De Lucio, o traidor, a Simón, o herói

Miguel Urbano Rodrigues

10 de janeiro de 2004


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


A prisão em Quito, no Equador do comandante Simón Trinidad, das Forças Armadas Revolucionarias da Colômbia-Exército do Povo desencadeou a nível mundial uma estranha campanha mediática de desinformação.

O tom triunfalista das notas oficiais emitidas em Bogotá e o seu conteúdo têm por objectivo prioritário confundir a opinião publica internacional.

As contradições existentes entre versões divulgadas em Bogotá, Washington e Quito sobre a captura do destacado revolucionário são transparentes.

Enquanto o governo de Lucio Gutierrez se apressava a reivindicar o «mérito» da prisão, as forças armadas e os serviços de inteligência colombianos apresentavam-na como o desfecho de uma operação conjunta, preparada com larga antecedência. Simultaneamente em Washington transpiravam informações sobre a importância do papel desempenhado pela CIA

Nesse festival noticioso recheado de inverdades e comentários especulativos existe um denominador comum: nas três capitais as autoridades tentam desviar a atenção de um aspecto fundamental do assunto: a prisão de Simón Trinidad e a sua imediata extradição vieram iluminar a rede de cumplicidades estabelecida entre Quito, Bogotá e Washington. A entrega do comandante das FARC às autoridades colombianas configura um acto de traição de um dirigente político levado à Presidência pelas forças progressistas do seu país.

UM CAMALEÃO

A vida permitiu-me conhecer as duas personagens de um acontecimento que, transcendendo largamente o quadro regional, emocionou milhões de latino americanos suscitando a sua indignação. Tive a oportunidade de encontrar, em lugares e situações diferentes, Simón Trinidad e Lucio Gutierrez.

Foi em San Salvador, em Julho de 2001, durante a I Conferencia Internacional de Solidariedade com a Colômbia que conheci o actual presidente do Equador. Ele integrava a delegação do seu pais e teve um papel destacado no evento. Na sessão de abertura pronunciou de improviso um emocionado discurso. No Plano Colômbia identificou uma ameaça global à América Latina, e estabeleceu pontes entre ele e o projecto da ALCA. Numa intervenção mais elaborada, expressou, no dia seguinte, a sua firme solidariedade com a luta das organizações guerrilheiras, nomeadamente com as FARC.

Estávamos alojados no mesmo hotel e, após o encerramento, falámos, noite adiante, durante horas. Eu admirava Lúcio Gutierrez. Fora o líder do punhado de militares que aderira à insurreição indígena que derrubara o presidente Mahuad. O movimento revolucionário conseguira ocupar o palácio da Presidência após a marcha sobre a capital e detivera as insígnias do Poder por algumas horas.

Gutierrez, no diálogo que mantivemos, evocou com pormenores as circunstancias em que, enganado pelo chefe do Exército, permitira que militares ao serviço do imperialismo retomassem o controlo da situação. Preso posteriormente, os trabalhadores e a Confederação Nacional dos Indígenas do Equador (CONAIE) fizeram dele quase um herói popular. Recordo a sua veemência ao dizer-me que nunca mais voltaria a ser ingénuo e que a sua vida de soldado seria posta ao serviço do povo da sua terra, pátria de Espejo. A conversa entrou pela madrugada e dela participaram um dirigente do Partido da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional, principal organizadora da Conferencia, e revolucionários de Porto Rico. Não esqueci que o jovem coronel manifestou a sua admiração pelo MFA. Eu representara o PCP na Conferencia e falou-se inclusive da possibilidade da edição em Portugal de um trabalho que ele então preparava sobre a insurreição indígena equatoriana.

