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Fonte: http://resistir.info
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O que ocorreu na Colômbia nos dias 25 e 26 de Outubro parece arrancado de uma novela de Gabriel Garcia Marquez. As derrotas infligidas ao presidente Álvaro Uribe, pelo tamanho e significado, produziram no país o efeito de um terramoto.
Primeiro o povo recusou-lhe os poderes que pedia e a possibilidade de reformas constitucionais que, através de um Referendo de recorte fascista, pretendia impor. No dia seguinte Uribe perdeu as eleições locais. Em Bogotá, Medellin, Cali, e Barranquilla, os eleitores votaram maciçamente em candidatos da oposição.
Durante meses Uribe cantou as vitórias por ele imaginadas. O seu superministro Fernando Londoño (Interior e Justiça) afirmava que mais de 14 milhões de colombianos responderiam SIM às perguntas do plebiscito.
O Governo exerceu uma formidável pressão sobre o eleitorado, gastando milhões no financiamento da campanha. A televisão, a rádio, a imprensa apresentaram o SIM como uma exigência patriótica. A contribuição das transnacionais foi também ostensiva. O presidente, imitando o estilo bushiano, exibiu-se, entre artistas, em shows de baixo nível, incluindo o programa Grande hermano (Big Brother). O exército e a polícia intimidaram as populações nas semanas que precederam o referendo.
O embaixador dos Estados Unidos, desrespeitando o estatuto diplomático, comportou-se como um vice-rei. Interveio na campanha, criticou a abstenção e pediu o SIM para as perguntas que suscitavam mais polemica, incluindo as relativas a exigências do FMI e do Departamento de Estado. Grupos de paramilitares ameaçaram os camponeses sobretudo nos Departamentos do Casanares, do Meta, Norte de Santander e Cesar.
Mas a engrenagem não funcionou. A oposição destruiu o sonho de Uribe. Conclamou o povo a ficar em casa. E a esmagadora maioria dos eleitores atendeu a esse apelo: absteve-se.
Horas depois de iniciada a contagem, o governo apercebeu-se de que iria sofrer uma enorme derrota. Uribe entrou em pânico.
Em circunstancias ainda mal conhecidas a contagem dos votos foi suspensa e, ao ser reiniciada, a percentagem dos SIM aumentou estranhamente. Mecanismos fraudulentos haviam sido accionados. A manobra, entretanto, chegou tarde. Faltavam apenas as urnas de regiões remotas, representando pouco mais de 2% dos votos emitidos quando a contagem foi novamente interrompida e o seu recomeço adiado para data e hora a serem anunciadas.
Quando o Conselho Eleitoral divulgou os números até então conhecidos, ficou transparente que nenhuma das 15 perguntas atingira o mínimo de 6 267 000 votos imprescindível à sua aprovação. É improvável que os resultados oficiais da recontagem sejam tornados públicos antes do dia 10, mas na hipótese mais favorável para Uribe apenas duas ou três perguntas poderão ser aprovadas.
A que obteve mais votos, a primeira, era particularmente ambígua. O objectivo seria dinamizar a luta contra a corrupção. Entretanto, o texto estabelece que os funcionários corruptos afastados por roubalheiras ou dívidas poderão ser readmitidos desde que regularizem a sua situação...
As propostas relativas à redução do número de deputados e senadores, ao congelamento de salários dos trabalhadores e cortes de despesas públicas, sobretudo em áreas sociais, obtiveram votação muito baixa.
O governo reuniu-se de emergência para reflectir sobre a derrota de um projecto que durante meses apresentara como pilar da sua estratégia. Eram duas as opções: desconhecer o resultado através de uma fraude gigantesca na recontagem, ou conformar-se com a rejeição do referendo. Foi essa, finalmente, a decisão tomada. Uribe temia a reacção do povo, se o desafiasse.
