O Regresso de Bolívar

Miguel Urbano Rodrigues

24 de abril de 2002


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Bolivar morreu há 172 anos. Não foi possível apagar-lhe da historia o nome. Mas pouco sabem os contemporâneos da sua vida e obra. Daí a surpresa provocada na Europa pela reivindicação do projecto bolivariano pelo venezuelano Hugo Chavez.

É um facto que revolucionários como José Marti e Fidel Castro proclamaram sempre a sua identificação com o ideário do Libertador. Para ambos foi ele o grande pioneiro do combate pela unidade dos povos da América Latina.

Mas só muito recentemente o pensamento político de Bolivar principiou no continente a ser novamente tema de debate entre as novas gerações

Esse prolongado esquecimento do Bolivar pensador e estadista tem uma explicação simples.

Bolivar foi um reformador social revolucionário e um antimperialista consequente, o que incomodava na Colômbia e em toda a América as forças retrogradas que ele, sobretudo nos últimos anos, combateu com coerência e tenacidade.

É esclarecedor que nenhum governo colombiano tenha tomado até hoje a iniciativa de promover a edição e divulgação da obra (completa) do herói máximo das lutas pela independência na América latina.

Liberais e conservadores, ao longo de mais de século e meio, entenderam-se tacitamente em torno de um objectivo comum: incutir no povo a ideia da existência de dois Bolivares. Um, o militar, merecedor do respeito e da gratidão de todos os americanos; o outro, o político, um governante incapaz, incompatível com a democracia, com vocação de tirano. Glorificam o primeiro; satanizam o segundo.

Para a oligarquia da Grande Colômbia (que englobava a Venezuela, o Equador e o Panamá, alem da antiga Nova Granada) Bolivar deveria ter ido para casa quando o ultimo exército espanhol capitulou nos Andes peruanos.

Segundo a historiografia oficial o herói esgotou a sua missão após Ayacucho. Teria morrido para a história. Depois, na visão da oligarquia, nasceu um vilão.

Esse retrato, pintado com as cores do ódio, é fantasista e perverso. A tese dos dois Bolivares não tem pés nem cabeça. Foi forjada para denegrir o reformador social que de 1826 a 1829 se tornou o pesadelo da oligarquia: o libertador dos escravos e dos índios, o defensor dos direitos do povo como sujeito da historia, o pedagogo, o internacionalista, o líder da unidade continental contra a prepotência imperialista.

Todos os detractores de Bolivar — antigos e actuais — coincidem em condená-lo por haver assumido a ditadura em 1828.

É suficiente ler os textos da época para se perceber o conceito de democracia dos legisladores que então invectivaram e combateram Bolívar.

Chamaram-lhe «caudilho dos descamisados», «líder dos debaixo», «chefe da negrada e indiada».

O general Santander, ex-vice-presidente de Bolivar, que se tornou o seu mais implacável adversário, deixou cair a máscara ao acusar o Libertador de desencadear «uma guerra interior na qual ganhem os que nada têm, que sempre são muitos, e que percamos nós, os que temos, que somos poucos».

Essas palavras acabam por funcionar como um boomerang, servindo para justificar a decisão e a política de Bolívar.

Ao regressar a cavalo do Perú a Bogotá, pelos vales e mesetas da cordilheira, Bolivar sofre com o espectáculo da miséria dos povos que havia libertado. Percebe que após anos de uma luta heróica pela independência esses povos viviam ainda pior do que na época da opressão espanhola. Ao transmitir a Santander as reivindicações das populações escreve: «não sei como não se levantaram ainda todos estes povos e soldados ao concluírem que os seus males não vêm da guerra mas de leis absurdas».(1)

Os cinco anos de ausência do Libertador, absorvido no Sul pela guerra contra os espanhóis, foram aproveitados pela nova classe dominante para modelar as estruturas de um Estado cujas instituições haviam sido concebidas para perpetuar e aprofundar a desigualdade social em vez de a reduzir.

