A Luta de Classes em África

Kwame Nkrumah


O conceito de classe


capa

A luta de classes é um tema histórico de importância fundamental. Qualquer sociedade não socialista compreende duas grandes categorias de classes: as classes dirigentes e as classes dominadas. As primeiras detêm os instrumentos económicos de produção e de distribuição e os meios de estabelecer a sua dominação política, enquanto que as classes dominadas não fazem senão servir os interesses das classes dominantes, de quem dependem no plano político, económico e social. O conflito que opõe dirigentes e dominados é o resultado do desenvolvimento das forças produtivas.

Com a introdução da propriedade privada e da exploração capitalista dos trabalhadores, os capitalistas tornam-se uma nova classe — a burguesia — e os trabalhadores explorados formam a classe operária, porque, em última análise, uma classe não é senão o conjunto de indivíduos ligados por certos interesses que tentam salvaguardar.

Qualquer forma de poder político — regime parlamentar, multipartidarismo, sistema de partido único, ditadura militar — reflecte os interesses de uma ou várias classes sociais. Assim, qualquer governo socialista é a expressão dos interesses dos operários e camponeses, enquanto que um governo capitalista representa a classe exploradora. O Estado é, portanto, a expressão da dominação de uma classe sobre as outras.

Do mesmo modo os partidos políticos são a expressão das diferentes classes. Poder-se-ia então concluir daí que um Estado de partido único não conhece um sistema de classes. O que nem sempre é o caso, a não ser que um Estado seja a expressão de uma dominação política pelo povo. Em muitos Estados dotados dum sistema bipartidário ou multipartidário, e onde as categorias sociais são muito nítidas, o governo não representa, de facto, senão um único partido. Tomemos para exemplo os Estados Unidos, onde os Partidos Republicano e Democrático não são senão duas tendências dum único e mesmo partido: o das classes possuidoras.

Luta de classes

Entre os Partidos Conservador e Trabalhista, na Grã-Bretanha, há praticamente pouca diferença. Efectivamente, o Partido Trabalhista, criado a fim de defender os interesses da classe operária, tornou-se um partido de tendência burguesa. Os Partidos Conservador e Trabalhista são, com efeito, a expressão dos interesses da burguesia, de quem reflectem a ideologia.

A única solução possível para o problema da desigualdade social é a abolição do sistema de classes. Porque a divisão existente entre os que planificam, organizam, administram, por um lado, e os que executam os trabalhos manuais, por outro, recria incessantemente o sistema de classes.

Em geral, é difícil, se não impossível, a um indivíduo evadir-se do seu meio de origem. Mesmo quando se fala de «igualdade de oportunidades», a desigualdade subsiste, quando a intenção de «oportunidade» é aspirar a uma posição mais elevada numa sociedade estratificada. As classes dirigentes não têm somente uma força de coesão: estão também conscientes da sua posição dominante, assim como do facto de que terão de defender os seus interesses e a sua posição, perante a ameaça da revolta — cada dia mais premente — do proletariado africano. Porque em África a classe dirigente constitui apenas 1 % da população total, contra os 90 % que representam as massas rurais e os 5 % do proletariado urbano.

Contudo, a luta de classes em África sofreu a presença dos interesses estrangeiros e dos seus representantes. E todas as outras contradições foram dissimuladas pelo conflito que opõe povos africanos e interesses neocolonialistas, colonialistas e imperialistas. É essa, em parte, a razão pela qual os partidos políticos apareceram tão tarde em África.

O quadro seguinte é uma descrição esquemática da sociedade africana contemporânea.


Classes Organização interna das classes Elites

camponeses

proletariado
(assalariado)
— rural, trabalhadores agrícolas, etc.
— industrial (empregado nas grandes indústrias, nas minas, nos transportes ...)
 

pequena burguesia
a) agricultores
(pequena burguesia rural, proprietária, empregando mão-de--obra);
— estatuto social baseado na importância da propriedade e na mão-de-obra empregue;  
b) pequena burguesia das cidades
(pequenos comerciantes, artífices).
— estatuto social determinado pela importância e número de negócios e propriedades.  

burguesia nacional
reclamando-se do capitalismo:





— alta — intelectuais
— altos burocratas
— comerciantes — média  
— comerciantes    
— altos funcionários   — quadros do Exército
— compradores (quadros superiores nas sociedades estrangeiras).   — profissões liberais (grandes juristas, médicos, etc.)
— empreiteiros    
— profissões liberais e chefes de serviços administrativos, etc.   — tecnocratas

autoridades tradicionais
(assente na tradição, nos costumes, etc., e não na propriedade de terras)
— chefes de clãs
— chefes
—soberanos
— emires
 

É ao desenvolvimento desigual da economia africana que se deve a diversidade das estruturas sociais, tanto nos territórios colonizados como nos novos Estados.

