Escritos sobre a Guerra Civil Americana
Artigos do New-York Daily Tribune, Die Presse e outros (1861-1865)

Karl Marx e Friedrich Engels


Seção V. Tensões diplomáticas
O Times de Londres e Lorde Palmerston
(Marx. New-York Daily Tribune, 21 de outubro de 1861)


capa

Londres, 5 de outubro de 1861

“O povo inglês participa do governo de seu país lendo o jornal The Times.” Este julgamento proferido por um eminente autor inglês acerca do chamado autogoverno britânico só é verdadeiro naquilo que concerne à política exterior do Reino Unido.

Quanto às medidas de reforma interna, elas jamais são conduzidas com o apoio do The Times, cuja oposição obstinada só capitula quando reconhece a total incapacidade de continuar obstruindo seu avanço. Tomemos como exemplo a emancipação católica, o projeto de reforma, a abolição da lei dos cereais, o imposto sobre o selo e o imposto sobre o papel. Quando a vitória dos reformadores se mostrou inevitável, oThe Times deu meia volta, abandonou o campo reacionário e arranjou uma maneira de, no momento decisivo, se posicionar ao lado vencedor. Em todos estes casos, não orientou a opinião pública, mas se submeteu a ela de má vontade, relutantemente, depois de tentativas prolongadas, porém frustradas, de reverter as ondas ascendentes do progresso popular. Portanto, sua influência efetiva sobre o pensamento do público confina-se ao terreno da política exterior. Em nenhuma parte da Europa a massa do povo, particularmente das classes médias, é mais profundamente ignorante a respeito da política exterior de seu próprio país do que na Inglaterra. Uma ignorância que emana de duas grandes fontes; por um lado, desde a revolução Gloriosa de 1688, a aristocracia tem monopolizado a condução dos negócios exteriores na Inglaterra. Por outro, a crescente divisão do trabalho emasculou, em certa medida, o intelecto geral dos homens da classe-média ao circunscrever todas as suas energias e faculdades mentais às estreitas esferas de suas preocupações mercantis, industriais e profissionais. Ocorre que, enquanto a aristocracia atua por eles, a imprensa pensa por eles no âmbito das questões internacionais, e não demoraria muito para que estas duas partes, a aristocracia e a imprensa, descobrissem que seria de seu mútuo interesse estabelecer combinações entre si. Basta abrir as páginas do Political Registrer de Cobbett para se convencer de que, desde o início deste século, os grandes jornais londrinos têm desempenhado o papel de advogados dos celestiais condutores da política exterior inglesa. Ainda assim, houve alguns períodos intermediários a ser percorridos antes que o atual estado de coisas fosse trazido à tona. A aristocracia, que monopolizara a gestão dos negócios exteriores, primeiro se encolheu em uma oligarquia representada por um conclave secreto chamado o gabinete. Mais tarde, o gabinete foi suplantado por um único homem, Lorde Palmerston, quem, pelos últimos trinta anos,tem usurpado o poder absoluto de comandar as forças nacionais do Império Britânico e determinar a linha de sua Política Externa. Concomitantemente a esta usurpação, e de acordo com a lei da concentração, o London Times, atuando no terreno da produção de jornais mais rapidamente do que no da fiação do algodão, alcançou a posição de jornal nacional da Inglaterra, em outras palavras, o representante do espírito inglês para as nações estrangeiras. Se o monopólio da condução dos negócios estrangeiros passou da aristocracia para um conclave oligárquico e de um conclave oligárquico para um único homem, o Ministro das Relações Exteriores da Inglaterra, quer dizer, Lorde Palmerston, o monopólio do ato de pensar e julgar pela nação, em relação a suas próprias relações internacionais, foi transferido da imprensa como um todo para um só órgão, o The Times. Lorde Palmerston — que secretamente e por motivos desconhecidos da maioria das pessoas, mesmo de seus próprios colegas, administrava os negócios estrangeiros do Império Britânico — teria sido muito estúpido se não tivesse tentado se apoderar do jornal que havia usurpado o poder de realizar, em nome do povo inglês, o julgamento público de seus próprios atos secretos. Por sua vez, o The Times, em cujo vocabulário inexiste a palavra virtude, teria de ostentar uma virtude mais que espartana para não se aliar ao senhor absoluto, de fato, do poderio nacional do Império. Portanto, desde o golpe de estado à francesa, no qual o governo de uma facção foi substituído, na Inglaterra, pelo governo de uma coalizão de facções, e Palmerston, consequentemente, deixou de ter rivais que ameaçassem sua usurpação, o The Times se converteu em seu simples escravo. Ele teve o cuidado de contrabandear algumas de suas virtudes para os postos subordinados do gabinete e persuadir outros os admitindo em seu círculo social. Desde aquele tempo, todo o trabalho do The Times, naquilo que concerne aos negócios exteriores do Império Britânico, tem se limitado a fabricar uma opinião pública em conformidade com a política externa de Lorde Palmerston. O jornal deve preparar a mente do público para aquilo que Palmerston pretende fazer e obter sua aquiescência para aquilo que ele já fez. A labuta servil a que terá de se submeter para realizar este trabalho foi bem exemplificada durante a última sessão do parlamento, nada favorável a Lorde Palmerston. Alguns membros independentes da Câmara dos Comuns, tanto liberais quanto conservadores, rebelaram-se contra sua ditadura usurpadora e, através da exposição de seus desmandos do passado, tentaram despertar a nação para a percepção do perigo representado pela continuação deste poder descontrolado nas mãos da mesma pessoa. O Sr. Dunlop, abrindo os ataques com uma moção pela criação de um comitê selecionado para tratar dos Documentos Afegãos, apresentados por Palmerston à mesa da Casa em 1839, provou que tais documentos foram na verdade forjados por Palmerston. O The Times, em sua reportagem parlamentar, suprimiu todas as passagens do discurso do Sr. Dunlop, as quais considerou mais prejudiciais ao seu mestre. Mais adiante, Lorde Montagu, ao apresentar uma moção pedindo a publicação de todos os documentos relativos ao Tratado com a Dinamarca de 1852, acusou Palmerston de ter sido o pivô das manobras destinadas a interferir na sucessão dinamarquesa no interesse de uma potência estrangeira e de haver desorientado a Câmara dos Comuns através de declarações deliberadamente falsas. Palmerston, no entanto, havia entrado em entendimento prévio com o Sr. Disraeli para prejudicar a moção de Montagu através da contagem de quórum da sessão, o que paralisou todo o processo. Como o The Times fora informado por Palmerston que seria realizada a contagem, seu editor, especialmente encarregado de mutilar e cozinhar as reportagens parlamentares, concedeu-se folga, de modo que o discurso de Lorde Montagu apareceu sem mutilação nas colunas do The Times. Quando, na manhã seguinte, o engano foi constatado, um texto foi preparado para dizer à nação que a contagem fora uma instituição engenhosa para suprimir aborrecimentos, que Lorde Montagu era um chato habitual, e que os negócios da nação não poderiam ser tocados se os chatos do parlamento não fossem descartados sem mais cerimônia. Mais uma vez, Palmerston se manteve de pé após a última sessão de seu julgamento, assim como por ocasião da Revolução Polonesa de 1831, em que o Sr. Hennessy se debruçou sobre a produção de despachos do Ministério das Relações Exteriores. Novamente o Times recorreu, assim como no caso da moção de Dunlop, ao simples processo de supressão. Seu relato do discurso do Sr. Hennessy é uma edição inteiramente in usum delphini.(1) Se considerarmos o quão trabalhoso deve ser examinar a imensa quantidade de registros parlamentares na mesma noite em que são enviados da Câmara dos Comuns para a redação do jornal e ainda nesta mesma noite mutilá-los, alterá-los e falsificá-los, de modo a impedir que testemunhem contra a pureza política de Palmerston, teremos que admitir que, sejam quais forem os ganhos e vantagens recebidos peloThe Times por sua subserviência ao nobre visconde, a tarefa não é agradável.

