A Doença Infantil do Comunismo de Lenine e a Terceira Internacional

Franz Pfempfert


Primeira Edição: Die Aktion

Fonte: Velha Toupeira - https://comunism0.wordpress.com/a-doenca-infantil-de-lenine/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


I

capa

A Terceira Internacional deveria ser a associação do proletariado revolucionário de todos os países em luta contra a ditadura do capitalismo, contra o Estado burguês, pelo poder da humanidade trabalhadora, pelo comunismo. O ter sua origem num país onde os operários já conquistaram este poder mediante grandes esforços, ajudou a Terceira Internacional a ganhar as simpatias do proletariado mundial. O entusiasmo por esta nova associação mundial dos explorados é acompanhado pelo entusiasmo pela Rússia soviética e pelo incomparável e heróico combate do proletariado russo. Mas a nova estrutura da Terceira Internacional não tem nem teve ainda o tempo nem a oportunidade de conseguir resultados morais como organização.

A Terceira Internacional pode ser e será uma força moral se representar a expressão da vontade do proletariado revolucionário do mundo, e então será indestrutível e insubstituível como Internacional da classe proletária em luta. Mas a Terceira Internacional seria uma impossibilidade e uma frase oca se quisesse ser o instrumento de propaganda de um ou vários partidos.

Se a Terceira Internacional fosse realmente a associação do proletariado revolucionário do mundo, este teria então o sentimento de pertencer a ela, independentemente das formalidades da admissão. Mas se a Terceira Internacional se apresenta como o instrumento do poder central de um país particular, então conterá em si mesma a semente da morte e será um obstáculo para a revolução mundial.

A revolução é uma questão do proletariado enquanto classe; a revolução social não é uma questão de partido.

Convém sermos mais precisos ainda:

A Rússia soviética perecerá sem a ajuda de todos os combatentes revolucionários. Todos os operários com consciência de classe (e os sindicalistas(1), por exemplo, também fazem parte desta categoria incondicionalmente!) estão prontos a acudir de forma activa em seu socorro. A Terceira Internacional actuaria duma maneira criminosa e contra-revolucionária se, em interesse de um partido, fizesse algo que pudesse extinguir o fogo sagrado da solidariedade fraternal que arde nos corações de todos os proletários pela Rússia soviética (e não ainda pela Terceira Internacional como organização separada!).

É tão difícil de entender isto? É uma tolice, camarada Lenine, que nós lhe gritemos: não somos nós que neste momento necessitamos da Terceira Internacional, mas a Terceira Internacional que necessita de nós?

II

Lenine pensa, com efeito, que é uma tolice. Na obra que acaba de lançar contra o proletariado revolucionário, O esquerdismo, doença infantil do comunismo, Lenine pensa que a Terceira Internacional deve regular-se pelos estatutos do Partido Comunista Russo (Bolchevique) e que o proletariado revolucionário de todos os países deve submeter-se à autoridade da “Terceira Internacional” e, portanto, às tácticas dos Bolcheviques. Os Bolcheviques deveriam determinar as armas que o proletariado combatente do resto do mundo deve utilizar. E só aqueles proletários que obedeçam incondicionalmente serão escolhidos para pertencer a esta associação mundial. Nos Princípios do Segundo Congresso da Terceira Internacional, Lenine formulou este postulado de um modo ainda mais claro: não só deu instruções gerais, mas também todos os detalhes de táctica, de organização, e inclusive prescreveu o nome que deveriam assumir os partidos em todos os países. E para rematar:

“Todas as decisões dos congressos da Internacional Comunista, assim como de seu Comité Executivo, são vinculativas a todos os partidos filiados à Internacional Comunista.”

Mesmo sendo metódico, é ainda assim uma loucura!

Num país tão pequeno como a Alemanha, temos a experiência repetida, a mais recente em Março de 1920(2), do facto de que uma táctica que conduz à vitória, por exemplo, no Ruhr, era impossível em outra parte; que a greve geral dos operários industriais na Alemanha Central era uma piada para a Vogtland, onde o proletariado foi condenado ao desemprego desde Novembro de 1918. E deveria ser Moscovo o Estado-Maior supremo para nós e para todos os outros países?

