitável, a derrota da estratégia estadunidense no Médio Oriente torna o sistema mais vulnerável no conjunto do planeta.

Na América Latina a luta contra a ALCA permanece como objectivo fundamental. Bush reafirmou em Cartagena o seu apoio ao Plano Colômbia, que configura uma intervenção imperial indirecta num país chave do hemisfério, e repetiu que pretende implementar a ALCA no próximo ano. Mas a resistência ao projecto aumenta. A oposição da Venezuela bolivariana aponta um caminho e fortalece a luta dos povos, da Patagónia ao Istmo, contra um "Acordo" imperial que recolonizaria a América Latina.

O oportunismo, os recuos e mesmo a capitulação de dirigentes populistas que suscitaram grandes esperanças não justificam atitudes pessimistas. Do Rio Bravo à Terra do Fogo os povos da América Latina, com poucas excepções, demonstram uma maior disponibilidade para a luta. Aí temos, a confirmar a tendência, a vitória da Frente Ampla no Uruguai. (...)

O QUE FAZER?

Tornou-se já evidente que dos Fóruns Sociais Mundiais e continentais não pode sair qualquer alternativa global ao neoliberalismo porque no mundo actual é impossível apresentar uma alternativa de contornos bem definidos, de valor universal, ao sistema que ameaça destruir o planeta.

A dualidade antagónica socialismo ou barbárie, tal como a apresentam cientistas sociais como Meszaros e Samir Amin, expressa bem a situação existente.

Ou o capitalismo, nesta fase senil, destrói a civilização, empurrando a humanidade para a barbárie (ou a extinção), ou o capitalismo é eliminado.

Seria, contudo, entrar no terreno da especulação esboçar sequer os contornos do socialismo (ou dos socialismos) que sucederão ao capitalismo.

Sendo a actual crise do capitalismo estrutural, o sistema não tem reforma possível, pelo que a luta na época revolucionaria que se aproxima, é incompatível com projectos que perpetuam as ideias, as palavras e os remédios da contra-revolução.

A tarefa é ciclópica porque hoje não existem forças sociais organizadas aptas — como lembra Georges Gastaud — a "preencher o fosso entre a necessidade objectiva da revolução e a fraqueza subjectiva do compromisso revolucionário e militante".

Sob o bombardeamento de uma engrenagem mediática perversa que faz da desinformação quase uma ciência temos de aprender a combater as técnicas utilizadas pela contra-revolução para reescrever a história, deturpando-a.

Quando o ex-secretário geral do Partido Comunista Francês não hesitou em afirmar que o balanço global do socialismo foi negativo, fomos confrontados com os efeitos devastadores da propaganda do inimigo.

O inventário dos enormes erros cometidos pelo socialismo real e a crítica da burocratização do estado e do partido soviéticos não devem impedir-nos de rejeitar a satanização da URSS e de denunciá-la como um objectivo daqueles que tentam desesperadamente salvar o capitalismo.

A restauração do capitalismo na URSS em 1991 foi o desfecho de um longo processo que resultou da acção complementar das forças internas desagregadoras e da ofensiva externa do imperialismo. Se Gorbatchev e a sua equipa conseguiram, apesar de um desprestígio crescente, manter-se no poder até à liquidação do regime e à implosão da URSS foi porque beneficiaram da revolta muito ampla da população contra as deformações de um projecto no qual já era irreconhecível o concebido por Lenine. é útil recordar que a nova burguesia russa é a herdeira directa da burocracia que no período da estagnação brejneviana dirigiu o Estado soviético.

O Che afirmou que o socialismo económico sem a moral comunista era inaceitável.

O socialismo não pode ser construído com os instrumentos do capitalismo. A historia demonstrou com o malogro da transição do capitalismo para o novo regime que a economia desenvolvida de cima para baixo, em processo administrativo, sem participação do povo, não pode conduzir a uma sociedade socialista.

Num livro em que reúne uma série de lúcidos ensaios Georges Gastaud insiste na necessidade, em nome do realismo revolucionário, de

"deixar de conceber a passagem do socialismo ao comunismo como um automatismo económico resultante do amadurecimento quase vegetal do socialismo, do socialismo desenvolvido".(2)

"Enquanto em vida de Lenine — escreve — o marxismo servia para orientar a luta, ele principiou a funcionar como uma ideologia de maneira idealista e apologética na URSS da estagnação. O marxismo não era mais o teórico militante que iluminava os caminhos do futuro através de uma pesquisa polémica em ruptura com todos os tabus, mas o académico conformado que encontra numa lista de piedosas citações a justificação da excelência da ordem estabelecida (...) Enfim, a degenerescência burocrática associada à estagnação exprime-se sob a forma de bloqueio das contradições de um socialismo que deixa de olhar para a sua finalidade objectiva, o comunismo, isto é uma sociedade sem classes e sem estado. O papel dirigente da classe operária tende a tornar-se então puramente formal e as relações sociais em atraso prolongado relativamente às forças produtivas acabam por paralisar o seu desenvolvimento".

