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O movimento político da classe média, ou burguesia, na Alemanha, pode ser datado de 1840. Foi precedido de sintomas que mostravam que a classe endinheirada e industrial daquele país estava a amadurecer para uma situação que não mais lhe ia permitir continuar apática e passiva sob a pressão de um monar-quismo meio feudal, meio burocrático. Os príncipes mais pequenos da Alemanha, em parte, para garantir para si próprios uma maior independência relativamente à supremacia da Áustria e da Prússia, ou relativamente à influência da nobreza nos seus próprios Estados, em parte, a fim de consolidar num todo as províncias desconexas, reunidas sob o seu domínio pelo Congresso de Viena[N169], outorgaram, um após outro, constituições de carácter mais ou menos liberal. Podiam fazê-lo sem qualquer perigo para si próprios; pois, se a Dieta da Confederação, esse mero fantoche da Áustria e da Prússia, fosse intrometer-se na sua independência como soberanos, eles sabiam que ao resistir às suas imposições seriam apoiados pela opinião pública e pelas Câmaras; e se, pelo contrário, essas Câmaras se tornassem demasiado fortes, eles podiam prontamente ordenar ao poder da Dieta que quebrasse toda a oposição. As instituições constitucionais da Baviera, de Wiirttemberg, de Baden ou de Hannover, em tais circunstâncias, não podiam dar lugar a qualquer luta séria pelo poder político e, por conseguinte, o grande volume da classe média alemã manteve-se, na generalidade, acima das questiúnculas que surgiram nas legislaturas dos pequenos Estados, sabendo bem que sem uma mudança fundamental na política e constituição dos dois grandes poderes da Alemanha nenhuns esforços nem vitórias secundários seriam de qualquer utilidade. Mas, ao mesmo tempo, surgiu nessas pequenas assembleias uma raça de advogados liberais, oposicionistas profissionais: os Rotteck, os Welcker, os Roemer, os Jordan, os Stuve, os Eisenmann, esses grandes "homens populares" (Volksmànner) que, após uma oposição de vinte anos. mais ou menos barulhenta, mas sempre infrutuosa, foram levados ao cume do poder pela maré revolucionária primaveril de 1848 e que, depois de aí terem mostrado a sua total impotência e insignificância, foram de novo deitados a baixo num momento. Estes primeiros especímenes em solo alemão de negociante em política e oposição tornaram familiar ao ouvido alemão, com os seus discursos e escritos, a linguagem do constitucionalismo e, precisamente pela sua existência, prognosticaram a aproximação de um tempo em que a classe média havia de se apoderar e de restaurar no seu verdadeiro significado as frases políticas que estes professores e advogados faladores tinham por hábito usar, sem conhecerem muito bem o sentido que originalmente se lhes prendia.
Também a literatura alemã laborava sob a influência da excitação política em que toda a Europa tinha sido lançada pelos acontecimentos de 1830[N170]. Um constitucionalismo mal digerido ou um republicanismo ainda menos digerido era pregado por quase todos os escritores da altura. Tornou-se cada vez mais hábito, particularmente das espécies inferiores de litterati(5*), disfarçar a falta de esperteza das suas produções com alusões políticas que estavam seguras de atrair a atenção. A poesia, os romances, as recensões, o drama, toda a produção literária, abundava naquilo a que se chamava "tendência", isto é, em exibições mais ou menos tímidas de um espírito antigovernamental. Em ordem a completar a confusão de ideias reinantes depois de 1830 na Alemanha, misturavam-se a estes elementos de oposição política recordações universitárias mal digeridas de filosofia alemã e respigos mal compreendidos de socialismo francês, particularmente, de Saint-Simonismo; e a clique de escritores que discorria sobre este conglomerado heterogéneo de ideias intitulava-se presunçosamente "Jovem Alemanha"[N171] ou "a Escola Moderna". Arrependeram-se depois dos seus pecados de juventude, mas não melhoraram o seu estilo de escrever.
