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Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
O III Encontro Hemisfério de luta contra a ALCA iluminou bem a explosiva contradição existente entre a vontade dos povos da América decididos a opor-se ao projecto de dominação imperial e a atitude submissa da quase totalidade dos governos a Sul do rio Bravo perante a decisão de Washington de o impor a partir do próximo ano.
Reunidos em Havana, 1230 representantes de organizações sociais e políticas de 35 países expressaram o sentir e a combatividade das forças democráticas e progressistas do Continente numa Declaração final e num Plano de Acção que anunciam grandes lutas.
Pela qualidade da reflexão e pela serena confiança de que a participação crescente dos povos contra a ALCA tende a mudar a relação de forças em desfavor do imperialismo, este Encontro diferiu dos anteriores, ficando a assinalar um aprofundamento da consciência da ameaça que paira sobre a América Latina. Avançou-se no importante trabalho de mobilização e organização.
Pelo estilo e objectividade, os documentos aprovados confirmam que a retórica cedeu o lugar ao realismo. O calendário é ambicioso, mas concreto, pragmático. Foi despojado de romantismo. Combate-se pelo possível.
Ao longo dos quatro dias do evento um objectivo emergiu como exigência permanente, marcando as conferencias e intervenções: é tarefa prioritária e fundamental derrotar a ALCA em todas as suas versões, assim como todos os tratados de livre comercio bilaterais ou sub-regionais.
O Plano de Acção prioriza outros cinco objectivos: fortalecer a campanha contra a ALCA na sua ligação com as lutas populares nos próximos e decisivos meses; impedir o avanço do processo de militarização das Américas, desmascarando os seus vínculos com a ALCA; contribuir activamente para o movimento mundial contra a guerra; aprofundar o processo de construção de uma integração alternativa para o Hemisfério; enfrentar as transnacionais e os seus interesses na assinatura dos tratados de livre comercio e nos processos de privatização bem como no saque dos recursos naturais.
Tanto o Plano de Acção como a Declaração Final ambos aclamados pelo Plenário na sessão de encerramento- dão ênfase especial às Mobilizações Continentais. Entre estas destacam-se quatro:
Das conferencias pronunciadas nas sessões plenárias, duas, pelo conteúdo e significado, merecem referência especial: a do economista cubano Osvaldo Martinez já publicada por resistir.info e a do brasileiro João Pedro Stedile, destacado dirigente do Movimento dos Sem Terra.
Na sua lúcida intervenção, Osvaldo, ex-ministro da Economia, chamou a atenção para um perigo ainda insuficientemente consciencializado pelos povos. Os EUA, quando se aperceberam de que não conseguiriam impor o projecto inicial da ALCA, que esbarrava com a oposição frontal da Venezuela e com objecções intransponíveis da parte do Brasil e da Argentina, optaram por uma nova versão, a chamada ALCA light, ou suave, da qual foram retirados os itens mais polémicos.
A estratégia estadunidense, habilmente desenvolvida, não foi, entretanto, alterada. O seu objectivo fundamental a recolonização total da América Latina manteve-se intacto. A meta é a mesma; trata-se agora de a atingir por outros meios. Como lembra Octavio Martinez, "da reunião de ministros efectuada em Miami surgiu uma mudança de desenho do projecto original da ALCA com dois ingredientes: uma ALCA 'suave' de nebulosos contornos a serem definidos e uns Tratados Bilaterais de Livre Comércio que continuam a ser a ALCA dura e provavelmente mais dura(...) O projecto anexionista mudou de forma e de procedimentos, mas mantém a sua essência".
O Chile, desgovernado por uma coligação neoliberal, já mordeu o anzol e assinou um Tratado bilateral. A assinatura de um Tratado subregional com os países da América Central aparece como iminente e inevitável. Seguir-se-ia outro, não muito diferente, com as nações da área andina, com excepção da Venezuela bolivariana. A Colômbia de Uribe, inicialmente voltada para o Tratado bilateral, assinará tudo o que dela exigir Washington; o Peru, o Equador não oporão resistência. A Bolívia, devido à força do movimento popular, suscita alguma preocupação, mas para a Administração Bush a grande tarefa no momento consiste em forçar o Brasil e a Argentina a aceitarem como data limite o ano 2005 para a implantação da ALCA "suave", tal como se comprometeram na reunião de Miami. Depois chegaria, no desenvolvimento da estratégia imperial, a ALCA. dura. O gigante mostraria os dentes.
A nova política de alianças do Governo Lula, acentuando a sua opção centrista, com fortalecimento da tendência neoliberal, não contribuiu para reforçar esperanças de que o Brasil se recuse a assinar, ou, pelo menos, consiga impor um novo adiamento. A sua capitulação arrastará a da Argentina, envolvendo o conjunto do Mercosul e, obviamente, colocará a Venezuela numa posição de isolamento muito difícil.
