Escritos sobre a Guerra Civil Americana
Artigos do New-York Daily Tribune, Die Presse e outros (1861-1865)

Karl Marx e Friedrich Engels


Seção V. Tensões diplomáticas
Sentimento anti-intervencionista
(Marx. Die Presse, número 34 de 4 de fevereiro de 1862)


capa

Londres, 31 de janeiro de 1862

O advento da grandeza comercial de Liverpool teve origem no comércio escravagista. As únicas contribuições com as quais Liverpool enriqueceu a poesia da Inglaterra são odes ao comércio de escravos. Cinquenta anos atrás, [William] Wilberforce só podia pisar no solo de Liverpool sob perigo de morte.(1) Como no século precedente se passou com o comércio de escravos, no presente século o comércio do produto da escravidão — o algodão — forma a base material da grandeza de Liverpool. Não é de se espantar, portanto, que Liverpool seja o centro dos amigos ingleses da Secessão. Trata-se, de fato, da única cidade no Reino Unido onde, durante uma crise recente, foi possível organizar um encontro praticamente público em favor da guerra contra os Estados Unidos. E o que Liverpool diz agora? Ouçamos um de seus grandes veículos diários de mídia, o Daily Post.

No artigo central, intitulado “Os belos ianques”, afirma-se, entre outras coisas:(2)

“Os ianques, com seu jeitinho habitual, converteram uma aparente derrota em ganho real, tornando a Inglaterra sujeita a seus interesses... A Grã-Bretanha, de fato, deu mostras de seu poder, mas com que objetivo? Desde a fundação dos Estados Unidos, os ianques sempre concederam o privilégio a passageiros velejando sob uma bandeira neutra de permanecerem protegidos de qualquer intervenção e ataque por parte das beligerantes. Contestamos esse privilégio ao máximo durante a Guerra Anti-jacobina, a Guerra Anglo-Americana de 1812 a 1814, e então, mais recentemente, em 1842, durante as negociações entre o Lorde Ashburton e o Secretário de Estado, Daniel Webster. Agora nossa oposição deve terminar. O princípio ianque triunfou. O Sr. Seward protocola esse fato e declara que, em princípio, somos coniventes, e que os Estados Unidos, por meio do caso Trent, obtiveram uma concessão de nossa parte para assegurar aquilo para que, até então, esgotaram todos os meios diplomáticos e bélicos de obter.”

Mais importante ainda é a confissão do Daily Post acerca da virada da opinião pública, mesmo em Liverpool.

“Os confederados”, ele diz, “certamente não fizeram nada para desmerecer a boa opinião que até então depositamos neles. Muito pelo contrário! Eles combateram virilmente e fizeram sacrifícios incomensuráveis. Mesmo que não tenham obtido sua independência, todos devem admitir que a mereceram. A opinião pública, no entanto, agora segue um curso contrário a suas reivindicações. Eles já não são os bravos cavalheiros que eram há quatro semanas. Agora mostram ser um bando bastante lamentável. [...] Uma reação, de fato, iniciou-se. A seita da antiescravidão, tão acuada durante a última comoção popular, agora sobressai em voz alta e esbraveja contra o comércio de pessoas e escravocratas rebeldes! [...] E não é que mesmo as paredes de nossa cidade estão cobertas de cartazes cheios de denúncias e invectivas venenosas contra os senhores Mason e Slidell, autores da abominável lei acerca dos escravos fugidos [o Fugitive Slave Act de 1850]? Os confederados foram derrotados em função do Caso Trent. Deveriam ter vencido; mas ele terminou sendo sua ruína. A simpatia deste país lhes foi destituída, e eles terão que se dar conta, o quanto antes, de sua atual situação. Foram maltratados, mas para isso não há volta”.

Por meio dessa confissão, o jornal pró-Secessão de Liverpool esclarece a mudança no linguajar utilizado por alguns importantes órgãos de mídia de Palmerston, tão de repente, antes da abertura do Parlamento. Por isso o Economist do último sábado tem um artigo intitulado Deve-se respeitar o embargo?(3)

Ele parte do axioma de que o embargo é meramente um embargo no papel, e que sua violação é permitida de acordo com a legislação internacional. A França fez uma exigência violenta de que o mesmo fosse anulado. A decisão prática dessa questão reside, portanto, nas mãos da Inglaterra, aquela que tem grandes e urgentes razões para dar um passo à frente. Particularmente, ela precisa do algodão americano. Pode-se observar, incidentalmente, que não ficou bem claro como um “mero embargo no papel” seria capaz de impedir o embarque de algodão.

“Contudo, todavia”, clama o Economist, “a Inglaterra deve respeitar o embargo”. Após uma série de sofismas que motivam tal juízo, ele finalmente chega ao ponto principal.

“Em um caso assim”, ele diz, “o governo deveria ter todo o país em seu encalço. A grande massa da população britânica está, porém, preparada para uma intervenção que daria aparências de apoiarmos uma república escravagista. O sistema social da Confederação se baseia na escravidão; os Federalistas fizeram de tudo para nos convencer de que a escravidão é a raiz da Secessão, e que são inimigos da escravidão — além disso, a escravidão é alvo da maior repulsa de nossa parte [...] Aqui reside o verdadeiro equívoco do sentimento popular. A dissolução e não a restauração da União, independentemente da derrota ou não do Sul, é a única saída para a emancipação dos escravos. Esperamos esclarecer isso logo para nossos leitores. Mas isso ainda não está claro. A maioria dos ingleses ainda pensa o contrário; até onde persistirem com tal preconceito, qualquer intervenção da parte de nosso governo que nos coloque em ativa oposição ao Norte e em suposta aliança com o Sul faltará com a cooperação cordial da nação britânica.”

Em outras palavras: a tentativa de executar uma tal intervenção desencadearia a queda do ministério. Isso também explica porque o Times está se pronunciando tão decisivamente contra qualquer intervenção e em favor da neutralidade inglesa.


Notas:

(1) William Wilberforce (1755-1833) foi um político inglês e líder do movimento que aboliu o comércio de escravos no Reino Unido em 1833. (retornar ao texto)

(2) The Daily Post, número 2061, 13/01/1862. (retornar ao texto)

(3) “Shall the Blockade be respected?”. The Economist, número 961, 25/01/1862. (retornar ao texto)

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Inclusão: 18/08/2022