Análise marxista ou apologia do capitalismo?

Pedro Pomar

Maio de 1960


Primeira edição: Novos Rumos, Tribuna de Debate [do V Congresso do PCB], n.º 62, ano II, semana de 6 a 12 de maio de 1960.

Fonte: Nova Cultura.

HTML: Lucas Schweppenstette.


A discussão ora aberta terá grande significação para o movimento revolucionário brasileiro. Apesar das diversas limitações confio em que na luta franca de opiniões todos nos esforçaremos por encontrar as soluções que sirvam à nossa grande causa.

Ante a confusão ideológica imperante, o centro dos debates deve girar, a meu ver, em torno da linha geral e da tática, pois disso depende, em última instância, o papel do Partido, a sua capacidade de transformar o proletariado em fator decisivo na formação da frente única anti-imperialista e democrática e em força dirigente da revolução brasileira.

No processo autocrítico iniciado após o XX Congresso do PCUS, nos foi imposta a tarefa de superar os erros dogmáticos e sectários, de natureza subjetivista, agravados pelo culto à personalidade, que impregnaram nossas concepções, quer quanto à teoria da revolução, quer quanto ao Partido, à sua política e aos seus métodos. Como um dos portadores dessas concepções e um dos responsáveis por esses erros, compreendo a necessidade de impedir sua repetição.

Ao mesmo tempo, penso que tenho me empenhado para que o Partido, desde sua direção, não viesse cair no erro oposto, nas concepções de direita, que na conjuntura atual são o maior perigo para o movimento comunista.

Não desejo discutir, agora, a forma pela qual se operaram as modificações no presidium, em agosto de 1957 (a meu ver sem princípios), nem a maneira pela qual foi aprovada a Declaração de março de 1958, objeto de artigo do camarada Calil Chade. Pretendo debater a essência da linha política atual e manifestar-me contra seu conteúdo oportunista.

Constitui verdadeira ironia a afirmação das Teses, de que “nos documentos insistíamos em condenar os erros de direita como o principal, mas na prática éramos levados a enfrentar os erros sectários” (Tese 52). Ironia, repito, porque agora dá-se o inverso. Nos documentos condenamos os erros sectários como os principais, mas na prática somos obrigados, e seremos cada vez mais, a travar a luta contra os erros de direita e as concepções revisionistas que dominam a orientação política.

Enquanto não derrotarmos as concepções de direita, no terreno ideológico, político e de organização, não avançaremos no caminho da revolução, nem tampouco teremos êxito no combate às concepções de “esquerda”, tão entranhadas no Partido.

Não nego o que há de positivo na Declaração. Esta, no entanto, de um modo geral, é falsa, nacional-reformista. E agora, as Teses procuram, prolixa e exaustivamente, justificá-la, “corrigindo” algumas formulações direitistas mais berrantes. Também não defende a volta ao passado, se por essa volta se entendem os erros “esquerdistas” de 1948 a 1956, ou as posições de direita de 1945. Não devemos confundir o combate aos erros com a negação, quase sistemática, do passado glorioso do Partido, de suas tradições revolucionárias, como vem sendo feito pela direção nos últimos três anos. Somente na base de uma justa crítica do passado como, me parece, está formulada no trabalho apresentado pelo camarada Grabois aos debates, é que teremos um dos melhores antídotos contra os erros sectários. Ao passo que as críticas deformadas, negativistas, verdadeiras caricaturas, tão à moda dos revisionistas, novamente expostas nas Teses, nos levam, com razão, a tomá-las como liquidacionistas, uma vez que as melhores tradições do Partido são menosprezadas ou renegadas. Lênin, no seu artigo “Questões em litígio”, para nós de grande atualidade, mostrava que o liquidacionismo é uma tentativa de “certa parte da intelectualidade do Partido de liquidar a organização existente do Partido e substituí-la por uma associação’ informe, mantida à toda custa dentro do marco da legalidade (isto é, dentro da existência “pública”, legal), ainda que para isso tenha de renunciar, de um modo claro e tranco, ao programa, à tática e às tradições (isto é, à experiência do passado) do Partido” (Obras Escolhidas, T. I, pág. 766, Edição em espanhol. Moscou, 1948).

Perdoem-me a longa introdução e vejamos o miolo da linha da declaração. Não é fácil a tarefa de revelar, resumidamente, a essência de direita do documento apresentado ao debate, pois as Teses são uma verdadeira “sopa eclética”. Tentarei, por isso, nesse artigo, discutir alguns aspectos da situação objetiva.

No exame da situação internacional, as Teses ressaltam, de modo justo, as modificações ocorridas no mundo e as possibilidades de liquidar a “guerra fria” e assegurar a política de coexistência pacífica. Mas o perigo de guerra é tratado de forma genérica, sem o necessário sentido político. Não basta afirmar que enquanto existir o imperialismo continua a haver terreno para as guerras de agressão, nem é suficiente a denúncia de que os círculos agressivos norte-americanos preparam a guerra e que os Estados Unidos são o centro da reação mundial. Faz-se mister indicar como e onde esse perigo de guerra se manifesta concretamente. Em consequência, as Teses não armam politicamente os comunistas e todo o povo brasileiro para a luta pela paz, tarefa primordial de nossos dias. Mesmo quando afirmam que a luta pela independência nacional é parte integrante da luta mundial pela paz – tese perfeitamente correta – têm uma posição exclusivista, e nacionalista burguesa que dificulta, como já vem acontecendo, a realização das tarefas internacionalistas e de solidariedade com os demais povos. Até questões relacionadas com a independência nacional e diretamente ligadas à luta pela paz, como a de Fernando de Noronha, ou a do acordo militar Brasil-Estados Unidos, desapareceram da ordem do dia. E por ocasião da visita de Eisenhower ao Brasil, a nossa omissão foi tão gritante, que se tornou incompreensível não só para os comunistas, como para todos os patriotas. Disso só se pode deduzir que a coexistência pacífica está sendo compreendida, pela direção, como amainamento da luta contra o imperialismo…