No domingo, ainda acusando a desorientação resultante da recusa das suas propostas de reformas, Uribe sofreu uma nova derrota de grandes proporções. Nas eleições locais para governadores, alcaides e vereadores, os seus candidatos, nas principais cidades do país, foram amplamente batidos. O desastre maior ocorreu na capital, onde Luís Garzón, um destacado sindicalista, ex-presidente da Central de Trabalhadores, foi eleito presidente da Câmara Municipal. Mas o governo perdeu também em Medellin, Cali e Barranquilla, três cidades com mais de um milhão de habitantes e noutros grandes centros urbanos.
Para espanto do Poder, a afluência às urnas foi a maior dos últimos anos.
A acumulação de derrotas forçou a extrema-direita a mudar de linguagem. O discurso triunfalista foi substituído por outro, adaptado às circunstancias.
Sem surpresa, o Senado pronunciou-se, quase imediatamente, por confortável maioria, contra a emenda à Constituição, preparada para permitir a reeleição de Uribe. Foi mais um sonho que se desfez.
O primeiro dos ministros a apresentar o seu pedido de demissão foi Londoño, mas todos os membros do Governo, depois, colocaram os cargos à disposição do Presidente. Era impossível ocultar o sismo político que atingira não apenas Uribe, mas a oligarquia colombiana e, indirectamente, Washington, sustentáculo de uma política apresentada por Bush como modelo a ser imitado.
Nos EUA o New York Times e o Washington Post dedicaram ao referendo e às eleições editoriais que soaram em Bogotá como textos fúnebres. A CNN e as outras grandes cadeias da TV estadunidense seguiram-lhes o exemplo.
El Tiempo, o grande diário colombiano (300 mil exemplares e quase meio milhão no domingo), sentiu a necessidade de reconhecer que o povo lhe desmentira nas urnas as previsões e que, perante a situação criada, Álvaro Uribe terá de rever a sua política. Com o seu farisaísmo aristocrático, o jornal aconselhou mesmo o Presidente a proceder a uma autocrítica como prólogo de uma nova estratégia, imposta pela derrocada do seu projecto e das suas esperanças.
Aguardado com impaciência, o discurso que o Presidente dirigiu à nação no dia 29 de Outubro foi contraditório. Por um lado declarou respeitar os resultados do referendo. Reconheceu, portanto, a derrota, embora, para lhe atenuar o significado, em alusão descabida às guerrilhas, tenha afirmado que «os votos têm valor e as balas não». Omitiu que o povo condenou a sua política ao inviabilizar o referendo e eleger candidatos da oposição.
Simultaneamente, Álvaro Uribe, numa pirueta típica do seu desrespeito pela nação, informou que «com a protecção de Deus» (até na intimidade com o divino imita Bush) tratará, por todos os meios ao seu alcance, de conseguir, por outros meios, levar adiante muitas das reformas que pretendia impor e não passaram. Está consciente que não poderá reduzir o tamanho do Congresso nem congelar os salários como queria, mas advertiu que através de acordos com deputados e senadores, com governadores, alcaides, reitores de universidades, etc, usará precisamente o Parlamento e os poderes locais para que lhe permitam implantar as medidas que o eleitorado acaba de desaprovar. Ficou transparente que o povo vai ser sobrecarregado com novos impostos. A carga tributaria que anunciou será particularmente dura para os trabalhadores que vivem do seu salário e para os pequenos empresários e agricultores.
El Tiempo, porta-voz da oligarquia, só parcialmente aprova as opções de Uribe e os remédios que ele anunciou. Se tudo pudesse correr como deseja, o Presidente, utilizando um Plano B, teria condições para atingir, afinal, muitos dos seus objectivos. Mas o grande jornal está preocupado porque um Congresso envalentonado pelos resultados do referendo pode estragar tudo. Essa apreensão é legitima. Na primeira reunião da bancada uribista com o presidente, o congressista German Varón interpelou Uribe e saiu da sala, batendo com a porta, quando o Presidente o admoestou, cortando-lhe a palavra.