Se, portanto, The Times, através da supressão e da distorção, foi capaz de falsificar a opinião pública em relação aos acontecimentos que ocorreram ontem na própria Câmara dos Comuns do Reino Unido em relação aos eventos que transcorrem em um solo distante, como é o caso da guerra americana, seu poder de distorção e supressão deve ser, evidentemente, ilimitado. Se no tratamento dos assuntos americanos ele empenhou todas as suas forças para exasperar mutuamente os sentimentos americanos e ingleses, não agiu desta maneira devido a qualquer simpatia para com os senhores do algodão do Reino Unido, nem por consideração para com qualquer verdadeiro ou suposto interesse inglês. Ele simplesmente executou as ordens do seu senhor. Logo, a partir do tom alterado adotado pelo The London Times durante a última semana, devemos inferir que Lorde Palmerston está prestes a recuar da atitude extremamente hostil que assumiu até aqui contra os Estados Unidos. Em um de seus editoriais de hoje, The Times, que durante meses exaltara o agressivo poder dos Secessionistas e dissertar acerca da incapacidade dos Estados Unidos em lidar com eles, exprime completa certeza na superioridade do Norte. Evidencia-se que esta mudança de atitude foi ditada por seu senhor pela circunstância de que outros jornais influentes, conhecidos por suas conexões com Palmerston, deram a guinada simultaneamente. Um deles, The Economist, dá mesmo uma dica bastante ampla aos mercadores da opinião pública de que chegou o momento de “observar atentamente” seus pretensos “sentimentos para com os Estados Unidos.” A passagem no The Economist a qual aludi e que penso que vale a pena reproduzir como evidência das novas ordens recebidas pelos homens de imprensa de Palmerston, segue adiante:

