Aspectos da luta contra o subjetivismo no 49º aniversário do PCB

Luiz Carlos Prestes

Março de 1971


Transcrição e HTML: Igor José Moretto Fonseca

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Os comunistas brasileiros, na luta histórica em que se acham empenhados pela democracia e pelo socialismo, enfrentam numerosas dificuldades, tanto práticas como teóricas. Entre estas, como reconheceu o último Congresso de nosso Partido, estão “nossas limitações teóricas” e o “domínio insuficiente da realidade do país”. Daí, o subjetivismo que tantos males já nos causou, levando a equívocos, falhas e erros de consequências muitas vezes desastrosas para a luta sustentada pelo movimento operário que cabe aos comunistas orientar e dirigir.

Quero neste artigo, escrito ao comemorarmos o 49º aniversário do Partido, referir-me a uma apenas das formas como se tem manifestado o subjetivismo em nossas fileiras, por ser talvez a mais comum e insistente, difícil de combater e que consegue muitas vezes iludir a numerosos combatentes e conquistar o apoio de parcelas não pequenas do Partido e do movimento operário e democrático. Refiro-me à tendência à transposição mecânica a nosso país da experiência de outros povos. Posição dogmática e, portanto, antimarxista e antileninista, mas que, no entanto, vem se repetindo em nossas fileiras, servindo de cobertura para as tendências oportunistas, tanto de direita como de esquerda.

Essa tendência à cópia servil do que se passa no estrangeiro reflete a influência da cultura burguesa e pequeno burguesa em nossas fileiras. Um fosso profundo separa, em nosso país, a minoria letrada da maioria esmagadora da nação – miserável, em grande parte analfabeta, e brutalmente explorada e oprimida, contraste que se agrava com o crescente monopólio imperialista dos meios de comunicação em massa e com a censura oficial, burocrática e reacionária. Isto não significa negar o esforço patriótico e honesto dos intelectuais brasileiros, que vão forjando, ao lado e em oposição à chamada cultura nacional, reacionária e dominante, porque é a das classes dominantes, uma cultura progressista e popular, com elementos democráticos e socialistas. São grandes, no entanto, as dificuldades que enfrentam os intelectuais em nosso país para refletir e expressar o que se passa entre o povo, seus sentimentos e reivindicações, e, daí, a tendência à cópia, à transposição mecânica de manifestações alienígenas, ao cosmopolitismo cultural. “Combato atualmente a Europa – dizia Mário de Andrade, em 1942 – mais que posso. Não porque deixe de reconhecê-la, admirá-la, porém, pra destruir a europeização do brasileiro educado”(1). Mas, como não foi modificada a estrutura socioeconômica do país, essa destruição não foi possível. A “europeização” transformou-se, nas últimas décadas, em americanização do “brasileiro educado”. Por isso, mesmo os patriotas honestos que se rebelaram contra aquela europeização – como aconteceu, por exemplo, com os artistas e escritores de chamada Semana de Arte Moderna, de 1922 – no fim de contas, o que, na verdade, fizeram foi procurar transpor mecanicamente para nosso país as novas escolas estéticas que surgiam na Europa após a primeira guerra mundial. E, recentemente, o Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro, que nos mostrou senão o predomínio da música norte-americana sobre a música popular brasileira?

E não é somente no terreno das artes, da literatura e da filosofia que predomina em nosso país essa tendencia à cópia servil do que se passa no exterior. É também no terreno das instituições políticas, em que a preocupação das classes dominantes foi sempre a de encobrir instituições reacionárias e retrógradas com a vestimenta de democracia burguesa – o escravagismo do Império com o parlamentarismo britânico, como o regine latifundiário e burguês da República com o presidencialismo norte-americano.

Tobias Barreto já mostrava, em sua época, os males dessa cópia no terreno da política:

“Cada povo tem a sua história – escrevia ele –, e cada história tem os seus fatores. Tampouco se encontram duas nações com o mesmo desenvolvimento, como dois indivíduos com a mesma feição”.

E concluía:

“Ai dos imitadores, se diz na poesia: porém três vezes mais dignos de lastima os imitadores políticos: eles são o presente mais perigoso, com que a cólera dos deuses pode mimosear uma nação infeliz”(2).

