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Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e a qual por sua vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias individuais e opostas umas às outras, está ao mesmo tempo dada também a repartição, e precisamente a repartição desigual, tanto quantitativa como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e portanto a propriedade, [17] a qual já tem o seu embrião, a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A escravatura latente na família, se bem que ainda muito rudimentar, é a primeira propriedade, que de resto já aqui corresponde perfeitamente à definição dos modernos economistas, segundo a qual ela é o dispor de força de trabalho [Arbeitskraft] alheia. De resto, divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas — numa enuncia-se em relação à actividade o mesmo que na outra se enuncia relativamente ao produto da actividade.
Além disso, com a divisão do trabalho está dada, ao mesmo tempo, a contradição entre o interesse de cada um dos indivíduos ou de cada uma das famílias e o interesse comunitário de todos os indivíduos que mantêm intercâmbio uns com os outros; e a verdade é que este interesse comunitário de modo nenhum existe meramente na representação, como "universal", mas antes de mais na realidade, como dependência recíproca dos indivíduos entre os quais o trabalho está dividido.
E é precisamente por esta contradição do interesse particular e do interesse comunitário que o interesse comunitário assume uma forma autónoma como Estado, separado dos interesses reais dos indivíduos e do todo, e ao mesmo tempo como comunidade ilusória, mas sempre sobre a base real [realen Basis] dos laços existentes em todos os conglomerados de famílias e tribais — como de carne e sangue, de língua, de divisão do trabalho numa escala maior, e demais interesses -, e especialmente, como mais tarde desenvolveremos, das classes desde logo condicionadas pela divisão do trabalho e que se diferenciam em todas essas massas de homens, e das quais uma domina todas as outras. Daqui resulta que todas as lutas no seio do Estado, a luta entre a democracia, a aristocracia e a monarquia, a luta pelo direito de voto, etc., etc., não são mais do que as formas ilusórias em que são travadas as lutas reais das diferentes classes entre si (disto os teóricos alemães não percebem uma sílaba, apesar de se lhes ter dado para isso indicações suficientes nos Deutsch-Französische Jahrbücher [N13] e em A Sagrada Família); e também que todas as classes que aspiram ao domínio, mesmo quando o seu domínio, como é o caso com o proletariado, condiciona a superação de toda a forma velha da sociedade e da dominação em geral, têm primeiro de conquistar o poder político, para por sua vez representarem o seu interesse como o interesse geral, coisa que no primeiro momento são obrigadas a fazer.
Precisamente porque os indivíduos procuram apenas o seu interesse particular, o qual para eles não coincide com o seu interesse comunitário — a verdade é que o geral é a forma ilusória da existência na comunidade -, este é feito valer como um interesse que lhes é "alheio" [18] e "independente" deles, como um interesse "geral" que é também ele, por seu turno, particular e peculiar, ou eles próprios têm de se mover (39) nesta discórdia, como na democracia. Por outro lado, também a luta prática destes interesses particulares, que realmente se opõem constantemente aos interesses comunitários e aos interesses comunitários ilusórios, torna necessários a intervenção e o refreamento práticos pelo interesse "geral" ilusório como Estado (40).
[17] E, finalmente, a divisão do trabalho oferece-nos logo o primeiro exemplo de como, enquanto os homens se encontram na sociedade natural, ou seja, enquanto existir a cisão entre o interesse particular e o comum, enquanto, por conseguinte, a actividade não é dividida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria acção do homem se torna para este um poder alheio e oposto que o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la. E que assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um círculo de actividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico crítico, e terá de continuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência — ao passo que na sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo de actividade, mas se pode adestrar em todos os ramos que preferir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã, pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico.
[18] Esta fixação da actividade social, esta consolidação do nosso próprio produto como força objectiva acima de nós que escapa ao nosso controlo, contraria as nossas expectativas e aniquila os nossos cálculos, é um dos factores principais no desenvolvimento histórico até aos nossos dias. O poder social, isto é, a força de produção multiplicada que surge pela cooperação dos diferentes indivíduos condicionada na divisão do trabalho, aparece a estes indivíduos — porque a própria cooperação não é voluntária, mas natural — não como o seu próprio poder unido, mas como uma força alheia que existe fora deles, da qual não sabem donde vem e a que se destina, que eles, portanto, já não podem dominar e que, pelo contrário, percorre uma série peculiar de fases e etapas de desenvolvimento independente da vontade e do esforço dos homens, e que em primeiro lugar dirige essa vontade e esse esforço(41). De outro modo, como poderia, por exemplo, a propriedade ter uma história, assumir várias formas, e, por exemplo, a propriedade fundiária, conforme as diferentes condições existentes, passar em França do parcelamento para a centralização em poucas mãos, e em Inglaterra da centralização em poucas mãos para o parcelamento, como é hoje realmente o caso? Ou como explicar que o comércio, que não é de facto mais do que a troca de produtos de diferentes indivíduos e países, domine o mundo inteiro pela relação de procura e fornecimento [Nachfrage und Zufuhr] — uma relação que, como diz um economista inglês, paira sobre a Terra semelhante ao Destino antigo e com mão invisível distribui a felicidade e a infelicidade aos homens, funda impérios e destrói impérios, faz nascer [19] e desaparecer(42) povos -, ao passo que com a supressão da base, da propriedade privada, com a regulação comunista da produção e o aniquilamento a ela inerente do alheamento [Fremdheit] com que os homens se relacionam com o seu próprio produto, o poder da relação de procura e fornecimento se dissolve em nada e os homens voltam a ter sob o seu domínio a troca, a produção, o modo da sua mútua relação?