A tarefa de uma revolução consiste em superar o modo de produção anterior. As condições desfavoráveis da Revolução Russa, com a necessidade de defender o socialismo num só país criaram uma situação imprevista. O socialismo foi forçado durante sete décadas a funcionar como um socialismo que procurava alcançar os níveis do capitalismo, utilizando muitos dos seus mecanismos económicos. A transição não pôde seguir o seu rumo natural.

Seria, contudo, entrar no terreno da especulação esboçar sequer os contornos do sistema que sucederá ao capitalismo. O seu perfil não pode ser traçado hoje. O mais provável será o aparecimento e a convivência de sociedades socialistas muito diferenciadas. Estamos longíssimo do estado universal.

A controvérsia assume actualidade porque intelectuais de esquerda, alguns respeitados, afirmam que a elaboração de uma alternativa teórica ao neoliberalismo se coloca como tarefa prioritária, devendo preceder a da organização da luta frontal contra o imperialismo.

Repito o afirmado anteriormente. A reflexão da problemática da transição para o socialismo é uma tarefa incontornável. Mas sair do campo dos erros cometidos (tarefa imprescindível para a compreensão do mundo unipolar e para a renovação criadora do marxismo tal como a concebiam Marx, Engels e o próprio Lenine) passando daí à formulação de projectos que subalternizam a luta contra o imperialismo, concedendo prioridade ao debate teórico sobre a construção da sociedade futura, seria cair na utopia, levar água ao moinho do inimigo.

Não são somente diletantes das ciências sociais que insistem em desenhar já os contornos da democracia participativa como meta próxima. Há intelectuais sérios que sentem a mesma tentação. Esquecem que são raríssimas as sociedades onde ao povo se abre a possibilidade de participar como sujeito na construção do seu próprio futuro. Na América do Sul a Venezuela é, por ora, a única. Na Europa isso não acontece em nenhum país. A convicção de que a transição se pode realizar em qualquer sociedade, a partir do interior do sistema, na vigência do capitalismo, desconhecendo na prática a natureza do estado, do Poder, é ingénua. Sem que os seus defensores disso tomem consciência, eles estão a tomar noutro contexto histórico com linguagem diferente velhas teses reformistas de Edward Bernstein. O que propõem não é uma nova lógica socialista e revolucionária, mas a humanização do capitalismo. O que é uma impossibilidade absoluta, por incompatível com a própria essência do sistema. O movimento, contrariamente ao que afirmava Bernstein não é tudo, mas quase nada, como sustentou Rosa Luxemburgo ao desmontar-lhe as teses revisionistas e oportunistas. A meta das grandes lutas do nosso tempo não é o enfraquecimento gradual do capitalismo, mas sim o seu desaparecimento.

No seu livro O Poder da ideologia, Meszaros recorda que – cito –

"Nenhum acontecimento ou desenvolvimento novo pode afectar de modo significativo a perspectiva estratégica da social-democracia ocidental orientada para a justificativa apologética da sua escolha original – o caminho da reforma estritamente gradual e a rejeição categórica da possibilidade de mudança revolucionária – e para a confirmação apriorística da perfeição estratégica adoptada. A última coisa que esta perspectiva necessita, ou poderia trazer à tona sem se destruir, seriam princípios teóricos realmente novos e objectivos reorientados (...) Na realidade, as mudanças adequadas para assegurar, ainda que lentamente, a prometida transição para uma sociedade muito diferente – socialista) mas meramente conciliatórias. A sua premissa, mais ou menos admitida tacitamente, é a necessária exclusão, de toda a mudança estrutural radical, por qualquer meio (repressivo ou não) que 'a ordem constitucional' estabelecida tenha à sua disposição".(3)

Esta reflexão de Mészaros ajuda a compreender a atitude agressiva de todos os governos dos EUA perante qualquer processo revolucionário que no último meio século tenha fixado como objectivo a introdução de mudanças estruturais radicais. O projecto transformador da Unidade Popular no Chile era inaceitável por ameaçar o capitalismo. A Revolução Portuguesa de Abril também foi encarada como ameaça ao sistema. O imperialismo estadunidense e a social-democracia europeia uniram então esforços para a travar. Nesse caso não foi necessário recorrer ao golpe para impedir o seu avanço porque o Partido Socialista de Mário Soares desempenhou o papel que lhe atribuíram, contribuindo decisivamente para a ruptura da unidade entre a vanguarda militar do Movimento das Forças Armadas e o movimento popular, o que mudou a relação de forças em benefício da direita.