Finalmente, a filosofia alemã — esse mais complicado, mas, ao mesmo tempo, mais seguro termómetro do desenvolvimento do espírito alemão — tinha-se declarado a favor da classe média, quando Hegel, na sua Filosofia do Direito(6*), proclamou a monarquia constitucional a forma final e mais perfeita de governo. Por outras palavras, ele proclamava o advento próximo das classes médias do país ao poder político. Depois da sua morte a escola dele não ficou por aí. Enquanto a parte mais avançada dos seus seguidores, por um lado, sujeitava toda a crença religiosa à ordália de uma crítica rigorosa e abanava até aos alicerces o edifício antigo do cristianismo, apresentava, ao mesmo tempo, princípios políticos mais arrojados do que até aí aos ouvidos alemães tinha sido dado ouvir expor, e tentava voltar a pôr em destaque a memória dos heróis da primeira revolução francesa. A abstrusa linguagem filosófica com que estas ideias estavam enfarpeladas, se obscurece a mente tanto do escritor como do leitor, igualmente cega os olhos do censor, e foi assim que os escritores "Jovens Hegelianos" gozaram de uma liberdade de imprensa desconhecida em qualquer outro ramo da literatura.
Era, portanto, evidente que a opinião pública, na Alemanha, estava a passar por uma grande mudança. Gradualmente, a vasta maioria daquelas classes cuja educação ou posição na vida habilitava, sob uma monarquia absoluta, a obter alguma informação política e a formar algo de parecido com uma opinião política independente, uniu-se numa poderosa falange de oposição contra o sistema existente. E, ao formular um juízo sobre a lentidão do desenvolvimento político na Alemanha, ninguém deve deixar de ter em conta a dificuldade em obter uma informação correcta sobre qualquer assunto, num país onde todas as fontes de informação estavam sob o controlo do governo; onde, desde a escola de caridade e da catequese ao jornal e à universidade, nada era dito, ensinado, impresso ou publicado a não ser o que previamente havia obtido a sua aprovação. Veja-se Viena, por exemplo. A gente de Viena, que, na indústria e nas manufacturas, não tem talvez na Alemanha ninguém que lhe leve a palma, que, em espírito, coragem e energia revolucionária, tem provado ser de longe superior a todos, estava ainda mais ignorante quanto aos seus reais interesses e cometeu mais disparates durante a revolução do que qualquer outra; e isto deveu-se, em muito grande medida, à quase absoluta ignorância no que respeita aos assuntos políticos mais comuns em que o governo de Metternich tinha conseguido mante-la.
Não são precisas mais explicações [para compreender] por que é que, sob semelhante sistema, a informação política era um monopólio quase exclusivo daquelas classes da sociedade que se podiam permitir pagar para que ela fosse contrabandeada para dentro do país e, mais particularmente, daqueles cujos interesses eram mais seriamente atacados pelo estado de coisas existente — a saber, as classes manufactureira e comercial. Elas foram, por conseguinte, as primeiras a unirem-se numa massa contra a continuação de um absolutismo mais ou menos disfarçado e o começo do movimento revolucionário real na Alemanha tem que ser datado da sua passagem para as fileiras da oposição.
O pronunciamento oposicionista da burguesia alemã deve ser datado de 1840, da morte do anterior rei da Prússia(7*), o último fundador sobrevivente da Santa Aliança de 1815[N80]. O novo rei era conhecido como não sendo um apoiante da monarquia predominantemente burocrática e militar do seu pai. O que as classes médias francesas tinham esperado do advento de Luís XVI, esperava a burguesia alemã, em certa medida, de Frederico Guilherme IV da Prússia. De todos os lados se concordava em que o velho sistema estava ultrapassado, estava gasto, tinha de ser abandonado; e aquilo que tinha sido suportado em silêncio durante o reinado do antigo rei era agora proclamado em voz alta como intolerável.