[18] Esta "alienação" [Entfremdung], para continuarmos compreensíveis para os filósofos, só pode ser superada, evidentemente, dadas duas premissas práticas. Para que ela se torne um poder "insuportável", isto é, um poder contra o qual se faça uma revolução, é necessário que tenha criado uma grande massa da humanidade "destituída de propriedade" e ao mesmo tempo em contradição com um mundo existente de riqueza e cultura, o que pressupõe um grande aumento da força produtiva, um grau elevado do seu desenvolvimento — e, por outro lado, este desenvolvimento das forças produtivas (com o qual já está dada, simultaneamente, a existência empírica concreta dos homens a nível histórico-mundial, em vez de a nível local) é também uma premissa prática absolutamente necessária porque sem ele só a penúria se generaliza, e, portanto, com a miséria também teria de recomeçar a luta pelo necessário e de se produzir de novo toda a velha porcaria, e ainda porque só com este desenvolvimento universal das forças produtivas se estabelece um intercâmbio universal dos homens, que por um lado produz o fenómeno da grande massa "destituída de propriedade" em todos os povos ao mesmo tempo (concorrência geral), torna todos eles dependentes das revoluções uns dos outros e, por fim, colocou indivíduos empiricamente universais, indivíduos histórico-mundiais, no lugar dos indivíduos locais. Sem isto, 1) o comunismo só poderia existir como fenómeno local, 2) os poderes do intercâmbio não teriam eles próprios podido desenvolver-se como poderes universais, e por isso insuportáveis, e teriam permanecido "circunstâncias" de superstição caseira, e 3) todo o alargamento do intercâmbio suprimiria o comunismo local. Empiricamente, o comunismo só é possível como o acto dos povos dominantes "de repente" e ao mesmo tempo (43) [N14], o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial que com ele se liga (44).
[19] De resto, a massa de meros operários — força operária [Arbeiterkraft] massiva (45) separada do capital ou de qualquer limitada satisfação -, e por isso também a perda já não temporária deste mesmo trabalho como uma fonte assegurada de vida, pressupõe o mercado mundial por meio da concorrência. O proletariado só pode, por conseguinte, existir à escala histórico-mundial, tal como só pode haver comunismo, a sua acção, como existência "histórico-mundial"; existência histórico-mundial dos indivíduos, ou seja, a existência dos indivíduos directamente ligada à história mundial.
[18] O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido, um ideal pelo qual a realidade [terá] de se regular. Chamamos comunismo ao movimento real que supera o actual estado de coisas. As condições deste movimento resultam da premissa actualmente existente (46).
[19] A forma de intercâmbio condicionada em todos os estádios históricos até aos nossos dias pelas forças de produção existentes, e que por seu turno as condiciona, é a sociedade civil, a qual, como se torna claro pelo que já foi dito, tem por premissa e base a família simples e a família composta, o chamado sistema tribal, cujas características marcantes mais precisas se encontram contidas em páginas precedentes. Já por aqui se revela que esta sociedade civil é o verdadeiro lar e teatro de toda a história, e que é absurda a concepção da história até hoje defendida que despreza as relações reais ao confinar-se às acções altissonantes de chefes e de Estados.
Até aqui considerámos principalmente apenas uma das facetas da actividade humana, o trabalho da natureza pelos homens. A outra faceta, o trabalho dos homens pelos homens...(47)
Origem do Estado e a relação do Estado com a sociedade civil(48).
[20] A história não é senão a sucessão das diversas gerações, cada uma das quais explora os materiais, capitais, forças de produção que lhe são legados por todas as que a precederam, e que por isso continua, portanto, por um lado, em circunstâncias completamente mudadas, a actividade transmitida, e por outro lado modifica as velhas circunstâncias com uma actividade completamente mudada, o que permite a distorção especulativa de fazer da história posterior o objectivo da anterior, por exemplo, colocar como subjacente ao descobrimento da América o objectivo de proporcionar a eclosão da Revolução Francesa; deste modo, a história recebe então os seus objectivos à parte, e torna-se uma "pessoa a par de outras pessoas" (como sejam: "Consciência de Si, Crítica, Único", etc.), enquanto aquilo que se designa com as palavras "Determinação", "Finalidade", "Germe", "Ideia" da história anterior mais não é do que uma abstracção formada a partir da história posterior, uma abstracção a partir da influência activa que a história anterior exerce sobre a posterior.
Quanto mais se expandem, no curso deste desenvolvimento, os diversos círculos que actuam uns sobre os outros, quanto mais o isolamento original de cada nacionalidade é aniquilado pelo modo de produção e o intercâmbio já formados e pela divisão do trabalho entre as diferentes nações assim naturalmente produzida por eles, tanto mais a história se torna história mundial, pelo que, por exemplo, quando em Inglaterra é inventada uma máquina que deixa sem pão inúmeros operários na Índia e na China e transforma profundamente toda a forma de existência destes impérios, este invento torna-se um facto histórico-mundial; e o açúcar e o café provaram a sua importância mundial no século XIX pelo facto de a falta destes produtos, provocada pelo Sistema Continental Napoleónico [N15] ter levado os Alemães [21] à revolta contra Napoleão e se ter assim tornado a base real das guerras gloriosas de libertação de 1813. Daqui decorre que esta transformação da história em história mundial não é, de modo nenhum, um mero acto abstracto da "Consciência de Si", do Espírito do mundo ou de qualquer outro espectro metafísico, mas um acto totalmente material, demonstrável empiricamente, um acto cuja prova é fornecida por cada indivíduo no seu dia-a-dia, ao comer, ao beber e ao vestir-se.