O que há de errado nessa transposição mecânica da experiência de outros povos para nosso país, tornou-se dos últimos anos, após a vitória da Revolução Cubana, bem evidente para o movimento revolucionário brasileiro. É claro que, como marxista-leninistas, internacionalistas portanto, não podemos deixar de estudar com proveito as experiencias da classe operária e demais forças revolucionárias em todo o mundo. Sabemos também que o socialismo é uma ciência e que como ciência deve ser tratado. Quer dizer, está sujeito a leis gerais a que se submetem à revolução socialista e à construção do socialismo. Mas, como advertia Lênin, é indispensável na aplicação dos princípios fundamentais do comunismo, tomar em consideração as particularidades específicas de cada nação. Olvidar as peculiaridades nacionais é divorciar-se da vida e das massas, é negar a ciência do proletariado.

Foi esquecendo esses princípios básicos do marxismo-leninismo que se tentou transpor para nosso país a experiência vitoriosa do povo cubano, em geral reduzida, de maneira caricata, aos aspectos da luta armada sustentada por um pequeno grupo de guerrilheiros, sem se tomar em consideração numerosos outros fatores – econômicos, políticos, sociais e culturais – específicos de Cuba e que contribuíram decisivamente para a vitória da revolução na Ilha da Liberdade. E, juntamente com isto, levantava-se em nosso país a bandeira da luta armada, da criação de “focos” guerrilheiros isolados das massas, sem cuidar do estudo ou do exame da situação concreta brasileira, dos diversos fatores que conformam essa situação. Em verdade, a pretexto de seguir o exemplo heroico dos revolucionários cubanos, tomava-se uma posição ultra-esquerdista que, no fim de contas, queiram ou não seus partidários, facilitava – como continua facilitando – à ditadura militar reacionária em nosso país, justificar e reforçar sua dominação. Não constitui também nenhuma contribuição positiva para a revolução em nosso país o aniquilamento físico de tantos revolucionários, jovens patriotas, abnegados e valentes.

Diante do insucesso, já evidente, dos imitadores em nosso país da Revolução Cubana, levanta-se agora a tendência a imitar o que se passa mais recentemente no Peru e, talvez com menor repercussão, o que vem acontecendo na Bolívia, países em que ditaduras militares tomam medidas de sentido nacional reformista e, mesmo, nacional revolucionário, como é o caso do Peru, conforme reconhecem em seus últimos documentos os camaradas da direção do Partido Comunista do Peru.

Sem dúvida, constitui, o que se vem passando nesses dois países andinos, muito especialmente no Peru, experiência que merece estudo acurado, já que revela novas formas no processo revolucionário dos povos irmãos da América Latina, na luta que se aguça contra a dominação imperialista, contra o latifúndio, pela independência nacional e pelo progresso social. A nós, comunistas, interessa-nos, muito particularmente, acompanhar, no desenvolvimento do que se passa no Peru, a forma pela qual a classe operária e sua vanguarda comunista participam dos acontecimentos e conseguem fazer avançar sua força e sua influência política e ideológica sobre as grandes massas trabalhadoras das cidades e do campo. Supor, porém, que o atual caminho peruano possa ser repetido em nosso país, que os generais da atual ditadura brasileira – carrascos e torturadores do povo – possam espontaneamente tomar pelo caminho da defesa dos interesses nacionais ou da democratização do regime é ilusão pequeno-burguesa que reflete, no fim de contas, capitulação pura e simples ao atual regime.

Não disponho dos elementos informativos suficientes pera examinar os fatores econômicos, políticos, sociais e culturais, nem as tradições históricas do povo peruano, elementos todos que em seu conjunto contribuíram para o desenvolvimento de um processo revolucionário tão específico. Quanto ao nosso país, porém, os que julgam possível a repetição de semelhante processo revelam desconhecimento, ou total esquecimento, de nossa história. A experiência dos últimos quarenta anos já nos ensinou que não é sob a direção dos militares pequeno-burgueses nem da burguesia nacional que poderá avançar o processo revolucionário em nosso país.