Transcorrido algum tempo, o prestigio de Lúcio cresceu. Foi o candidato das massas oprimidas e a sua eleição em 2002 não surpreendeu. Entrou no Palácio com o apoio maciço do povo. A sua imagem era a de um oficial progressista cujo discurso anti-neoliberal tinha matizes revolucionários. Um vendaval de esperança correu pelos vales da Cordilheira, descendo às quentes planuras da costa. Para a maioria dos equatorianos as portas de uma nova era estavam prestes a abrir-se.

Pura ilusão. A guinada foi imediata. Lucio Gutierrez capitulou antes mesmo de tomar posse. Voltou da primeira visita a Bush domado e comprado pelo imperialismo. Engavetou os compromissos assumidos e cedeu a todas as exigências de Washington.

Novas ilusões surgiram, entretanto, porque do governo formado participavam algumas personalidades progressistas, incluindo a ministra dos Negócios Estrangeiros, uma índia quechua. Mas a política que desenvolveu, de ostensiva orientação neoliberal, foi praticamente desde o inicio a imposta pelo Departamento de Estado. A dolarização manteve-se, a Base de Manta continuou a funcionar como um autentico enclave norte-americano e as relações com o governo fascizante de Álvaro Uribe assumiram um caracter de intimidade chocante. Em reuniões internacionais Lucio Gutierrez passou a comportar-se como um porta voz das posições de Washington, apoiando o Plano Colômbia, a ALCA e a política de intervenção naquele pais.

Poucas vezes terá ocorrido no Continente uma metamorfose tão rápida de um chefe de Estado. Os indígenas, que nele haviam confiado, tomaram distância. Lucio aparece hoje como um presidente títere, que renegou os ideais pelos quais se havia batido desde a juventude. Os ministros progressistas saíram do governo, desiludidos. A repressão contra os trabalhadores voltou às ruas como dura realidade. O povo principiou a exigir a renuncia do Presidente. Semanas atrás foi declarado traidor do povo equatoriano.

O inicio deste ano 2004 será recordado por um gesto de abjecção política que somente tem precedentes em atitudes de ditadores de republicas bananeras. O Presidente que há três anos erguia o punho, saudando as FARC em Conferencias Internacionais, deu o seu aval à entrega ao fascismo colombiano do comandante Simón Trinidad, preso em Quito pelos seus esbirros.

O REVOLUCIONÁRIO

De Simón Trinidad eu tinha notícia muito antes de o encontrar pela primeira vez.

Dele se pode dizer antes de mais que é um revolucionário atípico, com uma trajectória incomum.

Oriundo de uma família tradicional, a passagem pelos EUA, onde se doutorou na Universidade de Harvard, distanciou-o do sistema de dominação imperial em vez de o integrar na engrenagem. Como economista o êxito acompanhou-o permanentemente. Um dia desapareceu. Desempenhava então funções de direcção num grande banco. O beautiful people de Cundinamarca, Antioquia e do Valle não compreendeu como aquele fascinante jovem executivo que a tudo podia aspirar, filho de um ganadero riquíssimo do Departamento de César, rompia com a sua classe. Não mais se falou em Bogotá do economista Ricardo Palmera; mas não tardou que o nome de Simón Trinidad surgisse nas manchetes como destacado comandante das FARC.

O seu nome já adquirira ressonância continental quando o conheci em Los Pozos, na vila-acampamento erguida pelas FARC na zona desmilitarizada, o lugar onde transcorriam as negociações da organização revolucionaria com o governo de Andrés Pastraña, representado por um alto comissário. Simón integrava então o grupo das FARC, chefiado pelo comandante Raul Reyes, que era o interlocutor do Poder.

Falamos durante escassos minutos. O suficiente para que aquele brevíssimo encontro me deixasse uma impressão forte. Recordo que Simón Trinidad, de uniforme, com uma metralhadora à tiracolo, entrou de rompante no barracão onde eu estava para se sentar frente a um computador e começar a escrever algo com uma rapidez incomum. Trocamos poucas palavras quando o informaram que eu passava umas semanas com a guerrilha, num acampamento, algures na selva.