Na história até aos nossos dias é, sem dúvida, igualmente um facto empírico que cada um dos indivíduos, à medida que a actividade se alarga à escala histórico-mundial, fica cada vez mais escravizado sob um poder que lhe é estranho (cuja pressão eles imaginaram como chicana do chamado Espírito do mundo, etc.), um poder que se tornou cada vez mais desmedido e que em última instância se legitima como o mercado mundial. Mas, do mesmo modo, está empiricamente provado que pelo derrubamento do estado de coisas vigente na sociedade por meio da revolução comunista (da qual mais adiante falaremos) e da abolição da propriedade privada que àquela é idêntica, este poder tão misterioso para os teóricos alemães será dissolvido, e então será realizada a libertação de cada um dos indivíduos na medida em que a história se transforma completamente em história mundial(49). Depois do que atrás ficou dito, torna-se claro que a verdadeira riqueza espiritual do indivíduo depende completamente da riqueza das suas relações reais. Só deste modo os diferentes indivíduos são libertados das várias barreiras nacionais e locais, colocados em relação prática com a produção (também com a espiritual) de todo o mundo e colocados em condições de adquirir a capacidade de fruição para toda esta variada produção da Terra inteira (as criações dos homens). A dependência integral, esta forma natural da cooperação histórico-mundial dos indivíduos, é transformada [22] por esta revolução comunista no controlo e domínio consciente destes poderes que, gerados da acção dos homens uns sobre os outros, até aqui se lhes têm imposto e os têm dominado como poderes completamente estranhos. Ora, esta visão pode, de novo, ser concebida de modo idealista-especulativo, ou seja, de modo fantástico como "autogeração da espécie" (a "sociedade como sujeito"), e deste modo a série consecutiva de indivíduos em conexão entre si pode ser imaginada como um único indivíduo que realiza o mistério de se gerar a si próprio. Torna-se aqui evidente que os indivíduos se fazem de facto uns aos outros, física e espiritualmente, mas não se fazem a si próprios, nem no sentido absurdo do sagrado Bruno, nem no sentido do "Único", do homem "feito".
Por fim, da concepção da história que desenvolvemos obtemos ainda os seguintes resultados: 1) No desenvolvimento das forças produtivas atinge-se um estádio no qual se produzem forças de produção e meios de intercâmbio que, sob as relações vigentes, só causam desgraça, que já não são forças de produção, mas forças de destruição (maquinaria e dinheiro) — e, em conexão com isto, é produzida uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem gozar das vantagens desta e que, excluída da sociedade [23], é forçada ao mais decidido antagonismo a todas as outras classes; uma classe que constitui a maioria de todos os membros da sociedade e da qual deriva a consciência sobre a necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista, a qual, evidentemente, também se pode formar no seio das outras classes por meio da observação da posição desta classe; 2) que as condições, no seio das quais podem ser aplicadas determinadas forças de produção, são as condições do domínio de uma determinada classe da sociedade, cujo poder social, decorrente da sua propriedade, tem a sua expressão prática-idealista na respectiva forma de Estado, e por isso toda a luta revolucionária se dirige contra uma classe que até então dominou(50); 3) que em todas as revoluções anteriores o modo da actividade permaneceu sempre intocado e foi só uma questão de uma outra distribuição desta actividade, de uma nova repartição do trabalho a outras pessoas, ao passo que a revolução comunista se dirige contra o modo da actividade até aos nossos dias, elimina o trabalho(51) e suprime o domínio de todas as classes suprimindo as próprias classes, porque é realizada pela classe que na sociedade já não vale como uma classe, não é reconhecida como uma classe, é já a expressão da dissolução de todas as classes, nacionalidades, etc., no seio da sociedade actual; e 4) que, tanto para a produção massiva desta consciência comunista como para a realização da própria causa, é necessária uma transformação massiva dos homens que só pode processar-se num movimento prático, numa revolução; que, portanto, a revolução não é só necessária porque a classe dominante de nenhum outro modo pode ser derrubada, mas também porque a classe que a derruba só numa revolução consegue sacudir dos ombros toda a velha porcaria e tornar-se capaz de uma nova fundação da sociedade(52).
[24] Esta concepção da história assenta, portanto, no desenvolvimento do processo real da produção, partindo logo da produção material da vida imediata, e na concepção da forma de intercâmbio intimamente ligada a este modo de produção e por ele produzida, ou seja, a sociedade civil nos seus diversos estádios, como base de toda a história, e bem assim na representação da sua acção como Estado, explicando a partir dela todos os diferentes produtos teóricos e formas da consciência — a religião, a filosofia, a moral, etc., etc. — e estudando a partir destas o seu nascimento; deste modo, naturalmente, a coisa pode também ser apresentada na sua totalidade (e por isso também a acção recíproca destas diferentes facetas umas sobre as outras). Ao contrário da visão idealista da história, não tem de procurar em todos os períodos uma categoria, pois permanece constantemente com os pés assentes no chão real da história; não explica a práxis a partir da ideia, explica as formações de ideias a partir da práxis material, e chega, em consequência disto, também a este resultado(53): todas as formas e produtos da consciência podem ser resolvidos não pela crítica espiritual, pela dissolução na "Consciência de Si" ou pela transformação em "aparições", "espectros", "manias"[N17], etc., mas apenas pela transformação prática [revolucionária] das relações sociais reais de que derivam estas fantasias idealistas — a força motora da história, também da religião, da filosofia e de toda a demais teoria, não é a crítica, mas sim a revolução. Ela mostra que a história não termina resolvendo-se na "Consciência de Si" como "espírito do espírito"(54), mas que nela, em todos os estádios, se encontra um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação historicamente criada com a natureza e dos indivíduos uns com os outros que a cada geração é transmitida pela sua predecessora, uma massa de forças produtivas, capitais e circunstâncias que, por um lado, é de facto modificada pela nova geração, mas que por outro lado também lhe prescreve as suas próprias condições de vida e lhe dá um determinado desenvolvimento, um carácter especial -, mostra, portanto, que as circunstâncias fazem os homens tanto [25] como os homens fazem as circunstâncias.