Mas, se Luís XVI, "Louis-le-Désiré"(8*), tinha sido um simplório singelo e despretensioso, meio consciente da sua própria nulidade, sem quaisquer opiniões definidas, dominado principalmente pelos hábitos contraídos durante a sua educação, "Frederico-Guilherme-le-Désiré?" era algo de muito diferente. Enquanto certamente ultrapassava o seu original francês em fraqueza de carácter, não era desprovido nem de pretensões nem de opiniões. Tinha travado conhecimento, de um modo mais ou menos amadorístico, com os rudimentos da maioria das ciências e julgava-se, por conseguinte, suficientemente ilustrado para considerar como definitivos os seus juízos acerca de qualquer questão. Assegurou-se de que era um orador de primeira, e não havia, certamente, nenhum caixeiro-viajante em Berlim que o pudesse bater, tanto na prolixidade de pretenso espírito como na fluência da elocução. E, acima de tudo, ele tinha as suas opiniões. Odiava e desprezava o elemento burocrático da monarquia prussiana, mas apenas porque todas as suas simpatias iam para o elemento feudal. Fundador, ele próprio, e um dos principais colaboradores do Semanário Político de Berlim[N172], da chamada Escola Histórica[N173] (uma escola que vivia das ideias de Bonald, De Maistre, e outros escritores da primeira geração dos Legitimistas Franceses[N59]), visava uma restauração, tão completa quanto possível, da posição social predominante da nobreza. O rei, primeiro nobre do seu reino, rodeado, em primeira instância, por uma esplêndida corte de poderosos vassalos, príncipes, duques e condes; em segunda instância, por uma baixa nobreza numerosa e rica; reinando discricionariamente sobre os seus leais burgueses e camponeses e sendo ele próprio, portanto, o chefe de uma completa hierarquia de graus ou castas sociais, cada uma das quais devia gozar dos seus privilégios particulares e estar separada das outras pela quase inultrapassável barreira do nascimento ou de uma posição social, fixa e inalterável; contrabalançando-se tão bem o conjunto destas castas ou "estados(9*) do reino" uns aos outros, ao mesmo tempo, em poder e influência, que deveria ficar para o rei uma completa independência de acção — tal era o beau ideal(10*) que Frederico Guilherme IV se comprometeu a realizar e que, de novo, no momento presente, está a tentar realizar.
Levou algum tempo até que a burguesia prussiana, não muito versada em questões teóricas, descobrisse o real alcance da tendência do seu rei. Mas o que ela descobriu muito cedo foi que ele se debruçava sobre as coisas de uma maneira exactamente oposta à que ela queria. Mal o novo rei sentiu o seu "dom de palavra" liberto pela morte do pai, logo se pôs a proclamar as suas intenções num sem-número de discursos; e cada discurso, cada acto dos seus, contribuiu em muito para alhear dele as simpatias da classe média. Ele não se teria preocupado muito com isso, se não tivesse sido interrompido nos seus sonhos poéticos por duras e alarmantes realidades. Infelizmente, aquele romantismo não é muito rápido nas contas e aquele feudalismo, desde Dom Quixote, não conta com o seu anfitrião! Frederico Guilherme IV partilhou demasiado aquele desprezo pelo dinheiro a pronto que sempre tinha sido a mais nobre herança dos filhos dos cruzados. Quando subiu ao trono, encontrou um sistema de governo oneroso, apesar de organizado parcimoniosamente, e um Tesouro moderadamente cheio. Em dois anos, qualquer vestígio de excedente foi gasto em festas da corte, deslocações reais, presentes, subvenções aos nobres necessitados, arruinados e vorazes, etc, e os impostos regulares não mais foram suficientes para as exigências tanto da corte como do governo. E, por conseguinte, Sua Majestade muito cedo se encontrou colocada entre um brilhante défice, de um lado, e uma lei de 1820, do outro, segundo a qual qualquer novo empréstimo ou qualquer aumento dos impostos existentes sem o assentimento da "futura representação do povo" eram tornados ilegais. Esta representação não existia; o novo rei estava ainda menos inclinado do que o pai a criá-la; e se se tivesse inclinado, sabia que a opinião pública havia maravilhosamente mudado desde a sua subida ao trono.