Assim, na Rodésia, 4 milhões de africanos são obrigados a viver num espaço muito inferior à metade da superfície total do território. Noutros termos, mais de metade do território está nas mãos de uns 500 000 europeus. É este estado de coisas a origem do fosso que separa brancos ricos e camponeses e trabalhadores africanos pobres, politicamente paralisados. Como em todas as regiões sob dominação colonial, trata-se, antes de tudo, dum problema racial. Os senhores são brancos, e os desprovidos, negros, e todos os argumentos habituais — o mito da inferioridade racial, o direito de dominação dos mais capazes — foram apresentados para justificar o sistema de dominação racial e o seu reforço.

Na África francófona os esquemas sociais nasceram de divisões particulares nesta zona de colonização. Havia primeiramente os «cidadãos franceses» e os colonos franceses, depois, os «assimilados» — ou sejam os mulatos e a intelligentsia negra —, os africanos que conseguiram entrar no Exército e na Administração à custa dos seus próprios esforços; por fim estavam os sujets(1), compreendendo as grandes massas populares. Se o «assimilado» podia facilmente tornar-se «cidadão», o sujet tinha primeiro de se tornar «assimilado». Tal sistema existia em todas as colónias francófonas, assim como nos territórios sob dominação colonial espanhola e portuguesa. Segundo o princípio da assimilação, todo o sujet podia naturalizar-se francês. De facto, mesmo aqueles que tinham atingido um nível de educação relativamente elevado não pretendiam desfrutar dum tal privilégio, pois, fora das «quatro comunas», a cidadania francesa era incompatível com a retenção do estatuto pessoal, ou seja do direito de viver segundo o direito consuetudinário africano, por oposição ao código civil francês. Havia nisso uma certa lógica, do ponto de vista assimilacionista. Quem quer que aceitasse a nacionalidade francesa devia aceitar as leis e instituições francesas, e, por conseguinte, a monogamia e o direito de sucessão. Tais obrigações não fazem mais do que sublinhar o insucesso da política de assimilação, que não se mostrava já rendível. E, fora das «quatro comunas», o termo «cidadão francês» permaneceu sinónimo de «francês branco e metropolitano».

Enquanto que a natureza dos laços económicos entre a colónia e a metrópole determinava a natureza do conflito social duma dada região, certos factores sublinhavam a importância da imposição dos valores culturais do invasor colonial, se bem que se pudesse, em seguida, atribuí-los às alterações observadas na estrutura das relações de produção.

Nas colónias britânicas, um certo grau de urbanização permitiu o desenvolvimento de uma burguesia e de minorias elitistas burguesas que desenvolveram as suas próprias atitudes e organizações de classe.

Obter um trabalho de escritório tornou-se a ambição de todo o africano desejoso de subir na hierarquia social. Os trabalhos manuais e agrícolas pareciam indignos para todos os que tinham recebido mesmo o grau mais rudimentar de instrução.(2)

Mas foi só depois da conquista colonial que se desenvolveu uma estrutura de classe de tipo europeu, delineando dois grupos bem distintos: o proletariado e a burguesia. Os observadores reaccionários nunca quiseram admitir isto, a pretexto de que as sociedades africanas eram homogéneas, logo, sem classes. Uma tal teoria é um desafio à evidência da própria luta de classes.

A burguesia é declaradamente aliada dos neocolonialistas, colonialistas e imperialistas, na vã esperança de manter as massas africanas num estado de permanente sujeição.


Notas de rodapé:

(1) Em francês no original. (retornar ao texto)

(2) Na África pré-colonial, nas condições do regime comunitário, da escravatura ou feudalismo, existiam já embriões da clivagem em classes. (retornar ao texto)

Inclusão 22/03/2014