O que nos atrai para a Terceira Internacional é o objectivo compartilhado da revolução mundial: a ditadura do proletariado, o comunismo. A Terceira Internacional deve estar ao lado dos proletários combatentes de todos os países, instruindo-os acerca das diversas situações e tipos de guerra civil revolucionária. Os combatentes seriam burros em vez de combatentes se não quisessem ter nada que ver com a tarefa de examinar as armas usadas pelos companheiros que lutam aqui e em outros lugares. Mas seriam cordeiros se se deixassem arrastar por caminhos que reconheceram há muito como impraticáveis para eles e que por conseguinte abandonaram.

O ataque de Lenine contra nós é, na sua tendência e nos seus detalhes, simplesmente monstruoso. Seu texto é superficial. Não corresponde aos factos. É injusto. Só na sua fraseologia mostra alguma dureza. Do rigor do Lenine pensador, que geralmente se manifestava nas suas polémicas, não há nem um rastro.

Que pretende Lenine? Ele quer dizer ao Partido dos Operários Comunistas da Alemanha (KAPD(3)) e ao proletariado revolucionário de todos os outros países, que são imbecis, idiotas, e, pior ainda, que não se ajoelham docilmente perante a sabedoria dos bonzos, já que não se deixam dirigir de um modo extremamente centralizado por Moscovo (através de seus intermediários, Radek e Levi). Quando a vanguarda revolucionária da Alemanha rejeitou a participação nos parlamentos burgueses, quando esta vanguarda começou a demolir as instituições sindicais reaccionárias, quando virou as costas aos partidos políticos de chefes, de acordo com a palavra de ordem “a emancipação dos trabalhadores só pode ser a obra dos próprios trabalhadores”, então esta vanguarda estava constituída por imbecis, e caiu no “infantilismo de esquerda”, por isso teve que ser-lhe negado o direito de filiar-se à Terceira Internacional (tal foi o resultado do folheto de Lenine). Só quando os operários do KAPD retornem, como pecadores arrependidos, à Liga Espártaco,(4) a única fonte de salvação, se lhes permitirá filiar-se à Terceira Internacional. Assim é como são as coisas: de volta ao parlamentarismo! Entremos nos sindicatos de Legien(5)! Adiram ao KPD, esse partido de chefes nas suas convulsões de morte! É isto o que Lenine grita ao proletariado alemão consciente!

Como disse antes: um livro monstruoso! Também devo chamar a atenção para a inutilidade dos argumentos dos anos 1880, os quais Lenine desempoeira para persuadir os esquerdistas alemães de que ele sabe empregar as aspas contra eles(6). Todas as suas explicações acerca do centralismo e do parlamentarismo estão ao nível do USPD. E o que Lenine escreve a favor do trabalho nos sindicatos é tão extraordinariamente oportunista que os bonzos dos sindicatos se dedicaram urgentemente a reproduzir e distribuir como volante esta secção do trabalho de Lenine!

A polémica que Lenine dirige contra o KAPD é escandalosamente superficial e imperdoavelmente inepta. Por exemplo, numa passagem, diz:

“Em primeiro lugar, os comunistas “de esquerda” alemães, como se sabe, já em Janeiro de 1919 consideravam o parlamentarismo como “politicamente caduco”, contra a opinião de dirigentes políticos tão eminentes como Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Como é sabido, os “esquerdistas” se equivocaram. Este facto basta para destruir de repente e radicalmente a tese segundo a qual o parlamentarismo “caducou politicamente”.”

Isto é o que o lógico Lenine escreve! De que modo, por favor diga-me, é “claro” que estivemos equivocados? Talvez no facto de que, na Assembleia Constituinte nacional, Levi e Zetkin não se sentaram ao lado dos seguidores de Crispien(7)? Talvez no facto de que este duo comunista se encontra agora sentado no Reichstag? Como pode Lenine, tão estupidamente e sem oferecer a sombra de uma prova, escrever que nosso “erro” é óbvio e depois acrescentar a afirmação que “este facto basta para destruir a tese,” etc? Absurdo! Também é absurdo o modo como Lenine responde afirmativamente à pergunta, “devemos participar nos parlamentos burgueses?”:

“A crítica — a mais violenta, mais implacável, mais intransigente — deve dirigir-se não contra o parlamentarismo ou a acção parlamentar, mas contra os chefes que não sabem — e mais ainda contra os que não querem — utilizar as eleições parlamentares e a tribuna parlamentar de maneira revolucionária, de maneira comunista.”