Na verdade, as classes médias que, em parte, tinham esperado que o novo rei outorgasse imediatamente uma Constituição, proclamasse a liberdade de imprensa, tribunais com jurados, etc. — em suma, tomasse ele próprio a liderança daquela revolução pacífica que eles queriam a fim de obterem a supremacia política — as classes médias descobriram o seu erro e viraram-se ferozmente contra o rei. Na província do Reno, e de um modo mais ou menos geral por toda a Prússia, estavam tão exasperadas que, não possuindo elas próprias homens capazes de as defenderem na imprensa, foram até ao ponto de uma aliança com o partido filosófico extremo, de que já atrás falámos. O fruto desta aliança foi a Gazeta Renana[N174] de Colónia, um jornal que foi suprimido depois de quinze meses de existência, mas de que se pode datar a existência da imprensa jornalística na Alemanha. Isto foi em 1842.
O pobre rei, cujas dificuldades financeiras eram a sátira mais aguda às suas propensões medievais, muito cedo descobriu que não podia continuar a reinar sem fazer algumas ligeiras concessões ao clamor popular por aquela "Representação do Povo" que, como último remanescente das promessas há muito esquecidas de 1813 e 1815, tinha sido incorporada na lei de 1820. Achou que o modo menos objectável de satisfazer esta desagradável lei era reunir conjuntamente os Comités Permanentes das Dietas Provinciais. As Dietas Provinciais tinham sido instituídas em 1823. Em cada uma das oito províncias do reino, consistiam em:
Estava tudo arranjado de tal maneira que em todas as províncias as duas secções da nobreza tinham sempre uma maioria na Dieta. Cada uma destas oito Dietas Provinciais elegia um Comité, e estes oito Comités eram agora chamados a Berlim, em ordem a formar uma Assembleia de Representantes com o propósito de votar o tão desejado empréstimo. Foi afirmado que o Tesouro estava cheio, e que o empréstimo era requerido, não para necessidades correntes, mas para a construção de um Caminho-de-Ferro do Estado. Mas os Comités unidos[N175] responderam ao rei com uma recusa frontal, declarando-se incompetentes para agir como representantes do povo, e apelaram para Sua Majestade no sentido de cumprir a promessa de uma Constituição Representativa que o seu pai tinha feito quando precisou da ajuda do povo contra Napoleão.
A sessão dos Comités unidos provou que o espírito de oposição não mais estava confinado à burguesia. Uma parte do campesinato tinha-se juntado a ela e muitos nobres, sendo eles próprios grandes lavradores nas suas propriedades e negociantes de cereais, lã, álcool e linho, necessitando das mesmas garantias contra o absolutismo, a burocracia e a restauração feudal, tinham-se igualmente pronunciado contra o governo e a favor de uma Constituição Representativa. O plano do rei tinha falhado rotundamente; não tinha obtido dinheiro e havia aumentado o poder da oposição. As sessões subsequentes das próprias Dietas Provinciais foram ainda menos felizes para o rei. Todas elas pediram reformas, o cumprimento das promessas de 1813 e 1815, uma Constituição e uma imprensa livre; as resoluções de algumas delas sobre este assunto foram redigidas de uma maneira bastante pouco respeitosa e as respostas mal-humoradas do rei exasperado tornaram o mal ainda pior.
