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Fonte: https://www.resistir.info/mur/lula_ilusao.html
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Antes de ir até à Índia, o Brasil aparecia-me como o pais do mundo mais difícil de compreender.
Vivi 17 anos naquela terra, sinto-me em casa cada vez que volto. A intimidade com o cenário físico e humano não derrubou, entretanto, a grande barreira. O mistério brasileiro permanece para mim intacto. Identifico-me com o povo, amo-o, quase pressinto nele os contornos de uma humanidade rehumanizada. Navego com familiaridade entre os factos e a gente. Mas tenho enorme dificuldade em entender o rumo que a historia ali segue. O Brasil derrota o esforço para ser compreendido através da razão.
Se a historia se cumprisse com um mínimo de lógica, o Brasil seria neste inicio do século XXI não somente um país desenvolvido como o padrão de uma sociedade de abundância e de convívio harmonioso entre comunidades de culturas e origens raciais diferentes.
O austríaco Stefan Zweig, ao descobri-lo nas vésperas da II Guerra Mundial, vislumbrou nele «O País do Futuro». A profecia não se concretizou. O sentido do movimento da historia inverteu-se. O Brasil, em circunstancias conhecidas, começou a caminhar para trás. E a involução prossegue.
Um sociólogo sueco que passou por São Paulo há duas semanas sintetizou num breve comentário o seu espanto: «Assisti a um debate na televisão, li os jornais, visitei a Universidade, falei com muita gente. Senti-me espectador de uma comédia aparente que oculta o desenrolar de uma tragédia».
É minha convicção de que não existe na América outro povo que tenha com o cubano afinidades tão profundas como o brasileiro. A história e o idioma distanciou-os. Um fosso separa-os hoje no tocante à educação e à saúde e aos sistemas político-institucionais. À desigualdade social do Brasil — quase um recorde mundial — contrapõe-se um regime que se propõe reduzi-la ao mínimo. Mas o abismo entre os Estados e as estruturas socio-económicas não impede uma estranha aproximação das idiossincrasias e dos povos. As raízes euro-africanas de ambos estão na origem de mundividências, atitudes e formas de comportamento cultural que, pela convergência, impressionam.
Pode-se objectar que enquanto a violência, a droga e a marginalidade infantil marcam dramaticamente o quotidiano das megalópolis brasileiras, Havana é a capital mais segura da América, uma cidade que tem o culto da criança, na qual os drogados constituem uma raridade trazida pelo turismo.
A contradição não elimina o parentesco cultural. Empurra para uma pergunta: como explicar os processos que levaram no Brasil a rupturas do tecido social muito profundas, mas insuficientes para contaminar a esmagadora maioria do povo? Este gerou os anticorpos que lhe permitiram preservar a sua especificidade cultural. Sobreviveu à dupla ameaça vinda de minorias formadas nos dois extremos da sociedade: uma burguesia que renunciou ao desenvolvimento autónomo, transformando-se em instrumento e apêndice do sistema de poder imperial; e uma camada lumpen, em acelerado crescimento, resultante do funcionamento da própria engrenagem da exploração, ou seja uma massa de dezenas de milhões de párias, fonte da violência endémica, do crime organizado, das redes de droga, da prostituição, da lama social cujos fios aparecem entrançados com o poder.
O povo brasileiro, ou para ser mais preciso, a esmagadora maioria dos brasileiros permaneceu fiel às raízes. Governado como se fora um protectorado, oprimido pelos de cima, agredido pela invasão dos valores culturais assimilados pelos sectores sociais mais contaminados pela máquina trituradora da globalização neoliberal, e simultaneamente vítima da violência, da insegurança e da pressão desagregadora da massa de párias e das mafias do crime que brotam dos subterrâneos da sociedade capitalista — o brasileiro que eu aprendi a respeitar e amar, o «homem cordial» definido pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, esse resistiu. Pela sobrevivência pagou um preço colossal.
A campanha eleitoral polariza nestes dias a atenção de dezenas de milhões de brasileiros e é acompanhada com interesse absorvente em todo o Continente Americano.
Nunca senti atracção pelos exercícios de futurologia política. Não faço previsões sobre o adversário de Lula na segunda volta; nem sobre o provável desfecho, quer a luta pela presidência seja travada contra José Serra ou contra Ciro Gomes.