Uribe não pode desconhecer também que o Partido Liberal contribuiu decisivamente para a sua derrota nas eleições locais. A senadora Piedad Cordoba apressou-se a abraçar Lucho Garzon pela sua vitoria em Bogotá.
Alvaro Uribe é vocacionalmente fascista, embora as circunstancias lhe imponham a necessidade de exibir uma fachada democrática. Mas o seu curriculum dissipa dúvidas sobre a opção ideológica e a sua concepção do Estado e da política.
Na prática o actual regime colombiano é uma ditadura civil representativa da ultradireita da oligarquia mais reaccionária e antiga da América Latina.
O Estado uribista, intimamente ligado ao paramilitarismo, desenvolveu desde o inicio, com o apoio de Washington, uma estratégia que exigia a militarização do país e a fascizaçao da sociedade. O Presidente proclamou que a insurreição guerrilheira era a causa de todos os grandes problemas nacionais e que as Forças Armadas estavam em condições de destruir as FARC e o ELN.
Retomou assim um mito desacreditado. Os resultados são conhecidos. As FARC, organização revolucionaria temperada em quase quatro décadas de luta, não só resistiram vitoriosamente a todas as ofensivas contra elas lançadas, como reforçaram a sua solidariedade com o ELN em diferentes frentes de combate.
Atolados no Iraque e no Afeganistão, os EUA não se sentiram em condições, pelo menos no momento, de atender aos apelos de Uribe para transformar a sua intervenção indirecta numa intervenção militar directa.
O povo da Colômbia, consciente de que a solução para os problemas sociais do país não pode ser militar e sim política, acaba de demonstrar ao mundo que, afinal, a popularidade do Presidente, trombeteada aos quatro ventos, não passava de um slogan forjado pela propaganda.
Uribe tentará agora, enquanto negoceia com o Congresso, neutralizar as personalidades políticas da oposição que derrotaram os seus candidatos. El Tiempo, apreensivo sobretudo com a eleição de Lucho Garzon para alcaide de Bogota uma megalópolis de quase 8 milhões de habitantes aponta já ao Presidente o caminho da «coabitação» com aquele político de centro-esquerda, afirmando que seria «uma demonstração positiva da evolução política» do país.
Uribe não ignora que o Polo Democrático Independente, apesar da elevada votação alcançada, não é uma força política estruturada com condições para actuar como um partido. Foi criado para funcionar como coligação eleitoral, sobretudo em Bogotá, mas seria ingénuo identificar nele aquilo que não pode ser.
Para mal do Presidente, a situação económica e financeira é desastrosa, em grande parte devido à sua política de militarização do pais.
Sobrecarregar o povo com novos impostos num momento em que o défice do orçamento, enorme, tende a crescer, somente contribuirá para agravar a crise social. Por si só, o serviço da divida externa exigirá no próximo ano 25.400 milhões de dólares, o que corresponde a 37,8% do orçamento nacional.
É neste quadro alarmante, com milhões de desempregados e a grande maioria da população afundada na miséria, que Uribe enfrenta o futuro imediato, insistindo na sua política de guerra total.
Laboratório de lutas sociais, a Colômbia é hoje uma vitrina da falência na América Latina do neoliberalismo. No país a luta de classes é transparente e exacerbada. O desenvolvimento da história comprova ali que o capitalismo é, afinal, uma relação de poder entre classes em conflito.
O comandante Raul Reyes, do Secretariado e do Estado Maior Central das FARC, em artigo publicado no numero 31 da Revista Resistência daquela organização lembra, em apelo ao bom senso, que somente «um novo governo orientado para a paz, pluralista, patriótico e democrático, oposto à política imperial neoliberal» pode responder às aspirações da maioria dos colombianos e contribuir para a solução da crise política, económica, social e armada que transformou o país numa vitrina da tragédia latino americana.
As duas derrotas eleitorais infligidas a Álvaro Uribe no final de Outubro aí estão, a dar-lhe razão.
Havana, 1 de Outubro de 2003