Entretanto, as dificuldades financeiras do governo continuaram a aumentar. Durante algum tempo, abatimentos feitos aos dinheiros destinados aos diferentes serviços públicos, transacções fraudulentas com a "Seehandlung"[N176], estabelecimento comercial que especulava e negociava por conta e risco do Estado e que já há muito agia como seu corretor, tinham sido suficientes para manter as aparências; emissões alargadas de papel-moeda do Estado tinham fornecido alguns recursos; e o segredo acerca de tudo isto tinha sido bastante bem guardado. Mas todos estes expedientes cedo ficaram esgotados. Foi tentado outro plano: o estabelecimento de um banco, cujo capital devia ser fornecido, em parte, pelo Estado e, em parte, por accionistas privados, em que a direcção principal pertencia ao Estado, de tal maneira que permitisse ao governo dispor numa grande medida dos fundos deste banco e, assim, repetir as mesmas transacções fraudulentas que não mais podia realizar com a "Seehandlung". Mas,,é claro, não se encontraram capitalistas que entregassem o seu dinheiro em tais condições; os estatutos do banco tiveram que ser alterados e a propriedade dos accionistas garantida contra as usurpações do Tesouro, antes que quaisquer acções fossem subscritas. Por conseguinte, tendo este plano falhado, não restava senão tentar um empréstimo — no caso de se encontrarem capitalistas que emprestassem o seu dinheiro sem exigirem a autorização e a garantia daquela misteriosa "futura Representação do Povo". Dirigiram-se a Rothschild e ele declarou que se o empréstimo fosse garantido por essa "Representação do Povo", ele se encarregaria imediatamente da coisa — se não, não poderia ter nada a ver com a transacção.
Portanto, toda a esperança de obter dinheiro se tinha desvanecido e não havia qualquer possibilidade de escapar à fatal "Representação do Povo". A recusa de Rothschild foi conhecida no Outono de 1846 e, em Fevereiro do ano seguinte, o rei chamou a Berlim todas as oito Dietas Provinciais, constituindo-as numa "Dieta Unida"[N177]. Esta Dieta, em caso de necessidade, devia desempenhar-se da tarefa requerida pela lei de 1820; votaria empréstimos e aumentos de impostos mas para além disso não teria quaisquer direitos. A sua opinião acerca da legislação geral devia ser meramente consultiva; devia reunir, não em períodos fixados, mas quando aprouvesse ao rei; não devia discutir senão o que aprouvesse ao governo apresentar-lhe. Claro que os seus membros ficaram muito pouco satisfeitos com o papel que se esperava que desempenhassem. Repetiram os desejos que haviam enunciado quando se reuniram nas assembleias provinciais; as relações entre eles e o governo cedo se tornaram acrimoniosas e quando o empréstimo, que de novo se afirmou ser necessário para construções ferroviárias, lhes foi pedido, recusaram-se de novo a concedê-lo.
Muito cedo este voto levou a que a sua sessão terminasse. O rei, cada vez mais exasperado, mandou-os embora com uma reprimenda, mas continuou a ficar sem dinheiro. E, de facto, tinha toda a razão em estar alarmado com a sua posição, ao ver que a Liga Liberal, chefiada pelas classes médias, que compreendia uma larga parte da baixa nobreza e todos os variados descontentamentos que tinham sido acumulados nas diferentes fracções das camadas inferiores — que esta Liga Liberal estava determinada a obter o que queria. Em vão declarara o rei, no discurso de abertura, que nunca, mas nunca, outorgaria uma Constituição no sentido moderno da palavra; a Liga Liberal insistia numa tal Constituição Representativa moderna, antifeudal, com todas as suas sequelas, liberdade de imprensa, tribunais com jurados, etc; e antes de a obter não concederia nem um tostão. Uma coisa era evidente: que as coisas não podiam continuar desta maneira durante muito tempo e que uma das partes tinha de ceder ou que uma ruptura, uma luta sangrenta, tinha de se seguir. E as classes médias sabiam que estavam nas vésperas de uma revolução, e prepararam-se para ela. Procuraram obter, por todos os meios possíveis, o apoio da classe operária das cidades e do campesinato nos distritos agrícolas, e é bem sabido que, mesmo nos finais de 1847, não havia praticamente um único personagem político proeminente entre a burguesia que não se proclamasse "socialista", a fim de assegurar a simpatia da classe proletária. Veremos já a seguir estes "socialistas" em acção.