Se fosse brasileiro votaria por Lula. Mas somente pela ausência de uma alternativa. A sua candidatura suscitou inicialmente grandes esperanças em amplos sectores da esquerda brasileira. Emergiu como o candidato natural das forças progressistas para as desiludir progressivamente.
Lula, nesta sua quarta tentativa de chegar ao Palácio do Planalto, tem mais probabilidades de atingir o objectivo do que nas anteriores. Paradoxalmente não é por mérito próprio que isso acontece, mas pelo total descrédito do sistema, pela aspiração de mudanças profundas que se enraizou nas grandes maiorias. A convicção de que nunca como agora as condições para se tornar Presidente foram tão favoráveis contribuiu — outro paradoxo — para que Lula, empenhado em obter o apoio de uma ampla faixa da pequena e da media burguesia, esvaziasse o discurso de muito do que lhe conferia significado e inspirava confiança aos trabalhadores.
De longe, tenho acompanhado a sua campanha. Desaprovo-a mais pelas posições assumidas do que pelas omissões. Não seria razoável esperar dele um discurso como o dos dirigentes do PC do B — o seu mais firme e leal aliado na eleição — cauteloso, mas reflectindo a imagem de um partido revolucionário. Mas Lula foi tão longe nas concessões que perdeu a confiança e o respeito de muitos brasileiros que desejavam vê-lo assumir uma postura muito diferente. Admito que o erro na opção estratégica cabe no fundamental à direcção do PT.
A perseguição ao voto, quando se torna obsessiva, implica a perda da lucidez. A conquista da Presidência proporciona num país como o Brasil a obtenção das insígnias do poder. Mas o Poder real, qualquer que seja o eleito, não mudará de mãos. A engrenagem que o controla, externa e interna, modelou o quadro institucional de forma a impedir a mudança do sistema.
Numa democracia representativa latino-americana de estrutura presidencial não é indiferente que o presidente seja um procônsul de Washington ou um político patriota e progressista. Mas é uma ingenuidade crer que instituições ideadas e impostas pela burguesia possam servir para transformações profundas do sistema incompatíveis com a lógica do seu funcionamento.
A ideia de que as concessões de campanha proporcionam os votos que podem levar à vitoria e são irrelevantes porque, conquistado o Poder, uma guinada no leme marcaria, então, o rumo progressista do governo de Lula assenta numa análise ingénua e falsa da realidade, para não dizer oportunista.
Não foi por acaso que a embaixadora dos Estados Unidos em Brasília manifestou publicamente o seu apreço por Lula e que Fernando Henrique ensaiou uma aproximação, deixando transparecer o seu eventual apoio ao candidato do PT, na hipótese de Serra não ser o seu adversário na segunda volta. É transparente que ambos deixaram de identificar em Lula uma ameaça ao sistema. Porquê essa súbita benevolência?
A aceitação de Lula resultaria da conclusão a que chegaram de que seria um presidente assimilável, ou, para ser mais preciso, um presidente que se conformaria com as regras básicas da dominação imperial.
Tal conclusão é prematura. A natureza de classe de um governo não depende exclusivamente do seu chefe, nem do projecto do seu partido. No caso do Brasil pesariam muito o envolvimento internacional num contexto da crise global latino-americana, condicionamentos por ora imprevisíveis e o comportamento das forças sociais que apoiariam o governo e das que a ele se oporiam. Não duvido da integridade pessoal de Lula nem da sua convicção de que «depois» poderia mudar de estilo e de linguagem, deslocando-se para a esquerda.
Mas as suas boas intenções contam menos do que as cedências feitas ao longo da campanha. O taticismo, como dizia Lenine, é uma forma de oportunismo político. Lula — cito apenas alguns exemplos chocantes — nunca deveria ter afirmado que, se presidente, não tolerará ocupações, tal como não deveria ter-se comprometido a respeitar os acordos com o FMI assinados pela actual administração. Para tranquilizar a direita e o imperialismo distanciou-se do MST, talvez hoje o movimento mais importante da esquerda latino-americana, e, o que é ainda mais grave, escancarou a porta à capitulação perante os mecanismos da dominação estrangeira que, ele sabe, são responsáveis pelo ciclo dramático da dependência económica e política e impedem o desenvolvimento autónomo do país.