Esta soma de forças de produção, capitais e formas de intercâmbio social, que todos os indivíduos e todas as gerações vêm encontrar como algo de dado, é o fundamento real daquilo que os filósofos se têm representado como "substância" e "essência do Homem", daquilo que têm apoteotizado e combatido — um fundamento real que de modo nenhum é afectado nos seus efeitos e influências sobre o desenvolvimento dos homens pelo facto de estes filósofos se rebelarem contra ele como "Consciência de Si" e o "Único". Estas condições de vida que as diferentes gerações já encontram vigentes é que decidem, também, se o abalo revolucionário periodicamente recorrente na história será suficientemente forte ou não para deitar a baixo a base de todo o existente, e quando estes elementos materiais de um revolucionamento total — ou seja, por um lado, as forças produtivas existentes, por outro, a formação de uma massa revolucionária que faz a revolução não apenas contra estas ou aquelas condições da sociedade anterior, mas contra a própria "produção da vida" vigente até agora, contra a "actividade total" em que se baseava — não estão presentes, então é completamente indiferente para o desenvolvimento prático que a ideia desta transformação profunda já tenha sido expressa centenas de vezes — como o prova a história do comunismo.
Toda a concepção da história até hoje ou deixou, pura e simplesmente, por considerar esta base real da história, ou viu nela apenas algo de secundário e sem qualquer conexão com o curso histórico. A história tem, por isso, de ser sempre escrita segundo um critério que lhe é extrínseco; a produção real da vida aparece como historicamente primitiva, enquanto o que é histórico aparece como existindo separado da vida em comum, como extra-supraterreno. A relação dos homens com a natureza fica, deste modo, excluída da história, pelo que é gerado o antagonismo de natureza e história. Daí que tal concepção só tenha podido ver na história acções políticas de chefes e de Estados e lutas religiosas e teóricas em geral, e tenha tido, em especial, em cada época histórica, de partilhar da ilusão dessa época. Por exemplo, se uma época imagina ser determinada por motivos puramente "políticos" ou "religiosos", embora a "religião" e a "política" sejam apenas formas dos seus motivos reais, o seu historiógrafo aceita esta opinião. A "ilusão", a "representação" destes homens determinados sobre a sua práxis real é transformada no único poder determinante e activo que domina e determina a práxis desses homens. Quando a forma rudimentar em que aparece a divisão do trabalho dos Indianos e entre os Egípcios dá origem, nestes povos, ao sistema de castas no seu Estado e na sua religião, o historiador acredita ser o sistema de castas [26] o poder que gerou esta forma social rudimentar.
Enquanto os Franceses e os Ingleses se agarram pelo menos à ilusão política, que está mais perto da realidade, os Alemães movem-se no reino do "espírito puro" e fazem da ilusão religiosa a força motora da história. A filosofia da história de Hegel é a última consequência, levada à sua "expressão mais pura", de toda esta Historiografia Alemã, na qual a questão não é a dos interesses reais, nem sequer dos interesses políticos, mas dos pensamentos puros, e que depois tem de aparecer ao sagrado Bruno como uma série de "pensamentos" que se devoram uns aos outros e que por fim se afundam na "Consciência de Si" e, de um modo ainda mais consequente, ao sagrado Max Stirner, o qual nada sabe de toda a história real, este curso histórico tem de aparecer como uma mera história de "cavaleiros", salteadores e espectros, face às visões dos quais ele naturalmente só sabe salvar-se pela "impiedade"(55). Esta concepção é realmente religiosa, faz passar o homem religioso pelo homem original do qual parte toda a história, e coloca, na sua imaginação, a produção de fantasias religiosas no lugar da produção real dos meios de subsistência e da própria vida.
Toda esta concepção da história, juntamente com a sua dissolução e os escrúpulos e dúvidas dela resultantes, é um assunto meramente nacional dos Alemães e tem interesse apenas local para a Alemanha, como, por exemplo, esta questão importante, e recentemente muito tratada: como é que de facto "se vem do reino de Deus para o reino dos homens", como se este "reino de Deus" tivesse alguma vez existido em qualquer outra parte que não na imaginação, e os doutos senhores não vivessem continuamente, sem o saberem, no "reino dos homens" para o qual agora procuram caminho, e como se o divertimento científico, pois não é mais do que isso, de explicar a singularidade desta nefelibatice teórica não residisse precisamente em, ao contrário, demonstrar o seu nascimento a partir das relações terrenas reais. A verdade é que, para estes Alemães, a questão é sempre a de resolverem o contra-senso com que deparam [27] numa outra tolice qualquer, ou seja, de pressuporem que todo esse contra-senso tem, de facto, um sentido especial que há que descobrir, ao passo que se trata apenas de explicar essa fraseologia teórica a partir das relações reais vigentes. A resolução prática, real, dessa fraseologia, a eliminação destas representações da consciência dos homens, é operada, como já dissemos, pela mudança das circunstâncias, e não por meio de deduções teóricas. Para a massa dos homens, isto é, para o proletariado, não existem estas representações teóricas, e, portanto, para ele, não precisam de ser resolvidas; e se esta massa teve quaisquer representações teóricas, por exemplo, a religião, já há muito que estas se encontram resolvidas pelas circunstâncias.