Os crioulos ricos e grande parte dos generais, toda uma casta de descendentes dos antigos terratenientes e encomenderos peninsulares, exploradores dos índios e comerciantes mobilizaram esforços para defender e ampliar privilégios e acrescentar àquilo que já tinham o poder político que antes era exercido pelos representantes da Coroa. Claro que ao longo da guerra houve clivagens entre essa gente. Mas quando as armas silenciaram, a máscara dos republicanos e monárquicos caiu em pedaços. Convergiram num objectivo: colocar o poder do Estado ao serviço dos seus interesses pessoais. Os legisladores usavam uma fraseologia inspirada em grandes textos da Revolução Francesa e da Revolução Americana. Mas usaram grandes palavras para criar uma «republica aérea», como dizia Bolivar, porque queriam um Estado amorfo e passivo que lhes permitisse ampliar os seus privilégios senhoriais. Não concebiam a Constituição como algo criado para servir o corpo social; era este que deveria funcionar como emanação da lei magna. Bolivar, como Kant, achava que a política deve «dobrar os joelhos perante a moral». E na Colômbia os legisladores pretendiam o contrário. Pensavam e agiam como se a «vontade do povo fosse a opinião deles».

Noutras cartas a Santander, Bolívar escreveu: «Tenho mil vezes mais fé no povo do que nos deputados(...) Jamais um Congresso salvou uma republica»(...) Não conheço outra opção saudável que não seja a de devolver ao povo a sua soberania primitiva, para que refaça o pacto social».

Para agravar a situação o Estado oligárquico havia criado uma administração corrompida e corruptora que Bolivar comparou a sanguessugas que se alimentam com o sangue humano.

O pacote de medidas que se seguiram ao Decreto Orgânico de Agosto de 1828 foi apresentado nos EUA e nas monarquias europeias como espelho da política autocrática de um caudilho tirânico. A imprensa norte-americana intensificou a campanha contra o Libertador, pintando-o como um ditador vingativo e sanguinário. A correspondência trocada então entre o Departamento de Estado e o representante dos EUA em Santa Fé de Bogotá lembra pelo reacionarismo e o cinismo a dos modernos embaixadores norte-americanos na Venezuela ou Cuba no seu dialogo com a sra. Albright.

O que inquietava os governos da Santa Aliança e o nascente imperialismo americano era o conteúdo profundamente democrático e revolucionário das medidas de Bolivar. Elas golpeavam duramente os interesses da oligarquia.

Bolivar utilizou os poderes extraordinários do mandato que assumiu para virar o Estado do avesso. Este deixou de ser o instrumento de defesa e reforço dos privilégios da classe senhorial para ser colocado a serviço dos direitos, liberdades e exigências sociais do povo.

O saneamento da justiça e a punição dos funcionários corruptos foi uma preocupação prioritária. Bolivar começou por reduzir para metade os altos vencimentos dos membros do Congresso e aboliu todos os privilégios que o Estado concedia à Igreja Católica.

A lei que obrigava os índios a prestar serviço militar obrigatório num regime de semi-escravidão foi revogada. De todas as suas medidas revolucionarias a que mais indignou os grandes latifundiários foi aquela que ordenou a devolução aos índios, como seus «legítimos proprietários», das terras de que os seus antepassados haviam sido expulsos pela coroa espanhola, independentemente dos títulos de posse apresentados pelos actuais senhores.

Leis promulgadas para o efeito incentivaram a indústria e o comércio e a elevação das taxas aduaneiras protegeu a produção nacional da livre concorrência com as mercadorias importadas. O monopólio da navegação no rio Magdalena (a grande artéria fluvial do pais) concedido por Santander a um empresário dos EUA foi revogado. A milenária indústria textil dos índios equatorianos foi protegida de forma a poder vestir, se necessário, «toda a América do Sul».

As minas particulares foram nacionalizadas e o Estado concentrou nas suas mãos o monopólio de todas as riquezas do subsolo.

Decretos especiais visaram a protecção da natureza, nomeadamente as florestas e as águas dos grandes rios.