Esta impaciência da burguesia dirigente em adoptar pelo menos a aparência exterior do socialismo foi causada por uma grande mudança que sobreveio nas classes trabalhadoras da Alemanha. Desde 1840, tinha havido uma fracção de operários alemães que, tendo viajado pela França e pela Suíça, se tinham mais ou menos embebido de noções socialistas e comunistas toscas que eram, então, correntes entre os operários franceses. A crescente atenção prestada a semelhantes ideias em França, desde 1840, pôs em voga, também na Alemanha, o socialismo e o comunismo e, a partir de 1843, todos os jornais estavam cheios de discussões sobre questões sociais. Em breve se formou na Alemanha uma escola de socialistas, que se distinguia mais pela obscuridade do que pela novidade das suas ideias; os seus principais esforços consistiram na tradução das doutrinas francesas de Fourier, Saint-Simon e outras para a linguagem abstrusa da filosofia alemã[N178]. A escola comunista alemã, completamente diferente desta seita, foi formada mais ou menos ao mesmo tempo.
Em 1844, ocorreram os motins dos tecelões da Silésia, seguidos pela insurreição dos estampadores de tecidos de algodão em Praga. Estes motins, reprimidos com crueldade, motins de operários, não contra o governo, mas contra os patrões, causaram uma profunda sensação e deram um novo estímulo à propaganda socialista e comunista entre os operários. O mesmo aconteceu com os motins pelo pão durante o ano de fome de 1847. Em suma, do mesmo modo que a oposição constitucional reunia em torno da sua bandeira a grande massa das classes possidentes (com excepção dos grandes proprietários rurais feudais), as classes trabalhadoras das grandes cidades, em busca da sua emancipação, voltavam-se para as doutrinas socialista e comunista, ainda que, com as leis de imprensa então existentes, apenas lhes fosse dado conhecer muito pouco acerca delas. Não seria de esperar que tivessem ideias muito definidas acerca do que queriam — sabiam apenas que o programa da burguesia constitucional não continha tudo o que queriam e que as suas necessidades de modo algum estavam contidas no conjunto de ideias constitucionais.
Não havia, então, na Alemanha, um partido republicano separado. Ou se era monárquico constitucional, ou socialista ou comunista mais ou menos claramente definido.
Com estes elementos, a mínima colisão tinha de produzir uma grande revolução. Enquanto a alta nobreza e os velhos funcionários civis e militares eram os únicos apoios seguros do sistema existente; enquanto a baixa nobreza, as classes médias dos negócios, as universidades, os professores de todos os graus de ensino e mesmo uma parte das fileiras inferiores da burocracia e dos oficiais do exército, estavam todos coligados contra o governo; enquanto, por detrás destes, estavam as massas descontentes do campesinato e dos proletários das grandes cidades, apoiando, por enquanto, a oposição liberal, mas murmurando já palavras estranhas acerca de tomar as coisas nas suas próprias mãos; enquanto a burguesia estava pronta para derrubar o governo e os proletários se preparavam para derrubar, por sua vez, a burguesia; — este governo seguia obstinadamente um rumo que tinha de produzir uma colisão. No começo de 1848, a Alemanha estava nas vésperas de uma revolução e certamente que esta revolução viria, mesmo que a revolução francesa de Fevereiro a não tivesse acelerado.
Veremos, no artigo seguinte, quais os efeitos desta revolução de Paris sobre a Alemanha.
Londres, Setembro de 1851.