É Lenine quem escreve isto! Lenine de repente quer “utilizar a democracia”, um método com o qual já tinha ajustado contas chamando-lhe “a demanda dos renegados” (no Estado e a Revolução, no Renegado Kautsky… e em Democracia Burguesa e Ditadura Proletária!).

O proletariado revolucionário da Alemanha distanciou-se “do parlamentarismo venal e corrupto da sociedade burguesa”, aquele “sistema de ilusão e engano”. Este proletariado reconheceu totalmente o grito de guerra: “todo o poder aos conselhos!”. Acabou por entender que não pode “utilizar” o parlamento burguês. Reconheceu os sindicatos como instituições que necessariamente conduzem a uma comunidade do trabalho entre exploradores e explorados, e por esta razão apenas, à sabotagem da luta de classes, e é de pouca importância se os seus membros deveriam criticar isto ou aquilo. O proletariado revolucionário da Alemanha teve que expiar a sua submissão aos chefes com hecatombes de cadáveres de operários. O infame Comité Central da Liga Espártaco destruiu essa ilusão. O proletariado definitivamente já está farto de tudo isso!

E agora Lenine vem e trata de fazer-nos esquecer as amargas lições da revolução alemã assim como as lições que ele mesmo ensinou? Está tratando de fazer-nos esquecer que Marx ensinou que não são os indivíduos os responsáveis? E que é contra o parlamentarismo que é preciso lutar e não contra os parlamentares individuais!

Vários meses passaram desde que os “comunistas” tomaram os seus assentos no Reichstag. Leiam as minutas das sessões parlamentares, agora que Levi-Zetkin “utilizaram” esta tribuna “de maneira revolucionária, de maneira comunista” (na verdade, somente verborreia jornalística sem sentido)! Você leu as minutas, camarada Lenine. Onde está a sua “mais violenta, mais implacável, mais intransigente” crítica? Está satisfeito com eles? ...

É fácil de demonstrar: o KAPD utilizou com maior efectividade a ‘luta eleitoral’, no sentido de levar a cabo a agitação revolucionária, e foi capaz de utilizá-la mais efectivamente do que os comunistas parlamentares precisamente porque não tem nenhum ‘candidato’ que persiga a vitória eleitoral. O KAPD desmascarou a trapaça parlamentar e levou as ideias dos conselhos às aldeias mais remotas. Mas os caçadores de votos confirmaram, durante os poucos meses da sua actividade no parlamento, que tínhamos razão ao ser anti-parlamentares. Camarada Lenine, nunca lhe ocorreu a ideia, uma ideia Leninista, que num país com 40 anos de tolice parlamentar social-democrata (esse partido também quis, no início, “utilizar” aquela tribuna unicamente para a propaganda!), é um acto totalmente reaccionário entrar no parlamento? Não entende que num país caracterizado pelo cretinismo parlamentar, o parlamentarismo só pode ser estigmatizado por meio do boicote? Não há estigmatização mais violenta, nenhuma que penetre mais profundamente na consciência dos operários! Um parlamento desmascarado por um boicote realizado por proletários nunca seria capaz de enganar aos proletários. Mas um discurso ‘programático’ correcto, que Clara Zetkin entrega com a aprovação dos jornais burgueses e social-democratas, e do qual a imprensa selecciona o que lhe parece conveniente, tal discurso engendra respeito no parlamento burguês! Se os chefes do USPD não tivessem ido à Assembleia Constituinte, a consciência dos proletários alemães estaria muito mais desenvolvida hoje em dia.

III

Lenine favorece “a centralização mais estrita” e “uma disciplina férrea”. Ele quer que a Terceira Internacional apoie as suas opiniões e que expulse todos aqueles que, como o KAPD, se opõem criticamente à liderança omnipotente.

Lenine quer que uma autoridade de estilo militar prevaleça nos partidos de cada país.

As instruções do Primeiro Congresso da Terceira Internacional tinham um sabor algo diferente! Naquelas instruções, dirigidas contra os Independentes(8) cujo espírito de luta era incerto, recomendava:

“. . .separar os elementos revolucionários do ‘Centro’, algo que só pode ser conseguido mediante a crítica resoluta e impiedosa dos líderes do ‘Centro’.”