Na área da Educação as faculdades de Medicina de Bogotá, Caracas e Quito foram incumbidas de zelar, em cooperação com as autoridades do Estado, pela preservação das plantas medicinais úteis. Bolivar chegara à conclusão de que o primeiro dever de um governo consistia em proporcionar ao povo uma boa Educaçao, gratuita. O seu mestre e amigo Simon Rodriguez recebeu autoridade e meios para reformar os estabelecimentos escolares existentes e criar outros «nos melhores edifícios», para «todas as crianças de ambos os sexos que em cada departamento estejam em estado de instruir-se em ciências e artes» (gramática, literatura, historia, etc).

O Governo decidiu adoptar os muitos milhares de crianças que haviam ficado órfãs em consequência da guerra.

A Constituição de Cucuta (redigida e imposta pela oligarquia tomando como modelo a norte-americana e as ideias de Jefferson) estabelecia que um cidadão para ser eleitor e elegível tinha de ser proprietário ou possuir um determinado rendimento. O Libertador não aceitou essa discriminação que ampliava a desigualdade. Aboliu-a. Decretou que «Todos os cidadãos são iguais perante a lei e igualmente admissíveis para servir em todos os empregos civis, eclesiásticos e militares».

Dispositivos legais como esse intensificaram as criticas ao «ditador» que promovia «o despotismo da maioria». Bolivar respondeu-lhes com estas palavras:

«O povo é mais sábio que todos os sábios(...) A vontade nacional será o meu guia e nada poderá impedir que me consagre ao seu serviço e de conduzir este povo onde ele quiser».

Seria infindável o rol da legislação bolivariana de caracter progressista promulgada durante os dois breves anos da ditadura que, segundo a direita colombiana, constituiu uma tresloucada agressão à democracia.

Bolívar tinha pressa. Sabia que era curto o seu tempo de vida útil. Sentia a proximidade da morte na ruína de um corpo marcado pelos estigmas de uma vida que pela dureza lembra a dos heróis da mitologia grega. Gastara duas décadas da existência cavalgando e combatendo pelos llanos tropicais, por florestas e pantanais e pelas e altas punas andinas, transpondo com o seu exercito, cada vez mais internacionalista, píncaros de neves eternas que trespassavam o céu.

Viveu o suficiente para assistir, angustiado e já moribundo, afastado do poder, ao desmoronar da sua obra, odiada pelos abutres da oligarquia.

Mas as sementes dela não secaram. Não puderam o medo e a inveja dos inimigos destrui-las. Voltaram a germinar.

Não é por acaso que o venezuelano Chavez submeteu ao seu povo uma Constituição bolivariana e ela foi plebiscitada por uma esmagadora maioria.

Não é por acaso que Fidel Castro desfralda desde a juventude as bandeiras de Bolívar.

Marx era uma criança quando Bolivar se batia pela unidade da América hispânica e índia e antecipava que os Estados Unidos iriam, em nome da liberdade, semear misérias no corpo das jovens republicas. Lenine nasceu quatro décadas após a sua morte.

Era outra no tempo do Libertador a linguagem política. Mas de alguma maneira, a ditadura revolucionaria de Bolivar foi inspirada pelo mesmo espirito humanista e democrático, pelo mesmo amor do povo que levou a Revolução de Outubro de 17 a proclamar a ditadura do proletariado, hoje tão caluniada.

Nunca esqueço que nos regimentos do exército bolivariano que sob o comando de Sucre destruiu em Aycacucho o que restava no Continente do poder imperial da Espanha lutaram, ombro a ombro, colombianos, venezuelanos, equatorianos, peruanos, bolivianos, chilenos e argentinos. Era um exercito internacionalista e revolucionário, como o Libertador.


Notas de rodapé:

(1) Todas as citações deste artigo foram extraídas do livro «Bolivar, el Hombre de América - Presencia y Camino», Juvenal Herrera Torres, Ediciones Convivencias, Medellín, Colômbia, 2000. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021