Hoje, Washington não esconde a sua satisfação perante o rumo adoptado no Brasil pelo governo Lula, e não demonstra também inquietação pela política de Kirchner na Argentina. Em ambos os casos, a "ordem social" preexistente não é posta em causa pelas políticas de dirigentes que se desviaram dos compromissos assumidos.

O grande medo provocado pela Venezuela resulta precisamente do facto de a Revolução Bolivariana — muito embora Hugo Chavez tenha evitado sempre fixar o socialismo como meta — ser identificada pela Administração Bush como uma ameaça directa ao sistema capitalista. O projecto está orientado para uma mudança estrutural radical.

Não alimentemos ilusões, companheiros. O desafio venezuelano é considerado intolerável pela potência hegemónica. Novas conspirações e manobras golpistas serão estimuladas pelo imperialismo.

é significativo igualmente que semanas antes das eleições no Uruguai, destacadas personalidades estadunidenses tenham advertido, como forma de pressão, que a vitoria de Tabaré Vasquez seria recebida como potencial ameaça à ordem social vigente na Republica Oriental.

Em contraposição o que ocorre na União Europeia é tranquilizador para o sistema.

Volto a citar Mészaros:

"O quadro da orientação estratégica da social-democracia ocidental apresenta um fatídico nó cego ideológico. As insuperáveis limitações da política parlamentarista como tal para obter o domínio das forças controladoras do metabolismo social capitalista jamais serão sequer consideradas e muito menos contestadas seriamente a partir das mudanças em curso e das novas possibilidades emergentes, e em resposta a elas. Ao contrário, em consequência da sua carcaça institucional paralisadora, a teoria social-democrata é transformada num exercício manipulador de relações publicas com o objectivo de ser eleito ou de permanecer no cargo. Deste modo a classe trabalhadora, como agente social da alternativa socialista, torna-se supérflua e, na verdade, por causa das suas aspirações radicais, totalmente embaraçosa para o partido parlamentarista. Por esta razão deve ser ideologicamente diluída até se tornar irreconhecível" (...)

Mészaros chama a atenção para uma evidência esquecida: durante décadas de permanência no poder os partidos social-democratas escandinavos, tal como os da França, da Alemanha e da Grã-Bretanha não conseguiram (nem pretenderam) realizar mudanças estruturais da ordem económica capitalista. Comportaram-se como administradores dóceis do sistema.

UMA NOVA DINâMICA DE SOLIDARIEDADE

A tarefa principal das organizações e partidos revolucionários que lutam contra o capitalismo globalizado deveria consistir hoje em trabalhar pelo fortalecimento e ampliação das forças que rejeitam o imperialismo, hegemonizado pelo sistema de poder neo-nazi dos EUA.

As condições objectivas são favoráveis no momento em que o povo do Iraque, numa resistência que assume as proporções de levantamento nacional contra os invasores, surge como herói colectivo, batendo-se pela humanidade inteira.

São, entretanto, enormes — o que leva as maiorias ao desalento — as dificuldades a superar para que os povos tomem consciência de que a defesa do planeta se tornou uma questão de sobrevivência e depende como nunca da sua solidariedade com as vitimas das agressões imperiais.

Aos efeitos de uma manipulação mediática permanente, concebida cientificamente, somam-se as consequências paralisantes da acção do reformismo social-democrata.

A solidariedade internacional somente pode funcionar com eficácia no âmbito de uma nova concepção estratégica da luta, orientada para uma articulação de acções ambiciosas da classe trabalhadora, favorecidas pelo agravamento da crise estrutural do capitalismo.

Se admitirmos que para o imperialismo estadunidense a frente prioritária se localiza actualmente na ásia, área onde o malogro da sua estratégia mais contribui para aprofundar a crise global do sistema, impõe-se uma conclusão: dinamizar a luta contra a guerra passou a ser a tarefa primeira das forças progressistas em todo o mundo.

Trata-se de uma luta em que podem participar dezenas de milhões de pessoas com mundividências muito diferentes — luta que deve ser articulada com acções concretas de âmbito nacional, na Europa e na América Latina, sobretudo, que contribuam para inviabilizar projectos do imperialismo e das burguesias dele dependentes.