Em 1930, por exemplo, os tenentes participaram do movimento popular – a chamada revolução de 30 – e chegaram ao poder. Que fizeram então? Destruíram por acaso o regime dominante de latifundiários e de submissão ao imperialismo? Não. Ao contrário, capitularam e se passaram para o lado dos opressores nacionais e estrangeiros de nosso povo. Onde estão hoje os Eduardo Gomes, os Távora, Cordeiro de Faria, e tantos outros? Ao lado dos setores mais retrógrados das classes dominantes, solidários com a ditadura e o regime de tipo fascista imposto à nação, com todos os seus Atos Institucionais. Muitos deles prosperaram bastante e são hoje diretores de bancos e grandes empresas estrangeiras, como Jurací Magalhães, Nelson de Melo et caterva.

Essa foi a posição dos militares pequeno-burgueses. Quanto à burguesia nacional(3), a partir do segundo governo Vargas, em 1951, começou a exercer papel influente no poder. Suas posições se reforçaram no governo Kubitschek e alcançaram maior destaque no governo Goulart. Bastou, porém, que a classe operária desse alguns passos no caminho da organização de suas forças e da luta pelos seus interesses e que a conjuntura econômica se modificasse colocando na ordem-do-dia a necessidade de medidas mais avançadas, para que a burguesia nacional passasse com armas e bagagens para o lado da reação interna e dos seus aliados dos monopólios norte-americanos. Como reconheceu o Comitê Central de nosso Partido, em seu Informe ao VI Congresso:

“No início de 1964, modificou-se profundamente a correlação de forças sociais e políticas. A maior parte da burguesia nacional, arrastando consigo amplos setores da pequena burguesia, inclusive a maioria esmagadora dos oficiais das Forças Armadas, já se colocava contra o governo e passava a proporcionar base de massas às forças reacionárias que conspiravam para depor o governo”(4).

Evidentemente, essa capitulação da pequena burguesia e de burguesia nacional não se dá por acaso, reflete uma situação concreta em que se destacam dois fatores importantes: de um lado, o nível já alcançado pelo antagonismo de classe entre o trabalho e o capital, entre o proletariado e a burguesia, em nosso país; e, de outro, o poderio do Estado dos latifundiários e grandes capitalistas ligados ao imperialismo ianque, poderio econômico, com base numa tradição mais que secular e que vem do regime colonial imposto por Portugal em nosso país, mantido pelo Império escravocrata e conservado pela República dos latifundiários e de grandes capitalistas associados aos monopólios estrangeiros.

É certo que a pequena burguesia, pela sua própria natureza de camada social intermediária, é vacilante e predisposta à capitulação. Quanto à burguesia nacional, sua posição política depende sempre das condições concretas, das modificações que se dão na correlação de forças de classe e, muito particularmente, da força efetiva do movimento operário e da consistência do seu sistema de alianças. Era de esperar, no entanto, que num país como o nosso, brutalmente oprimido pelo imperialismo e no qual a concentração da propriedade da terra nas mãos de uma minoria dificulta e retarda a ampliação do mercado interno, aquelas camadas tivessem força para iniciar ao menos o processo revolucionário, fossem capazes de desfechar os primeiros golpes no Estado latifundiário-burguês serviçal do imperialismo e de conquistar um regime de democracia burguesa, em que elas mais facilmente pudessem defender seus interesses, regime em que as grandes massas populares conquistassem, de fato, as liberdades democráticas e começassem a participar efetivamente da vida política, a conhecer a prática do autogoverno, através do sufrágio universal.

Isto, no entanto, não se deu. E para surpresa nossa, porque não soubemos apreciar com acerto as condições objetivas, mas principalmente porque, ao avaliarmos a correlação de forças em presença, temos até agora deixado de lado o poderio do Estado em nosso país, poderio que não é apenas econômico, mas também político e o que é mais importante – apoiado numa tradição reacionária, de instrumento de opressão, de violência e de arbítrio contra a maioria da nação.

“Em política – dizia Engels – só há dois poderes decisivos: a força organizada do Estado – o exército – e a força elementar e desorganizada das massas”(5).

Mas, no caso brasileiro, esse problema do Estado, baseado numa tradição reacionária mais que secular e que até hoje não pode ser quebrada, constitui fator peculiar de nosso país. Nisto, a situação do Brasil se distingue da maioria dos demais países da América Latina. No entanto, não temos em geral tomado na devida consideração esse fator ao apreciar a realidade objetiva em que se desenvolve o movimento revolucionário no Brasil.