O que há de puramente nacional nestas questões e soluções revela-se ainda no facto de estes teóricos acreditarem, com toda a seriedade, que ficções do cérebro como "o Homem-Deus", "o Homem", etc., tivessem alguma vez presidido a cada uma das épocas da história — o sagrado Bruno chega mesmo ao ponto de afirmar que só "a crítica e os críticos fizeram a história"[N18] — e de, quando eles próprios se dedicam a construções históricas, saltarem, com a maior das pressas, sobre tudo o que é mais remoto e passarem logo do "Mongolismo" [N19] para a história autêntica e "cheia de conteúdo", isto é, a história dos Hallische e dos Deutsche Jahrbücher[N20] e da dissolução da escola hegeliana para uma bulha geral. São esquecidas todas as outras nações, todos os acontecimentos reais, o theatrum mundi(56) confina-se à Feira do Livro de Leipzig e às desavenças mútuas da "crítica", do "Homem" e do "Único"(57). Se a teoria se dá alguma vez ao trabalho de tratar de temas realmente históricos, como, por exemplo, o século XVIII, os seus adeptos dão só a história das representações, desligada dos factos e dos desenvolvimentos práticos que lhes estão na base, e mesmo assim apenas com a intenção de apresentarem esse tempo como um estádio preliminar imperfeito, como precursor ainda limitado do verdadeiro tempo histórico, ou seja, do tempo da luta dos filósofos alemães de 1840/44. A este objectivo de escrever uma história de um período anterior para fazer brilhar, com mais fulgor ainda, a glória de uma pessoa a-histórica e das suas fantasias corresponde o facto de não se mencionar nenhuns factos realmente históricos, nem mesmo as intervenções realmente históricas da política na história, e de, em vez disso, se dar uma narrativa assente não em estudos mas em construções e historietas de mexericos literários — como aconteceu com o sagrado Bruno na sua já esquecida História do Século XVIII[N21]. Estes patéticos e arrogantes merceeiros de ideias, que crêem estar infinitamente acima de todos os preconceitos nacionais, são, pois, na prática, ainda muito mais nacionais do que os filisteus bebedores de cerveja que sonham com a unidade da Alemanha. Não reconhecem como históricos os actos de outros povos, vivem na Alemanha pela Alemanha [28] e para a Alemanha, transformam a canção do Reno[N22] num hino religioso, e conquistam a Alsácia e a Lorena roubando, não o Estado francês, mas a filosofia francesa,- e germanizando, não províncias francesas, mas ideias francesas. Comparado aos Sagrados Bruno e Max, que no domínio universal da teoria proclamam o domínio universal da Alemanha, Herr Venedey é um cosmopolita.
Destas disputas torna-se também claro quanto Feuerbach se ilude ao declarar-se, em virtude da qualificação "homem comunitário" [Gemeinmensch], um comunista[N23] (Wigand's Vierteljahrsschrift, 1845, Bd. 2), ao transformar comunista num predicado "do" Homem, ou seja, ao julgar poder transformar a palavra comunista, que no mundo que existe designa o adepto de um determinado partido revolucionário, de novo numa mera categoria. Toda a dedução de Feuerbach quanto à relação dos homens entre si não vai além de provar que os homens precisam, e sempre precisaram, uns dos outros. Ele quer estabelecer a consciência acerca deste facto, isto é, como os restantes teóricos quer apenas produzir uma consciência correcta acerca dum facto existente, ao passo que ao comunismo real o que importa é derrubar este existente. De resto, reconhecemos perfeitamente que Feuerbach, ao esforçar-se por criar a consciência precisamente deste facto, vai tão longe quanto qualquer teórico pode ir sem deixar de ser um teórico e um filósofo. Mas o que é característico é que os Sagrados Bruno e Max coloquem logo a noção de comunista de Feuerbach no lugar do comunista real, o que em parte sucede precisamente para poderem combater o comunismo também como "espírito do espírito", como categoria filosófica, como adversário da mesma condição — e da parte do sagrado Bruno também por interesses pragmáticos.
Como exemplo do reconhecimento, e ao mesmo tempo desconhecimento, do que existe — que Feuerbach continua a partilhar com os nossos adversários -, recordamos o passo da Filosofia do Futuro em que ele expõe que o ser de uma coisa ou de um homem é, ao mesmo tempo, a sua essência[N24], que as determinadas condições de existência, o modo de vida e a actividade de um indivíduo animal ou humano são aquilo mesmo em que a sua "essência" se sente satisfeita. Aqui se entendem todas as excepções expressamente como acasos infelizes, como uma anormalidade que não se pode alterar. Se, portanto, milhões de proletários não se sentem de modo nenhum satisfeitos nas suas condições de vida, se o seu "ser" [29] de modo nenhum corresponde à sua "essência", isto é, segundo o passo citado, uma desgraça inevitável que deve ser suportada tranquilamente. Estes milhões de proletários ou comunistas, porém, pensam de modo totalmente diferente, e prová-lo-ão a seu tempo, quando, de um modo prático, por meio de uma revolução, estabelecerem a harmonia entre o seu "ser" e a sua "essência". Feuerbach, portanto, nunca fala do mundo do homem nestes casos, refugia-se sempre na natureza exterior, e, para mais, na natureza que ainda não foi dominada pelos homens. Mas cada nova invenção, cada avanço da indústria, separa outro pedaço deste domínio, pelo que diminui continuamente a área que produz os exemplos ilustrativos das proposições de Feuerbach. A "essência" do peixe é o seu "ser", a água — para nos ficarmos por esta proposição. A "essência" do peixe de água doce é a água de um rio. Mas esta deixa de ser a "essência" do peixe, e já não é um meio adequado de existência, assim que o rio é posto ao serviço da indústria, assim que é poluído com tintas e outros produtos residuais, e navegado por barcos a vapor, ou assim que a sua água é conduzida para canais onde bastam os esgotos para privar o peixe do seu meio de existência. A explicação de que todas estas contradições são inevitáveis anormalidades não difere essencialmente da consolação que o Sagrado Max Stirner oferece aos descontentes, quando lhes diz que esta contradição é a contradição própria deles e esta situação aflitiva a situação aflitiva própria deles, pelo que deveriam ou tranquilizar o espírito, guardar para si próprios o seu horror, ou revoltar-se contra ela de um qualquer modo fantástico. Do mesmo modo, pouco difere da alegação de São Bruno de que estas circunstâncias infelizes se ficam a dever ao facto de que as pessoas estão presas no esterco da "substância", não avançaram para a "absoluta Consciência de Si", e não compreendem que estas condições adversas são espírito do seu espírito.