A maré da contestação assumiu proporções gigantescas em Fevereiro e Março de 2003, quando mais de 20 milhões de pessoas saíram às ruas em grandes cidades para condenar a guerra. Entretanto, depois de ocupado o Iraque, o protesto caiu bruscamente. As massas não perceberam então que a ocupação de Bagdad ficaria a assinalar o começo de uma longa guerra de libertação.

é indispensável que a maré do protesto volte a subir. E o momento, neste final do ano 2004, é muito propício para isso. A resistência do povo iraquiano, bem como a tenacidade da palestiniana e o caos afegão desorientaram Washington. O sistema passou à defensiva no plano político e sofre duros revezes no terreno militar.

Na Europa estremecem os alicerces de uma União Europeia cujos governos não obstante as contradições de interesses existentes actuam, no fundamental, como cúmplices do imperialismo.

Na América Latina emocionantes lutas se perfilam no horizonte.

Companheiros

A alternativa Socialismo ou Barbárie é, por si só, definidora de uma época simultaneamente trágica e fascinante. Se conseguirmos deter a marcha para a catástrofe, o homem poderá finalmente caminhar pelas grandes alamedas de acesso a um mundo que responda às aspirações ao bem-estar que as conquistas da ciência e da técnica colocam ao seu alcance. Mas o desfecho é, por ora, uma incógnita. Dependerá muito das actuais gerações que enfrentam um desafio gigantesco: derrotar um sistema de dominação monstruoso que encarna a ameaça à própria vida: um VI Reich em formação.

Nessa batalha planetária a participação de organizações e partidos revolucionários de novo tipo desempenhará um papel decisivo para a mobilização dos povos. Mas onde estão eles? — pergunta-se com fundamento. Admito que muitos vão definir-se e crescer no próprio processo de luta.

Ao reunirmo-nos na Venezuela para Defender a Humanidade não podemos esquecer que o povo deste país se tornou protagonista de uma epopeia ao passar da fase do espontaneísmo à da luta organizada em defesa da sua revolução.

O consenso em volta de um projecto de sociedade futura congregando povos e forças políticas distanciados por ideologias e culturas muito diferentes, quando não antagónicas, é neste limiar do século XXI — não me canso de repetir essa evidencia — uma impossibilidade. Insistir nessa utopia é esbanjar energias e tempo.

Mas mobilizar os povos para acções de luta de cidadãos com ideologias e culturas diferenciadas isso é possível, como já ficou demonstrado no ensaio geral de Fevereiro de 2003 contra a guerra de agressão ao Iraque. Levar muito mais longe essas acções, multiplicá-las, ampliar-lhes os objectivos no decurso da luta e inclui-las numa plataforma comum cada vez mais ambiciosa — eis o desafio maior que enfrentam hoje revolucionários de todas as nacionalidades.

A história da humanidade está indissoluvelmente ligada a desafios que, na aparência, se apresentavam como insuperáveis. A Revolução Francesa de 1789 irrompeu como um desses desafios. O mesmo aconteceu com a Revolução Russa de Outubro de 17. E ambas venceram.

Ninguém acreditava que nos anos 60 o Vietnam obrigaria os EUA a dobrarem os joelhos e retirarem-se, derrotados. E isso ocorreu.

No ano passado a ideia de um levantamento armado de proporções nacionais no Iraque era comentada como sonho. Hoje a resistência iraquiana está a desmoralizar o aparelho militar mais poderoso do mundo.

Sou optimista. A vitória contra as forças que ameaçam a humanidade está ao nosso alcance. Nesta Venezuela bolivariana onde a esperança nasce da luta do seu povo, a atmosfera que nos envolve fortalece a confiança no amanhã. A luta contra o sistema de opressão mundial não visa somente a mudar a vida. Hoje, como nos lembra George Gastaud, é para salvar a vida que se torna indispensável abolir a exploração do homem.

Serpa, 16 de Novembro de 2004


Notas de rodapé:

(1) John Holloway, Cambiar el Mundo sin tomar el Poder. Ed. da revista argentina Herramienta, Buenos Aires, e da Universidade Autonoma de Puebla, Mexico, 2001. (nota não referenciada no original)

(2) George Gastaud, Mondialisation Capitaliste et Projet Communiste, Ed. Le Temps des Cerises, Paris, 1997 (retornar ao texto)

(3) István Mészaros, The Power of Ideology, Harvester Wheatshea, Londres, 1989. Editado no Brasil por Ed. Boitempo, São Paulo, 2004 (retornar ao texto)

Inclusão: 04/11/2021