Os diversos países da América Latina, aproximadamente, têm a mesma infraestrutura (embora, em níveis diferentes de desenvolvimento econômico), enfrentam todos o mesmo inimigo comum e atravessam a mesma etapa da revolução, mas cada um teve seu próprio desenvolvimento histórico, possui tradições populares peculiares e chegou a níveis diferentes de desenvolvimento político. O desconhecimento das peculiaridades nacionais de cada um decorre, em geral, de uma errônea compreensão das relações entre infraestrutura e superestrutura. Esta não é determinada única e diretamente por aquela. É claro que as leis sociais, como leis objetivas, acabam inelutavelmente por abrir caminho através de todas as resistências. Mas a lei histórica atua somente como lei de tendencia, quer dizer, “como uma lei cuja vigência absoluta se vê contida, entorpecida e atenuada por causas que se lhe opõem”(6). Diante de fatores adversos, que travam a atividade das massas, a lei histórica é amortecida em maior ou menor grau, segundo a influência daqueles fatores. A unidade do processo de desenvolvimento, sujeito às mesmas leis, não pode levar a não se reconhecer a diversidade das formas histórico-concretas em que se caracterizam em cada país aquelas leis gerais. É a grande lição de Marx, ao escrever que “a mesma base econômica – a mesma quanto às condições fundamentais – pode mostrar em seu modo de manifestar-se infinitas variações e gradações devidas a diferentes e inumeráveis circunstâncias empíricas, condições naturais, fatores étnicos, influências históricas que atuam do exterior, etc., variações e gradações que só podem ser compreendidas mediante a análise destas circunstâncias empíricas dadas”(7). E a análise do processo histórico em nosso país, em particular no que tange às características do Estado, que nos tem faltado para tornar mais claro o que distingue o Brasil da maioria dos demais países irmãos da América Latina.

Como reconhece, por exemplo, o professor norte-americano Jordam M. Young, do Pace College, de Nova York:

“Depois de 1822, a maioria dos países latino-americanos iniciaram suas experiências de republicanismo. Em contraste com isso, o Brasil adotou um sistema imperial que tinha mais em comum com o passado português do que com o futuro do Brasil”(8).

E o que também reconhece, num dos poucos livros em que são assinalados os fatores adversos ao progresso do Brasil, o professor E.L. Berlinck, ao escrever:

“... a origem das nossas deficiências (analfabetismo, baixa produtividade, opressão política) e que se podem resumir na fórmula: falta de valorização do homem brasileiro, provem da nossa formação colonial”.

E, a seguir, pergunta por que ainda hoje (em 1948, ao ser publicado seu livro) sentimos a repercussão dos males que aqui foram causados pelos colonizadores? E responde:

“... a independência não foi uma revolução nacional, foi, antes, uma manobra continuísta da Casa de Bragança, e toda a máquina montada para oprimir a colônia. O contraste entre a conspiração de Tiradentes, a revolução de 1817 e mesmo, já no período da independência, a revolução de 1824 e as démarches de gabinete da nossa independência oficial... é flagrante. Nos movimentos revolucionários, sente-se a reação violenta de homens cultos contra a tirania colonial, visando claramente a sua destruição, e fundação de uma república nestas terras. Nas manobras que precederam a independência oficial do Brasil, percebem-se os esforços de uma casta dominante no sentido de colher para si essa independência que já estava madura...”(9).

Não é isto, no entanto, o que se ensina nas escolas, nem o que consta de toda uma vasta historiografia oficial. Esta silencia o mais que lhe é possível a respeito das lutas heroicas dos oprimidos em toda a história de nosso povo, para exaltar a forma pretensamente pacífica de todas as suas conquistas. A título de história, propagam-se as mais cínicas mentiras e bastou que no ISEB fosse feita uma primeira e tímida tentativa no sentido de ser reescrita a história do país com base em pesquisa menos comprometida com os interesses dos setores mais retrógrados das classes dominantes para que seus autores fossem processados juridicamente sob a acusação de atentarem contra a segurança nacional.