Aí também dizia:

“Por outro lado, é necessário realizar um bloco com aqueles elementos do movimento operário revolucionário que, mesmo que não tenham pertencido antes ao partido socialista, ficam agora totalmente no terreno da ditadura proletária sob sua forma soviética, ou seja, antes de mais os elementos sindicalistas do movimento operário.”

Mas agora prevalece uma táctica diferente. Por outro lado, o lema é: Abaixo os sindicalistas! Abaixo os ‘idiotas’ que não se submetem aos bonzos! O Comité Executivo está no comando, e as suas ordens são a lei.

Lenine pensou que poderia citar Karl Liebknecht contra “os Esquerdistas”. Eu citarei Karl Liebknecht contra Lenine:

“O círculo vicioso no qual funcionam as grandes organizações centralizadas, providas de funcionários a soldo bastante bem pagos tendo em conta o meio sócia do qual provêm, consiste não só no facto de que estas organizações criam, com esta burocracia profissional, uma camada social directamente hostil aos interesses revolucionários do proletariado, mas também no facto de que conferem o poder a um líder, que facilmente se transforma em tirano e é eleito dentre aqueles que têm um violento interesse em opor-se à política revolucionária do proletariado, enquanto a independência, a vontade, a iniciativa e a acção autónoma intelectual e moral das massas são reprimidas ou completamente eliminadas. Os parlamentares a soldo também pertencem a esta burocracia.”

“Há só um remédio, no plano organizativo, para este mal: a supressão da burocracia remunerada ou a sua exclusão de toda a tomada de decisões, e a limitação da sua actividade ao trabalho administrativo técnico. A proibição da reeleição de todos os funcionários depois de um certo tempo de mandato, que será estabelecido de acordo com os proletários disponíveis que entretanto se tenham tornado especialistas na administração técnica; a possibilidade de revogar os seus mandatos em qualquer momento; a limitação do escopo de cada cargo; descentralização; a consulta de todos os membros sobre questões importantes (veto ou referendo). Na eleição de funcionários deve-se dar a maior importância às provas que eles ofereçam sobre sua determinação e preparação na acção revolucionária, do seu espírito de luta revolucionário, do seu espírito de sacrifício ilimitado no compromisso activo de sua existência. A educação das massas e de cada indivíduo na autonomia intelectual e moral, na sua capacidade para questionar a autoridade, na sua própria auto-iniciativa resoluta, na irrestrita preparação e capacidade para a acção, constitui em geral a única base para garantir o desenvolvimento de um movimento de operários correspondente às suas tarefas históricas, e também contém as condições essenciais para extirpar os perigos da burocracia.”

“Toda a forma de organização que obstrua a educação num espírito revolucionário internacional, a capacidade autónoma para a acção e a iniciativa das massas revolucionárias, deve ser rejeitada.  . . . Nenhum obstáculo para a livre iniciativa. A tarefa educativa mais urgentemente necessária na Alemanha, um país de obediência cega e passiva das massas, é favorecer esta iniciativa entre as massas; e este problema deve ser resolvido ainda que correndo o risco de expor-se ao perigo de que, momentaneamente, toda a ‘disciplina’ e todas as ‘organizações sólidas’ vão pelo cano (!). Deve dar-se ao indivíduo uma margem de liberdade muito maior do que a que lhe foi atribuída até ao presente pela tradição na Alemanha. Nenhuma importância em absoluto deve ser concedida à profissão de fé em palavras. Todos os elementos radicais dispersos se fundirão num todo decidido de acordo com as leis imanentes do internacionalismo se a intransigência é praticada para com todos os oportunistas e a tolerância é praticada para com todos os esforços feitos em prol de um espírito combatente revolucionário em processo de fermentação.”

IV

Sei que Lenine não se transformou num ‘renegado’ ou num social-democrata, mesmo que O esquerdismo... tenha um efeito puramente social-democrata (os chefes alemães diziam quase exactamente as mesmas coisas em 1878). Como, então, pode explicar-se a publicação deste texto contra a revolução mundial?