A escolha para seu vice-presidente de um grande empresário mineiro ligado ao Partido Liberal controlado pela mafiosa Igreja Universal do Reino de Deus, foi outra decisão eleiçoeira que lhe prejudicou a imagem, tal como o acordo com o ex-presidente Sarney. É significativo que o Conselho Nacional dos Bispos do Brasil tenha sentido a necessidade de lhe dirigir duas criticas pelo oportunismo das posições assumidas
Não estamos perante atitudes isoladas. Em Novembro pp, em Havana, durante a Conferencia Anti-Alca, tive a oportunidade de escutar um discurso de Lula que, pelo seu pessimismo difuso, transmitia uma mensagem desmobilizadora num momento em que o combate ao projecto de colonização continental dos EUA é na América Latina, como totalidade, uma frente de luta prioritária. Posteriormente, o PT decidiu não participar no plebiscito sobre a integração do Brasil na Alca. Lula permaneceu mudo ante esse gesto capitulador. Aliás, Lula nunca se opôs frontalmente ao projecto recolonizador e defendeu publicamente que, com algumas mudanças cosméticas, "outra ALCA é possível"...
O Brasil é, potencialmente, um dos países mais ricos do mundo. Com excepção da Rússia, talvez não exista outro que o iguale em recursos naturais. Dispõe de um sector avançado que o coloca logo após os países industrializados do G-7.
Os mecanismos da dependência, entretanto, empurram-no para trás. Nas últimas décadas acumulou fracassos.
O balanço dos dois mandatos de Fernando Henrique é esclarecedor daquilo que não se deve fazer.
FHC foi na juventude um dos mais brilhantes e talentosos sociólogos da América Latina. Na Universidade de São Paulo, quando o conheci, chamavam-lhe «O Príncipe». Dizia-se então marxista. Foi expulso da universidade e no exílio escreveu com o chileno Enzo Faletto um livro importante — a Teoria da Dependência — em que desmontava os mecanismos da dominação imperialista. Mais tarde renegou essa obra e na Presidência, após a sua conversão ao neoliberalismo, comportou-se como aliado preferencial do sistema de poder dos EUA.
Lula não desconhece o funcionamento da engrenagem de dominação. Denunciou-o desde a juventude, como líder sindical. Sabe que o povo brasileiro (como quase todos na América Latina) trabalha para pagar um endividamento que não pára de crescer. O diabolismo do sistema tem regras rígidas. A falsa ajuda, vinda sob a forma de empréstimos, créditos, investimentos que geram royalties escorchantes, etc, suga os excedentes, condiciona as opções estratégicas, faz do país uma colónia de novo tipo.
Lula combateu sempre com firmeza esses mecanismos e as políticas desenvolvidas para os impor. Agora, na sua quarta tentativa de conquista da Presidência, tornou-se personagem de uma estratégia que, ao torná-lo cúmplice do sistema, se choca frontalmente com as aspirações do seu povo.
A capitulação verifica-se num momento de crise global da civilização, quando o sistema de poder imperial dos EUA desenvolve um projecto de ditadura militar planetária de contornos fascistizantes.
A direcção do PT e o seu candidato estão demonstrando incapacidade de entender as lições da historia. A tragédia chilena e o inquietante bloqueio do projecto bolivariano de Hugo Chavez iluminam com nitidez uma realidade. A chamada via pacífica para uma transformação da sociedade capitalista que a humanize não é viável na América Latina no actual contexto histórico. O poder da burguesia, inseparável do poder transnacional a que está submetida, não pode ser destruído no quadro institucional por ela criado para lhe servir os objectivos de classe e os interesses do sistema de poder imperial.
É indispensável utilizar os mecanismos da falsa democracia representativa para combater por todos os meios a engrenagem de dominação política e económica que exclui a participação do povo, ou seja do sujeito da historia. Mas sem ilusões, sem confundir as insígnias do poder com o poder real. O PT e Lula demonstram com a sua campanha, semeada de concessões oportunistas, não ter assimilado essa evidencia.
O despertar pode demorar um pouco se Lula chegar à Presidência. Mas será, em qualquer hipótese, doloroso.
O lema do Fórum Social Mundial — «Outro mundo é possível» — responde à esperança da humanidade. A engrenagem da globalização neoliberal e o sistema de poder imperial que a impõe não vão perpetuar-se. São vulneráveis e, pela sua própria irracionalidade, contem as sementes da sua própria destruição.
Combatê-los frontalmente é uma exigência da história. Lutar contra eles optando pelo caminho das concessões, do oportunismo, é um erro gravíssimo.