É de Engels a afirmação de que o Estado “é esse poder, nascido da sociedade, mas que se coloca por cima dela e dela se divorcia mais e mais”. No Brasil, o Estado surgiu de fora, imposto pela metrópole portuguesa, sempre esteve por cima da sociedade e dela divorciado. Embora, a partir de dependência política, passasse a representar os interesses dos senhores de escravos e, em seguida, após a abolição de escravidão negra, dos latifundiários e grandes capitalistas associados aos monopólios imperialistas, manteve-se sempre acima das grandes massas trabalhadoras e delas separado. Governo e povo foram sempre em nosso país dois campos antagônicos. Particularmente no interior do país, para o povo o governo é o inimigo e não passa de sinônimo de brutalidade policial, de perseguição para o serviço militar obrigatório e para a cobrança de impostos. É a instituição que a todos, salvo à minoria dos donos do poder, atemoriza. Foi o que pude verificar, ao ouvir, durante a marcha da Coluna (1924-1927) a milhares de homens e mulheres do povo. E o sr. Raymundo Faolo, em seus trabalhos a respeito do que denomina de formação do patronato brasileiro, chega a reconhecer que “a nação e o Estado se cindem em realidades diversas, estranhas, opostas, que mutuamente se desconhecem”(10).

Apoiado na burocracia colonial, na força armada e na Igreja católica(11), tinha o Estado por objetivo assegurar a exploração comercial da Colônia, manter a escravidão negra, massacrar a resistência da população indígena, submeter pela violência as outras parcelas da população trabalhadora. Apesar das lutas heroicas que se sucederam durante mais de cinquenta anos, de Tiradentes (1789) até a Revolução Farroupilha (1835-1845), a independência política do país não modificou, no essencial, o caráter do Estado. Os senhores de escravos e amplos setores da burguesia comercial precisavam, na defesa de seus privilégios, do mesmo Estado centralizado - único capaz de garantir a escravidão negra. Foi a luta pela salvaguarda da escravidão que permitiu aquilo que os historiadores das classes dominantes chamam de "milagre" da unidade nacional. Todas as tentativas contra o poder do aparelho estatal, contra os impostos cobrados pelo governo imperial, pela autonomia local e pela conquista de governos representativos foram esmagadas pela força. Por isso, foi dissolvida a Constituinte de 1823 e outorgada pelo primeiro Imperador uma Constituinte apropriada à defesa dos interesses dos senhores de escravos. E ninguém melhor que Caxias representou o papel – e o exerceu – de general dos senhores de escravos – capaz de todas as monstruosidades contra o povo. Em 1840, ao ser proclamada a maioridade de Pedro II, o Estado estava consolidado e pôde permitir o reinado de 50 anos do Imperador escravocrata. Nesses cinquenta anos, a tarefa do Estado foi manter a escravidão e impedir o progresso econômico e cultural do país, com a Proclamação da República, não mudou no fundamental o caráter do Estado. Com a abolição da escravidão negra, acelerou-se o desenvolvimento econômico, os entraves ao progresso foram em parte eliminados, mas os latifundiários e grandes capitalistas ligarem-se aos monopólios imperialistas e abriram o país à penetração do capital monopolista estrangeiro. Com o desenvolvimento da indústria moderna, amplia-se e aprofunda-se o antagonismo de classe entre o capital e o trabalho e o poder do Estado foi adquirindo, cada vez mais, o caráter de poder nacional do capital sobre o trabalho, de máquina do despotismo de classe. Por sua vez, com o desenvolvimento econômico, passou o Estado a intervir mais acentuadamente na vida econômica, em defesa dos interesses das classes dominantes e contra os interesses dos trabalhadores. Começam os planos de “defesa” do café, acentuam-se as tarifas aduaneiras protecionistas, surgem os “Institutos” de “defesa” do açúcar, da banha, do cacau, etc. Após a crise econômica de 1929 e o movimento popular de 1930, surge a legislação trabalhista com o objetivo de submeter a classe operária por meio de uma organização corporativa de tipo fascista, subordinada diretamente ao Estado e que perdura até hoje, agravada agora com as medidas tomadas após o golpe militar de 1964. Nos últimos trinta anos, o Estado passou a atuar diretamente na economia, através das empresas estatais – em maior parte das vezes, forçado pelas circunstâncias e para servir aos interesses da minoria dominante –, sendo que, atualmente, 65% das inversões anuais em nosso país correspondem ao Estado. Nestas condições, além da força armada, da tradição secular de dominação, de organização acima da sociedade e divorciada do povo, é também uma força econômica cada vez mais poderosa e que só é inferior em poderio econômico e político aos grandes monopólios imperialistas e aos Estados a serviço deles, antes e acima de tudo aos monopólios ianques e ao governo dos Estados Unidos da América.