[30] As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, pelo que lhe estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para a produção espiritual. As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal [ideell] das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias do seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência, e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão, e portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de ideias, regulam a produção e a distribuição de ideias do seu tempo; que, portanto, as suas ideias são as ideias dominantes da época. Numa altura, por exemplo, e num país em que o poder real, a aristocracia e a burguesia lutam entre si pelo domínio, em que portanto o domínio está dividido, revela-se ideia dominante a doutrina da divisão dos poderes, que é agora declarada uma "lei eterna".
A divisão do trabalho, que já atrás (pp. [15-18])(58) encontrámos como uma das principais forças da história até aos nossos dias, manifesta-se agora também na classe dominante como divisão do trabalho espiritual e [31] material, pelo que no seio desta classe uma parte surge como os pensadores desta classe (os ideólogos conceptivos activos da mesma, os quais fazem da formação da ilusão desta classe sobre si própria a sua principal fonte de sustento), ao passo que os outros têm uma atitude mais passiva e receptiva em relação a estas ideias e ilusões, pois que na realidade são eles os membros activos desta classe e têm menos tempo para criar ilusões e ideias sobre si próprios. No seio desta classe pode esta cisão da mesma chegar a uma certa oposição e hostilidade entre ambas as partes, mas que por si própria desaparece em todas as colisões práticas em que a própria classe fica em perigo, desaparecendo então também a aparência de que as ideias dominantes não seriam as ideias da classe dominante e teriam um poder distinto do poder desta classe. A existência de ideias revolucionárias numa época determinada pressupõe já a existência de uma classe revolucionária, e já atrás ficou dito o que era necessário sobre estas premissas (pp. [18-19, 22-23]) (59).
Ora, se na concepção do curso da história desligarmos as ideias da classe dominante da classe dominante, se lhes atribuirmos uma existência autónoma, se nos ficarmos por que numa época dominaram estas e aquelas ideias, sem nos preocuparmos com as condições da produção e com os produtores destas ideias, se, portanto, deixarmos de fora os indivíduos e as condições do mundo que estão na base das ideias, então poderemos dizer, por exemplo, que durante o tempo em que dominou a aristocracia dominaram os conceitos honra, lealdade, etc., durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos liberdade, igualdade, etc.(60) Em média, é isto que a própria classe dominante imagina. Esta concepção da história, que a todos os historiadores é comum, em especial a partir do século XVIII, há-de necessariamente dar com o [32] fenómeno de que dominam ideias cada vez mais abstractas, isto é ideias que assumem cada vez mais a forma da universalidade. É que cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou antes dela, é obrigada, apenas para realizar o seu propósito, a apresentar o seu interesse como o interesse comunitário de todos os membros da sociedade, ou seja, na expressão ideal [ideell]: a dar às suas ideias a forma da universalidade, a apresentá-las como as únicas racionais e universalmente válidas. A classe revolucionante entra em cena desde o princípio, já que tem pela frente uma classe, não como classe, mas como representante de toda a sociedade, ela aparece como a massa inteira da sociedade face à única classe, a dominante(61). E consegue-o porque, a princípio, o seu interesse anda realmente ainda mais ligado ao interesse comunitário de todas a demais classes não dominantes, porque sob a pressão das condições até aí vigentes ele não pôde ainda desenvolver-se como interesse particular de uma classe particular. A sua vitória aproveita também, por isso, a muitos indivíduos das demais classes que não se tornam dominantes, mas apenas na medida em que permite a estes indivíduos subirem à classe dominante. Quando burguesia francesa derrubou o domínio da aristocracia, tornou desse modo possível a muitos proletários subirem acima do proletariado, mas apenas na medida em que se tornaram burgueses. Cada nova classe, por isso, instaura o seu domínio apenas sobre uma base mais ampla do que a da até aí dominante, pelo que, em contrapartida, mais tarde também o antagonismo da classe não dominante contra a agora dominante se desenvolve muito mais aguda e profundamente. Por ambas as razões é determinado o facto de que a luta a travar contra a nova classe dominante por seu turno visará uma negação mais radical, mais decidida, das condições sociais até aí vigentes [33] do que fora possível a todas as classes que anteriormente procuraram dominar.
Toda esta aparência de que o domínio de uma determinada classe seria apenas o domínio de certas ideias cessa, naturalmente, por si mesma logo que o domínio de classes em geral deixa de ser a forma da ordem social, logo que, portanto, deixa de ser necessário apresentar um interesse particular como geral ou "o geral" como dominante.
Uma vez separadas as ideias dominantes dos indivíduos dominantes, e sobretudo das relações decorrentes de uma dada fase do modo de produção, e atingido assim o resultado de que na história dominam sempre as ideias, é muito fácil abstrair destas várias ideias "a ideia", a Ideia, etc., como o que domina na história, e entender assim todas as diferentes ideias e conceitos como "autodeterminações" do conceito que se desenvolve na história. E, então, também é natural que todas as relações dos homens possam ser derivadas do conceito de Homem, do Homem tal como representado, da essência do Homem, do Homem. Foi o que fez a filosofia especulativa. O próprio Hegel confessa, no fim da Filosofia da História, que "apenas considerou o curso do conceito" e que na história apresentou a "verdadeira teodiceia" (p. 446). Podemos agora voltar aos produtores do "conceito", aos teóricos, ideólogos e filósofos, e chegamos então a esta conclusão: os filósofos, os pensadores como tais, desde sempre dominaram na história — uma conclusão que, como vemos, já foi expressa por Hegel[N25]. Todo o truque de demonstrar na história a soberania do espírito (a hierarquia, em Stirner) reduz-se, portanto, aos seguintes três esforços.