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Notas de Rodapé:
(5*) Em latim no texto: literatos. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(6*) Cf. G. W. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts (Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito), § 273. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(7*) Frederico Guilherme III. (retornar ao texto)
(8*) Em francês no texto: Luís, o Desejado. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(9*) Ver nota da p. 313. Note-se, contudo, que Engels emprega desta vez a palavra "estales". (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(10*) Em francês no texto: belo ideal. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Notas de Fim de Tomo:
[N59] Legitimistas: partidários da dinastia "legítima" dos Bourbons, derrubada em 1830, que representava os interesses dos detentores de grandes propriedades fundiárias hereditárias. Na luta contra a dinastia reinante dos Orleães (1830-1848), que se apoiava na aristocracia financeira e na grande burguesia, uma parte dos legitimistas recorria frequentemente à demagogia liberal, apresentando-se como defensores dos trabalhadores contra os exploradores burgueses. (retornar ao texto)
[N80] Santa Aliança: agrupamento reaccionário dos monarcas europeus, fundada em 1815 pela Rússia tsarista, pela Áustria e pela Prússia para esmagar os movimentos revolucionários de alguns países e manter neles regimes monarco-feudais. (retornar ao texto)
[N169] No Congresso de Viena de 1814-1815 a Áustria, a Inglaterra e a Rússia tsarista, que chefiavam a reacção europeia, retalharam o mapa da Europa com o objectivo de restaurar as monarquias legítimas, contra os interesses da unificação nacional e da independência dos povos. (retornar ao texto)
[N170] Em Julho de 1830 teve lugar em França uma revolução burguesa que foi seguida por insurreições numa série de países europeus: Bélgica, Polónia, Alemanha e Itália. (retornar ao texto)
[N171] Jovem Alemanha: grupo literário que surgiu nos anos 30; nas suas obras artísticas e jornalísticas reflectia o estado de espírito oposicionista da pequena burguesia e agiu em defesa da liberdade de consciência e de imprensa. (retornar ao texto)
[N172] Berliner politisches Wochenblatt (Semanário Político de Berlim), órgão extremamente reaccionário editado entre 1831 e 1841, com a participação de vários representantes da escola histórica do direito. (retornar ao texto)
[N173] Escola histórica do direito: corrente reaccionária da historiografia e do direito que surgiu na Alemanha em fins do século XVIII. (retornar ao texto)
[N174] Rheinische Zeitung für Politik, Handel und Gewerbe (Gazeta Renana sobre Política, Comércio e Indústria): jornal publicado em Colónia de 1 de Janeiro de 1842 a 31 de Março de 1843. Marx colaborou no jornal a partir de Abril de 1842, e em Outubro desse mesmo ano tornou-se seu redactor. (retornar ao texto)
[N175] Comités unidos: órgãos consultivos da Prússia constituídos na base de estados sociais, e que eram eleitos pelas Dietas Provinciais entre os seus componentes. (retornar ao texto)
[N176] Seehandlung (comércio marítimo): sociedade de comércio e de crédito fundada em 1772 na Prússia. Gozava de uma série de importantes privilégios estatais e concedia grandes empréstimos ao governo. (retornar ao texto)
[N177] Dieta Unida: assembleia unificada das Dietas Provinciais constituídas na base de estados sociais, que se reuniu em Berlim em Abril de 1847 para garantir ao rei um empréstimo externo. Em virtude da recusa do rei em satisfazer as mais modestas exigências políticas da maioria burguesa da Dieta, esta recusou-se a garantir o empréstimo, pelo que, em Junho desse mesmo ano, foi dissolvida pelo rei. (retornar ao texto)
[N178] Alusão às obras dos representantes do socialismo alemão ou "verdadeiro", corrente reaccionária que se difundiu na Alemanha nos anos 40 do século XIX, particularmente entre a intelectualidade pequeno-burguesa. (retornar ao texto)
Inclusão | 23/08/2007 |