É esse Estado que precisa ser golpeado seriamente para, em seguida, ser efetivamente destruído, a fim de que o processo revolucionário em nosso país avance e possa ser finalmente vitorioso, abrindo para nosso povo o caminho para a democracia, o desenvolvimento econômico independente e o socialismo. Tarefa histórica e gigantesca que só pode ser realizada sob a direção da classe social que, no regime capitalista, pela posição decisiva que ocupa na produção social, é a mais avançada, é a única consequentemente revolucionária – a classe operária, que, ao libertar-se, liberta igualmente a todos os demais explorados e oprimidos. Só a classe operária tem justamente por isso condições de ganhar para suas posições revolucionárias, organizar e unir sob sua direção as demais forças revolucionárias da sociedade brasileira. Como é igualmente sob sua direção que será possível mobilizar, organizar e unir, nas condições atuais, as amplíssimas forças antiditatoriais, desde os camponeses e a pequena burguesia urbana, a intelectualidade e os estudantes, assim como a burguesia nacional.

Nosso Partido precisa, pois, voltar-se, cada vez mais, com decisão e firmeza, para a classe operária. É enraizando suas forças na classe operária que poderá intensificar a luta contra a influência da ideologia pequeno-burguesa, causa fundamental do subjetivismo, quer dizer, da subestimação da teoria e do estudo da situação concreta, como também de outros males já assinalados em documentos partidários.

Essa influência das correntes pequeno-burguesas, vivas e persistente, em nossas fileiras, decorre do próprio processo de formação de nosso Partido. Tanto das características de boa parte do proletariado – constituído pelos serventes da construção civil e pelos trabalhadores não qualificados, em atividade nos milhares de pequenas empresas, muitas delas de caráter quase artesanal –, proletariado de formação recente e de origem camponesa; como também do afluxo às fileiras partidárias da intelectualidade revolucionária anti-imperialista, em geral de origem pequeno-burguesa e portadora de sua ideologia. É no próprio curso da luta revolucionária, a par de intenso trabalho ideológico, que esses aderentes adquirem a ideologia do proletariado.

Isto já o dizíamos no IV Congresso do Partido (1954). E insistíamos no V Congresso, cujas Teses preconizavam: “O combate às influências ideológicas estranhas à classe operária impõe a generalização da experiência histórica do Partido, o conhecimento do processo de sua formação e a crítica aprofundada às concepções pequeno-burguesas que predominaram em diversos períodos, na sua direção e em suas fileiras”(12). Foi no VI Congresso, no entanto, que acentuamos a necessidade de acelerar esse processo de formação ideológica do Partido, dedicando maior cuidado à sua construção no núcleo fundamental da classe operária, o qual, nas condições atuais de nosso país, localiza-se nas grandes empresas industriais. É nelas, portanto, onde devemos concentrar nosso trabalho de construção e reforçamento das bases partidárias.

É disto que precisamos nós, comunistas, nos convencer, porque justamente nisto está a significação profunda do “desafio histórico” a que se refere a Resolução Política do VI Congresso de nosso Partido, “desafio histórico” que não traduza apenas uma tese teórica, mas a posição autocrítica que decorre de uma conclusão tirada da própria experiência política do movimento revolucionário em nosso país. É através de um partido marxista-leninista enraizado nas grandes empresas, capaz de organizar e educar a classe operária, um partido ligado às massas trabalhadoras, que surgirão em nosso país as condições que permitirão abalar e golpear a fortaleza da reação, essa muralha reacionária que é o atual Estado brasileiro.

É certo que, concentrando seus principais esforços na construção do Partido nas grandes empresas, os comunistas não deixam de acompanhar com atenção a vida política da nação, procurando sempre impulsioná-la para a frente através da justa utilização das contradições que se aguçam entre as classes dominantes e os diversos grupos e frações em que elas se dividem. São contradições que se acentuam em consequência do próprio desenvolvimento do capitalismo, que se intensifica nos últimos anos, a partir de 1968 mais exatamente.