Os monárquicos têm o costume, com o fim de perdoar as estupidezes (ou os crimes) de seus monarcas, de alegar sempre que suas majestades foram “mal informadas”. Os revolucionários não podem (não têm direito a) esgrimir tal desculpa. Somos bem conscientes, certamente, que Karl Radek e a Liga Espártaco, com o fim de distrair a atenção de Lenine das causas do seu fracasso político, lhes mentiram propositadamente sobre a situação e o proletariado revolucionário na Alemanha. A carta insolente dirigida por Karl Radek aos membros do KAPD é uma amostra de como foram apresentadas as coisas ao camarada Lenine. Mas isto de modo algum desculpa Lenine! Em todo caso, tal desculpa é inútil: o facto é que Lenine, com o seu estúpido folheto, complicou a luta do proletariado revolucionário na Alemanha, mesmo que ele não tenha abolido essa luta.

É verdade que Lenine foi desavergonhadamente enganado sobre a questão da Liga Espártaco e do KAPD, mas no entanto ele deveria ter dito que é um sério erro identificar a situação alemã com a situação russa. Lenine era absolutamente capaz, apesar de Radek, de ver a diferença entre os sindicatos alemães, que sempre tinham tido uma existência contra-revolucionária, e os sindicatos russos. Lenine sabia perfeitamente bem que os revolucionários russos não tiveram que lutar contra o cretinismo parlamentar porque o parlamento não tinha nem tradição nem nenhum crédito entre o proletariado russo. Lenine sabia (ou deveria ter sabido) que na Alemanha os líderes do partido e dos sindicatos necessariamente provocaram o 4 de Agosto de 1914(9) “utilizando” o parlamento! Que o carácter autoritário e militarista do partido, acompanhado pela obediência cega, tinha sufocado as forças revolucionárias no movimento operário alemão durante décadas. Lenine deveria ter considerado todas estas coisas antes de empreender a sua batalha contra os “Esquerdistas”. Se ele tivesse feito isto, um sentido de responsabilidade o teria impedido de escrever este folheto imperdoável.

V

Para convencer o proletariado mundial de que O esquerdismo… indica o caminho correcto para a revolução em cada país, Lenine apresenta o caminho que os Bolcheviques seguiram e que conduziu á sua vitória, porque era (e é) o caminho correcto.

Aqui também, Lenine se encontra numa posição completamente insustentável. Quando ele cita a vitória dos Bolcheviques como a prova de que o seu partido tinha agido “correctamente” durante os quinze anos da sua existência, está alucinando! A vitória dos Bolcheviques em Novembro de 1917 não se deveu unicamente à força revolucionária do partido! Os Bolcheviques assumiram o poder e conseguiram a vitória graças ao lema pacifista-burguês de “Paz”! Só este lema derrotou os Nacional-Mencheviques, e permitiu que os Bolcheviques conquistassem o exército para o seu lado!

Por isso, não é a sua vitória por si mesma o que pode convencer-nos de que os Bolcheviques agiram “correctamente” no sentido de manter a firmeza do seus princípios. Mas sim, o facto de que saibam defender esta vitória agora, depois de quase três anos!

Mas – e esta é uma pergunta colocada pelos “Esquerdistas” – será que os Bolcheviques sempre dirigiram a sua ditadura de partido da maneira que Lenine em O esquerdismo… requer que o proletariado revolucionário da Alemanha dirija o seu partido? Ou a situação dos Bolcheviques foi tal que eles não necessitaram de cumprir com a “condição” de Lenine, que requer que o partido revolucionário “seja capaz de misturar-se com, confraternizar com e, se assim o deseja, até certo ponto unir-se com as massas mais amplas dos operários, principalmente com as massas proletárias, e também com as massas não proletárias” (O esquerdismo…).

Até agora, os Bolcheviques foram capazes de pôr em prática, e só tiveram sucesso em pôr em prática uma só coisa: a estrita disciplina militar do partido, a ditadura “férrea” do centralismo de partido. Mas foram capazes de “misturar-se com, confraternizar com, e, se assim [eles] o deseja[m], até certo ponto unir-se” com “as massas mais amplas” das quais fala Lenine?

VI

As tácticas empregadas pelos camaradas russos são uma questão que só a eles diz respeito. Protestamos, e tivemos que tratar o senhor Kautsky como contra-revolucionário, quando ele se permitiu difamar as tácticas dos Bolcheviques. Devemos deixar aos camaradas russos a questão da sua eleição de armas. Mas sabemos uma coisa: na Alemanha, uma ditadura de partido é impossível; na Alemanha, só uma ditadura de classe, a ditadura dos conselhos operários revolucionários, é capaz de alcançar a vitória (e será vitoriosa!), e (o que é mais importante) será capaz de defender sua vitória.