Voltei a vê-lo, dias depois em San Vicente del Caguan, na sede das FARC, instalada naquela cidade do Caquetá que para um forasteiro europeu acordava reminiscências do velho Oeste norte-americano.

Mas a imagem mais nítida que guardo do combatente ora entregue por Lucio Gutierrez à escória uribista é inseparável da atmosfera que envolveu o almoço oferecido a 28 de Junho pelo Secretariado das FARC aos embaixadores que acompanharam a entrega de três centenas de prisioneiros à Cruz Vermelha Internacional, em gesto unilateral de boa vontade da organização revolucionaria. Naquele pequeno pueblo amazónico perdido nas solidões verdes do Meta, diplomatas da Europa, da América e da Ásia haviam assistido à parada militar das FARC que precedera o desfile dos prisioneiros.

Chovia torrencialmente, um daqueles dilúvios próprios das regiões equatoriais. O almoço fora óptimo, mas o cenário, o ambiente, os convivas, na clareira da selva projectavam-me num universo extraterrestre. Sob o enorme toldo que fustigado pela tempestade aquática, corriam uma infindável mesa e os bancos que dela eram o complemento indispensável. Depois do café, falava-se no terreiro que prolongava o «restaurante». Os embaixadores rodeavam sobretudo Manuel Marulanda, Tiro Fijo, o comandante das FARC cuja morte fora anunciada mais de vinte vezes por muitos presidentes para de cada uma, depois, ressuscitar. Era de respeito, de admiração a atitude de todos os estrangeiros ao dirigirem a palavra ao legendário guerrilheiro, que rompera todos os cercos contra ele ideados, que sobrevivera a todos os bombardeamentos, nos Andes, nas selvas, nos llanos.

Findava uma época em que Andres Pastraña aparecia na televisão ao lado de Marulanda, colocando-lhe a mão no ombro, saudando-o com cortesia.

Lembro-me também da atenção com que alguns embaixadores escutavam o comandante Jorge Briceño, el Mono Jojoy, o estratega militar das FARC, pesadelo do Exercito colombiano ao qual infligiu incontáveis derrotas.

Foi a ultima vez que encontrei Simón Trinidad. O revolucionário que naqueles dias era abraçado por diplomatas vindos de mais de uma dezena de países teve mais tarde, com outros camaradas, a cabeça posta a prémio, a pedido do governo Bush. Por ela ofereceram 800 mil dólares.

Um presidente camaleão e traidor acaba de o entregar ao presidente fascista da Colômbia. Mas revolucionários com a têmpera de Simón Trinidad estão sempre preparados para enfrentar qualquer situação, por mais terrível que ela seja. Não cedem.

Li na Internet que Lúcio Gutierrez telefonou a Uribe, contente, considerando de "bom augúrio" a captura de Simón Trinidad. Tão baixo descem os homens quando perdem os últimos farrapos da dignidade.

Subiu-me hoje na memória um conselho que lhe dei quando me pediu a opinião, em San Salvador, sobre o discurso que pronunciara na abertura da solidariedade com a Colômbia insurgente.

Ele terminara gritando: «Viva o mundo!»

Por inexperiência não fora capaz de encontrar um fecho adequado.

Eu disse-lhe nessa noite:

«Não diga, coronel, Viva o Mundo!. O mundo é demasiado vasto e fluido para o vitoriarmos. Nele cabe tudo, o que amamos e o que detestamos, o que nos move na luta e o que desprezamos, os heróis e os traidores».

Não foi sem emoção que na TV vi Simón Trinidad, rodeado de policias, erguer as mãos algemadas, abrir os dedos no V da vitoria e bradar: «Viva Simón Bolívar; viva a luta das FARC-Exército do Povo».

São homens como ele que mantém acesa a esperança de um mundo diferente daquele em que, encasteladas no Poder, existem criaturas como Lucio, o camaleão, e Bush o seu patrão.


Inclusão: 01/08/2021