Este desenvolvimento se dá em condições novas, é um de desenvolvimento em benefício dos monopólios e que não pode deixar de ter em conta a existência do sistema socialista e quando no mundo se desenvolve o capitalismo monopolista de Estado e acelera-se a revolução científico-técnica moderna. Por tudo isso, o atual desenvolvimento do capitalismo em nosso país leva a uma aceleração excepcional da concentração do capital e da produção em benefício de uma minoria cada vez mais reduzida e contra os interesses da maioria esmagadora da nação. Essa maioria é vítima do arrocho salarial, da tributação crescente, da poupança forçada e da desnacionalização acelerada da economia brasileira. É um desenvolvimento enfim que leva a uma distribuição da renda nacional cada vez mais injusta e que aprofunda as contradições regionais. Consequentemente, a ditadura isola-se cada vez mais e necessita aumentar a repressão de tipo fascista para assegurar sua dominação. A violência, a brutalidade e o arbítrio dos senhores do poder não traduz, portanto, força, mas sua crescente fraqueza, que se sustenta exclusivamente no poderio econômico, policial e militar do Estado.

Por sua vez, aumenta inevitavelmente a instabilidade da ditadura. Por motivos os mais diferentes, desde interesses feridos, até o legítimo receio de que não seja através dos métodos fascistas que melhor e mais eficientemente seja defendido o atual regime, grupos e frações das classes dominantes aspiram por novas “saídas”, buscam outras soluções, visando à consolidação do regime imposto ao país pelo golpe militar reacionário de 1964. Semelhante divisão é particularmente sensível nas Forças Armadas, que, por dispor de força – armas e soldados –, constitui de fato, nos dias de hoje, a única organização política existente no país que pode intervir, como efetivamente intervém, na vida política, no seio da qual, justamente por isso, não podem deixar de repercutir as contradições políticas que dividem a nação e as classes dominantes em particular.

Mas mesmo diante dessa crescente instabilidade da ditadura, da perspectiva e da possibilidade real de novos golpes militares, o que cabe fundamentalmente às forças revolucionárias é prepararem-se para intervir de maneira prática, independente e eficiente em qualquer crise política. Na emergência de um golpe militar, só a força organizada das massas, dirigidas pela classe operária e sua vanguarda marxista-leninista, tem condições para golpear o atual regime político e impulsionar o processo revolucionário. É esta a orientação que a Resolução Política do VI Congresso de nosso Partido, ao prever a ocorrência de “crises de governo e novos golpes”, traçou como diretiva para a atividade do Partido: “Neste caso, só a intervenção das forças populares, levantando suas próprias bandeiras de luta, poderá impedir uma solução reacionária, com a simples substituição de golpistas no poder, e impor uma solução democrática”.

Para tanto, é indispensável que à frente das forças populares esteja a classe operária dirigida por sua vanguarda marxista-leninista. Por tudo isso, torna-se cada dia mais evidente que, nas atuais condições de nosso país, a tarefa básica que enfrentamos consiste em reforçar nosso Partido, como partido político da classe operária, isto é, efetivamente organizado nas grandes empresas urbanas e de tal maneira vinculado ao movimento operário que esteja em condições de dirigi-lo.

Evidentemente, não é esta uma tarefa fácil no mundo capitalista, sejam quais forem as circunstâncias, e muito menos nas condições atuais de nosso país.

“Mas o trabalho dos marxistas – dizia Lênin – sempre é difícil e eles se distinguem dos liberais precisamente porque não declaram impossível o que é difícil”(13).

Venceremos todas as dificuldades se, em primeiro lugar, nos convencermos do acerto dessa diretiva; se, em segundo lugar, soubermos fazer esforços para realizar a unidade mais estreita dos melhores elementos de nossas fileiras, dispostos a vencer todas as dificuldades; e, em terceiro lugar, se planificarmos com acerto nosso trabalho. As medidas práticas a tomar já estão expostas, no fundamental, no capítulo sobre o Partido da Resolução Política do VI Congresso e, com maior amplitude, no Informe do Comitê Central ao VI Congresso. Outro elemento que muito poderá ajudar na realização dessa tarefa será o estudo e generalização da experiência adquirida com os esforços já feitos numa ou noutra organização partidária no sentido da construção e desenvolvimento de organizações de base nas grandes empresas.