Eu poderia escrever agora, seguindo a receita de Lenine em O esquerdismo…, que isto “está claro”, e depois mudar de tema. Mas nós não necessitamos de fugir à questão.

O proletariado alemão está organizado em diferentes partidos políticos que são partidos de chefes com características claramente autoritárias. Os sindicatos reaccionários, controlados pela burocracia sindical devido à natureza estritamente centralizada de suas estruturas, estão a favor da “democracia” e da recuperação do mundo capitalista, sem o qual eles não poderiam existir. Uma ditadura de partido nesta Alemanha significa operários contra operários (a era Noske(10) começou com a ditadura de partido do SPD!). Uma ditadura de partido do KPD-Liga Espártaco (e Lenine não propõe nenhuma outra!) teria que ser imposta contra os operários do USPD, os operários do SPD, os sindicatos, os sindicalistas, e as Organizações de Fábrica, assim como contra a burguesia. Karl Liebknecht nunca aspirou a tal ditadura de partido com a Liga Espártaco, como o demonstra o conjunto de sua obra revolucionária (e como se demonstra nas passagens que citei antes).

É indiscutível que todos os operários (inclusive os operários que seguem cegamente Legien e Scheidemann!) devem ser partidários da nova ordem comunista, para que a suas divisões internas não impossibilitem a repressão da burguesia. Devemos esperar o julgamento final, quando todos os proletários, ou só uns milhões deles, sejam membros do KPD (o qual está hoje composto somente de um punhado de empregados e um pequeno número de gente de boa fé)? Talvez a Terceira Internacional seja o incentivo que obrigará os operários revolucionários a entrar no KPD (como Karl Radek e o Sr. Levi imaginaram)? Pode o egoísmo de seus líderes permanecer ignorante do facto de que, neste preciso momento, a maioria dos operários industriais e o proletariado rural estão maduros e prontos a ser ganhos para a causa duma ditadura de classe?

Necessitamos um lema para convocar o proletariado alemão a unir-se. Temo-lo: “todo o poder aos conselhos operários!”. Necessitamos um lugar de recrutamento onde todos os operários com consciência de classe possam encontrar-se sem a interferência dos bonzos dos partidos. Temo-lo: é o lugar de trabalho. O lugar de trabalho, a célula reprodutora da nova comunidade, é também a base para o recrutamento. Para a realização vitoriosa da revolução proletária na Alemanha, não necessitamos de bonzos, mas de proletários conscientes. Aqueles que actualmente se chamam sindicalistas ou independentes, compartilham connosco o objectivo de destruir o Estado capitalista e realizar a comunidade humana comunista e portanto eles são parte de nós, e “misturar-nos-emos, confraternizaremos e nos uniremos” com eles nas Organizações de Fábrica revolucionárias!

O Partido Operário Comunista não é, portanto, um partido no mau sentido da palavra, porque não é um fim em sim mesmo! Faz propaganda pela ditadura no seu sentido da palavra, porque esta ditadura não é um fim em sim mesmo! Faz propaganda pela ditadura do proletariado, pelo comunismo. Treina os seus combatentes nas Organizações de Fábrica, onde estão concentradas todas as forças que abolirão o capitalismo, estabelecerão o poder dos conselhos e permitirão a construção da nova economia comunista. As Organizações de Fábrica confluem na União. As Organizações de Fábrica saberão garantir o domínio do proletariado enquanto classe contra todas as manipulações dos chefes de partido, contra todos os traidores. Só o poder da classe proporciona uma fundação ampla e firme (como o demonstra o capitalismo)!