[34] N.º 1. É preciso separar as ideias dos que dominam por razões empíricas, em condições empíricas e como indivíduos materiais, destes mesmos que dominam, e por esta via reconhecer o domínio das ideias ou ilusões na história.
N.º 2. É preciso pôr uma ordem neste domínio das ideias, demonstrar uma conexão mística entre as ideias que sucessivamente dominam, o que se consegue pela via de considerá-las "autodeterminações do conceito" (e isto é possível pelo facto de estas ideias, graças à sua base empírica, estarem realmente em conexão entre si, e pelo facto de elas, entendidas como meras ideias, se tornarem autodistinções, diferenças feitas pelo pensamento).
N.º 3. Para eliminar o aspecto místico deste "conceito que se autodetermina", transformam-no numa pessoa — "a Consciência de Si" —, ou, para parecerem verdadeiramente materialistas, numa série de pessoas que representam "o conceito" na história, nos "pensadores", nos "filósofos", nos ideólogos, que agora de novo são entendidos como os fabricantes da história, como o "Conselho dos Guardiães", como os dominantes(62). Deste modo eliminaram da história todos os elementos materialistas, e puderam então dar rédea solta ao seu corcel especulativo.
Este método histórico que dominou na Alemanha, e especialmente a razão por que dominou, têm de ser explicados a partir da conexão com a ilusão dos ideólogos em geral, por exemplo, as ilusões dos juristas, políticos (entre os quais, também, os estadistas práticos), a partir das divagações dogmáticas e distorções destes sujeitos, ilusão aquela que muito simplesmente se explica pela sua posição prática na vida, pela sua actividade e pela divisão do trabalho.
[35] Enquanto na vida comum cada shopkeeper(63) sabe muito bem distinguir entre aquilo que alguém pretende ser e aquilo que é realmente, a verdade é que a nossa historiografia ainda não atingiu este reconhecimento trivial. Ela acredita que todas as épocas são, literalmente, aquilo que dizem e imaginam ser.
...[40](64) Do primeiro, decorre a premissa de uma divisão do trabalho já desenvolvida e de um extenso comércio; do segundo, a localidade. No primeiro caso, os indivíduos têm de ser reunidos, no segundo caso descobrem-se, a par do instrumento de produção dado, a si próprios como instrumentos de produção. Entra aqui, portanto, a diferença entre os instrumentos de produção naturais e os que foram criados pela civilização. A terra (a água, etc.) pode ser considerada como um instrumento de produção natural. No primeiro caso, no caso de um instrumento de produção natural, os indivíduos são subordinados à natureza; no segundo caso, a um produto do trabalho. No primeiro caso, a propriedade (propriedade da terra) surge, por isso, também como domínio natural directo, no segundo como domínio do trabalho, em especial do trabalho acumulado, do capital. O primeiro caso pressupõe que os indivíduos se encontram ligados por algum vinculo, seja a família, a tribo, a própria terra, etc.; o segundo caso, que são independentes uns dos outros e apenas unidos pela troca. No primeiro caso, a troca é principalmente uma troca entre os homens e a natureza, uma troca em que o trabalho de um é trocado contra os produtos da outra; no segundo caso, ela é, predominantemente, troca dos homens entre si. No primeiro caso, chega o senso comum dos homens, a actividade manual e a intelectual não estão ainda separadas; no segundo caso, tem de estar já consumada na prática a divisão entre trabalho intelectual e manual. No primeiro caso, o domínio do proprietário sobre os não proprietários pode assentar em relações pessoais, sobre uma espécie de comunidade; no segundo caso, ele tem de ter assumido uma forma concreta num terceiro elemento, o dinheiro. No primeiro caso, existe a pequena indústria, mas subordinada à utilização do instrumento de produção natural, e por isso sem repartição do trabalho por vários indivíduos; no segundo caso, a indústria existe apenas na e pela divisão do trabalho.
[41] Até aqui temos tomado os instrumentos de produção como ponto de partida, e já aqui se revelou a necessidade da propriedade privada para certas etapas industriais. Na industrie extractive(65), a propriedade privada ainda coincide completamente com o trabalho; na pequena indústria, e em toda a agricultura até aos nossos dias, a propriedade é consequência necessária dos instrumentos de produção existentes; na grande indústria, pela primeira vez, é produto desta a contradição entre o instrumento de produção e a propriedade privada, e para produzir tal contradição tem de estar já muito desenvolvida. Por isso, só com a grande indústria é também possível a abolição da propriedade privada.
A maior divisão do trabalho material e intelectual é a separação da cidade e do campo. A oposição [Gegensatz] entre a cidade e o campo começa com a transição da barbárie para a civilização, do sistema tribal para o Estado, da localidade para a nação, e estende-se através de toda a história da civilização até aos nossos dias (a Anti-Corn-Law League[N26])
Com a cidade, está ao mesmo tempo dada a necessidade da administração, da polícia, dos impostos, etc., em suma, do sistema municipal [des Gemeindewesens] e, assim, da política em geral. Aqui se revelou primeiro a divisão da população em duas grandes classes, a qual assenta directamente na divisão do trabalho e nos instrumentos de produção. A cidade é já a realidade da concentração da população, dos instrumentos de produção, do capital, dos prazeres, das necessidades, ao passo que o campo torna patente precisamente a realidade oposta, o isolamento e a solidão. A oposição entre cidade e campo só pode existir no quadro da propriedade privada. É a expressão mais crassa da subordinação do indivíduo à divisão do trabalho, a uma actividade determinada que lhe é imposta, uma subordinação que de um faz um animal limitado da cidade, do outro um animal limitado do campo, e que dia a dia de novo produz a oposição dos interesses de ambos. O trabalho é aqui, de novo, o principal, o poder sobre os indivíduos, e enquanto este existir tem de existir também a propriedade privada. A abolição da oposição de cidade e campo é uma das primeiras condições [42] da comunidade, uma condição que, por seu turno, depende de um grande número de premissas materiais e que a simples vontade não consegue preencher, como qualquer pessoa vê à primeira vista. (Estas condições têm ainda de ser aqui desenvolvidas.) A separação de cidade e campo pode ser também tomada como a divisão de capital e propriedade fundiária, como o começo de uma existência e desenvolvimento do capital independente da propriedade fundiária, do capital, ou seja, uma propriedade que tem a sua base meramente no trabalho e na troca.