É, pois, concentrando esforços para levar à prática o “desafio histórico” levantado pelo VI Congresso do Partido que comemoraremos neste mês de março o 49º aniversário de nosso Partido. A própria atividade do Partido, apesar de toda a repressão policial, nos dá a certeza de que dispomos em nossas fileiras de reservas de energia, de abnegação pessoal, de firmeza revolucionária, de espírito de sacrifício, que nos permitem augurar a superação de todas as dificuldades.

“Não é difícil – dizia Lênin – ser revolucionário quando a revolução estalou e se encontra no seu apogeu”. E concluía: “É infinitamente mais difícil, e muitíssimo mais meritório – saber ser revolucionário quando a situação ainda não permite a luta direta, franca, a verdadeira luta de massas, a verdadeira luta revolucionária; saber defender os interesses da revolução (mediante a propaganda, a agitação, a organização) em instituições não revolucionárias e muitas vezes simplesmente reacionárias, na situação não-revolucionária, entre massas incapazes de compreender de um modo imediato a necessidade de um método revolucionário de ação, saber encontrar, perceber, determinar exatamente a marcha concreta ou a mudança dos acontecimentos suscetíveis de conduzir as massas à grande e verdadeira luta revolucionária final e decisiva”(14).

Além desse esforço meritório que exige de cada comunista uma profunda convicção revolucionária, a firme disposição para um trabalho modesto e paciente, cujos frutos não poderão ser imediatos, precisamos intensificar em todo Partido a educação teórica de seus membros, o que significa desenvolver e aprofundar o estudo do marxismo-leninismo e da situação de nosso país no contexto da evolução dos acontecimentos no mundo inteiro.

Entramos agora no ano do quinquagésimo aniversário da fundação de nosso Partido. Será esta a oportunidade de concentrarmos esforços no sentido do estudo científico da realidade brasileira, que não pode deixar de incluir o estudo das condições em que se desenvolve o capitalismo em nosso país, a história de nosso povo, a do movimento operário brasileiro e a história de nosso próprio Partido.


Notas de rodapé:

(1) Citado por Fábio Lucas, “O Caráter Social da Literatura Brasileira”, Edições Paz e Terra, p. 25. (retornar ao texto)

(2) In “Estudos Alemães”, Laemmert & Cia. Editores, Rio, 1992, p. 679. (retornar ao texto)

(3) A expressão burguesia nacional é aqui usada no sentido político, representando aquela parcela da burguesia brasileira capaz de opor-se ao imperialismo e de participar da revolução em sua presente etapa, segundo os termos da Resolução Política do VI Congresso do PCB. (retornar ao texto)

(4) Informe de Balanço do CC ao VI Congresso do PCB, p. 11.(retornar ao texto)

(5) Marx-Engels, “Correspondência”, Ed. Cartago, Buenos Aires, p. 143.(retornar ao texto)

(6) K. Marx, “O Capital”, Ed. Fondo de Cultura, México, tomo III, p. 234.(retornar ao texto)

(7) Ibid., tomo III, p. 733. (retornar ao texto)

(8) “Outubro de 1930: ‘Conflito ou Continuidade’”. Capítulo do livro de ensaios sobre a história do Brasil: “Conflitos e Continuidade etc.”, Editora Civilização Brasileira, p. 291. (retornar ao texto)

(9) “Fatores adversos na formação brasileira”, São Paulo, p. 9/10. (retornar ao texto)

(10) Raymundo Faolo, “Os Donos do Poder”, Editora Globo, Porto Alegre, p. 268.(retornar ao texto)

(11) A Igreja católica só recentemente, após ainda haver dado apoio de massas aos golpistas de 1964, mudou de posição, começou a compreender que seria um grave erro político, que a afastaria cada vez mais do povo brasileiro, continuar apoiando o atual Estado brasileiro. Posição que se relaciona também com a tomada do Cincílio Vaticano II. (retornar ao texto)

(12) “Teses para discussão”, documentos para o V Congresso do PCB, p. 144. (retornar ao texto)

(13) Obras Completas, Ed. Cartago, Buenos Aires, tomo XIX, p. 393. (retornar ao texto)

(14) “A Doença Infantil do ‘esquerdismo’ no Comunismo”, Edição Vitória, Rio, p. 113. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/10/2022