João Pedro Stedile, prudente pela linguagem, emocionou o plenário pelo conteúdo e combatividade da sua intervenção. O dirigente dos Sem Terra recusou liminarmente a ALCA sob qualquer das suas formas, e ao apelar a mobilização dos povos contra o projecto anexionista, foi ao encontro do sentimento profundo da quase totalidade dos presentes. Esboçou o panorama da crise estrutural do sistema de poder dos EUA, que envolve o capitalismo como totalidade, e estabeleceu pontes entre a luta contra a ALCA e a exigência do combate firme ao polo hegemónico do imperialismo. Num breve comentário da conjuntura brasileira evidenciou as contradições existentes num governo onde ao lado de ministros comunistas predominam ministros neoliberais que ditam a política económica e financeira e no qual o titular da Agricultura é um latifundiário profundamente reaccionário. Na sua opinião somente uma permanente pressão das massas poderá levar o governo Lula a alterar o actual rumo, desenvolvendo uma política que corresponda minimamente ás aspirações da maioria dos que o elegeram.
O plenário, no final, aplaudiu de pé, aclamando a sua intervenção.
O III Encontro abriu novos espaços ao debate ao ampliar os temas integrados no programa.
Dezasseis painéis em nove salas permitiram que delegados com formações e experiências muito diferentes imprimissem ao evento uma atmosfera peculiar que reflectiu a fascinante diversidade de uma América Latina na qual o denominador comum é a opressão imperial exercida pela engrenagem de poder dos EUA.
Não é possível sintetizar num texto breve como este a extraordinária riqueza de uma iniciativa que, estando orientada para a luta, foi também uma arena amplíssima para a confrontação de mundividências e uma oportunidade única para a transmissão e a assimilação, em múltiplos níveis, de um saber diversificado. É suficiente esclarecer que as conferencias e os debates por elas suscitados incidiram sobre questões acutíssimas: Divida externa, Militarização, Meio Ambiente, Cultura e identidade, Economia, Agricultura, Soberania, Alimentação, Meios de Comunicação, Trabalhadores migrantes, Mulheres, Estudantes e jovens, Camponeses e Indígenas, Religiosos, Parlamentares, Juristas, Trabalhadores e Luta sindical, Educação.
Extra programa, o Encontro proporcionou contactos muito úteis ao trabalho colectivo, no âmbito da Aliança Social Continental, ou fora dele, não somente entre amigos e camaradas de diferentes países e continentes como entre dirigentes e quadro políticos que puderam trocar impressões sobre temas específicos de muita actualidade não discutidos nas sessões do evento.
Pelo que me diz respeito esses contactos foram gratificantes. Cito como exemplo o convívio com a delegação da juventude do Partido dos Comunistas, do México (nascido da fusão de dois partidos marxistas-leninistas daquele pais). Durante quase duas horas, após uma palestra sobre temas ideológicos relacionados com a temática da complementaridade da acção entre movimentos sociais e partidos revolucionários, trocamos impressões sobre a crise estrutural do capitalismo, as guerras preventivas imperiais, a luta contra o reformismo e o revisionismo nos partidos comunistas, a ofensiva ideológica do neoanarquismo, o zapatismo de Chiapas, a questão das alternativas, etc.
Foi num ambiente de fraternidade e de esperança que, na noite do dia 29, foi lida e aprovada a Declaração Final do Encontro. O Documento tem a estrutura de um Apelo à participação nas grandes batalhas contra a ALCA que se aproximam. Nele se salienta que milhões de habitantes da América desde o II Encontro se pronunciaram com clareza contra a criação da ALCA. Trata-se agora de ampliar as proporções dessa luta, elevando-a a um patamar superior, num momento em que quase todos os governos do Hemisfério se preparam para ceder ao ultimato dos EUA, ou seja aceitação da ALCA em 2005. A Declaração é assim, também, um programa continental para a acção de massas.
Quando Fidel Castro que havia acompanhado os trabalhos desde o inicio entrou no grande salão do Palácio das Convenções para encerrar o Encontro a carinhosa e prolongada ovação com que foi saudado expressou emotivamente não apenas a solidariedade com a Revolução Cubana como o respeito e admiração pelo dirigente que simboliza a sua heróica resistência de 44 anos ao cerco imperial.
O discurso que pronunciou, de recorte humanista, enquadrou na luta continental contra a ALCA a epopeia cubana e as conquistas do seu povo.
Cuba sente a ameaça. O seu povo está consciente de que pode ser o alvo da próxima agressão do monstruoso sistema de poder de dominação imperial. Mas está preparado para a enfrentar se ela se concretizar.
Fidel comoveu o plenário ao afirmar, no final: "Não me importa a forma como morra, mas certamente, se nos invadirem, morrerei combatendo".
O herói da Sierra Maestra empunharia novamente o fuzil para se bater contra o inimigo e pela humanidade: "Não desejamos o conflito, mas não cederemos um ápice nos nossos princípios. Todos saberíamos o que fazer".