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A breve campanha em Maryland decidiu o destino da Guerra Civil Americana, e como sempre pôde desequilibrar o desempenho bélico dos partidos em conflito por certo período de tempo. Desenvolvemos anteriormente neste jornal que a luta pela posse dos estados escravistas da fronteira é uma luta pelo domínio da União, e que a Confederação se encontra em desvantagem nesta luta, na qual tem combatido somente em circunstâncias mais favoráveis a si, nunca nas corriqueiras.
Maryland valia, justamente, como a cabeça, Kentucky como o braço do partido escravista nos estados fronteiriços. A capital de Maryland, Baltimore, até então fora preservada como “leal” [à União] somente sob lei marcial. Era um dogma, não apenas do Sul como também no Norte, que a aparição de confederados em Maryland daria o sinal para um levante popular em massa contra os “partidários de Lincoln”. Ali não contava apenas com um êxito militar, mas também com uma demonstração moral capaz de eletrizar os elementos sulistas em todos os estados fronteiriços, carregando-os violentamente em seu turbilhão.
Com Maryland, Washington caiu, a Filadélfia foi ameaçada e Nova York deixou de ser mais segura. A invasão simultânea do Kentucky por força da população, postos e suprimentos econômicos dos principais estados fronteiriços foi, se considerada de forma isolada, mera brincadeira. Com apoio das vitórias decisivas em Maryland, tal invasão esmagou o partido unionista no Tennessee, abarcando o Missouri, assegurando o Arkansas e o Texas, pondo em risco Nova Orleans e, acima de tudo, mudando a guerra para Ohio, o estado central dos nortistas, cujos domínios se estendem pelo Norte da mesma forma como a Geórgia se estende pelo Sul. Um exército confederado em Ohio cortaria os estados nortistas pelo leste e combateria o oponente em seu próprio cerne. Após o fiasco do principal exército rebelde de Maryland, a invasão do Kentucky, levada adiante de modo pouco enérgico, não encontrou simpatia popular em lugar algum, de forma que o dito exército se encolheu em um grupelho de guerrilheiros insignificante. Mesmo a captura de Louisville agora só uniria “os gigantes do Oeste”, as multidões de Iowa, Illinois, Indiana e Ohio em uma “avalanche” semelhante à que explodiu na cabeça dos sulistas durante a primeira gloriosa campanha do Kentucky.
Assim, a campanha de Maryland provou que a onda da Secessão carece de prontidão para atacar através do Potomac e junto às margens do rio Ohio. O Sul está limitado à posição defensiva, embora apenas na ofensiva resida a possibilidade de sua vitória. Com os estados fronteiriços apropriados, esmagados entre o Mississippi a Oeste e o Oceano Atlântico a Leste, nada foi conquistado — nada além de um enorme sepulcro.
Não se deve esquecer por um único instante que os sulistas tomaram os estados fronteiriços, governando-os politicamente, assim que plantaram neles a bandeira da rebelião. O que esperavam conseguir eram os territórios. Mas acabaram perdendo os estados fronteiriços junto dos territórios.
No entanto, a invasão de Maryland foi realizada sob conjunturas mais favoráveis. Uma série vergonhosa de derrotas sem precedentes no lado do Norte; um exército federalista desmoralizado; “Stonewall” Jackson como herói do dia; Lincoln e seu governo ridicularizados; o Partido Democrata no Norte recuperando forças e já contando com uma presidência de Jefferson Davis; a França e a Inglaterra em movimento para proclamar em bom tom a legitimidade (já reconhecida internamente) dos proprietários de escravos! “E pur si muove”.(1) A razão, porém, vencerá na História mundial.