Nas cidades que, na Idade Média, não tinham sido recebidas já feitas da história anterior e se formaram a partir dos servos da gleba que se tinham tornado livres, o trabalho particular de cada um era a sua única propriedade, além do pequeno capital que trazia consigo e que consistia quase só da mais necessária ferramenta do ofício. A concorrência dos servos fugidos que acorriam à cidade, a guerra permanente do campo contra as cidades e, com ela, a necessidade de um poder armado organizado das cidades, o vínculo da propriedade comum de um determinado trabalho, a necessidade de edifícios comuns para venda das suas mercadorias numa altura em que os artesãos eram, ao mesmo tempo, commerçants(66), e a consequente exclusão destes edifícios dos que nada tinham a ver com a profissão, oposição de interesses dos diferentes ofícios entre si, a necessidade de protecção do trabalho penosamente aprendido e a organização feudal de todo o país foram as causas da união dos operários de cada um dos ofícios em corporações. Não temos aqui de entrar nas múltiplas modificações do sistema corporativo surgidas ao longo de desenvolvimentos históricos posteriores. A fuga dos servos para as cidades teve ininterruptamente lugar durante toda a Idade Média. Estes servos, perseguidos no campo pelos seus senhores, vinham isolados para as cidades, onde já encontravam uma comunidade organizada contra a qual nada podiam e na qual(67) tinham de se submeter à posição que lhes apontavam a necessidade do seu trabalho e o interesse dos seus concorrentes organizados da cidade. Estes operários, que entravam um por um, nunca puderam constituir um poder, porque se o seu trabalho era regulado pelas corporações e tinha de ser aprendido, os mestres das corporações submetiam-nos a si e organizavam-nos segundo o seu interesse, ou, se o seu trabalho não tinha de ser aprendido, e não era por isso regulado pelas corporações, mas trabalho de jorna, nunca chegaram a uma organização, e permaneceram plebe desorganizada. A necessidade do trabalho de jorna nas cidades criou a plebe.
Estas cidades eram verdadeiras "associações"[N27], criadas pela necessidade [43] imediata, pelo cuidado com a protecção da propriedade, e para multiplicar os meios de produção e os meios de defesa de cada um dos membros. A plebe destas cidades ficou privada de todo o poder pelo facto de se compor de indivíduos estranhos entre si e que haviam chegado isoladamente, os quais, sem organização, se contrapunham a um poder organizado, equipado para a guerra, que os vigiava zelosamente. Os oficiais e aprendizes estavam organizados, em cada ofício, da maneira que melhor correspondia ao interesse dos mestres; a relação patriarcal em que se encontravam face aos mestres dava a estes um poder dobrado, por um lado na sua influência directa sobre toda a vida dos oficiais, e depois porque, para os oficiais, o trabalharem com o mesmo mestre era um vínculo real que os unia face aos oficiais dos restantes mestres e deles os separava, e finalmente os oficiais estavam desde logo atados à ordem vigente pelo interesse que tinham em tornar-se eles próprios mestres. Enquanto, por isso, a plebe pelo menos se ergueu em motins contra toda a ordem da cidade, os quais, no entanto, dada a sua falta de poder, não produziram quaisquer efeitos, os oficiais chegaram tão-só a pequenas insubordinações no seio de corporações separadas e de acordo com a existência do próprio sistema das guildas. Os grandes levantamentos da Idade Média partiram todos do campo, mas ficaram igualmente sem qualquer êxito devido à dispersão dos camponeses e à crueza que dela decorre. —
O capital, nestas cidades, era um capital natural, que consistia da casa, das ferramentas do ofício e dos compradores hereditários naturais, e que, devido ao intercâmbio não desenvolvido e à escassa circulação, tinha de se transmitir de pais a filhos como irrealizável. Não era este capital, ao contrário do moderno, um capital avaliável em dinheiro e para o qual é indiferente estar investido nesta ou naquela coisa, mas um capital directamente ligado ao trabalho particular do possuidor, absolutamente inseparável deste, e nessa medida, um capital de estado [ou de ordem social ständisches Kapital]. — A divisão do trabalho nas cidades entre [44] as diferentes corporações era ainda [completamente natural](68) e nas próprias corporações não era realizada entre os diferentes operários. Cada operário tinha de ser versado num ciclo inteiro de trabalhos, tinha de saber fazer tudo o que se podia fazer com as suas ferramentas; o intercâmbio reduzido e a escassa ligação das diferentes cidades entre si, a falta de população e a limitação das necessidades não permitiram o aparecimento de uma maior divisão do trabalho, e por isso todo aquele que queria ser mestre tinha de dominar completamente o seu ofício. Por isso, nos artesãos medievais se encontra ainda um interesse no seu trabalho especial e em ser destro nele que podia elevar-se a um certo sentido artístico limitado. Mas também por isso cada artesão medieval se entregava completamente ao seu trabalho, mantinha com ele uma grata relação de servo e estava muito mais subordinado a ele do que o operário moderno, ao qual o seu trabalho é indiferente.
Inclusão | 08/04/2006 |