Diante do desenvolvimento capitalista no país, a Declaração, tentando corrigir nossa posição anterior, caiu, entretanto, no objetivismo, na exaltação ao capitalismo. Em virtude das críticas levantadas no Partido contra essas ideias da Declaração, as Teses são mais comedidas nas loas ao “desenvolvimento”.

Embora esse já não seja apresentado como “o elemento progressista por excelência da economia brasileira”, as Teses falam, agora no “elemento progressista e dinâmico” e afirmam que o desenvolvimento capitalista nacional aumentou seu ritmo como fruto de seus próprios “impulsos internos” (Tese 12).

É certo que as Teses são, neste aspecto, um avanço em relação à Declaração, pois chegam a reconhecer que o curso do processo de desenvolvimento capitalista “se caracteriza pela tendência predominante de adaptação desse processo à independência com relação ao imperialismo e à conservação do monopólio da terra” (Tese 16).

Contudo não tiram a devida conclusão política, nem fazem a autocrítica correspondente. Além disso, falar de “adaptação” não basta. Aí então cabem duas perguntas. Primeira. Nas condições atuais, sob a direção da burguesia, poderia esse desenvolvimento seguir outro curso? Segunda. Mesmo que não se adaptasse à dependência, ao imperialismo, ao monopólio da terra, qual seria a perspectiva do desenvolvimento capitalista nacional? No primeiro caso, é evidente que o curso não poderia ser outro. Quanto ao segundo, seria o capitalismo com todas as suas mazelas – crises, desempregos, pauperização crescente das massas trabalhadoras, aumento da exploração da classe operária, etc.

O desenvolvimento capitalista é um fenômeno objetivo, que se dá independentemente de quem quer que seja. É certo que nas condições brasileiras é progressista. Mas à classe operária e ao Partido incumbe encarar o desenvolvimento capitalista de acordo com seus interesses e suas tarefas revolucionárias, e não se prosternar diante dele. Já Lênin, em 1893, numa’ conferência intitulada “A propósito da chamada questão dos mercados” criticava Hermann Krassin, por ter destacado unicamente o aspecto progressista do capitalismo sem considerar as contradições a ele inerentes, o aumento da miséria e a ruína das massas trabalhadoras.

Tomando-se uma posição objetivista, de apologia do capitalismo, pode-se cair também no elogio do imperialismo. Do ponto de vista econômico, o imperialismo implica também um progresso, mas nem por isso os marxistas o defendem. Ao constatar o caráter progressista do capitalismo no Brasil, embora na presente etapa a revolução não tenha objetivos socialistas, é profundamente errôneo apresentar ao nosso povo a perspectiva de um desenvolvimento capitalista.

O Brasil é uma nação dependente do imperialismo, sem direitos iguais, explorada e oprimida pelo capital monopolista estrangeiro, sobretudo o norte-americano. Por conseguinte, o apoio às medidas progressistas e à luta contra a deformação e a subordinação da economia brasileira e contra os privilégios de que goza o imperialismo são um imperativo para os comunistas. Isto é pacífico. No entanto uma justa análise da situação objetiva do país exige algo mais. Exige que se ponha a descoberto as contradições de classe, que se diferenciem, com toda a nitidez, os interesses das classes oprimidas, dos trabalhadores, do conceito geral da nação em seu conjunto, o qual corresponde aos interesses da classe dominante. E depois, não esquecer os interesses cardiais do proletariado nem obscurecer os traços fundamentais do regime imperante no país, a fim de tirar vantagens, reais ou supostas, com uma política de capitulação como a que seguimos atualmente. O desenvolvimento capitalista nacional não precisa ser exaltado a título de análise objetiva, nem de que vem lutando e continuará a lutar pela posse completa do mercado nacional e – acrescento eu – também, como já vem acontecendo, por outros mercados.

Enfim, o que a análise da situação objetiva devia destacar com o relevo merecido era o crescimento incessante e maior do proletariado, crescimento esse que constitui, isto sim, o elemento mais progressista e revolucionário da sociedade brasileira. Crescendo numericamente com o desenvolvimento capitalista no país, o proletariado só poderá elevar sua consciência e cumprir sua missão histórica se estiver armado de uma análise marxista-leninista, de acordo com seus interesses de classe, da realidade.

Na maneira unilateral, objetivista, e apologética de apreciar o desenvolvimento capitalista no Brasil reside a essência nacional-reformista do exame das “características principais do desenvolvimento da economia nacional”. Com tal concepção, os comunistas, ao invés de se “inserir” no processo real em curso – cuja necessidade tanto se proclamava – acabarão se diluindo no coro geral dos louvores ao “desenvolvimento”.

No que depende de mim, farei tudo que estiver ao meu alcance para que o Partido aprove uma linha revolucionária, que desperte as energias criadoras do proletariado e das grandes massas de nosso povo.