Ainda mais importante que a campanha de Maryland é a Proclamação [de Emancipação] de Lincoln.(2) A figura de Lincoln é uma figura sui generis nos anais da História. Nenhuma iniciativa, nenhum impulso idealista, nenhuma exacerbação retórica, nenhum drapeado de Grande História.(3) Ele sempre realiza os feitos mais importantes da forma mais insignificante. Outros, para quem a discussão toda é uma questão de metros quadrados de terra, proclamam que há uma “batalha por ideias” em jogo. O próprio Lincoln, quando está lidando com ideais, denuncia que essas pessoas só estão pensando em metros quadrados de terra. Hesitante, relutante e sem muita vontade, ele canta a ária de bravura própria de seu papel como se estivesse pedindo perdão pelas circunstâncias que o obrigaram a “ser um leão”. Os decretos mais terríveis e, de um ponto de vista histórico, extremamente estranhos que tem lançado contra o inimigo — todos parecem e se esforçam para parecer investidas corriqueiras que um advogado oferece a sua contraparte, meras chicanas jurídicas, pequenas e herméticas actiones juris. O mesmo caráter está presente em sua mais recente Proclamação, o documento mais importante na história americana desde a fundação da União, que demole a antiga constituição americana com seu manifesto em prol da abolição da escravidão. Nada mais fácil do que dar mostras do que há de esteticamente desagradável, formalmente burlesco e politicamente contraditório nas políticas públicas principais e estatais de Lincoln, como fazem os píndaros ingleses pró-escravidão do Times, o Saturday Review e tantos outros. Apesar disso, Lincoln tomará um assento logo ao lado do de Washington na História dos Estados Unidos e da humanidade! Será este o dia em que, enquanto a mesmice está se espalhando melodramaticamente neste lado do Oceano Atlântico, as coisas importantes passarão a se tornar artigo cotidiano no Novo Mundo?
Lincoln não é o rebento de uma revolução popular. Sem saber que grande destino tomaria, o trâmite usual de sufrágio universal caiu em seu colo — no colo de um plebeu que subiu no palanque de senador de Illinois, sem brilhantismo intelectual, sem grandeza particular ou significado excepcional; trata-se de uma natureza mediana com boa vontade. Nunca o Novo Mundo alcançou maior vitória do que quando provou que, com sua organização política e social, bastam naturezas medianas com boa vontade para a realização daquilo que, no Velho Mundo, exigiria heróis!
Hegel já observou que, na verdade, a comédia sobrepõe a tragédia, e o humor da Razão se sobrepõe a seu emocionalismo, a seu pathos. Se Lincoln não é detentor do pathos da iniciativa histórica, ao menos detém seu senso de humor como uma figura popular mediana. Em que momento ele emite a proclamação de que a escravidão na Confederação será abolida a partir de 1º de janeiro de 1863? No mesmo em que a Confederação, como estado independente, decide “negociar a paz” no Congresso de Richmond. No mesmo em que os escravocratas dos estados fronteiriços acreditavam que “a instituição peculiar” seria garantida em função da incursão dos sulistas do Kentucky, assim como o controle sobre seu compatriota, o presidente Abraham Lincoln, em Washington.
Notas:
(1) “E ela ainda se move”. Frase atribuída a Galileu após sair de seu julgamento perante a Inquisição italiana, onde teve que negar que a Terra se movia ao redor do Sol. (retornar ao texto)
(2) A Emancipation Proclamation foi um passo preliminar para a abolição definitiva da escravatura em território dos EUA. Ela declarava que todos os escravizados, cerca de 3 milhões de pessoas, ganhariam o status de pessoas livres nos estados confederados a partir de primeiro de janeiro de 1863, abrindo precedente para campanha militares de libertação.(retornar ao texto)
(3) No original, keine historische Draperie, o que é uma metáfora obscura. O que os autores provavelmente apontam é a falta de propensão para a grandiosidade histórica que figuras políticas da época tinham (pensemos em Napoleão III, que se portava como uma celebridade). A imagem de Lincoln como um governante excêntrico, intransigente e de punho forte, foi culturalmente construída mais tarde, após a libertação dos escravizados e seu consequente assassinato em abril de 1865. Até o momento de escrita do artigo, ele era semanalmente ridicularizado por boa parte dos jornais ingleses. (retornar ao texto)
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