O Partido Operário Comunista da Alemanha teve que suportar O esquerdismo… de Lenine, as maldições de Radek, e as calúnias da Liga Espártaco e todos os partidos de chefes, porque está lutando pelo domínio de classe do proletariado, porque compartilha as opiniões de Karl Liebknecht acerca do centralismo. O KAPD sobreviverá bastante bem a O esquerdismo… e ao resto. E, mesmo que Karl Radek não o entenda, e mesmo que Lenine escreva um folheto contra nós (e contra ele): a revolução proletária na Alemanha tomará caminhos diferentes daqueles que tomou na Rússia. Quando Lenine nos trata de “imbecis” não somos nós, mas ele mesmo quem é visado, já que nesta questão nós somos os Leninistas. Sabemos isto: ainda que congressos nacionais ou internacionais prescrevam os mais detalhados itinerários para a revolução mundial, esta seguirá no entanto o curso imposto pela história! Inclusive se o Segundo Congresso da Terceira Internacional pronuncia uma sentença condenando o KAPD a favor de um partido de chefes, os comunistas revolucionários da Alemanha saberão lidar facilmente com isso e não gemerão como os bonzos do USPD. Somos parte da Terceira Internacional, porque a Terceira Internacional não é Moscovo, não é Lenine, não é Radek, é o proletariado mundial que luta pela sua libertação!

(Die Aktion)


Notas de rodapé:

(1) Por sindicalista não se deve entender neste texto o membro dum sindicato mas o partidário do Sindicalismo, corrente política que advoga a tomada do poder e a gestão da sociedade pelos trabalhadores organizados em sindicatos. (Nota de Velha Toupeira) (retornar ao texto)

(2) Refere-se à reacção operária, que se traduziu em greve geral, combate de rua e criação de comités operários, contra o golpe de extrema-direita encabeçado pelo general prussiano Kapp, o qual destituiu momentaneamente o governo social-democrata. (Nota de Ricardo Fuego da CICA http://www.geocities.com/cica_web/ ) (retornar ao texto)

(3) A seguir aos assassinatos de Luxemburgo e Liebknecht, a maior parte do Partido Comunista Alemão (KPD), que tinha chegado a posições anti-parlamentares e anti-sindicais, foi expulsa por meio duma manobra em 1920 e formou o KAPD. (Nota de Ricardo Fuego) (retornar ao texto)

(4) A Liga Espártaco foi um agrupamento de socialistas revolucionários composto por Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Franz Mehring e outros social-democratas que se separaram do partido a seguir à votação dos créditos de guerra. A Liga surge no ano novo de 1916 como Gruppe Internationale. A sua primeira declaração política foi o Folheto Junius de Rosa Luxemburgo. A Liga Espártaco constituiu o núcleo dirigente inicial do Partido Comunista Alemão (KPD), formado na sua maioria por jovens operários revolucionários e outros dissidentes da social-democracia. (Nota de Ricardo Fuego) (retornar ao texto)

(5) Legien (1865-1939), socialista governamental, Ministro em Novembro de 1918, Chanceler da República em 1919, um dos arquitectos, juntamente com Noske e Ebert, da repressão anti-espartaquista. (Nota na edição em inglês. Este texto está incluído numa antologia organizada e introduzida por Gilles Dauvé e Denis Authier e disponível em http://www.redemmas.org/collective_action_notes/dauve11.htm) (retornar ao texto)

(6) Sem dúvida, refere-se à oposição anti-parlamentar do SPD, sobretudo em Berlim, que, no entanto, não se organizou senão até 1889-1892 à volta do grupo “Os Jovens”. Tendências análogas surgiram durante a mesma época na Dinamarca, Suiça, Inglaterra (William Morris) e Holanda (D. Nieuwenhuis). Foi também nessa época que se consumou a divisão”Marxismo/Anarquismo”. (Nota na edição em inglês) (retornar ao texto)

(7) Clara Zetkin (1857-1933), membro da esquerda do SPD, mais tarde uma espartaquista, apoiou Levi. Crispien (1875-1946), deixou o SPD para filiar-se na ala direita do USPD. Assistiu ao Segundo Congresso da Internacional Comunista, mas recusou filiar-se e mais tarde voltou ao SPD. (Nota na edição em inglês) (retornar ao texto)

(8) Refere-se ao USPD. (Nota de Velha Toupeira) (retornar ao texto)

(9) A Alemanha declara guerra à França. (Nota de RicardoFuego) (retornar ao texto)

(10) Noske (1868-1946), Ministro de Guerra do SPD em Dezembro de 1918, organizou a colaboração entre os socialistas e os Freikorps. Arquitecto e símbolo da repressão sangrenta que se lhe seguiu. (Nota na edição inglesa) (retornar ao texto)

Inclusão: 27/11/2019