Em um ponto reconhecemos francamente que os nortistas têm o direito de se queixarem e nesse ponto também estamos fadados a estar mais atentos que talvez tenhamos sido como um todo. Nossas principais publicações têm se mostrado sempre prontas para citar, repercutir e incorporar os sentimentos e representar as posições dos Estados Unidos. Os jornais, notórios o tempo todo por seu caráter indisputável e fraca influência, são agora dos mais dos suspeitos de ser secretamente Secessionistas, de navegar sob bandeira falsa, expressar opiniões extremistas do Norte, enquanto escrevem no interesse e provavelmente sob pagamento do Sul. Poucos ingleses podem, por exemplo, sob qualquer justificativa decente, fingir que consideram o The N.Y. Herald como representante tanto do caráter quanto dos pontos de vista do setor setentrional daquela República. Mais uma vez aqui devemos ter muito cuidado para que nossas justas críticas aos unionistas não degenerem por falta de sensibilidade na gradação, em aprovação e defesa dos secessionistas. A atenção de todas as mentes comuns à partidarização, é muito forte. [...] Assim, por mais que nos ressintamos por grande parte da conduta e do discurso do Norte [...] não devemos esquecer que a secessão do Sul foi provocada por desígnios e iniciada com procedimentos que merecem nossa mais sincera e enraizada desaprovação. Devemos, com certeza, condenar a tarifa protecionista da União como uma loucura opressiva e obscena [...] É claro que compartilhamos o desejo do Sul de ter tarifas baixas e comércio sem restrições. Estamos, certamente ansiosos para que a prosperidade dos EUA, que produz tanta matéria prima e demanda tantos produtos manufaturados, não sofra interrupção ou reversão. Porém, ao mesmo tempo, é impossível para nós perder de vista o fato inquestionável de que o verdadeiro e mais importante motivo da secessão não era a defesa do direito de possuírem escravos em seu próprio território (que os Nortistas estavam tão prontos a conceder quanto os sulistas a reclamar), mas estender a Escravidão sobre um vasto e indefinido território até então livre daquela maldição, mas no qual os fazendeiros escravistas sonhavam que poderiam se espalhar dali em diante. Objetivo este que sempre reputamos como imprudente, injusto e repugnante. O estilo de sociedade estabelecido nos estados do Sul pela instituição da servidão doméstica parece, aos olhos dos ingleses, mais e mais detestável e deplorável na medida em que tomam conhecimento dele. Os Sulistas deveriam ser informados de que nenhuma vantagem pecuniária ou comercial que este país poderia supostamente obter da ampliação do cultivo dos solos virgens dos estados escravistas e dos novos territórios que reclamam jamais modificará o mínimo que seja nossas opiniões sobre estes temas ou interferirá na manifestação destas opiniões nem distorcerá ou dificultará quaisquer ações que considerarmos obrigatórias ou adequadas. [...] Acredita-se que eles (os Secessionistas) ainda cultivam a noção extraordinária de que, provocando a fome na França e na Inglaterra — pelas perdas e os sofrimentos provocados como consequência da privação total dos suprimentos americanos —, obrigariam aqueles governos a interferir em seu favor, forçando os Estados Unidos a abandonar o bloqueio... Não existe a mais remota possibilidade de que qualquer destas potências possa considerar isto justificável por um só momento e projetar uma ação tão decidida e injustificável contra os Estados Unidos... Somos menos dependentes do Sul do que ele é dependente de nós, como em breve começarão a descobrir. [...] Portanto, rogamos para que acreditem que a Escravidão, enquanto continuar a existir, criará, em maior ou menor medida, uma barreira moral entre nós e que mesmo uma aprovação tácita da mesma se encontra tão longe de nossas ideias quanto uma interferência aberta. Creiam que o Lancashire não é a Inglaterra e que, em nome da honra e do espírito de nossa população manufatureira, também deve ser dito que, mesmo se fosse, o Algodão não seria o Rei

Tudo o que eu pretendia demonstrar neste momento era que Palmerston, e consequentemente a imprensa londrina que atua sob as ordens dele, está abandonando sua atitude hostil para com os Estados Unidos. As causas que conduziram a esta reviravolta tentarei explicar em um artigo subsequente. Antes de concluir, gostaria de acrescentar que o Sr. Forster, representante parlamentar de Bradford, proferiu na última terça-feira, no teatro do Bradford Mechanics Institute, a palestra “Sobre a Guerra Civil na América”, onde delineou a verdadeira origem e o caráter daquela guerra e refutou vitoriosamente as distorções da imprensa de Palmerston.


Notas:

(1) “Para o uso dos pupilos”, em latim no original. (retornar ao texto)

logotipo editora Aetia
Inclusão: 18/08/2022